A moral das janelas: conflitos midiáticos no found footage de horror

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A moral das janelas: conflitos midiáticos no found footage de horror1 The moral of the windows: media conflicts in found footage horror films 2

Klaus’Berg Nippes Bragança (Doutorando – PPGCom-UFF)

Resumo: A tecnologia digital impactou o modo de produção amador e permitiu que o vídeo caseiro saísse do lar permanentemente. Com a decorrente disputa de poderes entre a cultura participativa e a mídia de massa, pela hegemonia da audiência e propriedade autoral dos produtos culturais, o horror descobre outras formas de sustentar suas narrativas. O objetivo deste trabalho é analisar como esta disputa na produção e circulação cultural impactou a materialidade do filme found footage de horror.

Palavras-chave: Cinema de Horror, Found Footage, Distribuição, Mídia Digital, Amador.

Abstract: Digital technology has impacted the amateur production mode and allowed home video to come out of its house permanently. With the resulting power dispute between participatory culture and mass media, both struggling for the hegemony of audience and the copyright property of popular culture products, horror genre finds other strategies to support the narratives. The aim of this work is to analyze how this dispute in the cultural production and circulation has impacted the materiality of the found footage horror film.

Keywords: Horror Cinema, Found Footage, Film Distribution, Digital Media, Amateur.

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Trabalho apresentado no XVIII Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS NA FICÇÃO E NÃO-FICÇÃO. 2 Professor do curso de Cinema e Audiovisual no DepCom/UFES. Doutorando pelo PPGCom/UFF. Pesquisador vinculado ao NEX/UFF e ao CIA/UFES. Mestre pelo PósCom/UFBA. Graduado em Comunicação pela UFES.

Em 1998, um ano antes da estreia de A Bruxa de Blair (1999) no festival de Sundance, um filme que adotava uma rubrica que viria a ser categorizada como “Found Footage de horror”, era recusado de participar do festival que aclamou e rendeu um contrato de distribuição milionário para o filme de Myrick e Sanchéz. The Last Broadcast (1998) obedece critérios de circulação limitados pelo orçamento restrito de sua produção, recorrendo a outras janelas para sua disseminação. É comum na história do cinema que o horror recorra a janelas alternativas de distribuição, muitas vezes são janelas que estão fora das salas de cinema e mais próximas do cotidiano do sujeito, acessíveis em seu próprio lar, de forma que “a exibição doméstica está mudando o modo como os filmes são experimentados, distribuídos e feitos. Cada vez mais, um ‘filme’ é visto como um nó intermediário desse universo” (BADLEY, 2010, p. 45). A distribuição fílmica envolve uma série de fatores em sua relação com a vida cotidiana, dentre os quais Lobato destaca que “distribuição é sobre transmissão de valores, competências e ideologias. É um local de políticas culturais”, pois “enquadra o modo como um texto é experimentado e compreendido pela audiência”, logo “molda a cultura fílmica em sua própria imagem” (2012, p. 15). Lobato defende a distribuição como um parâmetro da materialidade fílmica, uma variável de leitura vital e invisível da experiência, pois “o ato de distribuição também molda materialmente o texto em si, acrescentando outra camada de significado para a experiência do espectador” (p. 18). O problema da circulação é sensível ao found footage de horror e se apresenta como um conflito em algumas narrativas. No caso de The Last Broadcast a narrativa envolve as mesmas preocupações usadas para a distribuição do filme. Na trama o documentarista David investiga o assassinato da equipe do programa de TV à cabo “Fact or Fiction”, ocorrido durante a apresentação de um especial sobre o “demônio de Jersey” –sugestão enviada aos produtores por um telespectador através de mensagem por IRC. Para aumentar a audiência os apresentadores fazem uma transmissão ao vivo e simultânea por cabo, rádio e Web – uma apresentação em “simulcast”. David trata o caso como um problema midiático: os homicídios atingiram diretamente a mídia, já que as vítimas eram apresentadores de TV, por isso foram celebrados através dela. A

mídia interfere na investigação, toma partido no julgamento do suspeito e se torna a história, isto é, como os assassinatos são vistos através das lentes da mídia, ou seja, “a análise de David sobre o caso é entendida através do papel e função da tecnologia de mídia em si” (HELLER-NICHOLAS, 2014a, p. 107). A primeira transmissão simultânea para a internet coincide com a última transmissão do programa, um choque de circulação. No filme temos acesso a vários níveis de exibição que se intercedem e se colidem, mais do que cobrir ou representar, o filme é composto por espólios obtidos das disputas em que a mídia se envolve. Wetmore (2012) avalia o found footage de horror como um subgênero que recebeu novo tratamento após o 11 de setembro e o início da Guerra ao Terror, pois ele enxerga o terrorismo como um problema midiático, e não apenas por ser retratado pela cultura popular contemporânea. O 11/09 e a Guerra ao Terror são refletidos como uma manifestação da influência que as tecnologias de mídia assumiram no cotidiano. Durante e após o 11/09 o efeito maior para as causas extremistas sempre foi a repercussão midiática de seus ataques. Os ataques parecem servir de advertência para o ocidente e portanto precisam receber a atenção massiva da mídia. Quanto maior o ataque, no sentido de sua grandeza simbólica, maior será sua relevância para receber a atenção da mídia, e é nesse sentido que o ataque torna-se espetacular: o objetivo de um atentado é obter circulação e audiência midiática através de sua espetacularização. Chega-se ao ponto do terrorismo pretender não somente se dirigir, mas atingir a mídia, como o episódio do “massacre do Charlie Hebdo”: a motivação do crime seria uma vingança contra os desenhistas que satirizaram a figura do profeta Maomé em charges publicadas no jornal, mas nas entrelinhas é possível perceber o benefício midiático de um ataque como este. Quer dizer, atacar a mídia é talvez a melhor estratégia para atrair a atenção da mídia e de sua audiência. Mais do que vingar-se dos desenhistas mortos, os terroristas usaram a transmissão midiática do ataque para angariar atenção e valor da audiência ocidental. [REC] (2007) manifesta esta atmosfera punitiva para a mídia e reage como um sintoma do espírito pós-11/09: o horror enclausurado dentro de um edifício, a falta de informações sobre uma ameaça doméstica, o frenesi sensacionalista da mídia ao cobrir o fenômeno, a

impotência e vitimização das autoridades durante a emergência. Em [REC] a câmera explora todos os conflitos que surgem da situação: serve como um instrumento de revelação do imprevisível, atuando em tempo real e com elipses curtas para não perder os acontecimentos imediatos que se sucedem, e isto deixa a equipe próxima à ação. Esta proximidade exagerada tira a segurança dos corpos e torna os profissionais vítimas de seu próprio trabalho, até mesmo o aparato audiovisual é agredido nesta colisão corporal. Em Grave Encounters (2011) uma equipe de reality show televisivo adentra um antigo manicômio para simular atividades sobrenaturais e com isso acaba ironicamente estimulando o surgimento dos fenômenos. Isso traz uma responsabilidade ao apresentador perante sua audiência: sua vitimização é dada por seu trabalho, mas isso não o exime de abandonar seu papel narrativo, pelo contrário, as câmaras deflagraram sua condição e é para elas que o apresentador mostra sua ruína. Em Grave Encounters 2 (2012) a audiência é levada para a narrativa através da arena do fandom, com vários vloggers comentando e criticando o primeiro filme, como uma manutenção de sua auto-reflexibilidade. Um destes vloggers é estudante de cinema e decide abandonar o torture porn que estava produzindo ao receber por e-mail uma “cena perdida” do Grave Encounters original. Este arquivo de vídeo anônimo o motiva a documentar e investigar o primeiro filme, o que o leva para dentro do manicômio assombrado. Esta é a questão que está no cerne do filme: um “vídeo assombrado” leva-o de espectador ao patamar de produtor e, como tal, perpetuador do horror. Se o primeiro filme estabelece a televisão como uma janela de transmissão do horror, em sua continuação a narrativa assume uma “virada amadora” e destaca o poder de novos agentes midiáticos na disseminação digital do mal. Assim o found footage de horror intercede contra o poder de circulação promovido pela tecnologia digital. Ragini MMS (2011) baseia toda sua atmosfera fílmica neste nó: o filme promove um horizonte de expectativa em torno de um formato de transmissão digital por rede de celular. Assume a aura da economia de circulação de vídeos de baixa resolução e ancora esta expectativa no contexto pornográfico que o formato alude. O registro sexual é o catalizador narrativo para Uday flagrar momentos íntimos sem o consentimento de Ragini. Sua motivação

não se concretiza, impedida por ruídos ameaçadores e presenças invisíveis, algo que mantém um limite moral para o registro da intimidade do casal. Para realizar sua fantasia Uday leva a namorada para uma casa no campo, munida de um sistema de vigilância capaz de registrar qualquer atividade anonimamente. Ainda assim uma entidade espectral impede que a promessa se cumpra e isto ressoa como uma punição para a violação de privacidade pretendida pelo rapaz, protegendo a integridade da mulher. Ao tirar o sexo de cena, a narrativa reafirma valores conservadores moldados para o âmbito do momento cultural, pois “o medo moral primordial agora é o corpo ser desmaterializado e dispersado em uma pluralidade de imagens múltiplas de baixa qualidade que podem viajar descontroladamente através dos anais infinitos do mundo digital (SEN, 2014, p. 10). É importante frisar que estas três franquias fílmicas são produtos do capital midiático e devem obedecer a “Lógica do Windowing”, uma lógica de circulação mercadológica típica de produtos comerciais, na qual uma obra segue um percurso entre várias janelas de exibição segundo uma ordem que mantém sua sobrevida e rentabilidade: inicial e primordialmente são filmes exibidos em circuitos comerciais de cinema, avançam para o vídeo doméstico, depois para a TV paga e os portais de vídeos sob demanda, até atingir a TV aberta. A era digital tem oferecido alternativas para os produtos culturais que não possuem o capital destas franquias. Porém, mesmo entre as frestas, a moral midiática é refletida nas produções independentes que trafegam por janelas alternativas de distribuição. Esta é uma mentalidade corroborada e enraizada na ideologia cultural da mídia. Keen, por exemplo, defende os “valores midiáticos”, luta contra o avanço do conteúdo autogerado da Web 2.0, e prega que “em vez de desenvolver tecnologia, acredito que nossa responsabilidade moral real é proteger a grande mídia contra o culto do amador” (2007, p. 27). As preocupações de Keen podem ser vistas em duas franquias feitas por intermédio da cultura digital: a Web-série norte-americana Marble Hornets e a “trilogia caseira” produzida no Brasil Matadouro. Estas franquias não foram feitas para obedecer a lógica do Windowing, mas para serem escoadas diretamente pela internet através do YouTube. Se no passado alguns produtores de horror encontraram no STV uma janela para atingir sua audiência, podemos

dizer que o padrão destas produções é o “STW”, isto é, straight to Web – produções que são distribuídas gratuitamente na Web 2.0, que materializam em suas narrativas o problema da democratização das tecnologias digitais e a distribuição de arquivos de vídeo. Composto por 87 websódios Marble Hornets (2009-2014) conquistou uma audiência digna de qualquer produto industrial televisivo ou cinematográfico. A Web-série apresenta o jovem Alex que desiste das gravações de seu filme por motivos inexplicados e se muda. Seu amigo Jay passa então a investigar as fitas gravadas por Alex, o que o leva a se deparar com o mito do Slender Man, representado pela figura mascarada do Operator. Quanto mais Jay avança em sua documentação, mais a presença indeterminada do Operator se materializa na narrativa. A série parece propor que são os arquivos de vídeo, e sua transmissão na internet, que materializam e preservam o monstro no cotidiano dos envolvidos. Para Heller-Nicholas “no coração de Marble Hornets encontra-se o horror do arquivo assombrado, o desejo de conter verdades que são, em última análise, incontidas” (2014b, p.13). Marble Hornets equipara seu horror a um arquivo de vídeo amaldiçoado, como se a troca e a proliferação destes arquivos na cultura digital perpetuasse um monstro. Assim, tanto quanto uma vitimização há uma demonização do amador. Em Matadouro (2012) podemos ver esse processo de outra forma: tratam-se de filmes de longa-metragem distribuídos na íntegra através do YouTube, cujas restrições orçamentárias são condizentes com a estética low-fi amadora das produções, bem como com a opção de incrementar a audiência através da distribuição digital – mas sua narrativa parece ser autocombativa de seu modo de produção e “alternativa” de circulação. Embora a distribuição não seja representada no filme, é importante perceber que o empoderamento concedido pela câmara digital é usado contra os personagens e seu direito de expressão. Os vilões homicidas dominaram a tecnologia e a técnica audiovisual para emprega-las na perpetuação da memória de seu poder e de sua violência contra o indivíduo e a sociedade. Suas práticas mostram que os amadores podem usar a tecnologia para o horror. Os filmes debatidos materializam em suas narrativas uma consciência moral para suas janelas de exibição: aquele que distribui interfere, define valores, dissemina competências, dispersa ideologias, emoldura a experiência e a cultura tecnológica que a sustenta, e isso pode

trazer consequências inesperadas – essa moral tende a constranger a consciência e nos adverte sobre os horizontes destrutivos vislumbrados através de novas janelas.

Referências BADLEY, L. “Bringing it all back home: Horror cinema and video culture”. In: CONRICH, Ian (Ed.). Horror Zone: The cultural experience of contemporary horror cinema. London/NY: I.B. Tauris, 2010, pp.45-63. HELLER-NICHOLAS, A. Found footage horror films: fear and the appearance of reality. Jefferson, NC: McFarland, 2014a. ____________________. “Found footage horror #2: textures of silence and decay – Marble Hornets and the hauted archive”. In: Bright Lights Film Journal, May 2014b. KEEN, A. The cult of the amateur: how today’s internet is killing our culture. New York: Doubleday, 2007. LOBATO, R. Shadow Economies of cinema: mapping informal film distribution. London: Palgrave Macmillan, 2012. SEN, S. “Spectral Pixels: Digital ghosts in contemporary hindi horror cinema”. In: WideScreen, vol.5, n.1, 2014, p.01-26. WETMORE, K. J. Post-9/11 horror in American cinema. New York: Continuum, 2012.

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