A MORTE DE DEUS COMO POSSIBILIDADE DO SAGRADO

May 22, 2017 | Autor: Leandro Costa | Categoria: Moral phylosophy
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A MORTE DE DEUS COMO POSSIBILIDADE DO SAGRADO

Deus Morreu! A famosa afirmação de Nietzsche em Gaia Ciência (A Ciência Alegre) suscitou e ainda suscita inúmeras discussões acerca da real intenção do filósofo com ela. Aparentemente essa expressão pode soar forte para ouvidos religiosos e, por outro lado, para aqueles não são tão simpáticos ao Criador, soa de maneira interessante. No entanto, os desavisados podem não notar que há um paradoxo nesta afirmação: Ora, se Deus existe ele não pode morrer, porque ele é Deus. Se Deus não existe Ele não pode morrer, porque ele não existe. A minha ideia é explorar brevemente por meio dessas considerações o fenômeno do retorno ao sagrado a partir do postulado da morte de Deus entendida como o fim da metafísica. Os aspectos envolvidos nesse evento são vistos como o fim da crença em uma ordem fundada, estável, necessária e objetivamente cognitiva do ser, isto é, o século XXI vem à tona explicitando a impossibilidade da sobrevivência de qualquer fundamento epistemológico para as coisas. Se por um lado, no campo do conhecimento, temos essa situação, por outro, vemos um forte e crescente retorno ao sagrado. Em tempos de grandes descobertas e avanços significativos nas ciências, o que poderia explicar ou justificar essa volta do sagrado? Devemos ter em mente que o anúncio da morte de Deus, entendida como superação do Deus moral, da racionalização, não encerra em absoluto o discurso sobre a religião, tampouco implica o término de qualquer experiência religiosa. O anúncio nietzschiano é o carro chefe, ainda que genericamente, apontando para a experiência do fim da modernidade quando da dissolução dos sistemas filosóficos e da falência na crença do progresso da ciência em vias da razão. A crença em Deus se mostrou como um poderoso dispositivo de racionalização e disciplina que permitiu ao homem deixar a selva primitiva do homem lobo do homem, a luta de todos contra todos, além de favorecer o desenvolvimento científico e técnico como formas de assegurar a sua existência. Em Gaia Ciência Nietzsche denuncia ser o homem o responsável pela morte de Deus pelo fato de que ele não precisa mais da Crença em Deus, pois Ele não é o ser Supremo que garante, dá fundamento e muito menos dá a finalidade última ao mundo. A racionalização da existência foi o que tornou a crença em Deus obsoleta e inútil. Não há, no entanto, uma metafísica ateísta na doutrina de Nietzsche, pois o que está em jogo na crítica é a fé na verdade, personificada na figura do Deus moral, fundador e garantidor de uma ordem do mundo.

A crítica de Nietzsche ataca em cheio o Babel da tardia modernidade, aquele que ao verificar e reduzir confere validade ao mundo e acredita traduzir o ser objetivamente. O mundo se trata de um conjunto de eventos e só nos resta a interpretação, que está para além de um conhecimento neutro, não participativo e de um ideal externo ao processo. O Deus moral, fundamento da metafísica, morreu e foi enterrado. Todavia, tal evento, apresenta sinais que nos parecem indicar para uma vitalidade renovada da religião. A impossibilidade da razão de tratar objetivamente do mundo noumenico e de Deus é algo perseguido por Kant na Crítica da Razão Pura e contemporaneamente por Wittgenstein no Tractatus Logico Philosophicus. Quando da impossibilidade cognitiva do primeiro e dos limites linguísticos postulado pelo segundo. As principais consequências filosóficas da morte de Deus, bem como o descrédito de praticamente todo tipo de fundamento filosófico é um terreno fértil para a possibilidade de uma renovada experiência religiosa. Isso retorna ao âmbito da filosofia, inclusive por meio da liberação da metáfora. A profecia nietzschiana da criação de muitos outros novos deuses se torna realidade: as narrativas se multiplicam sem uma centralidade e sem uma hierarquia. O que se nos mostra, diante deste cenário, é que parece ter havido uma eliminação de qualquer distinção entre a escrita filosófica e a escrita poética ou criativa. De forma muito mais radical, o fim da metafísica e a morte do Deus moral liquidaram as bases filosóficas do ateísmo. Os filósofos hoje são, em sua maioria, irreligiosos ou antirreligiosos antes por inércia que por razões teóricas. Ao olharmos para a modernidade, por exemplo, vemos as razões teóricas de positivistas ou historicistas. Deus era negado ou pela impossibilidade da verificação experimental científica ou porque é reconhecido como uma fase irremediavelmente superada do processo da iluminação da razão. Essas narrativas, agora, saíram de circulação com o fim da metafísica. Essa liberação da metáfora, explicitada pela pluralidade de narrativas e ausência de hierarquia entre elas, e a queda das razões filosóficas para o ateísmo correspondem, em certa medida, ao renascimento do religioso no seio da sociedade tecnologizada. O fato contrassensual que existe nisso é que o retorno da religião parece depender da dissolução da metafísica, ou seja, do descrédito em qualquer doutrina que pretenda valer absoluta e definitivamente como descrição verdadeira das estruturas do ser. A pretensão de tudo isso é a de, certamente, encontrar uma verdade última que seja objeto de fé e não de demonstração racional.

A metáfora, numa perspectiva nietzschiana, nos permite tratar com a fraqueza da razão, isto é, não se pode evitar que falemos em termos metafóricos avessos àqueles objetivos e descritivos. A morte de Deus e o (suposto) fim da metafísica não é a legitimação de um retorno ao mitológico, ao ideológico ou à fé simplesmente. A questão que se coloca versa em torno da ideia de que não é possível assegurar bases para desvelar a verdade escondida nos mitos ou nas ideologias, porque a crença é entendida a partir de uma realidade mitológica e a ideologia se explica por meio de outra ideologia. Diante dos pressupostos do fim da metafísica abrirá precedentes para entender o ser não mais a partir de estruturas cognitivamente objetivas, mas como evento, como acontecimento. E esse evento acontece hoje, aqui, no agora. O enfraquecimento do ser se dá em seu salto quando se mostra como um evento. (Parece existir alguma potencialidade em tratar com a noção de enfraquecimento). Entre a morte de Deus e o Crepúsculo dos Ídolos, parece-me que a segunda alternativa é mais dolorosa, pois, ao aludirmos a esse fenômeno, entendemos o sentimento do homem contemporâneo, invadido pelo desespero, pela nostalgia, pela impotência diante da impossibilidade do avanço da escuridão e pelo medo da espera do porvir. Entender o ser como evento e como destino de enfraquecimento liga-se intimamente ao pensamento religioso ocidental. O fenômeno religioso que experimentamos hoje é de caráter antimetafísico. A filosofia pós-metafísica ao pensar o ser como história do enfraquecimento se impõe como algo que não se pode separar da tradição cultural que nos formou. Isso abre para nós a possibilidade da discussão do fim da metafísica e de diagnosticarmos criticamente as formas do renascimento do sacro. Tanto a metafísica, quanto a religião podem ser pensados à guisa da ideia de secularização, isto é, desvinculado de qualquer transcendência. Talvez, aquilo que passe a dar algum sentido para a existência do homem desesperado (O grito, 1893-Munch) seja um retorno ao sagrado, não o Deus moral ou metafísico que se apresenta, respectivamente, inteiramente racional e diferente de nós, nem o Deus do filósofo, completamente racional e descompromissado com a salvação, mas sim o Deus da Kénosis (do rebaixamento) que se encarna na história, mostra-se como acontecimento, como evento e se justifica, humanamente, pela caridade, pela fraternidade e pela recusa da violência. A encarnação de Deus na história não deve ser pensada como um abandona à religião, e sim como a sua própria realização, ainda que paradoxal, da sua vocação. Se a condição da religião é a secularização do divino, por que a condição da metafísica também não pode ser a secularização do ser?

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