A montagem da pulsão e o quadro do fantasma

August 25, 2017 | Autor: Andre Oliveira Costa | Categoria: Jacques Lacan, Sigmund Freud, Psicanálise
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242 janeiro/2015

OS 100 ANOS DE "PULSÕES E SEUS DESTINOS"

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Resenha

Temática A montagem da pulsão e o quadro do fantasma André Oliveira Costa Através de dois textos de Freud, “Pulsão e destinos da pulsão” (1915) e “Uma criança é batida” (1919), proponho pensar uma articulação entre dois conceitos fundamentais da psicanálise: pulsão e fantasma. O ponto de partida é que a pulsão age como uma força constante e desenfreada exercida pelo corpo em busca de satisfação, enquanto que o fantasma funciona como uma tela protetora que enquadra e delimita essa exigência, tornando possível a relação do sujeito com o Outro. Como ponto em comum, a perda do primeiro objeto que produziu satisfação: o objeto a. A pulsão surge como efeito dessa falta – através dos orifícios do corpo – e o fantasma vem servir como uma amarração – pela via de representações – de um real inapreensível. No texto “Pulsões e seus destinos”, Freud parece ter clara a ideia de que a posição primordial do sujeito é a da atividade, isto é, a pulsão buscando incontrolavelmente sua satisfação através dos objetos. Nesse sentido, ele afirma: “Não parece ocorrer um masoquismo originário que não tenha surgido do sadismo de acordo com a forma descrita” (1915/2013, pg. 38). Cabe ao sujeito proteger-se da pulsão através de diques morais. Apenas em 1920, como contraposição, a pulsão de morte e o masoquismo originário vão questionar esse princípio hedonista da condição humana. A forma a qual Freud se refere naquela citação segue a seguinte estrutura: (A) o sadismo é a dominação do sujeito sobre o objeto, (B) o masoquismo é do retorno do sadismo ao próprio sujeito e (C) o sadomasoquismo é o objeto se transformando em sujeito. A partir disso, a montagem da pulsão se estrutura como uma gramática, conjugando-se na voz ativa, voz passiva e voz reflexiva. No caso da pulsão oral, por exemplo, temos: (a) voz ativa = ‘comer’ → Eu como um objeto (b) voz passiva = ‘ser comido’ → Eu sou comido pelo Outro (c) voz reflexiva = ‘se fazer ser comido’ → Eu me faço ser comido pelo Outro Além disso, na medida em que a pulsão é um processo que tem uma meta, Freud apresenta quatro diferentes destinos para alcançá-la: (1) reversão em seu contrário, (2) retorno em direção à própria pessoa, (3) o recalque e (4) a sublimação. Tomamos os dois primeiros destinos para situar os tempos do sujeito no circuito pulsional, isto é, na montagem da pulsão. A (1) reversão de uma pulsão em seu contrário se faz de duas formas: 1. a mudança da atividade para a passividade 2. a reversão de seu conteúdo. A primeira pode ser encontrada na reversão dos pares opostos (por exemplo, sadismo/masoquismo, olhar/ser olhado). Ela caracteriza o movimento próprio da pulsão, pois estabelece suas diferentes posições: ativa, passiva e reflexiva. Para compreender o movimento entre as posições de atividade e de passividade, tomemos o exemplo do par pulsional olhar/ser olhado. Também nele, Freud diferencia as três posições da pulsão: 1. o olhar é uma atividade dirigida a um objeto estranho; (b) o objeto é desinvestido e o olhar é dirigido para a própria pessoa; assim, temos a mudança da atividade para a passividade e a posição passa a de ser olhado; (c) como consequência dessa mudança de posição, o objeto estranho passa a ser o sujeito da ação, para quem a pessoa se exibe a fim de ser olhada. É a posição reflexiva da pulsão.

Para Freud, normalmente a finalidade ativa da pulsão é anterior à sua finalidade passiva. O prazer da produção de dor pelo sádico, por exemplo, é uma posição anterior ao prazer de sofrer dor no masoquismo. Mas, apenas no caso da pulsão escópica há uma fase preliminar passiva e anterior à primeira, que é ativa: É que a pulsão de olhar é autoerótica no início de sua atividade, ou seja, ainda que tendo um objeto, ela o encontra no próprio corpo. Só mais tarde ela é conduzida (pela via da comparação) a trocar esse objeto por um que seja análogo no corpo alheio (fase a). (Freud, 1915/2013, p. 41). Foi pela pulsão escópica que Freud situou pela primeira vez a condição de passividade original do sujeito. No circuito pulsional o olhar do Outro deve ser anterior ao surgimento do sujeito. Antes de o sujeito ser ativo, antes de ele olhar para um objeto alheio, há uma fase preliminar passiva de ser objeto do olhar do Outro: “contemplar objeto alheio (prazer ativo de olhar) = o próprio objeto é contemplado por uma outra pessoa (prazer de mostrar/exibicionismo)” (Freud, 1915/2013, p. 45). O Outro toma o corpo do sujeito como objeto de seu olhar. Esse Outro que olha é condição para o sujeito se posicionar como alguém que olha ativamente um objeto. Como a montagem da pulsão se estrutura nas vozes ativa, passiva e reflexiva, o sujeito não aparece nos dois primeiros momentos, mas apenas no movimento completo do circuito pulsional. O surgimento do sujeito, então, se realiza para além da polaridade atividade-passividade, mas na possibilidade de bascular entre uma posição e outra, sem se fixar em nenhuma delas. E a partir dessa temporalidade pulsional é possível pensar as posições de gozo do sujeito. Assim, Freud retoma o segundo destino da pulsão: (II) a mudança de conteúdo, do amor para o ódio. Freud expande a ambivalência ‘amor versus ódio’ para outras oposições. Como a ambivalência ‘amor versus ódio’ não é primordial, pois o amor é a expressão de todaa corrente sexual, esse par pulsional não se organiza através de uma, mas de três formas: 1. amor/ódio versus indiferença 2. prazer – desprazer 3. amar – ser amado O primeiro par antitético é a primeira oposição que nos lança à fase psíquica primordial de indiferenciação entre eu e outro. A primeira polaridade se coloca entre ‘sujeito (eu) versus objeto (mundo externo)’. No início, o eu está alheio à existência do outro. Tudo que lhe satisfaz é sentido como próprio e o mundo externo coincide com o que é lhe desagradável, que não lhe dá prazer. O eu, porém, vai começando a reconhecer e registrar estímulos prazerosos também provindos do lado do outro/mundo externo. E assim, sob o domínio do princípio do prazer, ele acaba introjetando para si o que lhe é agradável e expelindo para fora o que lhe causa desprazer. A segunda forma de oposição do par antitético ‘amor versus ódio’ se mostra associada ao jogo de ‘prazer – desprazer’. O eu vai registar o prazer que lhe foi causado por um objeto e, de acordo com seus desejos, ele se põe a reencontrá-lo. O ódio, por sua vez, é associado a tudo que lhe causa ou causou desprazer. Diante dessas condições, o eu ativamente provoca uma situação real para trazer os objetos amados para mais perto de si, pois lhe causam prazer, ou para afastar os objetos odiados, pois lhe causa desprazer. A terceira expressão da ambivalência entre ‘amor versus ódio’ se mostra na forma ‘amar – ser amado’. Tomando esse último movimento do destino da pulsão que faz com que ela se transforme em seu contrário, segue-se o que vimos a respeito dos três tempos da montagem pulsional. A ambivalência ‘amar – ser amado’, então, se expressa nas formas ‘amar’ (voz ativa), ‘ser amado’ (voz passiva) e ‘se fazer ser amado’ (voz reflexiva). E, a partir disso, Freud correlaciona as posições de atividade e passividade com as posições sexuais masculina e feminina, respectivamente. O sujeito surge apenas no terceiro tempo, na medida em que ele não está fixado em nenhuma posição, mas pode gozar em qualquer lugar na relação que ele estabelece com o Outro. A posição de gozo se instaura na montagem da pulsão. Aquele que goza pode fazê-lo pela posição passiva de ser gozado, pela posição ativa de gozar ou pela posição reflexiva de se fazer ser gozado pelo Outro. O sujeito não pode estar fixado em nenhuma dessas posições. Ele não se resume a um único enunciado, mas pode circular por todos. Além disso, Freud identifica quatro características da pulsão: (1) a força constante, o motor da atividade psíquica; (2) a meta, sua satisfação; (3) o objeto, meio pelo qual atinge a meta e, assim, o mais variado possível; e (4) a fonte, sempre de origem somática. Como sabemos, a pulsão entra em funcionamento a partir da perda do primeiro objeto de satisfação. O fantasma, então, aparece como uma função que organiza em uma realidade suportável essa força pulsional que situa o sujeito na incessante busca pelo reencontro com o objeto perdido. Ele, o fantasma, funciona como uma roupagem que emoldura a pulsão, uma espécie tela na qual é projetada o circuito pulsional.

No texto “Uma criança é espancada”, de 1919, Freud busca construir a gênese do quadro fantasmático através das posições de sadismo e de masoquismo. A organização do gozo vai ser estruturada pela identificação entre “ser amado” e “ser batido”, resultado da imbricação da satisfação pulsional com a busca por amor. Assim, o fantasma ordena a montagem da pulsão com enunciados que sustentam a relação do sujeito com o Outro. Freud parte da análise do fantasma infantil de ser batido por alguém, apresentando suas conclusões a respeito da história, das transformações e de seus desdobramentos. Começa com as lembranças de pacientes do sexo feminino, para depois apresentar as divergências com o que se passa nos meninos. Apesar de algumas diferenças, é possível formalizar esse fantasma em uma única sequência. Isso quer dizer que a organização do gozo se dá conforme uma mesma estrutura para ambos os sexos: “tanto no homem como na mulher, encontram-se impulsos masculinos e femininos, e que cada um igualmente pode muito bem ser submetido à repressão e, assim, tornar-se inconsciente” (Freud, 1919/2003, p. 2479). O título do texto corresponde ao enunciado da primeira etapa deste fantasma: “uma criança é batida” (Freud, 1919/2003, p. 2469). A criança que está sendo espancada, nesta primeira cena, nunca é o próprio sujeito, mas normalmente um irmão ou uma irmã. E o autor da agressão, por sua vez, é um adulto. Decorre disto, então, a seguinte conclusão para aquele que assiste à cena: meu pai está batendo em uma criança que eu odeio. Esta cena não tem caráter masoquista, já que o sujeito encontra-se fora dela. Também não se poderia afirmar que se trata de uma cena propriamente sádica, pois é o pai quem pratica a ação. Entretanto, a presença desta outra criança figura para o sujeito da fantasia como uma rival, na medida em que ameaça sua relação amorosa com o pai. E a partir dessa condição, a cena se define como sádica, pois “a ideia de o pai batendo nessa odiosa criança é, portanto, agradável” (Freud, 1919/2003, p. 2470). O gozo sádico surge pela posição de espectador na cena. E, na equivalência entre ser batido e ser amado, o sentimento associado é que “o meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim (Freud, 1919/2003, p. 2470). Nesta primeira etapa já temos uma relação ternária, própria da relação edípica, na qual figuram como personagens o autor da fantasia, uma outra criança e o pai. A segunda etapa sofre a mesma torção da montagem pulsional. É a passagem da voz ativa para a voz passiva, da posição do sadismo para a do masoquismo. A pessoa que está batendo continua sendo a mesma, mas a que sofre a agressão passa a ser o próprio sujeito da fantasia. Ele sai da posição de espectadora para entrar na cena. E assim, o sujeito se sustenta no seguinte enunciado: “estou sendo espancada pelo meu pai” (Freud, 1919/2003, p. 2469). Esta etapa é formada por dois personagens. Na medida em que é espancada, a criança transforma o que era ódio em amor: se o pai lhe bate é porque ele a ama. Como consequência disso, vem o sentimento de culpa, uma das formas de masoquismo, juntamente com as posições feminina e infantil. Também o menino encontra esse gozo feminino de ser batido pelo pai. Freud afirma que esta segunda etapa é a única de caráter inconsciente. Seus pacientes não se lembravam dela e por isso só pode ser identificada através da construção em análise. É uma etapa marcada pela ambivalência, pois, como afirma Lacan, “encontramos aí este ou..., ou..., que é fundamental na relação dual” (Lacan, 1956-57/1995, p. 119). A passividade associada à função erótica leva ao masoquismo, tempo marcadopelo gozo da posição de objeto do Outro. A terceira etapa encerra a torção do fantasma de espancamento e se assemelha à primeira. O sujeito é reduzido novamente à posição terceira, a de observador: ele apenas “está olhando”. Mas agora, diferentemente da primeira etapa, uma forte excitação sexual é provocada. O sujeito, que está fora da cena, goza com a violência do desejo de morte. A posição sádica da primeira etapa retorna, encerrando uma estrutura impessoal: bate-se em uma criança. A indeterminação do sujeito da frase é expressa na partícula “-se” e mostra a dessubjetivação desse enunciado para todas as estruturas. Por um lado, o eu torna-se impessoal, dessubjetivado. Conforme Lacan, o sujeito fica no “estado de espectador, ou simplesmente de olho, isto é, daquilo que sempre caracteriza no limite, no ponto da última redução, toda espécie de objeto” (Lacan, 1956-57/1995, p. 120). Por outro, o que obtemos é umsujeitoque se faz representar através da posição de objeto do Outro. Assim, o eu, essa instância conciliadora,se coloca entre as exigências pulsionais e o amor que apenas o Outro pode lhe oferecer. E, na medida em que a satisfação da pulsão só pode provir do campo do Outro, o eu equivale essas duas condições: a da busca do objeto pulsional e a busca por amor. Para garantir a satisfação da pulsão, ele dá prioridade ao amor do Outro e aprende a dar valor a tudo o que vem dele. O eu, então, aliena-se ao Outro como objeto de seu desejo. Mas, como sabemos, o que conduz essa troca (da pulsão por amor) é a implacável exigência pulsional por satisfação. A montagem da pulsão mostra que somos conduzidos por um único princípio: a insistente busca por satisfação. O fantasma, por sua vez, é a tentativa, na forma de um compromisso com o Outro, de enquadrar, dar contornos a esse gozo impossível de ser apreendido. Por fim, a clínica psicanalítica nos faz ver que, entre a pulsão, o eu e o Outro, o sujeito surge apenas na

condição em que não se está fixado em nenhuma posição, mas que pode gozar em qualquer lugar na relação que ele estabelece com o Outro. O fato de ele já ter circulado pelas outras posições permite com que transforme um gozo perdido em saber sobre este gozo. Assim, aquele que ‘se faz ser batido’ sabe tanto sobre o gozo ativo (‘bater’), quanto sobre o passivo (‘ser batido’). O gozo do sádico se desdobra no saber que ele tem sobre o gozo do masoquista, da mesma forma como aquele que olha também goza através daquele que é olhado. REFERÊNCIAS: FREUD, S. (1915). Pulsões e destinos da pulsão. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013. ______. (1919). Pegan a un niño.Aportación al conocimiento de la génesis de las perversiones sexuales. Em: FREUD, S. Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva, v.3, 2003. LACAN, J. (1956-57). O Seminário, livro 4: A relação de objeto.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. Autor: André Oliveira Costa

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