A Morte do Homem no Morcego

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ALEXANDRE LINCK VARGAS

A MORTE DO HOMEM NO MORCEGO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Guimarães Soares.

Palhoça 2007

ALEXANDRE LINCK VARGAS

A MORTE DO HOMEM NO MORCEGO

Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do título de Mestre em Ciências da Linguagem e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina.

Palhoça, 12 de julho de 2007.

______________________________________________________ Professor e orientador Luiz Felipe Guimarães Soares, Dr. Universidade do Sul de Santa Catarina ______________________________________________________ Prof. Oswaldo Giacoia Junior, Dr. Universidade Estadual de Campinas ______________________________________________________ Prof. Antônio Carlos Gonçalves dos Santos, Dr. Universidade do Sul de Santa Catarina

À minha avó Judith, minha mãe Ana e meu pai Paulinho que me propiciaram a capacidade de narrar universos fantásticos... e um muitíssimo obrigado à Jenifer e ao amigo Felipe que tiveram uma enorme paciência em ouvir tais multiversos...

(Desenho de Frank Miller para a edição de aniversário dos 20 anos de O Cavaleiro das Trevas, 2006).

RESUMO

Apontar o que pode ou não haver da morte do homem – no sentido que Foucault percebe em Nietzsche – na personagem Batman, analisando diferentes momentos do homem-morcego nos quadrinhos e no cinema. Na busca de uma outra leitura, barthesiana, sob outro olhar ao passado, benjaminiano, direciono-me a desconhecidos caminhos, na ética de um leitor com muita vontade de perceber um Outro morcego. Nessa aventura, nessa resistência deleuzeana, procuro aquilo de irredutível que possa superar o homem. Pela leitura do morcego, busco prosseguir para além do homem – na potência do infinito porvir, ainda que num quadrinho envelhecido de uma história de super-herói.

Palavras-chave: Homem. Morcego. Übermensch.

ABSTRACT

To indicate what there may (or may not) be of the death of man – in the sense Foucault reads in Nietzsche – in the character Batman, by analyzing several moments of that bat/man in comics and film. In my quest for another reading – a Barthesian reading –, from another point of view regarding the past – a Benajminian reading –, I tread unknown ways, and undertake the ethics of a reader absolutely invested of the will to find anOther bat. In such an adventure, in this Deleuzean resistance, I look for something irreducible that might overcome man. By reading the bat, I try to proceed beyond man – through the Nietzschean power of an endless future, even though in a simple frame on a torn, poor comic book.

Keywords: Man. Bat. Übermensch.

SUMÁRIO

1 O MORCEGO ..................................................................................................................................8 1.1 PRIMEIRA CONSIDERAÇÃO: UMA APRESENTAÇÃO ....................................................................11 1.2 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO: ALÇANDO VÔO... ............................................................................14 1.3 TERCEIRA CONSIDERAÇÃO: UMA CRISE SE ANUNCIA ...............................................................20 2 A MORTE DO HOMEM ..............................................................................................................23 2.1 A FINITUDE DO HOMEM ...............................................................................................................25 2.2 A QUEDA DO HOMEM ...................................................................................................................32 3 A MÁSCARA DO MORCEGO ....................................................................................................37 3.1 GÊNESIS ........................................................................................................................................39 3.2 ECOS DA CAVERNA... ...................................................................................................................45 3.3 O ROSTO É A MÁSCARA ...............................................................................................................51 3.4 A MÁSCARA É A VERDADE ...........................................................................................................57 4 A SOMBRA DO MORCEGO.......................................................................................................66 4.1 UM DELÍRIO SOCIAL ....................................................................................................................67 4.2 A PIADA MORTAL .........................................................................................................................70 4.3 DOIS LADOS DA MOEDA ...............................................................................................................77 4.4 DISTINTO E OBSCURO ..................................................................................................................83 4.5 NO ASILO DO REAL ......................................................................................................................88 5 A LENDA DO MORCEGO ..........................................................................................................96 5.1 O CAVALEIRO DAS TREVAS .........................................................................................................97 5.2 O HOMEM DE AÇO......................................................................................................................102 5.3 ALÉM-DO-MORCEGO .................................................................................................................109 6

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A INQUIETUDE ......................................................................114

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................117 ANEXOS .............................................................................................................................................122

8 1

O MORCEGO

Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2005, P. 65).

Não lembro a data exata em que tive meu primeiro contato com a personagem Batman. Nas minhas recordações, ele nasceu junto comigo. Sempre foi meu preferido. A segunda posição por vezes já foi alternada pelo Flash, He-man, as Tartarugas Ninjas... mas Batman nunca deixou o pedestal. Os anos 1980 foram uma época propícia para uma criança se apaixonar pelo super-herói: os quadrinhos do morcego estavam numa elogiada fase, sua popularidade em alta, e em 1989 estreou o longa-metragem, com imensa repercussão na mídia. Na televisão ainda passava o cômico seriado dos anos 1960, que para mim era algo muito sério. Desejava ser tão inteligente como demonstrava aquele Batman, que em determinado episódio desmascarou um vilão disfarçado de Comissário Gordon – a prova era que o falso Gordon pegava seu lenço com a mão esquerda, enquanto o verdadeiro era destro... algo assim, ou vice versa. Nos final dos anos 1980 e início dos 1990 comecei a ter meus primeiros contatos com os quadrinhos, em grande parte devido a Batman: the animated series, iniciado em 1992 e que até hoje talvez seja a adaptação audiovisual mais próxima das hqs. Mesmo assim tive certa resistência, afinal Batman já estava acompanhado de um terceiro Robin nos quadrinhos, enquanto pelos desenhos e filmes eu acabara de ser apresentado ao primeiro. Em 1995, nas férias de inverno que passava com minha avó Judith Linck, no interior do Rio Grande do Sul, tive contato com uma edição histórica do Batman chamada A queda do morcego. Mesmo estranhando o que li, gostei muito. A partir disso comecei a comprar edições esporádicas e procurava me informar do que havia acontecido na vida do herói nas

9 hqs. Além de meu pai que corria atrás dos brinquedos, e minha mãe que me levava quase todo dia após a aula para uma banca, minha avó acabou sendo talvez a maior responsável pelo meu vício nos quadrinhos de heróis. Mesmo com pouco dinheiro e sem saber ler, ela me dava uma boa quantia para que eu fosse à única banca de sua cidade gastar tudo em gibis. No verão de 1998, numa melancólica praia gaúcha em que passava as férias, comprei uma edição aleatória de Batman que vi numa prateleira. Gostei tanto que comecei a colecionar. Percebi que gostava mais dos quadrinhos do Batman do que das produções em outras mídias, e até hoje tenho conhecimento de praticamente tudo lançado sobre ele no Brasil desde essa data. Quando deixei de adquirir algo acabou sendo por falta de dinheiro, ou de interesse – o que é bastante raro. Em 2007, março, estimulado também pela pesquisa no mestrado, comecei a vasculhar, pela internet, hqs que nunca tinha tido a oportunidade de ler. Para minha surpresa, encontrei quase tudo, e no momento em que digito este texto, estou na minha conexão discada baixando mais um gibi. Sempre volto a ser criança quando leio mais uma hq ou quando estréia mais um filme, e como fiz em todos os outros, procuro estar na primeira sessão, para acabar de vez com uma contagem regressiva que às vezes se inicia anos antes. Havia, e creio que ainda há, nas faculdades de cinema, uma espécie de rivalidade entre aqueles que só gostam do “cinema de entretenimento” e dos que só admitem assistir “cinema de arte”. Sempre achei estranha essa divisão, mas na época em que havia ingressado na graduação eu não possuía argumentos, nem interesse suficiente para concordar ou refutar das nomenclaturas. Porém, segundo colegas, eu passei grande parte da faculdade defendendo a idéia de que uma boa interpretação não precisava ser somente possível na leitura dos filmes do Godard, ou do Tarkovski – olhares muito interessantes podiam partir dos mais banais filmes, entre eles, os produzidos pelos próprios alunos que em muito eram marginalizados pelos professores. Infantilmente, em meio a esses egos orgulhosos e sensíveis que compõem um

10 universo artístico, eu lia, quase que escondido, as hqs do Batman – precisava manter minha reputação de artista anti-sociedade do espetáculo. Com o tempo, o pensamento vai se transformando. Ao longo do mestrado, esses receios foram desaparecendo aos poucos. Percebi o óbvio: a leitura não está no texto, está no leitor que a faz acontecer... e, se for para eu ter que ler alguma coisa, nada melhor que seja aquilo que me dá algum gozo, que faça parte das minhas obsessões. Por isso, o primeiro projeto de dissertação se chamava “A morte do homem no cinema”, onde, analisando 8 ½, do Fellini, os dois Solaris, de Tarkovski, e Sodebergh, e os cinco filmes Batman, iria buscar e apontar no cinema, a morte do homem que Foucault – e agora eu também – vê em Nietzsche. Minha principal referência de abordagem sempre foi a forma com que Deleuze lê diversos filmes nos seus livros sobre cinema. Ele elabora poderosos conceitos e ferramentas poéticas, ao mesmo tempo em que as descarta e as joga no lixo quando parte para mais outra leitura, refazendo todo seu trabalho ao infinito, livre de qualquer ontologia. Eu estava decidido que era assim que deveria investigar meu objeto... mas havia um problema – as leituras não aconteciam. Já era fim de janeiro de 2007, meu prazo era de apenas mais dois meses e eu ainda não havia escrito nada. Relendo alguns quadrinhos do Batman, no pretexto de estar pesquisando – mentira, queria apenas me distrair –, lembrei de que no primeiro minuto de 2007, durante abraços e comemorações, um morcego passou voando diante de mim – ele parecia não se importar comigo, devia estar apenas atrás de alimento. Resolvi permitir que aquele encontro me impressionasse: decidi acatar aquele momento como uma possibilidade do meu destino. Nada melhor do que decidir um objeto pela mera intuição quando se pretende matar o conceito de homem. Afinal, de onde vem a intuição? Nietzsche aponta como o intuir foi expulso, como não é possível a intuição existir para aquilo que se entende enquanto homem. Não há nenhuma certeza verificável na intuição, ela é descontrolada e, por vezes, inexplicável – o homem não se vê na intuição, e por isso, ela

11 foi banida por ele, largada na lista dos vilões de segunda ordem, como a ilusão de ótica, a alucinação passageira... Por esse encontro intuitivo com o morcego, comecei a imaginar a possibilidade de enxergar algo na ótica de um morcego, prestes a se recolher entre suas asas, querendo dormir para poder sonhar. Somente observando tudo de cabeça para baixo, pensei, talvez, eu consiga destruir de vez a realidade, voando para além de mim mesmo, para além do homem, no objetivo de, por um outro olhar, me aprofundar no conceito de morte do homem, entendendo o acontecimento homem e o porquê da urgência de sua queda. Para essa tarefa, nada melhor do que um morcego: se por um lado, enquanto animal selvagem ele toma o distanciamento necessário perante o homem, por outro, enquanto objeto de exploração da cultura de massa, como Batman, ele invadiu nossas cidades, nossos quartos e está sempre a espreita naquele canto escuro de nossa casa. Até que ponto o morcego e o homem, em conflito em um homemmorcego, podem abrir uma Outra passagem na caverna da tradição filosófica – seduzindo o cego homem na escuridão, o morcego prepara sua refeição na morte do homem no morcego.

1.1

PRIMEIRA CONSIDERAÇÃO: UMA APRESENTAÇÃO

Os morcegos – ordem Chiroptera – são os únicos mamíferos capazes de voar. Representam um quarto de toda a fauna de mamíferos do mundo, são mais de 1100 espécies. Há grande variedade de formas e tamanhos de morcegos, com envergaduras variando de 5 cm até 2 m. Também possuem privilegiada capacidade de adaptação a qualquer ambiente e ampla variedade de hábitos alimentares – a maior entre os mamíferos –, pois podem se alimentar de frutas, néctar, pólen, insetos, artrópodes, pequenos vertebrados – inclusive rãs – e peixes. Dessa maneira contribuem substancialmente para o equilíbrio dos ecossistemas, pois atuam

12 como polinizadores, dispersores de sementes e controladores das populações de insetos. Somente três espécies se alimentam de sangue: os morcegos hematófagos – vampiros –, encontrados apenas na América Latina e no sul do México1. A asa dos morcegos é cheia de delicados vasos sanguíneos, fibras musculares e nervos. Em temperaturas frias, os morcegos enrolam-se em suas próprias asas como num casaco. No calor eles as expandem. O polegar e às vezes o segundo dedo dos membros anteriores têm garras, bem como os cinco dedos dos membros posteriores. As garras traseiras permitem aos morcegos agarrarem-se aos galhos ou saliências. Todos os morcegos são ativos à noite ou ao crepúsculo. Seus sentidos de olfato e audição são excelentes, e também possuem uma boa visão. Os dentes são muito agudos, capazes de atravessar a armadura de quitina dos insetos ou a casca das frutas. Os morcegos são dotados do sentido de ecolocalização – ou biosonar –, voando por entre obstáculos em locais escuros como cavernas. Eles emitem ondas ultra-sônicas pelas narinas ou pela boca, dependendo da espécie. Essas ondas atingem obstáculos no ambiente e voltam na forma de ecos com freqüência menor. Esses ecos são percebidos pelo morcego. Com base no tempo que os ecos demoram para voltar, nas direções de onde vieram e nas direções de onde nenhum eco veio, os morcegos sentem se há obstáculos no caminho, sentem também as distâncias, as formas e as velocidades relativas entre eles, no caso de insetos voadores que servem de alimento, por exemplo. A eficiência da ecolocalização varia entre as espécies de morcegos – os de hábito alimentar insetívoro, ou predadores de insetos em geral, possuem esse sistema mais desenvolvido2. Os morcegos-vampiros possuem ainda um sétimo sentido, a termorrecepção. Graças a estruturas presentes em seu focinho, eles são capazes de perceber ondas de calor à curta

1

2

Informações retiradas de textos http://www.casadosmorcegos.org/ Idem.

presentes

nos

sites:

http://pt.wikipedia.org/wiki/morcego

e

13 distância. Com isso eles conseguem sentir quais vasos sangüíneos estão mais superficiais na pele do animal a ser atacado. Deste modo, dão mordidas menos doloridas e evitam acordar a presa, que poderia reagir ao ataque. Além disso, os morcegos têm dentes muito pequenos e podem morder uma pessoa adormecida sem que sejam sentidos, graças a uma substância anestésica que espelem na saliva. Os morcegos vivem bastante em relação a mamíferos do mesmo porte e se reproduzem bem lentamente. Algumas fêmeas se tornam férteis logo após darem à luz seus filhotes – em outras acontece de alguns zigotos não se implantarem prontamente no útero após a fertilização, sendo armazenados, até que o organismo deixe a gravidez prosseguir em uma época mais favorável, dependendo da oferta de alimentos e da temperatura. Um morcego recém-nascido se agarra à pele da mãe e é transportado, embora logo se torne grande demais para isto. Os morcegos freqüentemente formam colônias-berçário, com muitas fêmeas dando à luz na mesma área, seja uma caverna, um oco de árvore ou uma cavidade numa construção. A gestação dos vampiros dura cerca de sete meses. A habilidade de voar é congênita, mas logo após o nascimento as asas são pequenas demais. Os jovens morcegos se tornam independentes de seis semanas a quatro meses, dependendo da espécie. Com dois anos os morcegos estão sexualmente maduros. A expectativa de vida do morcego vai de dez a trinta anos, também variando conforme a espécie. No Brasil, os morcegos são protegidos pelo Ibama, sendo proibido seu extermínio, permite-se apenas sua remoção. Mais do que protegido, o morcego é sagrado em Tonga, na África Ocidental e na Bósnia, e freqüentemente é considerado a “manifestação física de uma alma separada”.3 São também um símbolo de fantasmas, morte e doença. Entre alguns nativos americanos, como os Creeks, Cherokees e Apaches, o morcego é um espírito embusteiro. A tradição chinesa afirma que o morcego é um símbolo de longevidade e felicidade, bem como

3

Idem.

14 na Polônia, na região da Macedônia e entre os Árabes e Kwakiutls. Na cultura de massa ocidental, o morcego é freqüentemente associado à noite e à sua natureza proibida. É um dos animais básicos associados com as personagens ficcionais da noite, tanto vilões como Drácula, quanto heróis como Batman. De maneira geral, há poucos animais capazes de caçar um morcego. Os piores inimigos dos morcegos são os parasitas. As membranas, com seus vasos sangüíneos, são fontes ideais de alimento para pulgas e carrapatos. Alguns grupos de insetos sugam apenas sangue de morcego, por exemplo as moscas-de-morcego. Nas cavernas os morcegos ficam pendurados muito próximos, portanto é fácil para os parasitas infestar novos hospedeiros. Ainda que o perigo se resuma aos locais onde a raiva é endêmica, dos poucos casos de raiva relatados anualmente, a maioria é causada por mordidas de morcegos. Embora a maioria dos morcegos não tenha raiva, os que têm podem ficar pesados, desorientados, incapazes de voar, o que torna mais provável que entrem em contato com seres humanos. Os morcegos se aproximam do homem somente na vulnerabilidade.

1.2

SEGUNDA CONSIDERAÇÃO: ALÇANDO VÔO...

Roland Barthes em “Texto (teoria do)” parte da noção de que tudo é um texto, de que tudo pode ser lido: um filme, uma frase, um livro inteiro, uma música, uma roupa é um texto. Diferentemente de uma obra, que é algo físico, algo que se segura na mão, como uma capinha de Dvd, o texto é aquilo que se segura na linguagem.

[A teoria do texto] não considera mais as obras como simples “mensagens”, ou mesmo “enunciados” (ou seja, produtos finitos, cujo destino estaria fechado uma vez que eles fossem emitidos), mas como produções perpétuas, enunciações, através das quais o sujeito continua a debater-se; esse sujeito é o do autor sem dúvida, mas também o do leitor. A teoria do texto aduz portanto a promoção de um novo objeto epis-

15 temológico: a leitura. Não apenas a teoria do texto expande ao infinito as liberdades da leitura, como também insiste muito na equivalência (produtiva) da escrita e da leitura (p.282-283).

Essa leitura acontece através da produtividade do texto:

O texto é uma produtividade. Isso não quer dizer produto de um trabalho, mas sim o teatro de uma produção em que se reúnem o produtor do texto e seu leitor: o texto “trabalha”, a cada momento e por qualquer lado pelo qual seja tomado; mesmo escrito (fixado), ele não pára de trabalhar, de manter um processo de produção. O texto trabalha o quê? A língua. (p.271).

A produtividade não se limita a condições históricas ou autorais: o texto, enquanto algo vivente, sempre se recria e se enuncia com novos olhares. Não há prisões do sentido, delimitações de atribuição de estilo ou condições de produção – como se um texto da cultura de massa não pudesse ser lido de outra forma, não pudesse ser outra coisa. Não há qualquer restrição de intencionalidade. O autor, depois de exercido seu tempo de tirania e escravidão sobre as linguagens na escrita de um texto, transforma-se em mais um dos leitores e, ao ser um bom leitor, sempre dará múltiplas leituras ao texto que não mais lhe pertence. O texto terá pelo menos uma leitura diferente para cada leitor em diferentes tempos. Outras significações estarão sempre a surgir, “mesmo que o autor do texto não os tenha previsto e mesmo que fosse historicamente impossível prevê-los: o significante pertence a todos; é o texto que, na verdade, trabalha incansavelmente, não o artista ou o consumidor (p. 271-272)”. Barthes acrescenta:

Mas tão logo o texto é concebido como uma produção (e não mais um produto), a significação já não é conceito adequado. (...) Com mais razão, quando o texto é lido (ou escrito) como um jogo móvel de significantes, sem referência possível a um ou a vários significados fixos, torna-se necessário distinguir bem a significação, que pertence ao plano do produto, do enunciado, da comunicação, e o trabalho significante, que, por sua vez, pertence ao plano da produção, da enunciação, da simbolização: é esse trabalho que se chama significância (p. 272-273).

16 Ao procurar um significado de um texto, executamos um trabalho de decifração, revelação, ligado diretamente à noção de verdade do sentido. Esta atividade é muito comum na leitura dos textos sagrados, onde não interessa ao fiel ler conforme apreende, mas procurar aquilo que “está por trás” das palavras escritas. É a esse olhar da tradição ontológica, do ser, da essência oculta e sublime, que Barthes se contrapõe: o texto, enquanto produtividade, terá infinitas significâncias, atribuições de sentidos e valorações, tantas quantas o leitor conseguir – sabendo-o ou não. A significância – “clarão, fulguração imprevisível dos infinitos de linguagem (p.279)” – torna-se a capacidade de expor o texto como vítima da eterna produtividade das diferentes leituras. Por isso, em determinado ponto, até mesmo os leitores da tradição ontológica praticam um olhar, mais pobre, da significância, mesmo que não a percebam: na procura de uma verdade que nunca chega, eles admitem o infinito do texto, toda vez que supõem uma nova busca de leitura verdadeira – basta ver, por exemplo, a heterogeneidade das religiões cristãs fundadas sobre uma mesma Bíblia. Nesta incapacidade de redução, impossibilidade do fim da produtividade, habilidade de instigar as significâncias, o texto torna-se um ato de resistência deleuzeano: algo que não se enquadra na pergunta “o que quer dizer?” nem na resposta “quero dizer isto...”, algo que resiste a qualquer tipo de delimitação, numeração, conjunto finito de olhares. Gilles Deleuze, em “O ato da criação”, aponta uma distinção entre arte e comunicação: comunicação, para Deleuze, é a transmissão e a propagação de uma informação que partiria de um emissor, destinado a um receptor. A informação é “um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Informar é fazer circular uma palavra de ordem”.4

4

Folha de São Paulo (Mais!). São Paulo, 27 de junho de 1999. p. 5.4-5.5.

17 Essa noção está fortemente enraizada na cultura de massa: um espectador comum assiste diariamente a uma enxurrada de informações vindas por todos os meios de comunicação, fazendo circular diversas palavras de ordem. Inúmeras vezes esse observador não tem a menor idéia do que pode vir a fazer com elas. A informação, depois de entendida, perde sua utilidade – o compreendido não tem mais serventia. Por isso torna-se insensato reler livros e rever filmes: quando algo torna-se uma palavra de ordem, não possui mais qualquer produtividade, basta apenas crer no informado e desconsiderar qualquer outra coisa que fuja do limite do controle do sentido. Nessa perspectiva, tem sua razão o dito popular segundo o qual nada é mais velho do que o jornal de notícias de ontem. Na comunicação, a única chance de se opor é através da contra-informação. Nas artes, a contra-informação por si só tem pouca serventia – porém quando ela se transforma em um ato de resistência se faz toda a diferença. Com a arte, diz Deleuze, acontece um outro olhar: a arte não é um instrumento da comunicação, em nada ela comunica ou informa. “Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo.” A resistência da arte se dá como aquilo que não pode ser controlado, domesticado, aquilo que escapa de qualquer sentido, que não pertence a um determinado público. Arte é aquilo que se lança no porvir, que não se limita, que pode resistir a qualquer forma de controle, que sempre está à espera de mais uma outra leitura. Contra a tradição de controle da comunicação, a obra de arte surge como aquilo que rompe com um projeto ordenado, resistindo num potente ato, incapaz de ser reduzido, de ser categorizado, de ser silenciado. As noções deleuzeanas de arte, e barthesianas de texto, só podem atingir sua riqueza, sua pluralidade, infinito devir, quando, proporcionalmente, se transformam num ato de resistência equivalente a uma outra leitura, que caminha por fora das finitudes já expostas.

18 Com isso, além da importância política da resistência diante das limitações impostas pela tradição, a leitura que resiste aponta novas potencialidades textuais nas obras de arte. Livre de qualquer ontologia, de essências definidoras, históricas ou de características convencionais, a arte pode ser qualquer coisa. A aparição de mais um olhar, de mais uma leitura que resiste a todas as outras já declaradas, devolve a potência, restabelece a resistência daquilo que jamais cessa de ser artístico – como o desenho de um cachimbo que nunca pára de poder vir a ser outras coisas em “Isto não é um cachimbo”, de Magritte. O poder de uma artisticidade não está na obra, mas no leitor. Ao considerarmos tantos jogos de linguagem presentes na leitura, podemos, talvez, entender então como o morcego tornou-se tão rico para as diferentes culturas que se deram o trabalho de lhe atribuir alguma riqueza, seja biológica, seja simbólica. Será num trabalho parecido com minha primeira consideração, na atribuição de valores e significados ao morcego, em cruzamento com o conceito de leitura e arte que nesta segunda consideração desenvolvo, que, no decorrer desta dissertação, me deterei na figura do Batman, buscando atribuir-lhe alguma significância, procurando o que pode haver de irredutível, resistente, que produtividades podem surgir no trabalho com a cavernosa personagem. Batman, surgido oficialmente nos quadrinhos em 1939, em 1943 estreava sua primeira série no cinema com grande sucesso. Depois disto vieram desenhos animados, longas-metragens, brinquedos, videogames, grandes quadros, esculturas e todo o tipo de produto envolvendo a logomarca do homem-morcego. Batman é um fruto da era da reprodutibilidade técnica, da cultura de massa do século XX – e agora também do século XXI. Quase tudo o que é produzido sobre ele é feito com base em pesquisas de mercado e na expectativa de agradar ou atender algum público – de preferência, a grande público. Mesmo levando em conta que Batman é limitado por suas condições de produção, engaiolado na necessidade de inclusão no senso comum e na obrigação de agradá-lo, o ho-

19 mem-morcego ainda pode conseguir alçar longos vôos na interpretação, na produtividade, superando a própria mediocridade dos meios que o criou. A finitude editorial de Batman não é capaz de impedir que surjam diferentes leituras sobre a personagem. Se eu pensasse o contrário, considerasse Batman uma arte menor e indigna, e por isso, improdutiva, então estaria sendo eu, a personagem limitada... Quero, encorajado por Benjamin, encontrar alguma significância que caminhe para além daquilo que já se sabe sobre um homem-morcego.

A distração e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formulado: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve (...). A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo (BENJAMIN, 1986, p. 193).

Entre as possibilidades de leitura da cultura de massa, entre a distração e o recolhimento, apontados por Benjamin, leio Batman nesta dissertação pela segunda via. Ao sugerir associar Batman com a morte do homem – principalmente em Nietzsche –, procuro escapar da estetização da política praticada pelo fascismo cultural de mercado. Assim, respondo, ou ao menos tento, com uma politização da arte. Neste processo conflituoso, da obsessão por morcegos que me acompanha desde que me reconheço, junto das novas perspectivas que me direcionam há pouco tempo, percebi um Outro Batman deixando a caverna ao anoitecer. Estranhamente ele não é mais o Mesmo, mas ainda é aquele que estava lá comigo nos meus brinquedos de plástico, revistas mofadas e fitas Vhs. Ao prosseguir com esta dissertação estarei no virar das páginas não só me revendo, mas me recriando em novos quadrinhos. Só por isto, já valeu o esforço. Que agora deixemos o morcego estilhaçar nossa vidraça...

20 1.3

TERCEIRA CONSIDERAÇÃO: UMA CRISE SE ANUNCIA

Desde que os quadrinhos de heróis começaram a ser publicados nos anos 1930 na forma de comic books pela então editora hoje chamada Detective Comics – DC comics –, a quantidade de artistas envolvidos, de diferentes histórias e de distintas escolhas editoriais ao longo das décadas acabou criando infinitos universos alternativos, onde os mesmos heróis viviam realidades completamente diferentes – enquanto no universo dos anos 1940 Batman havia lutado da segunda guerra mundial, e hoje estava casado e aposentado; no universo do final dos 1950 e início dos 1960 o herói, jovem novamente, viajava pelo espaço, enfrentando alienígenas e seres de outras dimensões. Também havia o universo do final dos anos 1960 onde Batman era uma figura pública muito respeitada, um detetive mascarado que atuava sozinho – Robin havia crescido e estava na universidade. Costuma-se usar uma divisão em eras de ouro, prata, bronze e moderna para separar esses períodos nos quadrinhos da DC comics. Essas demarcações estão ligadas principalmente a mudanças editoriais, porém, não as utilizarei por achá-las muito imprecisas quando se busca concentrar em apenas uma personagem – nesta dissertação, Batman. Porém, um megaevento merece aqui ser destacado: a Crise nas infinitas Terras (1985), roteiro de Marv Wofman e arte de George Pérez. Procurando organizar os multiuniversos das hqs que confundia muitos leitores, e dificultava o acompanhamento das histórias, a DC comics lançou a maxi-série Crise nas infinitas Terras, onde todos esses universos alternativos de todas as personagens da editora acabaram entrando em colisão, causando um conflito de proporções épicas, e que no final resultou na unificação de uma só Terra. Após essa crise, todos as personagens da editora foram alteradas – a todas, foi dado um novo começo. Superman: O homem de aço (1986), de John Byrne e Dick Giordano, reformulou a origem

21 do super-herói, enquanto Frank Miller e David Mazzucchelli abordaram por um outro olhar o início do morcego em Batman: Ano um (1986/1987). Esse procedimento se tornou comum, aplicado desde heróis mais famosos até aos coadjuvantes, além também de dar prosseguimento à contagem dos anos – Batman já teve publicado Ano um, Ano dois e Ano três. Desta forma, a ordem dos acontecimentos na vida das personagens foi organizada: hoje sabemos que Robin surgiu no ano três de Batman, a Batgirl no ano cinco, a Caçadora no ano oito... Essa contagem de anos não é publicada de forma linear, ela convive com as histórias atuais, por isso, ainda hoje, eventualmente é narrado mais algum ano da vida de alguma personagem – mas sempre com bastante transparência, apontando que tal história acontece em algum passado. Por exemplo: quando ocorreu a crise, o primeiro Robin já estava adulto e havia se tornado o herói Asa Noturna, Batman então atuava ao lado do segundo Robin, que igualmente ao primeiro também havia sido trapezista de circo. Após a crise, manteve-se Asa Noturna e sua história, mas o segundo Robin teve toda sua origem alterada, agora ele era um delinqüente juvenil que havia tentado roubar as rodas do Batmóvel. As histórias ano um, dois... vieram justamente para recontar esses novos passados e preencher brechas que haviam sido abertas, como a própria origem de Batman. Para que essa postura editorial pós-crise não se tornasse uma ditadura da cronologia foi inventado o selo Elseworlds, onde histórias com maior liberdade criativa são publicadas de forma mais ou menos irregular, diferente dos quadrinhos cronológicos que seguem padrões de número de páginas e freqüência de tempo – quinzenais, mensais, etc... Nesses Elseworlds, já houve histórias do Batman vampiro, medieval, samurai, pirata, noir, tirano, deusastronauta de Atlantis, anarquista russo na união soviética, aristocrata do século XIX enfrentando Jack, o estripador, etc... A Crise nas infinitas Terras obteve tamanho êxito na organização no universo DC que se tornou hábito em toda década criar mais algum megaevento cósmico para fazer algu-

22 mas mudanças que não seriam possíveis dentro da cronologia das personagens – em 1994 foi a série Zero hora: crise no tempo, de Dan Jurgens, e em 2005, Crise Infinita, escrita por Geoff Johns. A partir de Zero hora, Batman não era mais visto como vigilante mascarado pela população de Gotham City, mas sim como lenda urbana, além de agora não saber mais quem foi o assassino de seus pais, elemento que foi abandonado na Crise infinita, onde novamente, conforme as primeiras histórias do herói, Batman sempre soube desde criança que o assassino de seus pais foi Joe Chill. Apesar de causarem algumas mudanças relevantes, Zero hora e Crise infinita não se comparam à radicalidade das mudanças causadas pela Crise nas infinitas Terras. Considerei importantes esses apontamentos para, além de possibilitar maior esclarecimento, também alertar sobre mudanças de origens, narrativas e personalidades – às vezes conflitantes – que ficarão visíveis nesta dissertação, conforme leio diferentes histórias em quadrinhos – hqs – do Batman.

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2

A MORTE DO HOMEM

Houve, desde o iluminismo, grandes investimentos na formação de um conceito de homem. As noções e valores que constituíam o homem foram os grandes alicerces da modernidade. Na educação, na política, na ciência e na filosofia, o homem tornou-se um dos grandes centros de discussões, encontrando ainda hoje desde apoiadores entusiasmados até inimigos violentos – Nietzsche talvez tenha sido o maior dos inimigos. Na anti-filosofia nietzscheana estão as principais armas contra a afirmação do homem, anunciando sua morte no clamar pelo além-do-homem... Michel Foucault aponta o nascimento do homem e aquilo que constitui seu ser válido para a cultura moderna no início de século XIX. Embora seja habitual pensar o homem como medida histórica – surgido de um instante congelado, onde o milagre positivista se deu do macaco ao que somos hoje –, a noção de homem apareceu apenas recentemente. Ao discurso clássico não era possível pensar o homem da mesma maneira como nos últimos 200 anos. Sua presença empírica era ainda algo muito obscuro para o representacionismo, que tinha como procedimento uma articulação daquilo que representa, com aquilo que supostamente é. No representacionismo, o lugar do conhecimento para a ciência estava na observação, na racionalização do mundo que se fazia ver. Somente por uma pretensa abordagem imparcial e objetiva, era possível conhecer aquilo que se mostrava ao discurso clássico. Cabia ao homem clássico impor uma ordem aos desorganizados fenômenos espalhados no mundo. Penso, logo existo, como exemplo de um pensamento claro e distinto, torna-se emblemático ao discurso clássico: eu penso, penso em mim pensando, pensando sobre o próprio pensamento – representação reduplicada de mim, confundindo o pensar como o existir.

24 Quando parte do mito da objetividade começar a se questionar, o homem vai pedir licença para tomar a frente. Se no pensamento clássico, havia uma olhar admirativo, ingênuo, crente nas representações – acreditando que era possível se distanciar de um objeto que observamos, a ponto de poder conhecê-lo de forma real e objetiva. No pensamento moderno volta-se ao lugar do espelho, do discreto rei, refletido no espelho de Las meninas, de Velasquez. A ciência deixa sua infância para atingir a pré-adolescência – ela não é mais tão ingênua para crer no mundo objetivo, a ciência, agora moderna, percebe que tudo aquilo que é visto, que é pensado, é, sob todas as formas, construído pelo homem, e ele, somente ele, torna-se a medida e o objeto de estudos que realmente importam para a modernidade. Abandona-se o velho mito da objetividade com o mundo, o mito do pensamento verdadeiro, da reflexão filosófica clara e distinta, para forjar um outro novo mito: o homem, vítima e algoz da objetividade da ciência – o novo centro e extensão de todo o universo. “Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante deste mundo” (NIETZSCHE, 1999, p. 53)”.5 Desta forma, a tradição clássica dá espaço ao aparecimento do homem no momento em que muda seu foco, quando o olhar dirige-se ao espelho. Segundo Foucault, na medida em que por Cuvier a história natural se torna biologia, a análise das riquezas por Ricardo se torna economia, e a reflexão sobre a linguagem por Bopp se transforma em filologia, quebrando “esse discurso clássico onde o ser e a representação encontravam seu lugarcomum (...), o homem aparece com sua posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece: soberano submisso, espectador olhado” (p. 328). O homem se torna a medida de qualquer conhecimento, tudo se transforma em ingênuo auto-conhecimento.

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“Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Coleção os pensadores: Obras incompletas.

25 Sem dúvida, ao nível das aparências, a modernidade começa quando o ser humano começa a existir no interior de seu organismo, na concha de sua cabeça, na armadura de seus membros e em meio a toda a nervura de sua fisiologia; quando ele começa a existir no coração de um trabalho cujo princípio o domina e cujo produto lhe escapa; quando aloja seu pensamento nas dobras de uma linguagem, tão mais velha que ele não pode dominar-lhe as significações, reanimadas, contudo, pela insistência de sua palavra. Porém, mais fundamentalmente, nossa cultura transpôs o limiar a partir do qual reconhecemos nossa modernidade, no dia em que a finitude foi pensada numa referência interminável a si mesma.(...) A cultura moderna pode pensar o homem porque ela pensa o finito a partir dele próprio (FOUCAULT, 1995, p.334).

Foucault enumera quatro grandes características do homem, a finitude, o ser empírico-transcendental, o impensado e o recuo e retorno da origem. Aqui eu me fixarei na analítica da finitude, que me parece a mais decisiva: capaz de sintetizar toda a crítica de que tenho conhecimento sobre o homem, e ao mesmo tempo, destruí-lo por dentro, mostrando a Narciso o outro lado de seu reflexo, pequeno, feio e nada apaixonante.

2.1

A FINITUDE DO HOMEM

O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são (Protágoras, em “A verdade”).

O homem tem consciência do seu fim – sabe que em algum momento morrerá, que sua vida segue um fluxo linear sem escapatória, cronologicamente adequado à máxima de que tudo que tem um começo, tem um fim. Sua finitude vai desde sua estrutura, na figura de um decifrado e quantificado esqueleto, até na sua organização social em tribos, territórios, nações... O homem, para entender-se enquanto homem, começa pelo seu próprio fim. Talvez seja essa a grande premissa da filosofia de Jean-Jacques Rousseau: o homem precisa ver e se submeter a sua finitude para que outros homens não tenham suas finitudes profanadas. Deve haver limitações para todos, o bem comum deve prevalecer, e o homem tem obrigação de

26 contribuir na compreensão e aceitação de sua finitude no objetivo de construir uma iluminada e ordenada sociedade harmônica – o touro incontrolável precisava manter-se cercado de posturas, valores e conceitos, antes que acabe ferindo algo ou alguém. A finitude do homem apresenta o abismo que lhe é proibido saltar, a linha que jamais poderia cruzar – organizando, controlando, limitando o homem num conjunto fechado, finito, como na teoria dos conjuntos. Se na política e na educação de Rousseau, a necessidade de um fim, um limite em nome do bem-estar comum assegura a finitude de um homem – que no entanto não aparece claro nas representações, assim como o rei e a rainha no quadro Las meninas, de Velásquez –, na biologia, na economia e na filologia de fins do século XVIII, conforme aponta Foucault, a finitude se caracterizará pelo limite de conhecimento do homem, que enfim começa a aparecer mais claramente.

É na superfície de projeção da biologia que o homem aparece como um ser que tem funções – que recebe estímulos (fisiológicos, mas também sociais, inter-humanos, culturais), que responde a eles, que se adapta, evolui, submete-se às exigências do meio, harmoniza-se com as modificações que ele impõe, busca apagar os desequilíbrios, age segundo regularidades, tem, em suma, condições de existência e a possibilidade de encontrar normas médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas funções. Na superfície de projeção da economia, o homem aparece enquanto tem necessidades e desejos, enquanto busca satisfazê-los, enquanto, pois, tem interesses, visa a lucros, opõe-se a outros homens; em suma, ele aparece numa irredutível situação de conflito; a esses conflitos ele se esquiva, deles foge ou chega a dominá-los, a encontrar uma solução que apazigúe, ao menos em um nível e por algum tempo, sua contradição; instaura um conjunto de regras que são, ao mesmo tempo, limitação e dilatação do conflito. Enfim, na superfície de projeção da linguagem, as condutas do homem aparecem como querendo dizer alguma coisa; seus menores gestos, até em seus mecanismos involuntários e até em seus malogros, têm um sentido; e tudo o que ele deposita em torno de si, em matéria de objetos, de ritos, de hábitos, de discurso, toda a esteira de rastros que deixa atrás de si constitui um conjunto coerente e um sistema de signos. Assim, estes três pares, função e norma, conflito e regra, significação e sistema, cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem (FOUCAULT, 1995, p. 374).

Na religião, será na explicação do universo, da maneira como funciona, com seus firmamentos, planos de diferentes escalas evolutivas, que aceitaremos o limite do desconhecido, o finito do infinito. O homem aprenderá sobre tudo o que o cerca: em todos os mistérios, os deuses estarão no centro destas questões, serão sempre a verdade oculta e a luz em que

27 podemos confiar piamente, julgando e presumindo tudo de obscuro. Essa realidade do desconhecimento, do infinito que nos escapa, torna-se talvez o recurso mais dissimulado na afirmação do homem: ao se supor um desconhecido, um mistério, por si só, já se supõe algo para ser conhecido, para ser decifrado e revelado. Na lógica religiosa, no final, na descoberta da verdade, volta-se sempre ao ponto de partida: os deuses sempre serão a resposta, a medida de todo o universo. Nessa jornada de voltas em círculo, o homem religioso parte para o infinito apenas para encontrar um fim que já conhece... como se lesse um texto, de forma obediente, somente depois que soubesse os significados e como deveria entendê-los. Esse procedimento de finitude se desdobrará também na filosofia. Ao mesmo tempo em que o homem é um objeto de estudo empírico, real, passível de conhecimento, ele também é a medida do próprio conhecimento, um estado de ser transcendental aplicável a tudo e todos – o limite do ilimitado. Esse é o duplo empírico-transcendental elucidado por Foucault: ao mesmo tempo em que o homem é papel também é régua... ele mede a si mesmo, utilizando seus próprios parâmetros. É por ser finito que o homem – principalmente em Kant – se faz ao mesmo tempo sujeito do conhecimento como síntese da razão pura e da experiência, transformando-se na forma de medida mestra, transferindo o olhar para si para o olhar para o todo – o homem novamente parte numa viagem em volta de si mesmo. Mesmo quando esta finitude sufocante permite supostas brechas, maior tolerância, como nos estudos antropológicos de “exóticas” comunidades. O mecanismo volta a se repetir: o desconhecido é tornado ponto de partida para o conhecido por meio de conceitos, hábitos, olhares do mesmo grupo finito de que havia partido – num olhar ao próprio reflexo. Até mesmo na percepção do homem, no seu acesso ao conhecimento do universo, rigorosas categorias perceptivas lhe são atribuídas, pretensamente excluindo qualquer eventualidade de vir a surgirem outros olhares – o conhecimento do homem se dá num processo de-

28 finido e sem escapatória. Esta tentativa de quantificar a percepção humana está fortemente ligada à tradição kantiana de estudos de condições de possibilidade do conhecimento a partir da Crítica da razão pura. Kant, por meio de etapas invariáveis, obrigatoriamente iguais para a percepção de todas outras percepções, formulou ao homem, em números finitos, uma cartilha de maneiras de lidar com o conhecimento. Já para aquilo a que não temos acesso, o incondicionado da coisa em si, que nossa linguagem e signos somente podem representar, tratou-se então de formular conceitos. O incondicionado, o impensado nos termos de Foucault, aquilo que não pode ser racionalizado, que é inconsciente, pode até soar como uma ameaça para o homem. Porém, sendo restrito ao campo daquilo que justamente é encarado como algo que não nos aparece, mas existe, e de certa forma então aparece, só que fantasmagoricamente por termos e noções, o impensado bate nos limites do finito e volta-se para o seu próprio paradigma. Como na arte surrealista, em que, enquanto entendida como “linguagem dos sonhos”, a obra, mesmo que supostamente impensada, se torna facilmente reduzida, enquadrada numa condição, quando recebe enfaticamente o rótulo “surrealismo” – o que reduz sua capacidade de vir a ser qualquer outra coisa. A noção domesticada de inconsciente para o senso comum reforça isso: o impensado eu não sei o que é, porém ao mesmo tempo sei, ele existe e se dá, portanto, eu o conheço, eu o restrinjo a um saber, a um campo, logo, eu estabeleço os fins. Na arte surrealista, ou ainda na dadaísta, o fim se dará no silêncio de um virar de costas após um “não é para entender mesmo”. O homem, assim, pensa o impensado no limite constitutivo de si mesmo. Por fim, sabendo-se finito, o homem, ao ver-se projetado sobre tudo e todos na história, não consegue enxergar uma origem, e ao afastar-se dela reencontra a si mesmo, numa inexistência atual, numa falta de explicação de por onde começou, forjando uma proximidade justamente com aquilo que o afirma como realidade. Ou seja, ao distanciar-se de sua origem o homem assegura novamente, num retorno, sua válida e verdadeira existência, seu começo sem

29 passado, refazendo assim sua origem sempre em vias de começar e ao mesmo tempo de acabar para um novo retorno – sempre o Mesmo, retorno e repetição. Ao não ver seu nascimento, o homem perde o direito de morrer... Por tudo isso o incontrolável e o indizível tornam-se os maiores vilões da finitude, e conseqüentemente, do homem. A cerca de conceitos do homem ao tigre enfurecido, limitando o número de coisas que podem ser ditas sobre ele, procurando domesticá-lo, investe na sua clausura a fim de que o monstro não represente nenhum perigo – a cerca precisa executar bem seu trabalho, tornando-o classificável, previsível. Porém, toda essa inquietude, esse conflito faz muito barulho, e o homem acorda sobre o dorso do tigre – é precisamente aqui, que Nietzsche nos convida para irmos além.

Assim, o último homem é ao mesmo tempo mais velho e mais novo que a morte de Deus; uma vez que matou Deus, é ele mesmo que deve responder por sua própria finitude; mas, uma vez que é na morte de Deus que ele fala, que ele pensa e existe, seu próprio assassinato está condenado a morrer; deuses novos, os mesmos , já avolumam o Oceano futuro; o homem vai desaparecer. Mais que a morte de Deus – ou antes, no rastro dessa morte e segundo uma correlação profunda com ela, o que anuncia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu assassino; é o esfacelamento do rosto do homem no riso e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do tempo, pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão ele suspeitava no ser mesmo das coisas; é a identidade do retorno do Mesmo e da absoluta dispersão do homem (FOUCAULT, 1995, p. 402).

Na finitude estamos sempre diante de um Mesmo. Ao entender o homem a partir de um número determinado de características dispostas que formariam um todo, transformaríamos qualquer coisa diferente, estranha, em algo conhecido, similar – um processo de conquista de um espelho. A questão não está no conhecido ou no desconhecido, mas na própria noção de realidade, “mundo real”, de um rei, que é o homem, no pleno império filosófico ditatorial de suas finitudes. O procedimento de eterna busca de auto-afirmação e imposição de si sobre qualquer outra coisa interrompe e violenta as pluralidades e toda sorte de Outros, para então transformá-los em Mesmos, numa massa só – como num buraco negro, que suga toda

30 luz e energia para alimentar sua única e sem cor antimatéria. Mas exatamente conforme um buraco negro, o conceito obscuro, as outras realidades sombrias e desconhecidas espreitam sua vingança contra o paradigma do homem, perturbando e desafiando sua incapacidade imaginativa de ver além dele mesmo... Narciso se afogou no oceano do oculto ao apaixonar-se pelo reflexo de sua beleza. O Outro se aproveitou da embriaguez do Mesmo para matá-lo – e por uma questão de sobrevivência, afinal, enquanto o Mesmo triunfar, o Outro será sempre recalcado. Essa espreita nas sombras, como de um Outro morcego em busca de alimento, se opõe à luz de um rei de seu Mesmo real, de um herói da humanidade – como Ozymandias. Ramsés II – no grego Ozymandias – foi um faraó egípcio. Seu reinado tem grande prestígio histórico devido às suas grandes conquistas culturais e militares. Na graphic novel Watchmen (1986/1987), de Alan Moore e Dave Gibbons, somos apresentados a um mundo decadente oitentista, próximo de uma guerra nuclear, onde alguns super-heróis, na maioria aposentados, reagem, cada um da sua forma, diante de uma nova e enigmática ameaça. Um desses heróis aposentados é Ozymandias, ou Adrian Veidt, o “homem mais inteligente do mundo”, agora bilionário, graças a grandes investimentos na indústria de entretenimento, explorando sua antiga figura heróica por meio de brinquedos e jogos eletrônicos. Sua casa, seu trabalho, tudo o que o cerca reflete sua imagem loura, segura e imponente. A única figura que ele respeita, além de si, é a de Alexandre, o grande, que, segundo ele, foi o único capaz de unificar o mundo sem barbárie desnecessária – na hq, Alexandre e Adrian possuem um mesmo rosto. Abandonando aparentemente seus velhos anseios de proteger o mundo, Ozymandias, enquanto assistia a dezenas de televisores e canais ao mesmo tempo, estava apenas preparando um plano ainda maior, totalizante, de salvação da humanidade, conforme revelado ao final da hq. A misteriosa ameaça que surgia contra os heróis era um plano de Ozymandias: ele

31 tinha consciência de que lutar contra bandidos e malucos fantasiados nada resolveria, isso era apenas um auto-elogio simplório das capacidades de um herói – para um verdadeiro herói era necessário mais do que isso. Por esse motivo, na véspera da declaração de guerra nuclear, um pseudomonstro alienígena invadiu New York, tirando a vida de metade da população da cidade. As nações, ameaçadas, então se uniram, no esforço de juntas eliminarem o tal monstro – o mundo estava em paz. Ozymandias lamentou as milhões de mortes, mas sabia que serviram para um bem maior – ele foi um verdadeiro herói, salvando a Terra e a humanidade. Ozymandias é o triunfo do Mesmo, de um herói que vai até as últimas conseqüências para executar aquilo que um herói deve fazer na sua finalidade – eis o seu grande perigo. Narciso se apaixonou tanto por sua beleza que acabou autodestruído, na sua figura – ou na de seu povo. Nietzsche já alertava sobre os caminhos desse heroísmo: a imposição de uma verdade, de uma forma de ver, de um bem comum, e conseqüentemente a necessidade de manutenção dessas verdades, nos levam às maiores limitações e tiranias contra nós próprios, e a tudo aquilo de diferente6. Na preservação de si, torturamos e aniquilamos o Outro. O homem é essa finitude do Mesmo, sendo aquilo que se elegeu tradicionalmente como verdade, realidade, universalidade... em detrimento da extinção das outras possibilidades. A potência nietzscheana, seu poder vir a ser, é inaceitável ao Mesmo – no momento em que ele se permitir ao Outro, ele deixa de ser ele mesmo. Se Ozymandias chegasse a se questionar sobre a obrigatoriedade de ser um herói, duvidando da tarefa de salvar o mundo, cogitando outras opções, ele deixaria de ser um herói, perderia toda sua Mesma identidade. Toda sua dedicação deixaria de visar o próximo, o semelhante aos seus ideais, para partir em outros rumos – talvez, o da morte do homem-herói.

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Nietzsche em Ecce Homo, nos comentários que faz sobre seus livros Assim falou Zaratustra, Além do bem e do mal, Crepúsculo dos ídolos e Humano, demasiado humano deixa bastante clara sua postura contra qualquer forma de pretensa salvação vinda na figura de uma verdade, apontando toda tirania e pobreza que isso significa. Por ironias – ou não – Nietzsche formula que ele próprio é a verdade.

32 Acima do amor ao próximo, há o amor pelo longínquo e pelo que está por vir; acima do amor pela humanidade coloco o amor às coisas e aos fantasmas. Esse fantasma que corre diante de ti, meu irmão, é mais belo do que tu. Porque não lhe dás a sua carne e os seus ossos? Mas tens medo e procura refúgio junto do seu próximo. (...) Um procura o próximo porque se procura, o outro porque anseia se perder. O seu mau amor por vocês próprios converte sua solidão num cativeiro. São os que estão mais afastados que pagam o nosso amor ao próximo, e, quando cinco estão reunidos, é preciso que um sexto morra. (...) Não falo do próximo, mas do amigo. Seja o amigo para vocês a festa da terra e o pressentimento do Super-homem. (...) Eu falo do amigo que traz o mundo em si, como uma taça transbordante de bênçãos, o amigo criador que tem sempre um mundo disponível para dar. E do mesmo modo que ele vê o mundo desenrolar-se ante seus olhos, vê o enrolar-se outras vezes em espirais nas quais o bem é produzido pelo mal e os fins nascem do acaso. (...) Meus irmãos, não os aconselho o amor ao próximo: aconselho-lhe o amor ao longínquo. Assim falou Zaratustra. (NIETZSCHE, 2005, p.55-57)

O Outro é o infinito, aquilo que destroça os paradigmas, que se descompromete com a verdade alheia, debocha de qualquer finalidade. O homem que deseja escapar, buscar uma outridade, entregar-se ao porvir e a tudo aquilo que desconhece, necessariamente precisa suprimir-se enquanto finitude, renegando qualquer imposição ou amarra do Mesmo. O homem necessita morrer, em virtude de um super-homem, um homem que se supera, que voa além de qualquer fim – assim falou Nietzsche.

2.2

A QUEDA DO HOMEM

Um dos motivos, talvez, de Narciso ter se afogado estaria no demasiado tempo que levou para contar o número de elementos presentes em seu rosto – o rosto do Mesmo é finito, mas ainda assim a contagem pode ser difícil. Provavelmente ele se perdia nos números, e tinha de repetir a apuração diversas vezes. Ao acúmulo de muitas tentativas, sentiu-se exausto e desistiu dessa tarefa quantitativa, entregando-se ao oceano do oculto. A queda do homem tem início a partir do momento em que a finitude começa a se revelar imprecisa, difícil de pontuar, quando as contradições aparecem mais claramente, e diversas brechas geram rup-

33 turas incicatrizáveis no rosto. No ruir por dentro, o homem começa a avistar o infinito. Esses primeiros sinais da queda do homem acontecerão quando sua história se insinuar de maneira provocante, num convite à embriaguez de si próprio até as últimas conseqüências, forçando o homem a regurgitar tudo o que já foi e recomeçar de estômago vazio. Se hoje a história não faz ao homem de modo amplo esse convite, é porque ele não percebeu seu chamamento. A história, ao mostrar-se tão facilmente manipulável na mão do homem que busca se perpetuar, revela-se a primeira grande arma contra o próprio homem. Na capacidade de manipulação, no manuseio da história, avistamos a possibilidade de abrir espaços para o Outro que foi suprimido das páginas históricas. Na quebra da noção de história como verdade absoluta, já mostrada pelo abuso indiscreto que o homem faz dela, avista-se uma nova possibilidade de salvação, uma nova ruptura messiânica. No recontar, reformular da história, diferenças vão aflorando, gerando crises que culminarão na doença terminal do homem. Uma dessas chagas foi lançada em “Sobre o conceito de história”, de Walter Benjamin. Apontando o funcionamento linear, cronologicamente pobre e dissimulado da tradição herdada dos vitoriosos, donos do historicismo, Benjamin anuncia uma concepção de história desvencilhada de leis simplórias de causa e efeito, e das aparentes verdades na cristalização dos fatos. Quando se revê uma imagem histórica, isolada, solitária, potente, uma quebra, uma oportunidade de luta por aquilo que foi ultrapassado, pode vir a surgir. No recontar da história novos olhares tomam vida, e assim, momentos que se contrapõem, que partilham de algo, mesmo separados, às vezes, por milênios, podem entrar numa nova sintonia. O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico (BENJAMIN, 1987, p. 232).

34 A história começa de novo, e quanto mais ela retorna a si própria disposta a novamente se surpreender, mais novos recomeços surgem em direção ao infinito contra o rolo compressor da tradição histórica. Um grito de revanche surge, numa ruptura messiânica que visa anunciar um novo Messias, empoeirado em algum movimento vivo esquecido nas narrativas históricas. No ataque ao conceito clássico de história, Benjamin não só torna claro seu funcionamento, como propõe uma Outra visão, sem fim, da história. Somente assim, aquilo que se perdeu, que foi morto, pode então voltar à vida, num porvir talvez ainda mais intenso do que antes. A ética histórica benjaminiana torna-se de grande importância na morte do homem, na recusa de qualquer verdade, imposição, vinda por qualquer lado. Não há finitudes quando se faz ativamente história – foi quando viu isso que o homem começou a rachar.

Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 1987, p.224-225).

Henri Bergson, em Matéria e memória, aponta uma leitura distinta sobre a temporalidade: na percepção do tempo, dão-se acontecimentos, não estagnados em instantes, mas duráveis num movimento que nunca cessa. Esse movimento não é o da cronologia, mas da eterna possibilidade de acontecimento de um passado qualquer, perdido no fluxo do tempo. Na duração, o tempo se dá de diferentes formas para cada olhar – um rápido acontecimento pode durar uma vida inteira na memória de alguém, sendo que depois que participou deste evento, sua percepção daquilo que entendemos como anterior ao ocorrido também foi modificada. A noção de duração, se levada em consideração à percepção da consciência, refuta até mesmo a possibilidade de morte humana ou nascimento, já que a duração está fora do

35 tempo linear, e por isso toda percepção está sempre acontecendo e em vias de acontecer. O movimento criativo do tempo não pára. Na filosofia bergsoniana o homem não tem mais como apontar, como um ponteiro de um relógio, para lados definidos, como passado, presente ou futuro – o homem precisa que alguém lhe dê corda, mas não há ninguém.

Mas a verdade é que nosso presente não deve se definir como o que é mais intenso: ele é o que age sobre nós e o que nos faz agir, ele é sensorial e é motor; – nosso presente é antes de tudo o estado de nosso corpo. Nosso passado, ao contrário, é o que não age mais, mas poderia agir, ou que agirá ao inserir-se numa sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade. É verdade que, no momento em que a lembrança se atualiza passando assim a agir, ela deixa de ser lembrança, torna-se novamente percepção (BERGSON, 1990, p. 197).

Na duração do tempo, infinita em potencialidades, atemporal em divisões cronológicas, incontrolável no porvir, a memória estabelece um papel importante: não mais de registrar um passado objetivo ou armazenar imagens, mas de gerar vivacidades, ao dar aquilo que já passou eternas condições de se recriar e reencontrar no presente as potencialidades que o tornam novamente possível. É na redundante morte da história morta, num infinito número de criativos olhares sobre o passado, que o conceito de história de Benjamin mais se aproxima da filosofia de Bergson. Na morte da verdade, pela afirmação da noção de jogo, Nietzsche e Wittgenstein transferem toda tradição das valorações de um pedestal de ouro inquestionável para um debate infinito em constantes mutações sobre o que vale cada coisa a cada momento, para cada vivência – ousando contra o silêncio da verdade, numa inquietude avassaladora. Na detonação das verdades, o homem então começa a esvair-se muito rápido – principalmente quando perde a capacidade de se assegurar num Mesmo, fazendo de sua autenticidade uma mera artimanha filosófica para crer em algo que levasse todos também a crer. O Outro finalmente tem sua desforra.

36 Esse campo minado, esquecido, enferrujado, que começa a detonar enlouquecidamente, aleatoriamente, causando crateras imensas e buracos escuros nesse território, tornase o ponto de colisões e rompimentos do homem, no sentido de sua destruição. Este trabalho analisará mais precisamente essas idéias, aplicando-as na minha leitura da personagem Batman. Não será meu objetivo iluminar um terreno já devastado e pronto para novas germinações, mas ater-me a um momento ainda anterior, quando as explosões haviam acabado de ocorrer, e a nuvem de terra ainda ofuscava a visão, permitindo passos às vezes cambaleantes, mas com certeza ousados.

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A MÁSCARA DO MORCEGO

Meu disfarce precisa inspirar terror. Eu preciso ser negro, terrível. Criminosos são. Criminosos são um bando covarde e supersticioso. (...) Eu preciso ser uma criatura da noite. Mamãe morreu. Papai morreu. Brucinho morreu. Eu me tornarei um morcego (Asilo Arkham, p. 118).

Nos anos 1960, a editora Marvel Comics, mãe de personagens como HomemAranha, Hulk e X-men, consolidou a figura do homem por trás do herói. Peter Parker é um jovem bastante estudioso, que precisa pagar as contas, arranjar um emprego, entregar trabalhos em dia, e que às vezes se veste de Homem-Aranha para superar toda sensação de impotência que tanto o incomodou na adolescência – como se costuma dizer entre alguns leitores, o aracnídeo é a vingança do nerd subestimado. Ainda que assuma um colant de super-herói, Parker não passa de uma pessoa comum. O mesmo para Bruce Banner, que possui eventuais crises de raiva como qualquer pessoa, porém acaba se transformando num super-homem verde, repleto de força e fúria chamado Hulk. Há também um grupo de homens, mulheres e crianças, diferentes da maioria, possuidoras do gene mutante X, que se unem para lutar contra o preconceito e a ameaça de guerra entre raças: esses são os X-men, pessoas diferentes que apenas querem o direito de compartilhar o mundo pacificamente – a história foi baseada nos movimentos negros da época. Já na DC – Detective Comics –, editora que teve seu apogeu criativo vinte anos antes, o que caracteriza Superman ou Batman são suas figuras heróicas, pouco importando o discreto repórter Clark Kent, ou o playboy Bruce Wayne. Sabemos que eles são engodos, não existe homem sem sua capa – eles são verdadeiramente heróis, não se incomodam com o peso da sua função, estão acima das preocupações e valores do cidadão comum. A concorrência entre as duas editoras estimulou nos anos 1970, mais precisamente a partir de 1964, a revitalização dos heróis da DC pelo editor Julius Schwartz. Com roteiros de Denny O´neil e desenhos de Neal Adams, a partir de 1968, com o fim do seriado de televi-

38 são Batman, a editora procurou explorar o homem escondido no uniforme de morcego – foi nesse período que as histórias de Batman se concentraram mais em seu treinamento pelo mundo e em sua relação familiar com Alfred, Robin, Gordon... Batman não passava mais tanto tempo só espancando vilões, ele demorava-se horas, dias se preciso, honrando seu estatuto de “maior detetive do mundo”, investigando possibilidades, levantando provas, evidências, pesquisando – porém não conseguia fugir do estigma de herói. Até que na segunda metade dos anos 1980, apareceram graphic novels7 como O cavaleiro das trevas, de Frank Miller, em 1986, que mostra um Batman mais complexo emocionalmente, psicótico e violento, e Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, de 1986/87, que levanta as conseqüências sociais e políticas que haveria na existência de um super-herói. Com isso uma nova investigação então foi adotada nos quadrinhos de herói: não se tratava mais de procurar um homem, mas sim de explorar esta vivência fragmentada em homem e herói, sem deixar-se cair em ingênuos dualismos como o rosto e o capuz. A discussão moral e política também passaram a ter relativa importância, mostrando mais claramente o que diferenciava as diversas personagens. Foi nesse panorama que Batman alcançou sua maturidade. Diante dessas frações de homem, de herói, e também de morcego, presentes em Batman, procurarei neste capítulo investigar a afirmação de um Outro, encontrando no passado, nas várias personas, uma outra identidade, outra verdade, misteriosa e sombria, que possa talvez se mostrar para fora da escuridão.

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Graphic novel é um título atribuído a hqs consideradas de maior liberdade criativa, trabalho mais elaborado, e geralmente, um texto mais adulto – mas obviamente não passa de uma nomenclatura arbitrária. Entre os quadrinhistas há toda uma longa discussão sobre o que é uma graphic novel, sobre o que a diferencia das outras hqs. Aqui apenas manterei os termos no intuito de melhor referência histórica.

39 3.1

GÊNESIS

A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao presente. É no passado que nos colocamos de saída (BERGSON, 1990, p. 196).

O passado de um herói costuma ser retratado como uma assombração ou promessa, anunciando um outro mundo que está por vir: Bruce Wayne tinha oito anos de idade quando, na saída de uma sessão de cinema, acompanhado dos pais – eles haviam assistido A marca do Zorro –, deparou-se com Joe Chill, um assaltante nervoso, hesitante, que acabou por disparar um tiro no pai, Thomas Wayne, matando-o, e de reflexo, outro tiro em sua mãe, Martha Wayne, enquanto as pérolas que tanto o criminoso desejava, quicavam pelo chão. Bruce ficou ali, num círculo de luz, formado por um poste acima, sozinho, ajoelhado, por um tempo, naquele canto obscuro da cidade – conhecido posteriormente como “beco do crime”. Sob a tutela de Alfred, o fiel mordomo da família, o jovem Bruce, na sua primeira noite sozinho na mansão, à luz de uma vela, novamente se ajoelha, com os braços sobre a cama, como que numa prece, fazendo um silencioso juramento em honra a memória de seus pais: começa assim a jornada de Batman. O assassinato dos pais costuma ser entendido como momento crucial para a origem da personagem... Porém, dúvidas se levantam. Conforme a graphic novel O cavaleiro das trevas, dois anos antes do assassinato, Bruce perseguia um coelho branco – talvez um pouco acinzentado –, no enorme terreno em volta da mansão, quando, ao tentar entrar na toca do animal, caiu num imenso buraco, descobrindo a caverna abaixo das propriedades da família. Vários morcegos assustados sobrevoaram Bruce, que machucado tentou espantá-los – mas, ao longe, um outro morcego se aproximava. Diferente de todos, este hipnotizou o garoto:

40 Então...algo se move oculto...algo que aspira o ar viciado...e sibila. Planando com graça milenar...ele se recusa a se afastar como seus irmãos. De olhos radiantes, sem alegria ou tristeza...seu hálito é quente e tem o sabor dos inimigos vencidos...o odor de coisas malditas. Com certeza, ele é o mais feroz sobrevivente... o mais puro guerreiro...brilhando, odiando...possuindo minha pessoa (O cavaleiro das trevas, n°1 - p. 11 - 13).

Anos mais tarde, segundo a história Batman: Ano um (1987/1988), também de Miller, com desenhos de David Mazzucchelli, Bruce, adulto, já havia viajado pelo mundo e estava decidido sobre o que iria fazer, embora ainda não soubesse exatamente como. Em sua primeira aventura noturna, disfarçado de homem comum, para melhor reconhecimento da cidade, ele acabou perdendo a paciência com um cafetão que espancava uma prostituta. Derrotando o agressor, outras prostitutas o atacaram – entre elas Selina Kyle, que se tornará a Mulher-Gato. Dois policiais, vendo a confusão, chegaram atirando, baleando Bruce gravemente – na viatura, ele desperta sangrando, enquanto os policiais procuram dinheiro na sua carteira e decidem se vão matá-lo de vez ou deixá-lo num hospital para evitar maiores problemas. Bruce se solta, ataca os dois, o carro se choca contra um caminhão, pegando fogo. Muito ferido, Bruce consegue tirar os dois policias inconscientes, antes que a viatura exploda, fugindo para seu Porsche. Na mansão, no estúdio, na poltrona de seu pai, em frente ao busto em pedra de Thomas Wayne, Bruce, ensangüentado, decepcionado, arrasado espiritualmente, parece novamente rezar: os criminosos não o temiam, revidavam, e no final, nada mudara de fato, tudo continuava igual, a mesma dor, sensação de impotência – ele não havia se tornado algo maior, algo quem nem sabia explicar ou entender, era apenas mais um desamparado, buscando o que não havia encontrado. Bruce fracassou naquilo em que dedicou toda sua vida8. Todo esforço não havia valido para nada, o vazio permanecia.

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Diferentes hqs já mostraram que Bruce estudou artes marciais com os melhores mestres, viveu parte de sua vida num circo, treinado pelo maior mágico do mundo, onde aprendeu a se libertar de armadilhas, iludir aquele que o observa, disfarçar-se, manipular a voz, desaparecer, foi também alpinista por um longo tempo, trabalhou com os melhores detetives europeus, e estudou nas mais conceituadas universidades, onde apren-

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Pai...eu acho que vou morrer esta noite. Tentei ser paciente. Tentei esperar... mas... eu preciso saber. Como, pai? Como devo agir? O que devo usar...pra que eles tenham medo? Se eu tocar este sino, Alfred vem. Ele pode deter o sangramento a tempo.(...) Sim, pai. Eu tenho tudo... menos paciência. Prefiro morrer... a esperar... mais outra hora. Já esperei... dezoito anos... (...) Desde que minha vida perdeu o sentido. Sem o menor aviso, ele surge...estilhaçando a janela do seu estúdio, agora meu. [um morcego aparece, pousando sobre o busto do pai] Já vi essa criatura antes... em algum lugar. Ela me aterrorizou quando criança... me aterrorizou... Sim, pai. Eu me tornarei um morcego [Bruce toca o sino] (Ano um, p. 26-28).

A dor, na forma de medo e culpa, torna-se necessária para a fomentação e o dilema desse homem-morcego. Freqüentemente vemos nos quadrinhos Batman, de pé ou acocorado, de cabeça baixa, numa vigília, numa espera, sobre enormes arranha-céus, gárgulas ou cemitérios, como em Batman: Guerra ao crime (1999), de Paul Dini e Alex Ross. “Sejam cicatrizes físicas ou psíquicas, o crime fere todos que toca. Traz lesão e morte. Envenena a mente e a alma. E, no final, destrói toda a esperança” (p. 26-27). O dia amanhece enquanto ele se encobre com a capa em meio a esculturas de anjos rezando, voltados aos céus. “Eu enterrei meus pais aqui (...) Desde aquele dia, parte de mim sempre esteve ligada a este lugar. Às lembranças que guardo dos inocentes destruídos pelo crime. Fantasmas que há muito partiram e outros que ainda aguardam” (p. 5). Sobre a escultura de uma águia, no alto da torre Wayne, Batman reflete: “(...) talvez a redenção possa se espalhar por uma cidade inteira, e finalmente voltar a mim. Talvez algum dia eu também possa superar a minha [dor]. Mas por enquanto eu ainda aguardo” (p. 61-62). O homem-morcego, marcado pelo crime, espera redimir-se de um peso que não é apenas de uma violação incurável – há um segundo caráter, que justifica a penitência de vigiar uma cidade noite após noite. O que faz com que Batman aconteça no movimento de destruição de uma sombra, em nome de libertação, é um estranho sentimento de culpa que nunca fica

deu diversos idiomas, química, biologia, história, psicologia, criminalística, mecânica, tecnologias de ponta, além de outros diversos conhecimentos que ainda se revelam.

42 suficientemente claro – do que Batman tanto se culpa? Poderia ser por reprovação da violência dos próprios atos, porém, a principal razão seria que na noite da morte dos pais ele que havia insistido para ir ao cinema – eles disseram que aquele dia não seria possível, mas no final a birra do garoto foi maior (Cidade castigada, de Brian Azzarello e Eduardo Risso). Também pode ser que, na hora do assalto, o criminoso tenha disparado os tiros porque Bruce reagiu ingenuamente, imitando Zorro (Olhando para trás, de Devin Grayson e Staz Johnson). No filme Batman begins (2005), de Christopher Nolan, há uma reformulação dessa versão: Bruce (Gus Lewis) e seus pais haviam ido à ópera assistir a Mefistófeles, mas Bruce, assustado com as criaturas que lembravam morcegos, pediu para partir mais cedo – sua queda na caverna era recente. Na saída do teatro, a história se repete, com destaque nas últimas palavras do pai (Linus Roache) antes de morrer: “não tenha medo”. “Viajou o mundo para entender a mente criminosa e vencer os seus medos. Mas um criminoso não é complicado. O que realmente teme está dentro de você. Você teme seu próprio poder. Teme sua raiva, o impulso de fazer coisas fantásticas ou terríveis” diz um de seus mestres, Henri Ducard (Liam Neeson), no filme. Em Batman (1989), filme de Tim Burton, Bruce (Michael Keaton) a respeito de Batman, justifica-se: “é algo que preciso fazer.(...) Porque ninguém mais pode. Tentei evitar tudo isso, mas não posso. É assim que é. Não é um mundo perfeito”. Talvez seja esse então o maior sentimento de culpa e ao mesmo tempo medo do homem-morcego: ele não resiste às suas paixões, suas vontades. Os vícios do corpo e da alma falam muito mais alto do que qualquer outra coisa. Batman se entregou de asas abertas para tudo aquilo de fantástico e terrível. Outros elementos característicos são a frieza e o metodismo: as estratégias, os armamentos são utilizados sempre de forma calculada. Tudo é previsto: no cinto de utilidades estão explosivos, soníferos, cordas com ganchos, lasers, uma máscara de gás, eletrodos, comunicadores, rastreadores, batarangues e shurikens em forma de morcego. Na máscara há

43 lentes para enxergar no escuro, ampliadoras, infravermelho, além de antenas nas orelhas de morcego. A capa é a prova de fogo e funciona também como asa delta. Há braceletes com três lâminas cada, que servem de defesa. Um símbolo no peito de metal reforçado em forma de morcego, capaz de suportar diversos tipos de balas. Já no computador da caverna estão planos de todos os tipos, que vão desde simular a morte de Bruce Wayne ao mundo, como até assumir o controle da cidade em casos mais drásticos. Esse procedimento frio, lúcido, dialoga com a calorosa, perturbadora lembrança da morte dos pais, que sempre lhe servirá de motor para continuar a fazer o que faz – não é agradável, mas é conveniente, talvez mais do que se imagina... A epistemologia de Bergson aponta numa outra noção de imagem, uma sofisticação da dualidade entre realismo e idealismo: não importa descobrir se uma imagem é real ou idealizada, a validade dela estará na sua presença para alguém, no seu status de acontecimento, seja de qualquer ordem ou natureza. Se a noção de realidade para seu antecessor, Friedrich Hegel, estava na coletividade – se a maioria das pessoas vissem uma mesma coisa, isto seria real, caso contrário, estar-se-ia louco ou delirando. Para Bergson, ao contrário, não há distinções de importância, nem limites físicos ou temporais para as imagens. A filosofia hegeliana se basta por um controle dos semelhantes enquanto a bergsoniana afirma o descontrole das diferenças. Em Bergson, para cada um haverá uma própria imagem, que às vezes coincide, às vezes discorda com os outros, dependendo de cada convenção cultural, como as cores do arco-íris – alguns vêem sete, outros mais, outros menos, podendo também ser contempladas como um rico degradê.

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“Você gosta de morcegos?” Pergunta Bruce (Val Kilmer) para a psicológa Chase Meridian (Nicole Kidman), ao ver uma imagem semelhante a um morcego no escritório de Chase. “É um teste de Rorschach, Sr. Wayne. Um borrão. As pessoas vêem o que querem. A questão é: você gosta de morcegos?” (Batman forever, 1995, filme de Joel Schumacher).

44 Se toda imagem torna-se válida, dependendo muito de qual posição tomamos, de por onde enxergamos, o passado deixa de ser algo objetivo para se assumir como uma eterna construção de novos olhares, que retorna ao mesmo tempo em que se recria e se projeta. “Nosso passado, (...) é o que não age mais, mas poderia agir, e que agirá ao inserir-se numa sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade” (BERGSON, 1990, p. 197). Assim, nesse vital emprestado, na repetição – não como cópia, mas como nova possibilidade –, ousa-se duvidar do passado enquanto verdade: ao se aniquilar a linearidade – pois o passado transforma-se em um outro presente quando revisto –, estabelece-se uma crise temporal, que envenenará as concepções do homem e suas leis naturais. Causa e efeito não farão mais sentido. Eis a charada: Batman não tomou emprestado algo maior para justificar algo menor? A morte dos pais, toda culpa, dor e medo que a cercam, como razão para uma poderosa sutileza de um morcego que veio antes e depois? Não seria o assassinato uma justificativa de seu comportamento, plausível para si mesmo e para os outros, mais do que meramente uma obsessão por morcegos? Quantas vezes foi necessário retomar a lembrança de um trauma para manter-se num destino? Parece-me apropriado fazer uma livre associação com o texto “Sobre o conceito da história” de Benjamin:

Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido (BENJAMIN, 1987, p. 231).

Imobilizar uma imagem do passado para permitir que ela possa gerar uma outra realidade, se tornar numa esperança de vingança, mas mesmo assim, um pretexto disfarçado de associação para ainda uma outra presença muito mais viva e intensa, soterrada na escuridão

45 – seria esta a grande caverna de Batman? É preciso passar pelo relógio que oculta a entrada da caverna, posicionando os ponteiros no horário do assassinato dos pais de Bruce para penetrar neste subsolo sujo, sombrio e inóspito, com acesso por meio de uma escada espiral, onde, entre estreitas reentrâncias e formas pontiagudas, guarda-se e repele-se o mais obscuro segredo do subconsciente do homem-morcego... mas Batman não é ingênuo: “nos meus mais sombrios momentos, eu sou atormentado pela idéia de que o assassinato dos meus pais foi a melhor coisa que já me aconteceu. Cinicamente, digo a mim mesmo que isso deu à minha vida um destino e os meios para realizá-lo” (Guerra ao crime, p. 36). Aqui que começa a morte do homem no morcego: quando o homem perde sua causa, seu sentido, seu conceito, quando se confunde numa falta de cronologia, que se estende no adulto que nunca cresceu, e na criança que nasceu grande. O homem em vias de morrer flutua sobre diferentes acontecimentos, fictícios ou não, tirando-os de um passado e os tornando a se repetirem, num devir louco, que não tem origem, apenas fragmentações de lembranças. Com isso, o homem não vê outra saída senão criar e multiplicar aquilo que não tem apenas um só chão para se afirmar: disto resulta o despedaçamento de uma identidade que não pode mais ser inteira na ausência de um passado claro e distinto.

3.2

ECOS DA CAVERNA...

“Uma vez que a personalidade começa a se dividir... as possibilidades... são infinitas.” (Bruce Wayne, sentado em sua mansão, estranha a sua enorme sombra projetada na parede, pela luz que vem da lareira, em “A terceira máscara”, de Hatsuhiro Otomo, em Batman: preto e branco vol. 1 n° 4, p. 43-44)

Personagens mascaradas de hqs costumam ser entendidas em duas partes: o homem e o herói – isso sempre foi uma leitura muito ingênua. Se olharmos com maior atenção,

46 desde o surgimento da personagem Batman nas histórias em quadrinhos, veremos muitos e diametralmente opostos homens-morcego – nisto estão incluídos tanto elementos interiores à dramaturgia da personagem quanto questões editorais ou modismos. Não podemos esquecer que parte dessa pluralidade de personalidades e histórias deve-se à avançada idade da personagem, e as dezenas, talvez centenas, de quadrinhistas e outros profissionais que acrescentaram algo à narrativa do morcego. Atribuir a autoria de Batman a Bob Kane é apenas uma formalidade legal, uma cortesia jurídica, diante de uma personagem que perdeu os pais muito cedo e se viu livre para novos mundos e descobertas. Mesmo que as raízes editoriais o cerceiem, o morcego consegue, algumas vezes, levantar vôos de maior altura do que o costume, nem que para isso seja de forma sorrateira, escondido nas sombras – conta um boato entre leitores que O cavaleiro das trevas somente aconteceu porque a DC comics, na época, não se preocupava muito com uma estabilidade sobre a imagem da personagem, que não andava muito bem de vendas. Na sua primeira história, na hq Detective comics nº. 27, de maio de 1939, Batman age sozinho, é agressivo e sério. A narração destaca o mistério e as habilidades físicas e intelectuais do detetive que no final da história, reagindo a um ataque, acaba matando seu inimigo. Somente nos dois últimos quadrinhos, no mover de uma pesada porta da mansão Wayne, descobrimos que Batman é na verdade Bruce, o fútil e entediado amigo do Comissário Gordon que gosta de ouvir crônicas policiais enquanto fuma seu cachimbo. Visando uma proximidade maior com o público juvenil, a equipe de criação de Batman, em menos de um ano depois de sua primeira aparição, lançou, na Detective comics nº. 38 o primeiro grande e mais famoso sidekick9 das hqs: Robin estreava no mundo do mor-

9

Sidekick é um termo usado nas hqs para denominar os jovens parceiros dos super-heróis. Robin teve tanto êxito no seu objetivo, que tal procedimento se tornou padrão: Aquaman foi acompanhado de Aqualad, Arqueiro Verde de Ricardito, Flash de Kid Flash, além das versões juvenis que necessariamente não precisavam caminhar ao lado de seus inspiradores, como Superboy e Moça-Maravilha. Nos anos 1960, com o sucesso dos Xmen na Marvel comics, a DC procurou criar um grupo de super-heróis com uma rotina o mais próxima possível de uma família comum. Diferentemente da impessoalidade e profissionalismo da Liga da Justiça, eram

47 cego, alterando crucialmente o rumo das histórias. Batman nunca mais mataria, uma das suas preocupações seria dar bons exemplos ao Robin – o clima noir dos pulps da época aos poucos ia se apagando. Da segunda metade dos anos 1950 à segunda metade dos 1960, Batman e Robin participariam de diversas histórias de ficção científica, derrotando máquinas gigantes, viajando entre diferentes épocas e espancando ETs de todo o tipo. O ápice desse Batman mais suave se deu na segunda metade anos 1960, com a popularidade do seriado de televisão Batman (1966/67/68), de William Dozier, quando as hqs do homem-morcego se tornaram essencialmente cômicas e despreocupadamente divertidas. Muitas dessas mudanças nas hqs de Batman, abandonando as aventuras urbanas e partindo para o espaço sideral, se deve ao código de ética imposto aos quadrinhos nos anos 1950, em conseqüência ao livro “Seduction of the innocents” (1954), de Frederic Wertham, que acusava as hqs de provocarem preguiça e delinqüência juvenil. As associações de pais, e movimentos moralistas em nome da integridade familiar, foram até o senado estadunidense exigir alguma atitude diante do perigo que representava as hqs, encontrando simpatia na causa do senador McCarthy e nos aglomerados políticos de direita. A temporada de caças às bruxas promovida pelo mccarthysmo nos EUA resultou que diversas editoras de quadrinhos de horror tiveram de fechar. A homossexualidade de Batman e Robin, a influência negativa de um homem-morcego sobre um jovem inocente, comentada na obra de Wertham, levaram as histórias a aproximarem Batman de um sujeito bem-humorado, muitíssimo responsável, que conta com o apoio das autoridades e que tem uma namorada – Robin também tem a sua. Batman era igual a um policial, mas de máscara. Talvez estivesse no humor, no sarcasmo do seriado sessentista, a ironia que Batman representava moralmente: um criminoso bem-visto pela sociedade.

procurado conflitos de convivência, crises de amor e ódio. Assim então nasceram os Jovens Titãs: grupo jovem que reunia praticamente todos os sidekicks do universo DC – Robin era, e ainda é na figura do terceiro Robin, o líder do grupo.

48 Em 1997 foi lançado o filme Batman & Robin, de Joel Schumacher, que parte de uma premissa parecida com a dos anos 1960, mostrando o bom criminoso homem-morcego divertindo-se com a grande brincadeira que é ser um super-herói. No filme, Batman (George Clooney) tem até seu bat-cartão-de-crédito. Em contraste com o melancólico, na hq Batman: Ano um, vemos também o entusiasmo infantil que causa ao jovem Bruce Wayne, recém Batman, sair por aí fantasiado, assustando os outros. Numas de suas primeiras aventuras como Batman, ainda inexperiente, ele se envolve numa situação em que precisa segurar um bandido, para que este não caia de uma altura de vinte andares, enquanto outro, o golpeia pelas costas com um televisor – o traço verossímil, de ladrões tipicamente comuns contra um homem fantasiado com uma sunga por cima das calças, contribui para a comicidade e o ridículo, ao mesmo tempo em que causa grande ansiedade a determinação de um jovem Batman, ainda muito atrapalhado. Apesar destes opostos históricos, Batman sério e misterioso de um lado e Batman amistoso e público de outro, foi nos anos 1970, com a retomada de um Batman mais sério e sombrio, que começamos a avistar os fragmentos de identidades coexistindo mais claramente: não se tratava apenas de dois – o herói e o homem –, e sim de no mínimo três personagens. Sempre houve o falso, o Bruce Wayne público, um playboy bilionário, às vezes filantropo, às vezes fútil e grosseiro. Porém Batman se percebeu dividido em dois, um com a máscara e outro sem: este último era o Bruce Wayne no íntimo, na solidão dos seus pensamentos, o Bruce que viu seus pais serem mortos, que viajou pelo mundo, aprendeu de tudo o que fosse necessário e retornou para Gotham – o homem temeroso, em conflito consigo mesmo, cheio de dúvidas. No filme Batman begins vemos claramente essa tríade: há o Bruce cínico que freqüenta jantares caros e se embriaga em festas da alta sociedade, o Bruce homem, sensível, e o Batman, como uma força sedenta, furiosa, uma vontade de vingança. Essa divisão em três,

49 típica dos anos 1970, já aponta uma crise que se intensificará mais adiante. Ainda no filme, Bruce Wayne (Christian Bale) comenta “teatralidade e ilusão são agentes poderosos” quando se refere às impressões que Batman causa na cidade. Poderíamos com isso supor o Bruce íntimo como o autor, e os outros, as personagens, mas no mesmo filme isso é posto em dúvida quando Bruce se depara com a amiga de infância Rachel (Katie Holmes), que acabou de descobrir sua outra identidade:

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“Eu nunca havia te esquecido...Então eu soube da sua máscara.” “Batman é um símbolo, Rachel.” “Não. Esta máscara...” continua ela com a mão sobre o rosto de Bruce. “Seu rosto é agora o que os criminosos temem, o homem que eu amava, que partiu [na jornada pelo mundo], nunca mais voltou...”

Quanto mais o Batman se afirma, mais o Bruce intimista sucumbe. As inseguranças, os questionamentos do homem comum se transformam dentro do jogo obsessivo do homem-morcego – ainda assim, há dois ali, que se misturam, se encobrem. O teatro que representa o Bruce público parece contaminar o Bruce reservado e o Batman, que se perdem na encenação das máscaras, a ponto de não sabermos ao certo quem se sobrepõe a quem. Seria o homem consciente do delírio patológico que representa o Batman, ou o Batman consciente do jogo que significa o homem? Até mesmo o Bruce aristocrata poderia ser a identidade predominante – é com cinismo que ele vê tudo aquilo que faz parte do homem e do morcego: “um cara que se veste como morcego obviamente tem problemas” diz ele aos seus amigos da elite gothamita em Batman begins. Bruce Wayne, que estudou teatro e maquilagem, nem sempre recorre à fantasia de morcego para investigar ou perseguir criminosos: freqüentemente ele se disfarça de mendigo, traficante, operário, militar... Mesmo que isso não altere decisivamente sua personagem, reforça seu caráter camaleônico, suas camadas ofuscadas e justapostas.

50 Na graphic novel Batman: Ego (2000), de Darwyn Cooke, levanta-se ainda uma outra possibilidade: haveria dois Batmen mascarados, um seria uma força misteriosa, mística e monstruosa, à procura de um hospedeiro, e o outro, carente, que não suportou ser deixado pelos pais, e precisa desesperadamente da companhia de um Robin, além de ser também vaidoso, orgulhando-se de si próprio ao ter seu sinal luminoso projetado no céu e possuir um carro potente e majestoso. Ainda nesta hq, o Batman monstro joga Bruce contra sua galeria de troféus na caverna – local onde peculiares objetos usados pelos seus vilões foram guardados, como um tiranossauro robô, uma moeda gigante do Duas-Caras, uma carta também enorme do Coringa... Também consta na caverna um uniforme de Robin dentro de um vitral – abaixo há uma placa com os dizeres “em memória de Jason Todd”, o segundo Robin, morto pelo Coringa. Em Ego, será o Batman mais frágil que optará por nunca tirar vidas, devido à profissão de médico do pai, e sua infindável determinação em salvar vidas10. O valor à vida ensinado pelo pai, em correspondência de seu banal assassinato foi decisivo para a ética do morcego. Batman, Bruce, e todas as suas variantes deparam-se com uma outra noção de ficção que não se trata de uma reles “mentirinha”, mas de uma poderosa construção inteligível que põe em questão as ferramentas que utilizamos para distinguir um fato de uma ficção 11. Existe diferença entre os dois? Como acusar um homem-morcego de delírio, falsidade, quando o conjunto de argumentos que ele tem para se sustentar enquanto indivíduo. São tão arbitrários e refutáveis quanto os mesmos que uso para me sustentar enquanto homem, como documentos, registros, hábitos culturais? Na morte das verdades do homem e na vida por vir da personagem se estabelece uma importante oposição entre a tradição filosófica e Nietzsche: na

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Na série O longo dia das bruxas (1997/1998) de Jeph Loeb e Tim Sale, Thomas Wayne não se negou a salvar a vida do maior chefão do crime de Gotham, que bateu em sua porta na mansão, no meio da noite, baleado, com medo de ir ao hospital, a acabar sendo preso ou morto – o mafioso foi atendido ali mesmo, sobre a mesa de jantar, e Bruce assistiu a tudo, escondido. Aquilo impressionou muito o garoto (n° 6, p. 1-4). 11 Jacques Rancière em “A partilha do Sensível”, capítulo quarto.

51 primeira está uma única verdade, um único caminho, impositivo e limitante, no outro estamos diante de muitas e, ao mesmo tempo, nenhuma verdade.

O que é verdade portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que,após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE, “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, 1999, nº. 57)

A morte do homem, iniciada na incapacidade de um passado, se prolonga, nos seus últimos suspiros, quando o homem não consegue mais recorrer a uma individualidade, uma essência, um controle sobre uma verdade de si. Sem uma memória, ou melhor, com uma memória que sempre muda dependendo de onde e quando a visitamos, e sem uma personalidade cristalizada, assim, uma outra identidade é avistada, se fazendo e em vias de se reconstruir, diante do atemporal, do divisível e multiplicável. Afirmando-se com força monstruosa, projetada e inscrita sobre tudo o que a cerca, a máscara então, reclama seu posto, triunfante.

3.3

O ROSTO É A MÁSCARA

Em Nietzsche, há um princípio comum aos homens: a vontade – em toda vontade divide-se um tirano que cruelmente ordena e um escravo que obedece cegamente (NIETZSCHE, 2005, p. 23).12 Se nos é permitido recomeçar, não mais procurando a verdade por trás da máscara, mas a vontade que guia esta máscara, veremos que o ponto de partida é o mesmo de chegada: a máscara é a vontade e também a única identidade. No ser de Batman, em seu

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Além do bem e do mal.

52 fragmento e eterna construção, a máscara torna-se o único e aparentemente confiável rosto que podemos apontar. “A imagem-afecção é o primeiro plano, e o primeiro plano é o rosto...” (p.114) Com essa afirmação Gilles Deleuze começa seu primeiro capítulo sobre a imagem-afecção em A imagem-movimento (1983).13 Utilizando-se do exemplo de um relógio que se divide em ponteiros animados por micromovimentos e um mostrador como superfície receptora imóvel, Deleuze aponta dois pólos existentes no rosto. Um que apresenta um contorno rostificante, como uma admiração ou espanto – a superfície do relógio – e outro associado à micromovimentos de expressão que garantem os traços de rosticidade, como amor e ódio – os ponteiros do relógio. Há então no rosto o contorno e a expressão. No contorno, segundo Deleuze, exprime-se uma qualidade pura, uma qualidade comum a vários objetos de naturezas diferentes. Por exemplo, o sentimento de admiração, afeição, de uma mãe que observa seu filho pequeno brincar, assim como um lustre de família, que traz consigo toda uma história comum de vivências entre familiares – o lustre parece observar em ato de contemplação a família a que ele pertence. Na expressão se manifesta uma potência pura, uma série que nos faz passar de uma qualidade a outra. É quando uma expressão triste se permite transformar-se em alegria: é a transitoriedade que marca a expressão do rosto, que também pode estar contida num objeto, um balanço infantil vermelho, antes sinônimo de vida e brincadeira de crianças, e depois, inscrita em sua madeira apodrecida, a lembrança melancólica de um terrível crime. “O afeto é a entidade, isto é, a Potência e a Qualidade” (p.126). O contorno é quase que a total objetificação do rosto, como qualquer outro objeto: um relógio, uma porta, uma janela. Na expressão há mais traços de vivacidade, de qualidades

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Deleuze utiliza a imagem no sentido amplo, bergsoniano, que vai desde uma história em quadrinhos até um policial que encontramos na rua. Imagem é tudo e todos, um cheiro, um sentimento, o leitor deste texto.

53 passageiras que mudam conforme esta expressão exerce seu poder, demonstrando amor, ódio, asco, medo. Não se pode dizer que a expressão do rosto é uma exclusividade do ser humano. Esta mesma potência de expressividade pode ser manifestada por quaisquer objetos, vide filmes clássicos de terror, onde elementos como corredores, escadas ou espelhos parecem já ter sua expressividade, sua capacidade de demonstrar seus sentimentos, desejos. Quanto mais se humaniza os objetos, mais se desumaniza o próprio rosto humano. O rosto não é mais o rosto social, da individualidade. “Não há primeiro plano de rosto (...) o primeiro plano é por si mesmo rosto” (p.115). Ou seja, o primeiro plano é o rosto da imagem. Aqui, o primeiro plano de que fala Deleuze não é apenas o rosto de uma personagem, o primeiro plano é tudo aquilo que imprime uma rosticidade – expressão – ou rostificação – contorno –, não importando se o que vemos é o detalhe de uma maçaneta ou a visão geral de um castelo. Este rosto, primeiro plano que é afeto, não se limita a enquadramentos – ele pode se espalhar por tudo, contagiando, “afetando” todos os espaços e tempos.14 Para um afeto prevalecer, para um rosto ser um rosto, é necessário eliminar qualquer perspectiva ou profundidade. O afeto é um ente único, indivisível, independente de qualquer espaço-tempo determinado, é uma qualidade ou potência, e deste modo não é relacionado com coisa alguma. Se o afeto é o rosto, este não é uma parte de um corpo, ele é o próprio corpo. O rosto é somente ele e não precisa de mais nada. Com Batman, o rosto é a máscara, ela que permeia tudo aquilo que vemos no mundo do homem-morcego. Ao olharmos por trás da máscara nos deparamos com um espelho. Ela se propaga e se torna a positividade mestra do universo do morcego, residindo em um jogo contraditório – na mesma máscara estão a expressão e o contorno, mas em pontuações diferentes.

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É importante destacar que tais classificações e divisões deleuzeanas não se tratam de uma taxionomia pretensiosamente verdadeira sobre o rosto, mas apenas uma ontologia metodológica, uma maneira pessoal de ler, ver.

54 A princípio, o contorno será a realidade presente em Batman: veremos esculturas, rostos de gárgulas demoníacas na catedral de Batman, de Burton, feições austeras de musculosos operários que se confundem com poderosos líderes fascistas em Batman & Robin de Schumacher e Batman returns (1992), de Burton, ou ainda heróis à espera de redenção em Batman forever (1995), de Schumacher. Haverá anjos e santos que clamam pelo pai em Batman: Guerra ao crime, de Dini e Ross, a cidade na forma do corpo de um homem-morcego dolorosamente aprisionado entre prédios, em Batman: Ego de Cooke, ou a ausência da cor de pele, mesclando-se à cor da máscara em Asilo Arkham, de Morrison e McKean. O Batmóvel trará consigo adereços de asas de morcego, ou na sua frente um rosto de morcego, podendo ainda se assemelhar a um morcego de asas fechadas em Batman begins, de Nolan. Há também a batmoto, a batlancha e o batplano, na forma de um gigantesco morcego – todos sem rosticidade, há apenas uma rostificação, a qualidade pura da máscara do morcego. Porém a expressão persiste, não como realidade deste universo, mas como virtualidade, lembrança e promessa de algo que não está ali, mas que já esteve e está sempre por vir na fragmentação do passado de Batman e na transitoriedade de suas personalidades. Quando chegar o dia em que a máscara do morcego se apagar, sucumbir à escuridão, essas pluralidades temporais e espaciais explodirão pelos ares, numa transitoriedade infinita, potência pura. Isso fica bem evidenciado em Batman begins. Na primeira hora do filme, em que ainda não há Batman, somos cercados de diferentes movimentos expressivos. Há o Bruce Wayne criança, feliz com a família; assustado pelos morcegos; abalado pela morte dos pais; revoltado com a injustiça; perdido; e por fim, determinado a encontrar um outro rumo. Assim também acontece com as outras várias personagens, cada uma em seu próprio curso, em suas próprias rosticidades, como Ra’s Al Ghul (Ken Watanabe), líder da Liga das Sombras e mestre de Bruce na arte do medo; a promotora Rachel Dawes (Katie Holmes) defensora da lei; o fiel mordomo Alfred (Michael Caine), responsável pela manuten-

55 ção do legado da família Wayne; o honesto e impotente sargento de polícia James Gordon (Gary Oldman); o esquecido cientista Lucius Fox (Morgan Freeman); e o corrupto psiquiatra Jonathan Crane (Cillian Murphy). Porém tudo muda ao surgir a máscara de Batman: o filme se transforma, e o rosto de homem-morcego se espelha sobre tudo e todos. Gotham, que parecia uma grande cidade comum, assume uma duríssima face – um limbo fértil para toda sorte de crime e corrupção, confundindo o olhar com seus vapores e descarregando ódio e fúria entre tempestades. Todos os coadjuvantes agora têm um propósito comum, Alfred e Lucius servem ao Batman, Gordon é seu contato na polícia, e Rachel sua aliança no judiciário. Crane toma o lado oposto da guerra, mas também se sujeita à máscara de morcego que contamina – ele se torna o vilão Espantalho, utilizando uma máscara de trapos, desprovida de qualquer movimento. Se antes de surgir Batman tínhamos muitas rosticidades e diversas expressões, agora só há uma cara, uma qualidade, que se manifesta pelo contorno. O Batmóvel, a trilha sonora, todos se tornam estáticos – formas severas da rostificação de Batman. Até mesmo o antigo aliado, Ra’s Al Ghul se coloca como vilão na imagem de outra pessoa (Liam Neeson) – todo o trânsito emocional que víamos em seu rosto no início do filme se perde na sua transformação em cruel vilão. Os contornos do rosto então reinam por toda Gotham, mas com uma diferença crucial: o passado de movimentos expressivos sempre vai estar lá, e sempre retornará como uma lembrança assustadora e ao mesmo tempo catártica, uma tentativa de fuga, fomentando uma nova esperança. A dualidade entre expressão e contorno, pode ser também vista no filme Batman, de Burton. No rosto de Gotham prevalecem os contornos – gótica, com suas imensas torres apontando para os céus. A cidade revela também uma aparência extremamente mecanicista: vemos formatos de engrenagens, rótulas, moldes, máquinas de montagem, peças mecânicas em prédios, ruas e portas. Batman é quem personifica esse mundo: sua máscara,

56 sempre de expressão austera, é também desprovida de movimentos – até mesmo sua boca, que fica visível, mantém a rigidez da máscara. O uniforme de Batman, duro, com pouca mobilidade, complementa, assim como o pesado Batmóvel, os contornos mecanicistas que são determinantes até mesmo no Bruce Wayne. Sua expressão é igual à da máscara, porém fortalecida com maior apatia – as sobrancelhas lembram o próprio desenho da máscara. Apenas os olhos partem em outra direção: seu olhar nos faz lembrar o de uma criança que viu seus pais serem assassinados. Na foto que mostra o jovem Bruce após o crime, Vicki Vale (Kim Basinger) associa “o olhar do garoto” com um Bruce Wayne adulto – ausente, parece que o olhar se estagnou na fatídica noite e nunca mais retornou ao movimento. Essa melancolia de um órfão que nunca mais recuperou aquilo que seus pais significavam a ele é o que vemos quando fitamos os olhos de Batman. A ausência se expande quando Bruce se coloca na posição de bilionário e socialite: ele não se sente à vontade nos eventos sociais de que participa; mesmo estando lá, ele não está – Alfred (Michael Gough) precisa acompanhá-lo para indicar como se portar com a alta elite, apontar em qual parte da mansão está uma sala de jantar, a entrada da caverna... Esse comportamento é o rosto mecanicista de Batman – tanto a postura de Bruce Wayne como a do herói são um acúmulo de movimentos mecânicos, automáticos. Até mesmo quando está espancando um oponente, ele parece se mover sem vida. Sua apatia torna-se tão grande que mesmo em momentos mais carregados de emoção como quando Bruce justifica a Vicki porque se tornou Batman, não há emoção alguma, não se vê qualquer expressividade em movimentos faciais, a expressividade está sempre no que não está ali, no que está faltando. Nesse rosto de morcego que se espalha, inevitavelmente alguém teria que se opor, e este é o vilão Coringa (Jack Nicholson). Em contraste com essa realidade cinza, melancólica e apática, surgem uma alegria, um humor e um novo colorido: Coringa está sempre rindo, sua face é deformada numa constante risada e, apesar de imóvel, é ela que

57 destrói a ordem dos contornos, e traz consigo o caos, a mobilidade, a expressividade em pequenos movimentos de olhos, boca, sobrancelhas, que transitam entre a depressividade de um palhaço e a crueldade sádica de um assassino. Conforme Coringa age, ela muda Gotham, as formas mecânicas saem de cena conforme ele pinta, destrói e mata tudo o que toca. O antagonismo entre Batman e Coringa é total: Coringa matou os pais de Bruce, e Batman acidentalmente deixou Coringa cair no tanque de produtos químicos que o deformou – como se um precisasse do outro para se libertar de sua própria face. Trata-se de um duelo de rostos o que vemos em Batman: uma criança sozinha e tristonha, que procura algum sentido na vida, contra um adulto que não vê mais sentido algum e só o que resta é viver morrendo, e matando, de tanto rir.

3.4

A MÁSCARA É A VERDADE

A sufocante imposição da máscara de morcego e a busca por libertar-se dela se refletem de forma mais intensa naqueles que se mascararam, que aceitaram essa outra realidade, e que agora partem em sentido oposto, numa fuga desesperada: o menino Richard “Dick” Grayson vivia e trabalhava no circo Haly desde que nasceu – junto com seus pais, talentosos trapezistas, formavam os “Graysons Voadores”. Por não aceitar extorsão, o dono do circo foi ameaçado: numa noite de espetáculo, em que Bruce Wayne, recém Batman, estava presente, as cordas do trapézio foram sabotadas, e na queda os pais de Dick morreram na sua frente. O enquadramento usado comumente nas hqs e audiovisuais, de um casal morto dentro de um círculo no meio do picadeiro é muito semelhante ao da morte dos pais de Bruce, dentro de um

58 círculo de luz. Na repetição da tragédia, de um menino semelhante fisicamente, de doze anos, Bruce vê um espelho15. Como o garoto havia identificado o assassino dos pais, para sua proteção, Dick ficou sob a guarda de Bruce, até que Gordon investigasse o crime. Convivendo na estranha rotina da mansão, na companhia de Alfred, logo Dick percebeu que aquela não é uma família normal – o homem-morcego se revela a ele. O garoto é treinado por Bruce até assumir o manto de Robin, após, o mesmo juramento que Bruce havia feito quando criança: “combater o crime e a corrupção, e nunca se desviar do caminho da justiça.” Na linha Grandes astros, em que se busca produzir histórias livres da cronologia, com base nos elementos mais marcantes das clássicas personagens, Batman, ao salvar o jovem Grayson de policias corruptos, envolvidos na recente morte de seus pais, o ergue pela camisa, no meio de uma revoada de morcegos: “de pé soldado”, Batman diz, “Você acaba de ser convocado para uma guerra” (Grandes astros: Batman & Robin 01, p. 23-24). A distinção do uniforme de homem-morcego para menino-prodígio é grande: Batman veste cinza e azul escuro, uma máscara com orelhas de morcego que tapa toda sua cabeça e uma comprida capa de vampiro. Já o manto original de Robin é composto de uma máscara que apenas lhe esconde a região em volta dos olhos – tipo Zorro –, sapatos verdes tipo duende, uma curta capa amarela, um colete vermelho, além de luvas e sunga também verdes, deixando parte dos braços e as pernas inteiramente expostas – todas as cores são quen-

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A narrativa do surgimento de Robin é constantemente recontada e reformulada, assim como qualquer evento referente ao passado dos super-heróis. Procurei me ater naquilo de mais essencial à história. Na ausência de uma narrativa definitiva, felizmente, me reservo no direito de recontá-la ao meu olhar, construindo dentro das contradições entre versões, aquilo que acho crucial à narrativa. Esse procedimento que adoto, onde tento de alguma forma manter o rigor da pesquisa e, ao mesmo tempo, me permitir a elaboração de mais uma versão sobre uma personagem, será comum neste trabalho a todo o momento em que abordar algum passado, alguma narrativa das personagens, sejam heróis, vilões ou coadjuvantes. Para contar o começo de Robin, me atenho em diferentes hqs; entre as principais estão: Detective comics n°. 38 (1940), assinada por Bob Kane, embora nesta época apenas assinava as histórias os criadores das personagens, mesmo que em nada contribuíssem. Até onde consegui apurar em prefácios de hqs, Bob Kane, Bill Finger e, Jerry Robinson foram responsáveis pela criação de Robin. Já as outras histórias que me baseio para contar a narrativa do menino-prodígio são todas pós-crise nas infinitas Terras: Batman: Ano três (1989), de Wolfman, Broderick e Beatty, Vitória

59 tes e chamativas. Se do ponto de vista moralista, já não é algo muito correto conduzir um adolescente em perigosas e violentas aventuras, muito menos o é dar-lhe o mínimo de proteção e discrição. Robin é um alvo, o menino-refém como o chama Duas-Caras: alguém que distrai os criminosos enquanto Batman ataca pelas sombras. Até o Comissário Gordon estranhou a primeira vez que viu Robin, mas aceitou. Seja como for, e talvez seja isso que Gordon entendeu, a significância do menino-prodígio está para além da moral. Robin é a luz necessária para que o homem-morcego não caia definitivamente nas profundezas do abismo na caverna – com Robin ao lado, Batman torna-se mais zeloso, mais responsável por aquilo que está legando. A empreitada do morcego não fica tão solitária, há uma alegria juvenil na sua guerra, que ele sozinho não consegue ver. Batman depende de um Robin para se sentir amado, vivo. Em O cavaleiro das trevas, ao voltar a pilotar o Batmóvel – nome inventado por Dick segundo a hq – Batman relembra-se com amargura do passado no banco vazio ao seu lado, ele lamenta “...onde está você, Dick? Você sempre foi minha melhor arma...” (O cavaleiro das trevas, nº. 2, p. 22, 28) Dick Grayson sempre foi um adolescente disciplinado, mas muito autoconfiante – quando desobedecia alguma ordem direta, costumava se sair bem. Batman tolerava, embora o repreendesse enfaticamente. Nos anos 1970, as hqs regulares de Batman começaram então a explorar uma nova relação: Dick estava crescendo, não tolerava mais as limitações de Batman, nem via mais sentido em vestir-se de Robin – estava cansado de viver na sombra do morcego. “As suas regras, o seu jeito, ou rua!? É Batman e Robin, não Robin e Batman!” diz Dick (Chris O’donnel) em Batman & Robin. Em meio a intensas brigas e mágoas com Batman, que até hoje não foram totalmente superadas, uma crise de identidade vai abalar Dick, que passa a duvidar se foi apenas aquilo que Batman esperava dele. Grayson se afastará de Bruce: vivendo sozinho, agora adul-

Sombria (1999/2000), de Loeb e Sale, e Grandes astros: Batman & Robin 01 a 04 (2006), de Miller e Jim Lee.

60 to, de cabelos compridos, assumirá um novo uniforme, ele será Asa Noturna – herói que defenderá Blüdhaven, cidade vizinha de Gotham. Sua roupa é escura, urbana, tem um símbolo azul no peito, não tem cinto de utilidades, e é sem capa – manteve apenas a máscara, com pequenas alterações. Bruce e Dick passaram anos sem se ver ou falar. Desde os quadrinhos nos anos 1980 até os dias de hoje, o grande conflito de Dick será sua relação com Batman – ao mesmo tempo em que admira seu mestre, ele se distancia, na vontade de encontrar, afirmar seu próprio rosto. Isso se reflete na suas profissões, Dick não consegue se fixar num emprego, já foi garçom, empresário de circo, policial, segurança... A única em que ele ainda tem êxito é como vigilante mascarado – mesmo assim, às vezes acontece de Asa Noturna, no salvamento dos fracos e oprimidos, ser comparado ao Batman, algo que lhe traz grande incômodo. Às vezes, em casos extremos, Dick assume o manto de morcego por alguns instantes, mas acaba sentindo-se muito mal, não suportando o pesado uniforme por muito tempo. Essa relação identidade/individualidade ganha uma triangulação com o surgimento do segundo Robin. Carente, desanimado, Batman vê um novo parceiro no delinqüente juvenil Jason Todd – ladrão de rodas de carro que ousou roubar os pneus do Batmóvel. Filho de um capanga assassinado pelo Duas-Caras, Jason passará boa parte da sua curta vida como Robin, procurando se afirmar como alguém diferente do seu antecessor – nas histórias précrise, Jason era loiro e tinha de tingir os cabelos para ficar semelhante a Dick, a fim de evitar suspeitas. O segundo Robin é mais cínico, inconseqüente e malicioso que o primeiro. Isso causará muitas brigas com Batman. Uma das ordens do morcego que Jason desobecedeu foi viajar sozinho, na procura de sua mãe, sendo traído por ela, que estava aliada ao Coringa: no

61 final, Jason e sua mãe são assassinados pelo vilão na saga Morte em família (1988), de Jim Aparo e Jim Starlin16. Com Jason, a tentativa de distinção, fuga da obediência, do condicionamento da máscara de Robin, e conseqüentemente, de Batman, levou a uma tragédia. Com Dick, a tragédia assumiu outra natureza: ele não se libertou do morcego pela morte ou afastamento, de forma contrária, se aproximou ainda mais por meio do manto do sombrio vigilante Asa noturna. Nesse sentido, a única que reúne a tragédia com o legado, fazendo disso um renascimento, é Bárbara Gordon, antes Batgirl. Jim Gordon estava separado há pouco tempo. Insatisfeita com os jantares a que Gordon não compareceu, com os compromissos familiares que deixou em segundo plano em nome do trabalho, ao descaso em relação a ela e ao filho recém nascido, além do romance extraconjugal que ele havia tido com a policial Sarah Essen, enquanto ela ainda estava grávida, sua ex-esposa o deixou sozinho, levando consigo o filho de volta para Chicago. Pouco depois, o irmão de Gordon e a esposa haviam morrido num acidente automobilístico – a filha do casal, a pequena Bárbara Gordon, estava órfã. O carinho que Jim não havia dado à sua família, ele procurou transmitir à sobrinha, que criou como filha. Bárbara estudou biblioteconomia, era talentosa em ginástica e judô, e tinha conhecimento, pelo pai adotivo, da dura realidade do submundo de Gotham. Quando o cômico vilão Mariposa Assassina invadiu a festa à

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Aqui cabem duas explicações: nos quadrinhos de heróis no Brasil, costuma-se usar o termo “saga” para referirse a uma única história que une as diferentes hqs de um herói por algum tempo. O que caracteriza uma saga é uma história fechada, que dura meses, às vezes anos, e ao final, mesmo que a história acabe, as personagens continuam a existir em novas aventuras. Esse termo gera algumas confusões, e determinados editores evitam usá-lo, mas na falta de algo melhor, opto por mantê-lo, já que estas histórias não podem ser chamadas de série – pois suas personagens não tem fim mesmo depois do final da hq –, e também não podem ser vistas simplesmente como histórias regulares, já que costumam envolver muitas hqs que na maioria das vezes possuem desenvolvimentos relativamente independentes.

O segundo esclarecimento que faço refere-se especificamente a história Morte em família. Esta saga, hoje promovida a graphic novel, foi publicada gradativamente, sendo que cabia aos leitores numa eleição por telefone escolher seu final – deveria ser decidido se Robin morreria ou não. Boatos entre leitores contam que houve fraude eleitoral, mas a informação oficial é que por uma pequena diferença foi escolhido que Robin deveria morrer. Devido à repercussão da saga, a editora Abril a publicou no Brasil com o nome de A morte de Robin, já no formato graphic novel. Por isso, a partir de agora irei me referir a esta história pela edição e nomenclatura – e reedição da qual disponho – adotada no Brasil.

62 fantasia da polícia de Gotham, ferindo Jim Gordon, Bárbara, fantasiada de Batman para irritar seu pai, tinha recém chegado ao local. A destemida jovem então, aproveitando de seu anonimato, derrotou o vilão. Empolgada com a adrenalina e o mistério que cercavam a imagem do morcego, além de poder fazer aquilo que as instituições não permitiam a uma menina tão “jovem e frágil”, Bárbara tornou-se a Batgirl. Em Batman: the animated series, no episódio “A sombra do morcego” (1993), de Frank Paur, a história é semelhante: ao ver Jim Gordon injustamente acusado de corrupção, e ciente do poder que a figura de Batman proporcionava, Bárbara fez uma fantasia semelhante apenas para causar algumas impressões, mas acabou participando de todo um caso que levou ao desmantelamento de uma quadrilha. Batman e Robin – o primeiro ainda jovem – tentaram desestimular a bela heroína de longos cabelos ruivos expostos para fora da máscara, mas não foi possível. Adulta, Bárbara manteve-se como Batgirl, chegando atuar junto do segundo Robin, Jason Todd. Porém, semelhante ao que acontecia com o namorado Dick, Bárbara não via mais com animação ser uma garota-morcego – abandonou o manto, tentando levar uma vida normal, longe das aventuras heróicas de Batman, Asa Noturna e Robin. Até que numa noite, o Coringa invadiu sua casa e a baleou na coluna, deixando-a paraplégica. Bárbara ficou por um longo tempo traumatizada. Superada a sensação de impotência, voltou a praticar exercícios físicos, treinar artes de luta com as mãos e natação. Tornando-se uma talentosa hacker, Bárbara, acompanhada de poderosos computadores, começou a trabalhar na torre do relógio de Gotham – propriedade das empresas Wayne –, no serviço de informação para Bruce, com o pseudônimo de Oráculo. Logo, a habilidade para invadir e espionar sistemas de dados e programas de controle, e também para manter uma rede de informantes em várias cidades, levou Oráculo a se tornar colaboradora não só de Batman, mas também de todos os heróis, inclusive os da Liga da Justiça – Superman, Mulher-Maravilha, Flash... Também, com a antiga amiga Canário Negro, heroína com poderes sônicos, e a vigilante Caçadora – que não obtém aprovação de Batman para agir

63 em Gotham City –, formou o trio de heroínas conhecido como Aves de Rapina. Ao se tornar Oráculo, mesmo mantendo o vigilantismo como atividade, Bárbara conseguiu se libertar do legado da caverna – a personagem conquistou uma identidade. Não há, ao vermos Oráculo, a lembrança de Batman, diferentemente do que acontece com Dick, que sempre será o menino prodigioso do morcego. Consciente de sua asfixiante influência, atualmente Batman não leva mais uma relação muito próxima com seus aliados: Tim Drake, o terceiro Robin, o mais jovem de todos, o menino-prodígio detetive, como costuma ser chamado, foi treinado por Batman, mas não há uma ligação afetiva entre eles como havia com Dick – poucas vezes Tim e Batman atuam juntos. O terceiro Robin segue carreira solo, atuando mais como espião, investigador e eventual suporte. Diferente de Jason, Tim é cauteloso e responsável, e foi ele que se ofereceu a assumir a herança de Robin. A personagem Mulher-Gato, embora não seja necessariamente uma aliada do herói, também sofre para libertar-se da máscara de Batman. Conforme na hq Batman: Ano um, a prostituta apaixonada por felinos Selina Kyle abandonou sua atual atividade, teceu um uniforme de gato e, inspirada pelas impressões causadas pelo homem-morcego, tornou-se a sedutora ladra que sempre deixa um arranhão como marca em suas vítimas. Ainda na mesma hq, Selina decide aumentar a violência de seus golpes, já que tem sido confundida com o morcego pela imprensa de Gotham. O passado da Mulher-Gato ainda sofre constantes reformulações: uma das versões conta que Selina, após o suicídio da mãe, não podendo ficar com o pai alcoólatra, foi encaminhada a um cruel e rigoroso orfanato para crianças pobres. Fugindo do lugar ainda muito jovem, viveu nas ruas, praticando pequenos furtos e se prostituindo. Às vezes põe-se em dúvida se a atividade de prostituta não era apenas um fingimento para praticar roubos maiores. É perceptível nas hqs que Selina é uma atleta incomparável, manuseando com maestria seu chicote,

64 porém nunca foi explicado onde aprendeu tais habilidades, apenas que alguém lhe ensinou caratê. Batman returns, de Burton, mostra uma outra versão: Selina Kyle (Michelle Pfeiffer) seria uma frustrada secretária, decepcionada com contos de fadas, que após sobreviver a uma tentativa de assassinato, numa ressurreição mística entre gatos, revolta-se, costurando a roupa de voluptuosa felina. O perfil psicológico da vilã também sofre diferentes variações nas hqs, às vezes ela é mostrada como uma cleptomaníaca descontrolada, outras como uma mulher fria e dominadora, que sabe exatamente o que está fazendo. Às vezes ela ajuda Batman, combate vilões, e ainda troca alguns beijos com o herói. Em outras histórias, ela rouba ricos e poderosos, comete diversos crimes e tenta matar, ou ao menos cravar suas garras, ferindo gravemente o morcego. Por isso são emblemáticos os sinais de costuras e remendos em sua roupa no filme de Burton – os fragmentos de personalidade de uma mulher-gato. Apesar de tudo, duas coisas são comuns a todas as suas caracterizações: seu profundo desprezo pelos homens e sua luta incessante contra a dependência, principalmente em relação ao Batman. Mulher-Gato torna-se um grito feminino de independência em Gotham: uma mulher que não precisa de nenhum homem para se proteger ou se afirmar, que não aceita limite algum, fazendo tudo o que deseja, livremente – ainda que em partes. Esse aparente discurso de emancipação feminista não se sustenta na medida em que Selina não vê problema algum em se condicionar a suas vontades, e talvez debochar de sua própria feminilidade: ela seduz, explora suas suntuosas curvas, gosta de luxo e dinheiro, não suporta homens fracos, sentido-se atraída pelos mais bonitos e refinados. Mesmo que ela não esconda sua paixão por Batman, e uma “quedinha” por Bruce – por muito tempo ela não soube do segredo do morcego –, seu maior pesadelo é se perceber domesticada, ligada a um homem como uma gata castrada, presa à coleira de seu dono. Ainda mais com Batman, que não tolera a vida de crimes da ladra. A presença dominadora de Batman e a selvagem impertinência da Mulher-Gato que propiciam a instável relação de amor e

65 ódio entre os dois. Selina não se sujeita ao morcego, mesmo mascarada procura encontrar seu próprio rosto, descompromissadamente egoísta, ousado, mas fatalmente ainda não livre do rosto do morcego que a impulsionou e retorna em forma de assombração, como mais um fragmento, assustador e manipulador, dentro da mulher que quer ser gato. O que vemos em Gotham, enquanto a máscara do morcego persistir, serão contornos recalcando impiedosamente todo o movimento da expressividade. Talvez essa máscara nunca desapareça. Se na vontade residem um tirano e um escravo, em Batman houve certo desequilíbrio, o tirano ordenou muito no início, e agora o escravo, ausente no começo, precisa suprir todas as obrigações até que lhe sejam conferidas outras – e ele sabe que nunca vai dar conta de tudo o que há por fazer e refazer. Na meta de Batman, está lutar contra todo tipo de crime, evitar que eles aconteçam, ter o controle sobre a morte, mas ao mesmo tempo, afirmarse na liberdade, no porvir de toda nova e arriscada aventura em que ele mergulha. Isso nunca vai ter fim, é uma oposição de idéias sem possibilidade de síntese. Pode ser que Batman saiba disso: “eu sei que estou lutando uma guerra que nunca vou poder vencer completamente” (Guerra ao crime, p. 60). Na contradição, na coexistência dos incompatíveis, na mentira da verdade e na verdade da mentira, na vontade da máscara, encontra-se o primeiro princípio da morte do homem no morcego. Nessa estranha identidade, o jogo, o teatro se torna única verdade possível na destruição de todas as outras.

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4

A SOMBRA DO MORCEGO

Após a repercussão de O cavaleiro das trevas em 1986, muitos outros quadrinhistas se aproximaram da personagem dando uma continuidade a esse novo homem-morcego que surgia. Se em O cavaleiro das trevas vemos um Batman psicótico, obsessivo, em boa parte amoral, que desliza entre a figura de um velho tirano em busca de mais poder, e um jovem revolucionário que deseja que a velha ordem sucumba em nome de uma romântica transformação do mundo, mais frágil tornaram-se as fronteiras que separam o morcego de seus vilões. Como era possível dar o status de herói, símbolo dos bons valores de justiça e de liberdade, a um homem que mastiga e regurgita seu passado, que praticamente não dorme – ou dorme de cabeça para baixo, conforme sugere Batman, de Burton –, transita entre identidades sem cessar, veste-se de morcego mesmo na reclusão da caverna, atrai menores de idade para uma vida de crimes e tragédias, desrespeita qualquer autoridade e age ignorando a polícia, encarando-a como uma instituição totalmente falida? Batman begins, de Christopher Nolan, demonstra muito bem esta última pontuação quando Batman, fugindo dos policias com seu Batmóvel, pouco se importa com as colisões e destruições causadas às viaturas e ao patrimônio público na sua escapada. Além disso, os policias são representados de forma debochada e ridícula, sendo eles completamente despreparados para um homem-morcego. Classificar Batman na luta em defesa dos fracos e oprimidos tornou-se praticamente impossível, quando vemos que o altruísmo fica em segundo plano perto do seu imenso prazer, do egoísmo cínico em perseguir, apavorar e torturar criminosos. Onde o limite sanidade/insanidade poderia separar Batman de seus vilões? Depois de O cavaleiro das trevas não houve mais por onde e essa cerca perdeu todo seu sentido... Duas graphic novels se tornaram centrais no desenvolvimento da relação entre o Batman pós-cavaleiro das trevas com seus vilões: A piada mortal (1988), escrita por Alan

67 Moore e desenhada por Brian Bolland, que aproximou violentamente o homem-morcego e seu arqui-rival o Coringa, mostrando as razões – e loucuras – que os tornavam tão semelhantes, e Asilo Arkham (1989), escrita por Grant Morrison e ilustrada por Dave McKean, que por meio de uma narrativa perturbadora, Batman se vê coagido a conviver por uma hora com seus vilões, e a perceber que as diferenças eram muito mais tênues do que se imaginava. Vimos que na morte da idéia tradicional de memória, da individualidade, da unicidade, de uma pretensa essencialidade, começamos a esquartejar partes do cego homem, prestes a morrer pelas asas do morcego, na busca por uma outra noção de identidade. Neste capítulo nos concentraremos nos limites da razão – dom supremo da vitória do homem, que se encontra terrivelmente confuso e doente no asilo da verdade, sob a máscara do morcego, a fantasia de palhaço e a moeda riscada.

4.1

UM DELÍRIO SOCIAL

Com bastante freqüência o criminoso não está à altura do seu ato: ele o diminui e difama (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2005, p. 66).

Os vilões de Batman, desde seu começo em 1939, sempre foram, em grande maioria, psicóticos e fantasiados. Enquanto os vilões de Superman se caracterizavam por saber exatamente o que estavam fazendo e qual seria o próximo passo para seu êxito financeiro ou político, os vilões de Batman tinham metas absurdas e eram movidos em seus crimes, acima de tudo, pela compulsão. No anos 1960, isso se tornava um dos principais artifícios cômicos das histórias. Em 1970 houve uma tentativa de abandono dos vilões fantasiados, embora a loucura permanecesse, até que a partir dos anos 1980, buscou-se repensar quem são afinal

68 esses vilões, porque eles são assim e o que há neles de normal, ou seja, a que normas sociais eles obedecem. Na graphic novel O longo dia das bruxas (1997/1998), de Loeb e Sale, publicada originalmente em treze edições, de um halloween a outro – as hqs de Batman tem tradição em especiais de dias das bruxas –, acompanhamos os diversos eventos que levarão Gotham City a se tornar a capital universal do crime caótico, dando continuidade a algumas sementes já plantadas em Batman: Ano um. É neste panorama de Gotham, construído por estas duas hqs, que conhecemos a cidade antes do surgimento de Batman. Gotham era uma grande cidade como qualquer outra, até mesmo as hqs que trabalham este período a mostram sem torres góticas ou deformações exageradas – Gotham pode ser Nova York, Londres ou São Paulo. Além de problemas de urbanismo, desigualdade social, crises econômicas, a cidade possui altíssimos índices de violência urbana. O crime organizado controla drogas e armas, a polícia é em grande parte corrupta – incluindo seu comissário –, e no judiciário quem não aceita suborno morre ou concorda com fingir que nada vê. Existe um grande chefão do crime, Carmine “Romano” Falcone, e um poderoso e proeminente rival – às vezes aliado -, Salvatore Maroni – além de outras menores famílias de mafiosos. As ruas são infestadas de estupradores, drogados e prostitutas. O Estado, as instituições não funcionam. Raramente se vê uma influência política que ultrapasse o âmbito da cidade – Gotham parece uma cidade-estado, filha órfã de uma nação que nunca conseguiu se constituir de fato. Em Batman: Ano um, por uma narrativa paralela, acompanhamos, num mesmo dia, o jovem Bruce Wayne retornando a Gotham de avião depois de todo seu exílio, e o tenente de polícia Jim Gordon no seu primeiro dia de trabalho na cidade. Bruce pensa que teria sido melhor ter voltado de trem para estudar mais cuidadosamente sua cidade, enquanto no trem o fumante obsessivo Jim Gordon está inconformado e horrorizado com a agressividade da população gothamita (p. 8-9). Enquanto Bruce se prepara no isolamento da mansão, Gordon

69 depara-se com uma polícia corrompida e uma cidade preocupante – sua esposa está grávida. Apesar de não delatar os colegas corruptos, Gordon não participa de esquemas e recusa subornos, com isso ganha inimigos dentro da polícia. Com o aparecimento de Batman, Gotham trilha um novo rumo: o crime organizado se desespera e começa a desmantelar-se. Uma força-tarefa caça-morcego é formada pela polícia. Gordon, impressionado com os feitos do Batman, acaba se aproximando do vigilante, depositando sua confiança no misterioso morcego ao vê-lo salvar seu filho recém-nascido de um seqüestro promovido por policiais em vingança (p. 95). Uma aliança é formada, Batman e Gordon – agora capitão, devido ao prestígio que ganhou junto à mídia por suas investigações e prisões – juntam forças com o competente e entusiasta promotor público Harvey Dent e conseguem acabar definitivamente com as grandes famílias criminosas de Gotham (O longo dia das bruxas, n° 1, p. 29).

Ao mesmo tempo em que nossa cruzada provocou uma queda radical na criminalidade urbana, ela também pareceu semear uma laia mais extrema de criminosos. Gênios com ânsia de poder, psicóticos sádicos, oportunistas voluptuosas e maníacos homicidas obstinados! Cada um deles parecia compelido a aceitar nosso desafio não manifestamente declarado (Batman dialogando consigo mesmo, em Ego, p. 40-41).

Nasce um novo submundo: a prostituta Selina Kyle espanca seu cafetão, faz um uniforme de Mulher-Gato, e começa a roubar dos corruptos e mafiosos (Ano um, p. 69, 71). Um outro criminoso, ao matar diversas pessoas envenenadas, deixa uma carta de coringa na cena do crime (Batman nº. 1,1940). Em Batman begins há um diálogo que ilustra bem essa mudança, quando Gordon usa pela primeira vez o sinal luminoso de morcego, na torre da polícia, para chamar por Batman:

-

“Gotham voltará a ser o que era” diz Batman.

70 -

“E a escalada?” aponta Gordon. “Usamos semi-automáticas, e eles compram automáticas, usamos Kevlar, e eles compram munição perfurante...” “E...?” “E você está usando uma máscara, e pulando de telhados...” Gordon mostra a evidência de um crime, uma carta de baralho do Coringa, “ele gosta de teatro, como você”.

Esse processo chegará à sua última etapa quando o antigo aliado, o promotor Harvey Dent se tornar o vilão Duas-Caras. Somente a presença de Batman já causa uma grande transformação social. O homem-morcego surge como a catarse de uma cidade oprimida em suas vontades, e o delírio da máscara como uma nova verdade pra se mostrar por trás do rosto. O homem-morcego torna-se o messias da morte do limite. Em Gotham, tudo passará a ser possível. O crime será imprevisto, surpreendente, compulsivo. Toda vontade será realizável... até que, como toda salvação, ela se volta contra aquele que foi salvo – o messias do ilimitado é agora o limite. Gotham pertence ao Batman, aqueles que reclamam seu direito de insana liberdade terão de recuar. Assim se inicia a sangrenta guerra pelas imensas torres góticas que marcarão esse novo mundo de descontrole e caos.

4.2

A PIADA MORTAL

Vocês já o conhecem pelas manchetes dos jornais! Agora tremam ao ver com seus próprios olhos o mais raro e trágico dos mistérios da natureza! Apresento...o homem comum! (...) Observem o seu repugnante senso de humanidade, a disforme consciência social e o asqueroso otimismo. O mais repulsivo de tudo são suas frágeis e inúteis noções de ordem e sanidade. Se for submetido a muita pressão...ele quebra! (...) Frente ao inegável fato de que a existência humana é louca, casual e sem finalidade, um em cada oito deles fica piradinho! E quem pode culpá-los? (...)...qualquer outra reação seria loucura! (Coringa em A piada mortal, p. 36)

Nas hqs é comum o arquiinimigo do herói ser seu exato oposto, ao mesmo tempo em que compartilha algumas características. Nas histórias do Superman, Lex Luthor completa

71 a outra metade: um homem sem superpoderes, mas bilionário e muito inteligente, dono de metade da cidade de Metrópolis, e que recentemente se tornou o presidente estadunidense – o homem mais poderoso do mundo contra o herói mais poderoso do mundo. Para Hulk, seu maior vilão é o poderio militar usado contra ele – aquilo de mais forte criado pelo homem contra o homem criado por aquilo de mais forte –, seus vilões costumam aparecer na figura de generais, empresários da indústria bélica ou cientistas inescrupulosos. Já Homem-Aranha, um jovem comum e simples, tem como arquivilão o Duende Verde, um homem influente e sofisticado – se o lema do aracnídeo é “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”, o cientista ambicioso Norman Osborn, que eventualmente se mascara de Duende, é a manifestação do grande poder sem responsabilidade alguma. Com Batman, a relação antagônica com seu arquiinimigo Coringa não muda, mas ganha complicadores. A princípio, Batman é sombrio, tem um corpo escultural, é bonito, e nunca sorri, já Coringa é colorido, magro, feio, e gargalhada endiabradamente. Batman é metódico, Coringa não segue método algum, leva tudo na gozação: “onde ele consegue esses brinquedos maravilhosos?” diz ele no filme Batman, em relação aos equipamentos do morcego. Diante da criminalidade em Gotham, Batman tenta impor-se como uma ordem em meio ao caos, o Coringa incita o caos a devorar a ordem como o príncipe palhaço do crime. Em 1940, Batman passou a ter uma revista em quadrinhos própria. No primeiro número surgiu o Coringa – um criminoso que intoxicava as pessoas, deixado-as com um enorme sorriso no rosto, juntamente com cartas de baralho com a estampa do coringa. Os crimes do Coringa sempre foram marcados pelo humor negro, estimulando a louca liberação de um escandaloso sorriso, sádico e perverso – mas Batman nunca acha graça. Também é comum haver em seus atentados a manipulação ou o deboche das mídias, principalmente televisão – ele invade sinais de transmissão ou emissoras, exibindo ao vivo suas ameaças e assassinatos. Muitas vezes seu procedimento se compara o de um artista descompromissado, Coringa

72 nunca mata por dinheiro, é sempre por deleite: “Agora faço o que os outros apenas sonham. Faço arte. Até que alguém morra. Sou o primeiro artista homicida totalmente ativo.(...) ...uma obra de arte viva” (Batman, de Burton). A piada mortal começa com Batman se dirigindo ao asilo Arkham – local onde ficam os perigosos criminosos doentes mentais, maioria dos vilões do herói. Ele se senta em frente ao Coringa, que está embaralhando cartas em sua cela pouco iluminada, e desabafa:

Eu vim conversar. Estive pensando muito ultimamente. Sobre você e eu. Sobre o que vai acontecer conosco no fim. Nós vamos matar um ao outro, não? Talvez você me mate. Talvez eu te mate. Talvez mais cedo. Talvez mais tarde. Eu só queria estar certo de que realmente tentei mudar as coisas entre nós. Só uma vez (p. 7).

Coringa não reage, Batman se irrita e então percebe pela tinta branca que se desprende da pele, que aquele não é o verdadeiro vilão – longe dali, em um parque de diversões abandonado vemos Coringa liberto. O plano dessa vez é provar sua teoria de que qualquer homem, por causa de um dia ruim, pode enlouquecer. Como ele próprio sugere ao Batman: “essa é a distância entre o mundo e eu... apenas um dia ruim. Você teve um dia ruim uma vez, não é? (...) Senão, por que você se vestiria como um rato voador?” (p. 41). Jim Gordon, já comissário, é a vítima escolhida pelo palhaço criminoso para testar sua hipótese. Coringa invade a casa de Gordon, dando um tiro em Bárbara Gordon, quebrando sua coluna propositalmente – Jim assiste a tudo, contido pelos capangas do vilão (p. 16). Mais tarde, no túnel fantasma no parque, Coringa deixa Gordon nu, acorrentado, assistindo fotos tiradas pelo vilão, violentando e torturando Bárbara que ainda no chão, sangra muito e agoniza (p. 28). Apesar de tudo, Gordon resiste até o fim. Paralelamente a esta narrativa, conhecemos, nas inseguras lembranças, um outro Coringa: em nenhum momento seu nome é citado, mas trata-se de um homem comum, magro, não muito bonito, que tenta a carreira como comediante, mas só obtém fracassos. Sua esposa

73 está grávida, e a falta de dinheiro o preocupa. Ele está desempregado, havia pedido demissão da indústria química onde trabalhava como assistente de laboratório, para dedicar-se a sua carreira. Muito hesitante, o comediante se junta a dois criminosos para assaltar uma fábrica de baralhos, ao lado do seu antigo emprego, a fim de conseguir algum dinheiro para se mudar de bairro com a esposa. Porém momentos antes do roubo, um policial o encontra e lhe avisa que houve um curto-circuito com o aquecedor de mamadeira e sua esposa morreu num infeliz acidente. Em choque, Coringa se vê de mãos atadas, precisa prosseguir com o roubo, senão seus comparsas o matam (p. 25-26). Na hora do crime, disfarçado com um capuz vermelho, o frustrado humorista entra em pânico com a presença da polícia e de Batman, pulando num rio poluído por produtos químicos. Com muito esforço ele não se afoga, conseguindo chegar à margem para perceber então que seu cabelo está verde, a pele branca, e que há um enorme sorriso deformado em seu rosto – Coringa começa a gargalhar histericamente (p. 34-35). “Já estive morto uma vez. É uma libertação. Deveria considerar como uma terapia. (...) Como vê, sou muito mais feliz” (Batman, de Burton).

Vocês, juizes e sacrificadores, não querem matar enquanto a besta não tiver curvado a cabeça? Veja, o pálido criminoso inclinou a cabeça, o seu olhar exprime o supremo desprezo. “O meu Eu é o que deve ser superado, o meu Eu inspira-me o profundo desprezo do homem” – é o que diz este olhar. O momento em que se condenou foi o seu apogeu; não o deixe descer deste cimo para a sua baixeza. Para aquele que tanto sofre por si, não há redenção possível, a não ser uma morte rápida.(...) Devem chamá-lo de “inimigo” e não “malfeitor”; “enfermo” e não “infame”; “louco” e não “pecador”.(...) Nas suas pessoas de bem há muitíssimas coisas que me repugnam, e não certamente o mal que nelas existe. Desejaria que tivessem uma loucura que as levasse a perecer, como esse pálido criminoso. (NIETZSCHE, “Do pálido criminoso”, Assim falou Zaratustra, 2005, p. 34-36)

Há outras versões sobre a origem do Coringa: no especial Batman: preto & branco vol. 2 (2005), na história “Estudo de caso” de Paul Dini e Alex Ross, é contado que mesmo antes do mergulho nos produtos químicos, ele já era um criminoso cruel, que havia assistido

74 ao clássico O homem que ri (1927), de Paul Leni, e aproveitou a situação para se passar por louco e cometer crimes aparentemente desconexos, enquanto na verdade realizava exatamente o planejado, matando as pessoas que poderiam interferir no seu desconhecido objetivo. Este relatório foi escrito pela Dra. Harleen Quinzel, psiquiatra do Arkham que se apaixonou pelo Coringa e tornou-se a vilã Arlequina, mantendo um louco amor com o vilão – relação essa, alternada em momentos de carinho com outros em que o Coringa tenta cruelmente matá-la. Mas como o vilão mesmo aponta em A piada mortal: “Algumas vezes me lembro de um jeito. Outras vezes de outro... Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha!” (p. 42). Quando prestes a torturar Jim Gordon com a sessão de fotos do estupro de Bárbara, Coringa discursa: “Mas podemos viver sem elas [as memórias]? A razão se sustenta nelas. Não encarar as memórias é o mesmo que negar a razão! Mas e daí? Quem nos obriga a ser racionais? Não há cláusula de sanidade! (...) Loucura é a porta de emergência!” (p. 24). Mesmo considerando os dois começos, talvez o primeiro mais que o segundo, surge um novo antagonismo entre herói e vilão: Batman é o desejo e o juramento infantil, aquilo que ele prometeu a si mesmo no enterro de seus pais é o que ainda o norteia por toda a vida adulta – talvez seja por isso que Batman atrai tantos parceiros juvenis. O Coringa, ao contrário, é a decepção e a maturidade de um adulto que percebeu o jogo maluco que representa o acaso, o imprevisível, e a partir disso, a piada e o riso tornam-se a maneira de lidar com toda a loucura que significa viver.

Qual foi até agora, na terra, o maior pecado? Não será ter dito: “Pobres dos que riem”! Não teria ele encontrado nenhum motivo de riso na terra, o que disse tais palavras? Foi por ter procurado mal. Até uma criança aqui encontra razões para isso.(...) O seu pior defeito, Homens superiores, é que nem sequer sabem dançar como é preciso dançar: até para além de vocês mesmos. Que importa que o não tenham conseguido? Quantas possibilidades restam ainda em aberto! Aprendam então a rir para além de vocês mesmos. Elevem o seu coração, bons dançarinos, levante-os bem alto, mais alto ainda! E não esqueçam também o riso bom! Esta coroa daquele que ri, esta grinalda de rosas, é a vocês que a lanço, irmãos! Proclamei que o riso é sagrado: Homens superiores, aprendam então a rir! (NIETZSCHE, idem, p. 262-263).

75 Mas Coringa não é livre daquilo de que gargalha – ele se vê preso a tudo o que é Batman. Em O cavaleiro das trevas, Batman some por dez anos, e percebe-se que o Coringa não volta a cometer mais crime algum, ele nem sequer sorri mais, está catatônico. Porém com o retorno de Batman, sua vontade se alimenta, e gargalhando, ele volta a matar de tanto rir com seu letal gás hilariante. Para Coringa não seria Batman um deus numa luta sem fim contra o acaso? Batman não representaria a vontade de controle sobre aquilo que o Coringa impactantemente aprendeu que não passa de uma piada? “Você não é nenhum burro. (...) Só precisa ver a realidade...(...) É tudo uma piada! Tudo pelo que as pessoas lutam e dão valor não passa de uma monstruosa e insensata anedota! Então por que você não vê o lado engraçado?” “Porque já ouvi isso antes...e não foi engraçado da primeira vez” responde Batman (A piada mortal, p. 42-43). Talvez, ao ver Batman como o único à sua altura, a luta de Coringa consista em tentar persuadi-lo da ilusão de um morcego que ainda insiste em também ser homem. Nos títulos regulares de Batman há toda uma discussão por parte dos leitores sobre se o Coringa sabe a identidade secreta do herói. Na hq posteriormente chamada A morte de Robin onde o Coringa mata, dionisiacamente, com um pé-de-cabra, o segundo Robin, Jason Todd, ficamos em dúvida no diálogo entre o vilão e Batman ao final da história. Após Bruce Wayne enterrar Jason, Coringa comenta: “até um pirado soma dois e dois...” (n° 3, p. 34). Porém, mesmo entendendo que Coringa sabe a verdade sobre Bruce Wayne, isso nunca implicou em nada: jamais o pálido criminoso moveu uma ofensiva aos íntimos de Bruce, ou ao próprio. Talvez, consciente da verdade como jogo absoluto, Coringa não vê diversão alguma em atacar o homem – só com o morcego ele pode brincar de forma mais madura. Mesmo quando tem Batman preso em armadilhas, ele jamais se dá ao trabalho de tirar a máscara do inimigo. Em Asilo Arkham, quando têm Batman como refém, Máscara Negra e outros vilões sugerem ao Coringa tirar a máscara do vigilante, mas ele revida: “Oh, não sejam tão previsí-

76 veis, pelo amor de Deus! Essa é a cara dele. E eu quero ir muito mais fundo do que isso. Quero que ele saiba o que é sentir dedos pegajosos cutucando sua mente” (p. 43). Mesmo aceitando a ironia e a cruel lucidez com que o Coringa enxerga o jogo da moral, das valorações, ele não consegue se livrar do seu funcionamento, acaba por se embaralhar. Não conquista um desprendimento amoral, deixando-se cair invariavelmente no poço da imoralidade. Coringa não é libertação da moral, mas a resposta positiva ao jogo, mesmo que se mostre num mecanismo negativo: ele não é o contrário da razão, mas sim uma enfática afirmação da própria tradição racionalista – neurótica e vingativa.

O Coringa é um caso especial. Muitos de nós acreditam que ele está além de qualquer tratamento. Na verdade, não estamos sequer certos de que ele possa ser definido como insano.(...) É bem possível que estejamos diante de um caso de supersanidade. Uma nova e brilhante modificação da percepção humana, mais adequada à vida urbana no fim do século vinte. (...) Diferente de você ou de mim, o Coringa não parece ter controle sobre as informações sensoriais que recebe do mundo externo. Sua mente só pode lidar com a barragem caótica de estímulos deixando-se levar pelo fluxo. Por isso, alguns dias ele é um palhaço infantil, outros, um psicopata assassino, o Coringa não tem verdadeira personalidade. Ele cria uma diferente por dia. O Coringa se vê como o mestre do desgoverno, e o mundo como um teatro do absurdo (Asilo Arkham, p. 40-41).

Ao final de A piada mortal, Batman e Coringa, após uma sangrenta batalha, conseguem ter a seguinte conversa: “Talvez eu possa ajudar.(...) Não precisamos nos matar. O que me diz?” sugere Batman. “Não... é tarde pra isso.(...) Essa situação me lembrou uma piada...” Coringa então conta uma antiga anedota sobre dois loucos que resolveram fugir do sanatório, conquistar sua liberdade, e para isso foram até a cobertura, pular para o telhado do prédio ao lado. O primeiro pulou sem problemas, mas o segundo se acovardou, tinha medo de cair. Então o primeiro teve uma idéia: “Ei! Eu estou com minha lanterna aqui. Vou acendê-la sobre os vãos dos prédios e você atravessa pelo facho de luz!” Mas o segundo não aceitou: “E se você apagar a luz quando eu estiver no meio do caminho?” Batman então começa a sorrir, gargalhando enlouquecidamente, com a mão sobre o ombro de Coringa, que por um segundo

77 demonstrou-se lúcido – a hq termina como começou, com pingos de chuva caindo sobre poças d'água (p. 47-49). No final, Coringa é uma vítima do abrupto corte de laços que teve com os valores positivos da tradição racionalista – um trauma que não consegue superar. Mesmo que Batman possa ser também uma resposta a um mau dia, ele ainda tenta ir além: não simplesmente deslocou-se para o outro lado de um mesmo raciocínio, não recorreu apenas a aquilo que a tradição entende como negativo, como exato oposto. Coringa é coerente, revelador como o negativo de uma foto, o homem-morcego é contraditório, autodestrutivo, e por isso mesmo, ainda esteja nele, e não no cômico vilão, a oportunidade maior de prosseguir para além do jogo da moral na morte do homem.

...e quem é este puro tolo? (...) Oh! Sim! Encha as igrejas com pensamentos imundos! Apresente a honestidade à casa branca, escreva cartas em línguas mortas para pessoas que nunca conheceu! Pinte palavras sujas na fronte de crianças! Queime seus cartões de crédito e use salto alto! Portas do hospício escancaradas! Encham os subúrbios com estupro e morte! Divina insanidade! Que haja êxtase, êxtase nas ruas! Ria e o mundo rirá com você! (Coringa em Asilo Arkham, p. 119)

4.3

DOIS LADOS DA MOEDA

Harvey passou a viver numa situação que permite à sua persona secreta atuar livremente... Enquanto sua condição o isenta de qualquer responsabilidade penal pelos crimes do Duas-Caras. (...) Certas culturas ancestrais mencionavam simples nativos possuídos pelos espíritos de grandes guerreiros. Métodos modernos de condicionamento físico e mental podem converter um professor de curso primário num implacável assassino (Batman em Ego, p. 54).

O vilão mais emblemático do jogo que assola as personagens de Gotham City é o Duas-Caras. Depois do Coringa, é o inimigo mais intimamente ligado ao homem-morcego. Sua condição é a eterna lembrança da dualidade que o universo de Gotham não consegue se ver livre. Duas-Caras é a personificação da maldição do espelho, do reflexo, que é imanente-

78 mente diferente, mas paradoxalmente igual – como a melancolia gradativa da imortalidade na beleza de Dorian Gray junto da sua imagem no retrato, já de um semi-cadáver decomposto, que envelhece e enfeia cada vez mais. Na dualidade não há prosseguimento, apenas voltas em círculo. Quando pensamos que atingimos o outro lado, apenas invertemos de posição com o espelho – viramos reflexo daquilo que em vão fugíamos. Em Gotham, a cidade, os habitantes, as almas desorientadas participam do jogo do duplo, muitas vezes conscientes de sua pequenez, mas sem condições de simplesmente abandoná-lo. Na filosofia, os entusiastas do duplo jogam com total liberdade – é muito fácil participar do jogo. Já aqueles que tentam fugir, precisam fazer uma força descomunal para não serem engolidos pelo duplo, pois este jogo têm um apetite voraz e persegue a todos sem exceção. Quando Deleuze aponta que filosofar é criar conceitos, de antemão tudo parece razoavelmente fácil – e de fato seria se Deleuze não fosse nietzscheano. Em um conceito sempre se erguerá um reflexo, um número dois que pode fazer ruir com qualquer tentativa da “filosofia do futuro” em se superar, ir além... Monstruosamente, todo conceito parece trazer imbricado seu exato oposto, reafirmando o inimigo que inutilmente era combatido. Mas Nietzsche na sua anti-filosofia consegue mostrar que tudo ainda pode vir a ser de outra maneira ao destruir a tradição moral, não pelo seu exato oposto, pela imoralidade, mas por um ataque certeiro de um olhar de fora do jogo moral, um olhar amoral, sem verdades porque também não há mais mentiras. Lidar com o jogo da dualidade só até onde ela ainda pode ser útil, mas sem se descuidar da necessidade dos conceitos do futuro em alcançar o extra-moral, será o grande desafio filosófico de qualquer habitante de Gotham City – e também daqueles que ousam incursar no universo da sufocante cidade. Por isso Duas-Caras é o melhor cartão postal filosófico de Gotham, a metrópole refém entre conceitos de Batman e Coringa, de verdade e mentira.

79 O assistente da promotoria, e depois promotor público Harvey Dent, eleito com o apoio de Bruce Wayne, apareceu inicialmente na narrativa do herói como aliado: Batman e Gordon nas ruas levantavam as evidências e provas, capturavam os criminosos que Harvey atacaria pelos tribunais. Os três foram os grandes responsáveis pela transformação políticosocial de Gotham City. Harvey também era amigo de Bruce Wayne. Chamado de Apolo pela mídia, Harvey era um astro, belo, bem-sucedido e obstinado por justiça – mas sofria de um sutil distúrbio que vinha se intensificando, chamado costumeiramente nos quadrinhos de “dupla personalidade”. Em situações de alto estresse, Harvey assumia um caráter agressivo e descontrolado, tendo como hábito manusear e lançar uma moeda de um dólar. Na hq O longo dias das bruxas acompanhamos toda a transformação de Harvey – é o seu pai, que já tinha histórico de doença mental e estava internado, que havia lhe herdado a tal moeda e algumas perturbadoras palavras sobre o acaso (n° 6, p. 16-17). No importante julgamento do chefão do crime Maroni, o assistente de Harvey, traindo-o, deu ao inconseqüente criminoso um frasco com ácido. No meio do julgamento, quando Harvey estava próximo do réu, Maroni jogou o líquido em seu rosto, acertando apenas o lado esquerdo. Harvey gritava desesperadamente, Batman, que estava presente, disfarçado, nunca se esqueceu daquilo, sendo um dos motivos de sua flagelação moral: ele não pode salvar o amigo (n° 7, p. 11). Internado às pressas no hospital, quando acordou – seria dois dias depois ? –, Harvey percebeu que metade de seu rosto estava terrivelmente deformada. Fugindo do hospital, o apolíneo Harvey abandona a esposa Gilda e assume uma nova postura, dionisíaca, tornando-se o criminoso Duas-Caras – sua marca registrada é uma moeda de um dólar, de um lado totalmente riscado, que ele lança para fazer suas escolhas: quando o lado riscado cai para cima, o vilão executa o crime, quando do outro, ele deixa que suas vítimas continuem vivas.

80 Duas-Caras só fala na primeira pessoa do plural, suas roupas e esconderijos também são divididos pela metade, assim como suas amantes – no filme Batman forever, procurou-se dar dois lados bastante distintos para o Duas-Caras (Tommy Lee Jones): o lado Harvey é recatado, usa gel no cabelo, veste ternos pretos e conservadores, belos sapatos escuros, o esconderijo é branco, com elementos de art deco, além de lençóis de seda sobre a mobília para maior conservação. Ele fuma apenas elegantes cigarros e seu prato predileto é “champagne borbulhante, um delicioso salmão com ovos de codorna, e um, cremoso, maravilhoso suflê de limão.” Sua amante, Açúcar (Drew Barrymore), é doce, carinhosa, de curtos cabelos loiros cacheados, vestindo elementos também art deco, de seda ou pele, branca ou cor de creme. Já o lado segunda cara é espalhafatoso, com vestes coloridas – mas a maioria caindo para o vermelho, mesma cor da face. Às vezes as roupas lembram couro, outras moda brega, há também elementos punk como espinhos e peircings no sapato. Seu esconderijo é mal iluminado, avermelhado, entre a art nouveau e elementos sadomasoquistas. Ele fuma grotescos charutos, e seu prato preferido é “coração de javali negro, carbonizado, carne crua de mula e álcool de cereais, puro e sem gelo.” Sua amante, Pimenta (Deby Mazar), é grosseira, agressiva, com longos cabelos escuros, vestindo couro e maquilagem pesada. Apesar dessa caracterização no cinema, nas hqs, Duas-Caras costuma ser contido, frio, exaltando-se mais ao ver Batman, ou quando perde aquilo que há de mais importante no mundo: sua moeda. Sem ela, ele não consegue tomar nenhuma decisão. Na hq Asilo Arkham, Duas-caras é submetido a um tratamento. Para conter sua obsessão por dois, tiram-lhe sua moeda e lhe dão um dado, aumentando de duas para seis as opções. Após melhoras, cartas de tarô, 78 opções. Porém Harvey não consegue ir a tempo ao banheiro porque com tantas combinações não consegue se decidir: “em breve, ele terá uma capacidade de julgamento completamente funcional, não mais baseada em conceitos absolutos de branco e preto” diz a psiquiatra de Harvey. Batman acha que ela está destruindo de vez a personalidade do antigo amigo.

81 “Às vezes, é preciso demolir pra reconstruir, Batman. Assim é a psiquiatria” comenta a médica (p. 37-39). A obsessão de Harvey pelo dois também será a marca de seus crimes. Ainda em Batman forever ele assalta o Segundo Banco de Gotham, matando dois guardas no dia que completava dois anos que ele havia sido preso por Batman. A sorte e o azar, ou melhor, o acaso, será a marca dessa personagem, que assim como o Coringa, profana esse descontrole, o insulta, acusando-o de todas as malesas da Terra.

Gosta de jogar? Vamos decidir na sorte? Um homem nasce herói, seu irmão nasce covarde. Bebês passam fome, políticos engordam. Santos são martirizados e viciados proliferam. Por quê? Sorte! Sorte cega, boba, simples e babaca. Uma lance aleatório, é a única justiça verdadeira para você. Como um toque de Deus (Duas-Caras em Batman forever).

Para o justo promotor Harvey Dent, agora Duas-Caras, o lançar da moeda será uma justiça ainda maior, divina, acima de qualquer tribunal, lei ou moral. “A lua está tão bonita...ela parece uma moeda gigante lançada por Deus! Que caiu com o lado riscado pra cima. Assim ele fez o mundo” (p. 58-59). Na dualidade do Duas-Caras está toda a tradição do pensamento ocidental: para todo conceito, noção ou idéia estará presente em si o oposto – um jogo dialético e infinito. Para Hegel, toda tese gera uma antítese e desse confronto surge uma síntese, que por sua vez gerará uma outra antítese, num movimento em espiral até um absoluto. Nietzsche, consciente da pequenez e improdutividade desse jogo, vai ter na palavra “além” uma das chaves da sua filosofia – além do bem e do mal, além do homem... É preciso ir além do dualismo. Mesmo aceitando sua existência, ele não deve ser encarado como limite, definição de uma verdade universal. Mas parece que Duas-caras não conheceu Nietzsche, é um escravo desse jogo, que se projetará nos outros vilões de Batman. Será que o homem-morcego também consegue fugir do dualismo? Como uma maldição legada pelos deuses antigos – ou seriam filósofos –, o dua-

82 lismo para Batman acontece como para qualquer outro que tenta ir além. Mesmo fugindo, ele vai estar sempre lá à espreita de uma nova vítima, como Duas-Caras, refém da sua moeda tradicional.

Sr. Apolo. Eu sou um homem da lei. Sim. Nós, o povo dos estados unidos, a fim de formar uma união mais perfeita, estabelecer justiça, proporcionar tranqüilidade doméstica, garantir o bem comum. Promover o bem-estar geral, assegurar a bênção da liberdade para nós e nossos descendentes. Sr. Dionísio. Eu sou um fora-da-lei. Não. Nós, as vítimas mutiladas da história, do mal e da hipocrisia, enaltecemos o trabalho dos criminosos do Vietnã, El Salvador, Chile. Com adoráveis mísseis, estrondosos dos ricos, brancos e pios. E queimar crianças e torturar mulheres para sempre e sempre amém. Deus abençoe / a América. (Asilo Arkham, p. 120)

Na hq O cavaleiro das trevas, depois de 12 anos preso por Batman na cela 602, Harvey realiza uma sofisticada cirurgia plástica com um famoso cirurgião, além de ter o acompanhamento de um renomado psiquiatra. Ao ter seu belo rosto novamente, ele vai às lágrimas, e demonstra estar recuperado, exibindo para a mídia uma moeda de um dólar com os dois lados normais. Logo após ele some e reaparece com a cara completamente enfaixada, cometendo os mesmos crimes (p. 9-11). Quando perseguido por Batman, no meio da batalha, percebemos que o rosto de Harvey continua normal. Ele diz:

“Por que está tão furioso, Batman? Eu fui um bom esportista! Você tem que admitir. Eu concordei em brincar! E você...você aceitou a piada até o fim! O mundo inteiro sorriu pra mim! Ninguém vomitou quando viu meu rosto! Todos disseram que eu tinha sido curado... que o defeito estava corrigido! Olhe pra mim! Ria também! O defeito foi corrigido! Os dois lados estão iguais! (...) Olhe pra mim...”

Batman fecha os olhos, e vê todo o rosto de Harvey deformado, e após, a imagem de um morcego. “Eu vejo... um reflexo Harvey! Só um reflexo!” Harvey acaba ajoelhado e chorando, e Batman, solidário, ao seu lado (p. 49). Vítimas conscientes da maldição do reflexo, da inevitável perseguição do duplo. Talvez agora, Batman e Duas-Caras ao perceberem

83 isso, podem seguir adiante mas essa cidade trata-se de Gotham, e no momento eles estão sem muitas esperanças...

4.4

DISTINTO E OBSCURO

A diferença entre Batman e seus vilões não se dá por uma questão de natureza ou qualidade, mas de freqüência e intensidade. Todos os atributos dos vilões, o herói compartilha, mas sempre na linha tênue que separa a virtude do vício. Enquanto os vilões mergulham de cabeça no jogo de que participam, o herói joga, mas com a consciência do jogo, tendo necessidade de abandoná-lo eventualmente. A vontade em Batman se dará como algo necessário, intenso, mas ao mesmo tempo não se transforma num jogo em que tudo vale. Já nos vilões, isso não acontece: eles se perdem no curso de suas vontades até uma dependência excessiva de uma qualidade. O que os separa do herói não está no que fazem, mas até onde vão com isso. Esse imponderável dos vilões volta-se contra eles, tornando-se sua principal fraqueza. Oswald Cobblepot, menino pobre, baixo, gordo, narigudo, de voz anasalada, e apaixonado por pássaros, logo recebeu o apelido de Pingüim. Com o tempo, no submundo, essa criança menosprezada tornou-se o mais importante chefão do crime de Gotham após o surgimento do Batman. Assim, o prestígio por si, o auto-elogio, tornou-se a maior característica do feio criminoso que adora estar na companhia de belas mulheres – com uma vontade sexual monstruosa –, participar de festas da alta sociedade, saborear arte erudita e esconder em seus guarda-chuvas metralhadoras, lança-chamas, gases venenosos, lâminas afiadas... No filme Batman returns, a história é outra. Ele (Danny DeVitto) nasceu deformado, meio homem, meio pássaro, e por isso foi largado por seus ricos pais no esgoto, onde cresceu na com-

84 panhia de pingüins. Posteriormente foi atração de horror no circo. Da mesma forma, a vaidade, a vontade de aceitação, a aparente superioridade se mostram no complexo de inferioridade deste horrendo homem-pingüim. Por isso a mais eficiente forma de derrotar o Pingüim é afogá-lo no seu próprio narcisismo – que no movimento das ondas, deforma sua imagem. Batman compartilha dessa mesma vaidade do Pingüim, assim como o vilão têm viveiros com centenas de espécies de pássaros e coleções de guarda-chuvas, Batman têm sua sala de troféus na caverna e tudo que o cerca tem o designer do morcego. Mas o herói é mais cauteloso, costuma enxergar o momento certo de recuar e deixar que o Pingüim mergulhe sozinho. Deste modo Batman não é menos vaidoso, pelo contrário, se auto-elogia tanto que pode até mesmo abrir mão do narcisismo de vez em quando. Já o vilão não chegou a esse patamar, ainda assusta-se e diminui-se com o seu horrendo reflexo, postura que Batman parece adotar cada vez menos. O Pingüim tem muito que aprender com o morcego. De forma semelhante acontece essa relação de proximidade e distanciamento a Edward Nygma, o gênio desacreditado, “o homem mais inteligente do mundo”, apaixonado por cruzadinhas, quebra-cabeças e enigmas, que assume o papel do vilão Charada, vestindo uma roupa verde cheia de pontos de interrogação, no intuito de derrotar aquele que parece ser o único homem que ameaça sua superioridade intelectual. Ambos inteligentes, Batman só derrota o Charada naquilo que consegue dispensar: a necessidade de auto-afirmação de sua genialidade, coisa que Nygma não abandona no seu vício de deixar charadas quase indecifráveis em todos os seus crimes. Na saga Silêncio (2003), de Jeph Loeb e Jim Lee, Charada descobre a identidade de Batman, mas o mascarado não se vê ameaçado – Batman sabe que um verdadeiro enigma tem de ser indecifrável, senão perde todo seu valor, torna-se inútil, por isso Charada jamais irá confessar a alguém a identidade do herói (Batman 20, 2005, p. 20). Outros vilões compartilham dessa obstinação sem consciência do jogo. O Senhor Frio – Victor Fries, doutor em criogenia, que ao congelar voluntariamente a esposa na finali-

85 dade de pesquisar uma futura cura para a sua insolucionável doença terminal, é violentamente interrompido pelas autoridades, ocasionando um acidente, que alteraria sua composição genética, permitindo que ele só suporte condições de temperatura negativas, tornando-se assim, o vilão sem cabelos de pele azulada, por trás de uma imponente armadura e arma congelante, nos esforços sem fim pelo salvamento da esposa; Hera Venenosa – Pamela Isley, ecoterrorista que após ser envenenada por seu parceiro, sofre mutações: seu sangue transforma-se em babosa, sua pele em clorofila e seus lábios se enchem de veneno, metamorfoseando-se na mulher mais sedutora do mundo, cometendo todo o tipo de crime em nome da natureza; o Espantalho – Jonathan Crane, professor universitário especializado em medos e fobias, que desenvolve uma toxina do medo, sendo por isso demitido e ridicularizado, retorna na fantasia de um assustador espantalho; o Cara-de-barro – Basil Karlo, ator, mestre em maquilagem, que assume uma forma antropomórfica, capaz de simular diversos objetos, atuando na imagem de qualquer homem... Todos eles são exemplos de ingenuidade diante de um jogo que os envolve. Frieza nas decisões, sedução na hora de conquistar aquilo de que necessita – a figura do morcego seduz os jovens –, medo como principal arma e teatralidade são atributos que o herói compartilha, porém mesmo assim, não se entrega a eles totalmente.

Para vencer o medo, deve causar medo. (...) O homem teme sobretudo o que não pode ver. Você deve se tornar uma ameaça terrível. Um espectro. Você deve se tornar uma idéia! Sinta o terror obscurecer seus sentidos. Sinta o poder dele de distorcer...de controlar. E saiba que esse poder pode ser seu. (...) Identifique-se com as trevas. (Ra’s Al Ghul (Liam Neeson), para Bruce, em Batman begins)

Do ponto de vista político partidário isso fica mais claro na relação de Batman com o vilão Ra’s Al Ghul – “cabeça do demônio” em árabe segundo os quadrinhos. Ra’s é uma lenda viva, possui aproximadamente 600 anos, sendo sempre ressuscitado no mítico poço de Lázaro. Ele controla a Liga das Sombras – que às vezes também se chama Liga dos Assassinos –, uma milenar e poderosa sociedade secreta, com ligações em diversos povos, culturas

86 e continentes, nas diferentes escalas sociais, que busca defender e propagar uma justiça pura para todo o mundo. No filme Batman begins, a Liga é responsável pela destruição da antiga Roma e de Constantinopla, foi ela que colocou ratos nos navios mercantes, ateou fogo em Londres, e agora pretende destruir o local fértil de desgraça e sofrimento que é Gotham. Para isso espera contar com o jovem Bruce Wayne, ainda não morcego. Já nas hqs, o motivo que aproximou Ra’s de Batman – ao qual só se dirige como “detetive”, mesmo sabendo sua identidade – é a admiração por seus inúmeros talentos. Ra’s quer morrer, e deseja que Batman assuma seu império, casando-se com sua bela filha Tália. Embora o homem-morcego não esconda sua paixão pela filha do inimigo – que havia conhecido antes sem saber quem ela era de fato –, recusa o posto, acreditando que Ra’s e seus seguidores vão longe demais nas suas nobres intenções de preservar a paz e o planeta. Mesmo que Batman e Ra’s espalhem o terror e assumam uma posição de “mal necessário” para o equilíbrio – ou seria desequilíbrio – da sociedade, o herói não mostra nenhum anseio para que tudo aquilo que pratica aconteça além dos limites de sua cidade. Batman nasceu em Gotham, foi lá que perdeu seus pais e conquistou seu novo rosto. Seu poder, suas atitudes só fazem sentido dentro do mundo a que ele pertence e possui – freqüentemente, quando Batman captura um criminoso, mas não possui provas para prendê-lo, ou sente alguma pena do infeliz, ele deixa bem claro: “saia da minha cidade!” Essa diferença meramente de espaços – e número de vidas, porque Batman não mata – que separa o herói de Ra’s é derrubada na hq O cavaleiro das trevas ataca novamente (2001), também de Frank Miller, em que Batman e outros vários heróis tornam-se terroristas, destruindo usinas elétricas, centros militares e tudo o mais que for necessário para derrubar o presidente estadunidense e a atual ordem. Talvez se Batman ficar alguns milímetros mais ambicioso, ele se tornará o novo cabeça do demônio, somente o tempo dirá... Ra’s sabe disso, por isso aguarda.

87 Mas Batman se vê preso ao morcego que cultivou ao longo dos anos. Seu insucesso em relacionamentos amorosos se dá pela falta de capacidade de administrar sua vida dupla, por isso torna-se mais conveniente ter curtos períodos de amor com Tália, Mulher-Gato, ou a ousada repórter Vicki Vale – elas são tão arredias e não possíveis de possuir quanto ele. Em “Encontro com um anjo”17, história que acrescenta eventos à hq Batman: Ano um, Bruce está apaixonado, gosta de sair para dançar e namorar sua parceira, mas sempre chega atrasado ou cancela seus encontros noturnos. Irritada, a jovem ameaça abandoná-lo caso se atrase mais uma vez. Batman então surra rapidamente alguns criminosos e parte ao encontro de sua amada. Ambos têm uma noite maravilhosa: Bruce chega à mansão dançando e cantarolando, até faz uma piada com Alfred, que está de pé, sério diante da televisão, e lhe comunica a má notícia. Outros criminosos se aproximaram daqueles que Batman tinha espancado, houve confronto com a polícia, muitos morreram, inclusive uma criança que assistia a tudo. Chocado, Bruce se senta no estúdio da mansão, com a severa expressão de homem-morcego. Pouco iluminado pelo sol que está nascendo, Bruce cancela seu romance pelo telefone (p. 115 – 116). Mesmo assim, na sombra do morcego – o reduto onde sua vontade torna-se vítima de si própria –, ele consegue manter a capacidade de recuar quando realmente necessário, de lembrar do homem que está junto do morcego. Na saga Bruce Wayne: Fugitivo (2004), Bruce é acusado de um assassinato e foge da cadeia, sendo dado por desaparecido. Batman vê nisso uma ótima chance de ser agora só morcego, sem a necessidade de fingir aquilo que ele tanto odeia – ou talvez de assumir um lado que nada tem de menos real do que o outro, só é apenas mais incômodo. Porém, por pressões de seus aliados e novas lembranças da sua infância, Bruce retorna. Esse recuo do morcego se comprova em oposição a dois outros vilões. Um deles é o zoólogo Kirk Langstrom, especialista em morcegos, que desenvolve um soro de glândulas

17

Argumento de Steve Englehart e desenhos de Javier Pulido, publicada na revista Batman 10 (2001).

88 de morcego e injeta em si próprio, desenvolvendo assim radar e audição supersensível, mas como efeito colateral, seu aspecto físico muda, passando a ser o gigantesco Morcego Humano; e o outro é o professor e psiquiatra Hugo Strange, obcecado pela figura de Batman – seu grande plano é matar o herói e assumir seu manto. Em diversas histórias Strange se vestiu de Batman e passou a praticar vários crimes, como uma versão mais perversa do homemmorcego. Nenhum dos dois vilões consegue se ver livre do estigma do Batman, apenas o próprio herói, que na sua obsessão parece ter força de vontade suficiente para pontuar uma hora de parar de brincar – essa mesma hesitação pode ser vista também como fraquejo perante o código ético do morcego, mas isso veremos mais adiante.

4.5

NO ASILO DO REAL

“O jogo da paixão como é jogado hoje” (the passion play as it is played to-day), na página seguinte há a imagem do esqueleto de um morcego “Icaronycteres”, e depois o anúncio: “Asilo Arkham – uma séria casa em um sério mundo” (Asilo Arkham, p. 4 -9)

No asilo Arkham ficam os vilões tidos como doentes mentais: o Coringa, DuasCaras, Espantalho, entre outros, vivem sendo internados e fugindo dos seus tratamentos. Na hq Asilo Arkham, acompanhamos duas histórias que se entrecruzam. Numa, há uma rebelião no asilo no dia 1ª de abril: os loucos assumem o controle, aprisionam os funcionários como reféns e, entre as exigências mais absurdas como roupas, móveis, manequins e comidas, eles requerem a presença do Batman. Temendo mortes, e por meio de um pedido persuasivo do Coringa, que dizia estar apontando o lápis nos belos olhos de uma funcionária que trabalhava em Arkham para pagar sua faculdade de artes, o homem-morcego se rende ao chamado. Recebido na porta pelo Coringa, o jogo consiste em que o morcego passe uma hora vagando

89 pelos corredores do sombrio asilo, fugindo e se escondendo de seus moradores, enquanto luta contra si próprio para não enlouquecer. Na outra narrativa, acompanhamos a história do homem por trás do asilo: o psiquiatra Amadeus Arkham, que cresceu na companhia de sua enlouquecida mãe após a morte do pai, na mansão que viria a ser o asilo Elizabeth Arkham para criminosos insanos. Obstinado a levar esperança a “homens, cujo único verdadeiro crime é a doença mental, aprisionados a um sistema penal sem esperança de tratamento” (p. 27), Amadeus volta a morar na antiga mansão, agora casado e com uma filha pequena, pensando em transformar a casa num asilo: “meu caminho está claro”(p. 27). Perto da inauguração do manicômio, um dos criminosos que Amadeus tratava em Metrópolis fugiu e violentou, assassinou e esquartejou sua mulher e filha. Terrivelmente abalado, Arkham manteve-se no seu objetivo, inaugurando o asilo na data prevista, tratando inclusive do assassino de sua família – até que um dia no eletro-choque incinerou o criminoso. No final, Amadeus enlouquece até se tornar um dos internos de seu próprio asilo. Mais adiante na hq, descobrimos que foi um dos psiquiatras do asilo Arkham que libertou os loucos, causando a rebelião após ler o diário de Amadeus. Havia um trecho em que Amadeus lembrava surpreso da noite em que havia matado sua mãe, uma anotação que se assemelhava a uma premonição:

É 1920. Árvores se agitam na escuridão sob um céu intranqüilo. A chuva chacoalha as janelas. Por quê? Por que eu vim aqui?" Está aqui! Está aqui!” “Mamãe por favor, não tem nada!” Então por que eu tenho medo? (...) Debaixo da cama, grandes asas começam a bater. Eu não estou louco. Eu não estou louco. Que Deus me ajude...eu estou vendo. Estou vendo a criatura que apavorou e atormentou minha pobre mãe naqueles anos tão longos. Eu vejo. É um morcego. Um morcego! (...) Agora percebo do que minha memória tentou me manter afastado. A loucura vem do sangue. É meu direito de nascença. Minha herança. Meu destino. Eu conterei as presenças que vagam por estes quartos e escadas estreitas. Eu as cercarei com barras, muralhas e cercas eletrificadas, e rezarei para que jamais escapem. (...) Asas de couro me envolvem (p. 94 – 98).

90 Diante disso, Batman recua “Não. Eu sou... apenas um homem” – ao fundo vemos a imagem de um messias, semelhante a Cristo, e abaixo dele há escrito “ecce homo” (p. 98). Neste quadro, Batman está de cabeça baixa, e seu rosto possui a mesma cor azulada e textura granulada da máscara. Uma única linha faz o recorte do rosto com o fundo, atribuindo uma aura santificada ao homem-morcego. Neste momento, quando Batman se descobre atemporal, não humano, mítico, e ao mesmo tempo, a imagem ao fundo revela um homem, e os dizeres afirmam e remetem a outro, que o messianismo benjaminiano acontece. No asilo Arkham, Batman se descobre o messias da morte do homem. Nesse homem Jesus, e ironicamente, nesse homem Nietzsche, um messianismo, de trilhas diametralmente opostas acontecem. No recuo e, ao mesmo tempo, no salto àquilo que ultrapassa o homem, o morcego compreende, embora não quantifique, o peso do homem que ainda é, e que há muito já deixou de ser. O morcego enfim vê o fardo do messias em que se tornou, em conflituosa convivência com a destruição da noção de messianismo que a tradição fez imagem. Nesse quadrinho, a vingança da história acontece – no retornar, o passado devasta e recria, ao mesmo tempo, numa explosão de movimentos que um quadro imóvel conseguiu apreender, impulsionando ainda mais forte o grande estrondo e tremor das potencialidades, abrindo brechas profundas nas cavernas, permitindo que uma quantidade nunca antes vista de morcegos sobrevoem toda a humanidade. Se Batman descobre algo muito maior, também se percebe algo muito menor no mundo do asilo Arkham. Em Batman begins, quando Batman caminha entre uma revoada de morcegos no asilo, e os internos o observa, impressionados, já se estabelece uma íntima relação entre a personagem e os habitantes daquele mundo. No passado do asilo estão várias referências de seus moradores: Amadeus possui dois peixes-palhaços, eventualmente ouve risadas histéricas de um quarto que sabe que está vazio e uma vez encontrou uma carta do coringa

91 embaixo da cama de sua filha. Há também sutilezas que parecem anunciar o presença do Duas-Caras:

No outono de 1920, sou convidado para ir à Europa. Finalmente conheço o professor Jung, na Suíça. E, na Inglaterra, sou apresentado àquele que chamam de “Homem mais depravado da Terra”...Aleister Crowley. Eu o acho fascinante e bem-educado. Discutimos o simbolismo do tarô egípcio e ele me derrotou no xadrez. Duas vezes (Amadeus em Asilo Arkham, p. 48-49)

Toda a narrativa da hq deixa diversas brechas... Ficamos em dúvida se Amadeus sofria abusos do pai – já que o vemos num sonho sendo chamado pelo pai diante de um tecido humano gigante vermelho cheio de fios que parecem pêlos pubianos, denominado “túnel do amor”. Após matar sua atormentada mãe, Amadeus pôs o vestido de noiva dela – o mesmo vestido que usou após a morte da sua família, o que levanta a possibilidade de ter sido ele mesmo que matou sua mulher e sua filha, a qual ele dizia querer que nunca crescesse. Há também um trecho de Psicose, de Hitchcock – a cena em que é feita a fusão da imagem do rosto de Norman Bates (Anthony Perkins) com o esqueleto de sua mãe. Com isso, podemos também pensar que não havia mãe alguma, Amadeus que assumia essa personagem, por escolha ou imposição – por isso a relação sexual com o pai? Quando a mansão estava em reformas para se tornar um asilo, Amadeus mandou colocar uma escultura pendurada em correntes, defronte ao asilo:

“Miguel e seus anjos pelejavam contra o Dragão; e o Dragão com seus anjos pelejava. E o grande Dragão foi banido, aquela antiga serpente chamada Diabo, e Satanás, que seduz todo mundo.” Assim como o Arcanjo subjugou o Antigo Dragão, eu verterei essa casa à minha vontade. Eu trarei luz a estes corredores lúgubres de minha infância. Abrirei as portas trancadas e encherei os quartos vazios. E colocarei sobre a mansão uma imagem do triunfo da razão sobre o irracional (p. 44).

Mais tarde, no asilo, Batman é perseguido pelo vilão Crocodilo, mutante, aberração de circo quando criança, com pele de crocodilo, dentes poderosos e força sobre-humana.

92 Como arma, o homem-morcego pega a lança da escultura de Miguel, derrotando o monstro: “sou mais forte do que eles. Do que este lugar. Eles precisam saber. (...) Arkham tinha razão. As vezes, é só a loucura que nos faz ser aquilo que somos. Ou talvez o destino” diz Batman, muito machucado, depois de saber da lenda do morcego descrita no diário de Arkham (p. 107). Com um machado, o homem-morcego destrói uma das paredes de Arkham, entregando a ferramenta ao Coringa:

-

-

“Estão livres. Estão todos livres” diz Batman. “Ah, nós já sabemos. Mas e você?” pergunta Coringa. “Por que não deixamos Duas-caras decidir o que fazer comigo?” Batman entrega a moeda, riscada num lado para Duas-Caras. “Se cair o lado intacto, ele está livre. Se cair o riscado, ele morre aqui” anuncia Duas-Caras que, após lançar a moeda, informa que o homem-morcego está livre. “Vá curtir a vida lá fora. No asilo” diz Coringa se despedindo de Batman.

Após, vemos a moeda na mão de Duas-caras – havia caído o lado riscado (p. 108113). A todo o momento há referências a Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll. Nas suas andanças pelo asilo, diante de um espelho com reflexo ao infinito, Batman encontra o vilão Chapeleiro Maluco – Jervis Tech, leitor apaixonado do livro e colecionador de chapéus que perseguiu uma jovem com o nome de Alice. Enquanto tecnólogo, desenvolveu chips capazes de controlar ondas cerebrais. Nesta graphic novel fica clara a obsessão da personagem por “garotinhas loiras. As putinhas sem-vergonhas!”, como diz, enquanto consome ópio:

A aparente desordem do universo é só uma ordem mais elevada, uma intricada ordem além de nossa compreensão. Por isso as crianças... me interessam. São todas loucas, mas em cada uma, há um adulto intrincado. Ordem gerada do caos. Ou caos gerado da ordem? Conhecê-las é conhecer a mim mesmo. Garotinhas, principalmente.(...) às vezes acho que o asilo é uma cabeça. Estamos dentro de uma cabeça que

93 nos sonha. Talvez seja a sua cabeça, Batman. Arkham é um país dos espelhos. E nós somos você. (p. 72-73)

Na hq O cavaleiro das trevas, Bruce, aos seis anos, descobre a caverna e o legendário morcego ao perseguir um coelho branco – semelhante a Alice. Não foi a partir daí que todo o delírio começou? Todo o treinamento, aventuras, vilões e pesadelos, o delírio de uma duração de tempo bergsoniana em uma criança que está caindo no escuro? “Para baixo, para baixo, para baixo. Essa queda nunca chegará ao fim?”18 indaga Alice que não pára de cair na toca do coelho. Na filosofia de Bergson existe para a percepção uma temporalidade que ele chama de duração, que vai do instante em que temos um novo contato com algo até a interpretação que construímos para aquilo. Na duração da percepção, infinitas potencialidades acontecem até a imposição de um conceito. É por meio disto, talvez, que se pode reconhecer uma experiência artística – a obra mantém-se sempre durando, sem nunca permitir que haja uma definição que encerre sua duração. Em Batman forever, Bruce (Val Kilmer) lembra do momento em que caiu na caverna: “caí uma eternidade.” Alice ao seguir o apressado coelho branco que estava sempre consultando seu relógio quebrado, conheceu um outro mundo: as conversas desconexas do Chapeleiro Maluco que disse ter brigado com o tempo e por isso sempre são 18 h; as complicadas poções que fazem Alice crescer ou diminuir de tamanho; as danças e músicas que não fazem nenhum sentido; as regras da Rainha de Copas que estão sempre mudando durante o próprio jogo; a arbitrariedade da razão, da lógica e dos conceitos... Tudo isso se revela à Alice, perdida num mundo de pessoas loucas; e ela, por também estar ali, se descobre só mais uma louca.

18

http://aventurasdealicenopaisdasmaravilhas.50webs.org/txt/01.htm

94 Nesta queda na toca do coelho, será que Alice – ou Bruce – deixou em algum momento de continuar caindo? Pode ser que essa queda dure mais do que se suponha, talvez nunca se tenha saído do buraco.

Vejo agora a virtude na loucura, pois este país não conhece lei nem fronteiras. Tenho pena das pobres sombras confinadas na prisão euclidiana que é a sanidade. Todas as coisas são possíveis aqui, e eu sou aquilo que a loucura fez de mim. Inteiro. Completo. E livre, afinal. (Amadeus, em “Asilo Arkham” p. 101-102)

“Estou com medo de que, quando atravessar os portões do asilo...quando eu entrar no Arkham e as portas se fecharem atrás de mim...vai ser como voltar para casa.”, diz Batman em Asilo Arkham. O que está em jogo no final? Quando Duas-Caras mentiu sobre a moeda, ele se tornou são? Foi aqui que o dualismo foi ultrapassado. Não se trata mais de enxergar entre racional e irracional, e sim de seguir adiante. Na morte do homem está a necessidade do sacrifício da razão, mas isso não significa optar pelo irracional. Não há dualidade alguma entre razão e loucura, ambas se caracterizam por um olhar entre tantos. Como julgar o olhar real? Hegel achava que isso estava na coletividade – se todos viam um morcego, ele era real; se só um via, havia algum tipo de problema. Não há segurança alguma nisso, como saber se todos não participam de um mesmo delírio? O delírio da razão: a compreensão disto já é o que por si só se ultrapassa. Quando Batman enxerga num momento a hora de recuar no delírio do morcego, assim como também trabalhou por toda vida para também recuar do delírio do homem, apreende uma nova loucura metodológica – na consciência do próprio delírio, indo até quanto houver vontade de jogar. Seus vilões, como dito, não conseguem isso, não percebem que estão no mesmo jogo da razão, mas do lado oposto somente. Duas-Caras viu isso ao final – ele não ficou são, apenas

95 compreendeu a arbitrariedade de qualquer razão, seja ela na sanidade ou na insanidade. Na morte do racionalismo, faz-se ver o delírio que significam crenças, conceitos ou homens.

96

5

A LENDA DO MORCEGO

Um justiceiro é um homem que age visando beneficiar a si próprio. Ele pode ser destruído ou preso. Mas, se você se torna mais do que um mero homem, se você se dedica a um ideal, e se não conseguem detê-lo, se torna algo totalmente diferente: uma lenda, Sr. Wayne! (Ducard, em Batman begins)

Batman é um messias, ele abre uma porta, revela uma caverna escura que Gotham nem sequer sabia que existia – trazendo algo novo, estancando um fluxo sanguíneo para o anúncio de uma salvação... Porém, até que ponto? Qual foi o momento – se é que houve – em que ele se traiu, voltou-se contra si próprio, limitou-se, ocasionando que depois dele, Gotham precisa de um outro messias para libertar-se? Acima de tudo Batman ainda é um herói – não talvez para a maioria dos habitantes de Gotham City, que acredita que o homem-morcego não passa de uma lenda urbana, um louco ou algum teatro de máscaras da polícia para assustar criminosos. Mas fora de sua dramaturgia social, Batman é uma marca – um ícone da cultura pop como a mídia costuma se referir. Crianças se aproximam muito facilmente da personagem, assim como de seus heróicos parceiros juvenis. Para o senso comum, Batman ainda é a lembrança de uma atitude nobre, de um exemplo de valores. Ele luta pela justiça, um humanista que jamais mata. Mesmo observando a personagem pelo seu lado mais obscuro, ele é ainda assim um exemplo de força de vontade e determinação. Diferentemente da maioria dos heróis, que nasceram poderosos ou sofreram alguma mutação, as capacidades do homem-morcego foram adquiridas com treinamento e estudo – exceto sua fortuna e saúde impecável, que não deixam de ser superpoderes. O código moral de Batman, principalmente, não seria o principal culpado por essa mudança, onde o messias tornou-se um carrasco, impondo vingativamente só mais um amontoado de moralidades? Um cristão com capa de morcego? Se a máscara perpetua toda realidade de Gotham, o não-racional se impõe impiedosamente como única razão possível, e todos

97 os outros rostos vêem-se escurecidos sob a sombra do morcego, não estaria aqui, no triunfo de uma vontade sombria, só mais um outro fascismo? Talvez seja disso que Coringa tanto gargalhe.

Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2005, p. 70).

Desde os anos 1980, houve uma tentativa de afastar Batman dos bons valores e costumes – mostrar o louco de capa na noite adentro. Até que ponto os uivos desse morcego salvador chegou à caverna e, em vingança, ecoou de volta, como num espelho, que ao desferir energia, a reflete, retornando contra você? O lugar da diferença entre o nascimento do novo messias e a ressurreição do velho será o ponto final de conflito na morte do homem. A última charada provoca... afinal, existe um além-do-homem em Batman? Ou ainda, um além-domorcego?

5.1

O CAVALEIRO DAS TREVAS

Na graphic novel O cavaleiro das trevas acompanhamos um Bruce Wayne com 55 anos, de bigode e cabelos brancos. Faz uma década que ele havia deixado de ser Batman. Bruce leva uma rotina banal, eventualmente participando de atividades que lhe trazem algum perigo ou emoção: a primeira página da hq o mostra numa corrida automobilística. Seu veículo entra em colapso mecânico devido à excessiva velocidade, as rodas não respondem, ele quebra o computador de bordo, o carro incendeia. “Seria uma boa morte... mas não o bastan-

98 te”, pensa Bruce. O carro chega em primeiro lugar, completamente destruído, mas ele escapa no último segundo, sofrendo apenas queimaduras superficiais. Gotham City passa por uma onda de calor recorde, a violência urbana está mais alta do que nunca, a cidade é aterrorizada pela gangue Mutante formada por centenas de jovens, e as novas gerações não acreditam que Batman tenha um dia existido. Jim Gordon é ainda comissário de polícia, com 70 anos, faltando um mês para se aposentar compulsoriamente. Depois de tomar um drink com Gordon, em homenagem aos dez anos de aposentadoria de Batman, Bruce perambula pela noite, chegando ao beco do crime.

Quando nos despedimos, Jim pôs a mão no meu ombro e riu. “Você precisa de uma mulher!”, ele disse. Enquanto isso, em minhas entranhas, uma criatura rosna e diz do que eu preciso. (...) ...decido caminhar pelas ruas da cidade que está se acabando como o resto do mundo. Eu sou um zumbi, um holandês voador, um cadáver... morto há dez anos. Vou me sentir melhor pela manhã. A sensação não será tão forte. É a noite que piora as coisas...quando os odores da cidade atraem o maldito embora eu durma numa mansão a quilômetros de distância...e quando as sirenes da polícia me fazem acordar e esquecer, por um instante, que tudo está acabado. Mas Batman era jovem. Se ele procurava vingança, encontrou. Faz quarenta anos que sua sombra nasceu...nasceu aqui. Uma vez mais, ele me trouxe de volta pra mostrar como tudo mudou pouco. O mundo só está mais velho e sujo...mas o fato poderia ter sido ontem. Poderia ser agora. Eles poderiam estar caídos, a meus pés, inertes, sangrando... e o homem que privou minha vida de todo sentido poderia estar em pé...bem ali...[Bruce se surpreende, dois jovens tentam assaltá-lo] (...) Não. Não é ele. (...) Não. O assassino de meus pais tremeu ao puxar o gatilho. Ele estava apavorado. Tudo que o sujo queria era dinheiro. Ele se sentiu culpado pelo que fez! Esses... esses são crianças... uma linhagem mais pura... os atuais donos do mundo (n°. 1, p. 6-8).

Bruce acaba ajoelhado, perturbado... Mais tarde, visitando a caverna, que está fechada há anos, ele percebe surpreso que havia raspado seu bigode. Perdido em lembranças, assiste A marca do Zorro na televisão – o mesmo filme da fatídica noite. Cada vez mais nervoso, Bruce resolve trocar de canal , mas só vê crimes hediondos e tragédias na sua cidade. Uma fortíssima tempestade se anuncia:

O momento chegou! Em seu íntimo, você sabe...pois eu sou sua alma! Não há como escapar de mim! Você é frágil... você é pequeno... você é menos do que nada... uma carcaça vazia... um trapo que não pode me conter! Ardentemente, eu queimo sua pele... e assim brilho cada vez mais belo e feroz! Você não pode me deter... nem mes-

99 mo com vinho... ou com o peso da idade! Você não tem como me deter... e, mesmo assim, ainda tenta... ainda foge! Você tenta me abafar... mas sua voz é débil! (n°. 1, p. 19-20)

Entre raios e trovões, um morcego invade a mansão, destroçando a vidraça – o cavaleiro das trevas retorna. Isso trará grandes conseqüências: Duas-Caras ressurge, e o Coringa desperta do estado catatônico. A gangue Mutante é desarticulada, e seu líder é derrotado por Batman. A nova comissária de polícia organiza uma força-tarefa para a captura do herói. As atitudes de Batman geram tanta repercussão na imprensa, que o presidente Reagan – sem ter seu nome citado, mas com claras analogias pela sua aparência e seu passado de espetáculos – pede para que o Superman interfira, conduzindo a uma intensa batalha entre os dois heróis no final da história – tudo isso na iminência de uma guerra nuclear. Na hq, os jovens são todos carentes de referenciais – há uma necessidade urgente de “bons exemplos”, de determinação, de força de vontade num mundo onde heróis não existem mais. Grande parte da gangue mutante abandona seu forte, brutal líder de agressiva retórica, quando ele é derrotado pelo morcego. Batman, ciente da impressão que isso causaria, fez com que toda a juventude estivesse presente na batalha. Após, surgem diversas gangues juvenis: os filhos de Batman, extremamente violentos, assassinos sem a autorização do herói; os nixons, jovens mascarados com a figura do ex-presidente; os filhos de Coringa; os neonazistas; entre outros, como a ingênua jovem Cassie Kelley, que depois de salva pelo Batman faz um uniforme para si e torna-se a nova Robin. Durante um pulso eletromagnético causado pela explosão nuclear de um míssil desviado por Superman, Gotham fica às escuras: um avião cai sobre alguns prédios, muitos morrem, há diversos incêndios e desespero total. Batman sai pelas ruas a cavalo, recrutando jovens de todas as gangues para levar ordem à cidade – ele pega uma espingarda e a quebra, “este objeto covarde e idiota... ele é a arma do inimigo! (...) Nossas armas são silencio-

100 sas...precisas! (...) Esta noite vocês usarão só os punhos... e a astúcia! Esta noite nós somos a lei! Eu sou a lei!” (n°4, p. 23). Depois da destruição da mansão, o desvio de toda sua fortuna, e com a identidade próxima de se tornar pública, Batman tem finalmente Superman em suas mãos, está prestes a matá-lo, mas no último momento sofre um ataque cardíaco – Batman e Bruce Wayne morrem para o mundo. Mas, na imensidão da caverna, Bruce ressurge, como um professor diante de seus alunos, ele inicia o treinamento do seu exército juvenil, “...pra trazer sentido ao mundo infectado por algo pior do que ladrões e assassinos” (n°4, p. 49). Qual é a disciplina que Batman ensina, pergunto? É teatro – para isso, basta observarmos Alfred. O fiel mordomo inglês, metódico, apaixonado por teatro, principalmente Shakespeare, jamais perde sua postura de alto empregado. Mesmo sendo sarcástico, mantém-se nas suas obrigações ao “mestre Bruce”, que também não parece requerer, fazer questão alguma de qualquer mudança no tratamento entre os dois. O fino e bem aparado bigode, o fraque preto e a gravata borboleta, a neurótica higiene e as luvas brancas de Alfred destoam ao servir um homem fantasiado, numa caverna antiga e escura, habitada por nada limpos morcegos. Alfred é o único que acompanha Bruce desde criança – é a pessoa mais próxima dele, e mesmo assim, jamais foi consultado, se opôs ou interferiu quando não requisitado na aventura do herói. Pelo contrário, dá a ele todo o suporte necessário – além de manter a mansão, ele organiza sua agenda, faz eventuais pesquisas e serve ao vigilante mascarado mesmo fora de seu horário de trabalho, inclusive como cirurgião de guerra, atividade que aprendeu antes de ser mordomo, costurando, tratando das feridas do homem-morcego. Somente no sarcasmo de Alfred há espaço para as contestações e lembrança da piada que sempre se repete – algo como “brincadeira tem limite”, de um pai que observa atentamente, mas procura não estragar a diversão de um filho. Mesmo assim o teatro acontece entre Batman e seu fiel mordomo.

101 De maneira semelhante o teatro também se desenvolve com Jim Gordon. O comissário e Batman entendem muito bem o funcionamento da cidade, Gordon compreende a urgência de teatralidade que faz parte de Gotham, afinal foi ele quem inventou o sinal de morcego, projetado no céu por um holofote. Supostamente ele não sabe quem está por trás da máscara de Batman, mas em Batman: Ano um ele chega a investigar Bruce Wayne, quando opta por parar a apuração de provas. Em O cavaleiro das trevas ele dá a entender que sempre soube. Gordon interpreta a figura de um inquestionável comissário, enquanto infringe dezenas de leis e condutas para permitir Bruce transmutar-se em morcego, fazendo aquilo que parece momentaneamente necessário, algo que jamais um homem institucional poderia fazer. No teatro de máscaras, saber contracenar torna-se importantíssimo. Por isso o mordomo e o comissário atuam juntos na ética do morcego. Esse posicionamento não é necessariamente uma moral, mas pode vir a ser para quem assim o entende – porém, Batman demonstra não entender assim. “Jurei jamais tirar vidas (...) Não foi por moral. Foi uma questão de identidade” (Vigilantes de Gotham, nº. 29, p. 88). Em Batman begins quando Ra’s Al Ghul incentiva Bruce a assassinar um criminoso, e ele recusa, Ra’s protesta: “Sua compaixão é uma fraqueza da qual seus inimigos não partilharam”, “Por isso ela é tão importante. É o que nos diferencia deles” responde Bruce. Todas as valorações do morcego, seu posicionamento político, ético, parecem funcionar exclusiva e unicamente como traço distintivo daqueles que combate. Batman não é parte humanista porque acredita piamente em alguns valores do humanismo, mas porque em seu mundo, ninguém mais é – ou ao menos, porque, apesar dos esforços, Batman não encontra coragem para abandonar totalmente o humanismo : “Eu ouço vozes... vozes me chamando de assassino. Eu gostaria mesmo de ser...” (O cavaleiro das trevas, n°3, p. 48) – diz Batman quando tem a chance de matar o Coringa. Vicki Vale questiona em Batman por que Bruce faz isso, “porque ninguém mais pode...” responde ele. Enquanto Batman, pelas suas próprias atitudes e capacidades, prova que tudo é possível, da mesma for-

102 ma ele lembra da necessidade do teatro, da disciplina inerente ao jogo para que as ficções aconteçam, sem cair na relativização do vale tudo – Batman é o jogo. Um jogo de um homem que como qualquer outro homem que se predispõe a lutar, inevitavelmente estará lutando contra sua própria época. Ainda que em segundo plano, a ética do morcego funcione também como exemplo moral, será sempre de forma provisória – quando ciente daquilo que Batman representa, da escada metodológica a ser descartada no final, a Batgirl, na sombra de um legado, torna-se Oráculo, afirmando seu caráter distintivo. Algo diferente acontece com os vilões: O cavaleiro das trevas, assim como dezenas de outras hqs, abordam a possibilidade de Batman ter dado origem a todos os seus inimigos – como no Western, onde todos os criminosos e audazes aventureiros partem para a cidade do homem com o mais rápido gatilho do Oeste no objetivo de desafiá-lo. Batman é uma provocação, porém, o que seus fantasiados e psicóticos vilões não percebem é a efemeridade de toda lenda – mesmo permanecendo eterna, ela sempre morre e renasce aos olhos de cada um. Ao mesmo tempo em que é imortal, é temporária, uma ponte para um Outro – a lenda sempre voltará a se repetir, mas proporcionalmente sempre será necessário ultrapassá-la, seguir adiante, ir além...

5.2

O HOMEM DE AÇO

Superman foi publicado pela primeira vez em 1938. Nascido no planeta Krypton, Kal-el era filho de Lara–el e de Jor-el, um importante político/cientista. Convencido que um terrível cataclisma estava em curso, Jor–el, desacreditado por seus superiores, prometeu que ele e sua esposa não deixariam o planeta – mas em segredo enviou seu filho, ainda bebê, para

103 um planeta semelhante. Logo na partida da espaçonave, o planeta Krypton explodiu, morrendo todos os seus habitantes. Na Terra, a espaçonave caiu em Smallville no Kansas, EUA. Adotado por Jonathan e Martha Kent, recebeu o nome de Clark. Na adolescência, o futuro herói começou a desenvolver seus poderes. Após a morte do pai, decidiu viajar para o norte. No Ártico construiu sua Fortaleza da Solidão, onde descobriu toda verdade sobre si. Trabalhando em Metrópolis como jornalista no Planeta Diário, ao lado de Lois Lane, Clark Kent assume o manto herdado por seus pais biológicos, sendo chamado pela imprensa de Superman – protegendo a Terra de terríveis fatalidades e poderosos vilões, como o inescrupuloso Lex Luthor.19 Os poderes do Superman acontecem na Terra, diferentemente do seu planeta natal, por causa da radiação de nosso sol amarelo – em Krypton, o sol era vermelho. Assim, o corpo de Superman funciona como uma bateria, carregando energia. Por isso seus maiores poderes foram aparecer só na adolescência e, conforme envelhece, mais poderoso fica (O homem de aço, 1986). Por essa lógica, se supõem que com o tempo novos poderes surjam, podendo o Superman tornar-se imortal e invulnerável à kryptonita, mineral originário do seu planeta e a única coisa que pode matá-lo. Superman e Batman já se encontraram diversas vezes nos quadrinhos, possuem publicações em comum, atuam juntos na Liga da Justiça e são reconhecidos pela editora e leitores da DC comics como “the World’s Finest”. Na animação de mesmo nome, de 1998, direção de Toshihiko Masuda, acompanhamos a primeira aventura entre os dois heróis: Batman parte para Metrópolis em busca de Coringa, que se aliou a Lex Luthor. Superman logo intervém, achando muito agressivos os métodos desse homem-morcego que invadiu uma boa19

Essa narrativa varia entre filmes, seriados, hqs de diferentes épocas – aqui tento seguir o que há de mais próximo de uma estrutura comum a todos. Mesmo assim, acho importante salientar que depois da Crise nas infinitas Terras foi estipulado que Jonathan Kent nunca chegou a morrer. Assim, até hoje, os pais adotivos do Superman são vivos e atuantes na vida íntima do herói que atualmente, nas revistas regulares da personagem, está casado com Lois Lane.

104 te de criminosos e espancou todo mundo atrás de informações. Logo no primeiro encontro, Superman usa sua habilidade para enxergar através das coisas, e vê Bruce Wayne sob a máscara. O homem de aço sai voando, até seu apartamento, onde telefona para Lois, a fim de comunicar a descoberta. Porém, Clark percebe um pequeno objeto na sua capa. Usando sua supervisão, vê Batman, sobre um prédio ao longe, com um binóculo, acenando para ele – era um rastreador, agora um sabia o segredo do outro. Esse duelo entre os dois maiores heróis, querendo provar, cada um a seu modo, quem é o melhor, é algo que vai marcar essa relação, que com Frank Miller em O cavaleiro das trevas, culminará numa batalha mortal, conseqüência da inevitável colisão política das duas personagens. Superman e Batman apresentam diferenças significativas que podem ser vistas claramente ao observar como a cidade de cada um reflete seu residente. Na cidade de Metrópolis há uma aura de bondade e otimismo sobre tudo e todos. As pessoas são gentis e preocupadas com o próximo, tudo é muito limpo, branco e iluminado – ou seria iluminista? A ciência, enquanto promessa, garantiu uma cidade do futuro, muito bem ordenada: o lugar onde o projeto moderno de mundo deu certo. Comunicação é um dos grandes exemplos do sucesso – não é por acaso que Superman é um jornalista nas suas horas vagas de protetor da humanidade. Hierarquias e instituições costumam ser perfeitas e abençoadas, por isso o único receio, o único evento a ser temido, é alguém mal-intencionado corromper toda a maquinaria sócio-política: este é o vilão Lex Luthor, um homem rico, que anseia o poder absoluto, fazendo-se passar por um bom samaritano, um verdadeiro altruísta que ajuda causas sociais e estimula o progresso tecnológico da cidade. Outro grande medo é o imigrante, aquele que vem de fora para profanar o paraíso na Terra, como o vilão alienígena Brainiac. Nos anos 2000, nas histórias em quadrinhos regulares do Superman, Luthor se tornou presidente dos Estados Unidos: nesse panorama, o jornalismo praticado por Clark Kent

105 e Lois Lane se tornou mais importante do que nunca – somente através da verdade se pode desmascarar os vilões. Esse é o espírito de Superman: uma busca incessante do justo e do verdadeiro, de um enviado de um outro mundo, que veio à Terra para salvar os homens e dar o exemplo – da mesma forma sua cidade, que sempre será o modelo do progresso, da liberdade de expressão e do conhecimento em benefício do homem de idéias claras e distintas. Já em Gotham City tudo é virado ao avesso: os prédios na sua arquitetura gótica parecem apontar para o céu, geralmente chuvoso, clamando pela volta do Pai que os abandonou – não seria num assassinato no “beco do crime”? Gotham é onde o projeto moderno realmente faliu. As instituições não funcionam, há terrível desigualdade social e violência, a ordem e a luz não passam pelas carregadas nuvens, só há sujeira, escuridão e caos. Quando diante de uma cena de assassinato, Batman, “o maior detetive do mundo”, usa toda ordem da criminalística a favor unicamente de sua intuição – na hora de perseguir um criminoso culpado, ele recorre ao instinto, e costuma acertar. Gotham se constituiu sobre um antigo manicômio. Poucos conseguem ou querem reprimir suas paixões ou vontades, a maioria põe em prática suas fantasias e delírios. A liberdade torna-se um conceito estranho à Gotham. Ao mesmo tempo em que a cidade se vê descompromissada para suas estranhas obsessões, torna-se vítima delas. Superman é um herói para Metrópolis, comparece a eventos públicos, recebe homenagens, tem grande reconhecimento e é um referencial moral – ele pertence ao povo, por isso seu arquiinimigo é um aristocrata que gosta de música clássica. Já para Gotham, Batman é uma lenda urbana. Para os que acreditam nele, não passa de um lunático vigilante, que no anonimato persegue e aterroriza as pessoas. Esta é a maior crítica do homem de aço ao homem-morcego: ele constrói uma sociedade de covardes. Em Gotham, as pessoas não deixam de cometer crimes porque acham errado, mas porque têm medo da sombra que virá no encalço de todos. Batman apenas sorri, irônico. Afinal, qual a moral que não funci-

106 ona pela ameaça e pela vingança? Superman faz o mesmo jogo, mas é ingênuo para perceber ou temeroso demais para aceitar a violência que é um super-herói. “Quando os grupos de pais começaram a se queixar e a comissão do congresso nos convocou para depor... foi você [Bruce] quem deu risada... aquela sua gargalhada assustadora! ‘Claro que somos criminosos!’ você disse! ‘Nós sempre fomos!’ ‘Nós temos de ser!’ ” (O cavaleiro das trevas, n°3, p.33).20 Acontece uma estranha admiração entre ambos. Batman acha fascinante as capacidades e a imponência da figura do Superman, mas ressalva: “...quando fala, ele estraga tudo” (n°. 3, p. 16). Já Superman admira o morcego por ser justamente aquilo que ele próprio não é: um humano. Numa ocasião em que o homem de aço foi seqüestrado por superpoderosos vilões, junto com toda a Liga da Justiça, residindo em Batman toda a esperança da humanidade, um vilão debochou: “ele é só um homem...” Superman, torturado, delirando, então retruca: “o mais perigoso da Terra...” (Os melhores do mundo, n°11, p.21). Foi ao Batman que Superman confiou o anel de kryptonita que pertencia a Luthor – se um dia Superman perder o controle, se transformar-se em algo grande demais que possa vir a ser uma ameaça à Terra, Batman é o único que poderá derrotá-lo. Se na admiração de Batman está vontade de força, em Superman, sua vontade confunde-se entre insegurança e desespero. Superman está sozinho, num mundo que não é

20

As diferenças éticas entre Batman e Superman triangulam com Oliver Queen, o Arqueiro Verde: originalmente de Star City, o ex-milionário falido, que após um acidente teve de passar um tempo numa ilha deserta, onde aprendeu sozinho a manusear arco e flecha, costuma questionar ambos os heróis. Mais engajado politicamente, o herói, às vezes esquerdista, às vezes liberal, dependendo de quem escreve, já lutou por causas ambientais, contra a desigualdade social, e eventualmente até assume um cargo político. Ao mesmo tempo em que reúne a impetuosidade de Batman, tem forte senso de responsabilidade como Superman – até mais, é ele quem reclama quando a Liga da Justiça vai mais uma vez salvar o mundo, e destrói inteiramente mais uma cidade, na batalha em nome da justiça contra poderosos vilões. Oliver é o mais crítico dos super-heróis – ele questiona como Batman leva crianças pra frentes de guerra, e ataca a ingenuidade moral do escoteiro Superman. Em O cavaleiro das trevas, o Arqueiro Verde – que teve o braço esquerdo amputado por algo envolvendo o homem de aço – trabalha secretamente no boicote das forças armadas estadunidenses desde que fugiu da prisão. Aos gritos de “fascistas!” para o exército, ele lança, segurando pelos dentes, uma flecha de kryptonita no Superman, ajudando Batman a derrotá-lo (n°4, p. 43).

107 seu, numa posição que lhe foi herdada, imposta: “embora você tenha sido criado como um ser humano, você não é um deles. Eles podem ser ótimas pessoas como costumavam ser. A eles só falta a luz pra mostrar o caminho. Por essa razão, além de tudo, pela capacidade das pessoas em evoluir, eu mando a eles meu único filho”, diz Jor–el (Marlon Brando) em Superman (1978), de Richard Donner. Superman tem de estar sempre do lado do bem na balança moral, ele precisa ser aceito para conquistar um lar, uma pátria que possa compartilhar.

Não se pode tocar em meu planeta sem destruir algo precioso! Até os desertos são preciosos! (...) Nosso povo, Bruce! E você riu deles! Os malditos podem fazer isto... e você riu! Eles rasgaram o tecido da realidade (...) e ofuscaram o sol... fonte de todo meu poder... esperança de milhões de criaturas! (...) A senhora tem toda razão de estar ultrajada, mãe-terra! Deu a seus filhos tudo... esses filhos mesquinhos, idiotas e perversos! (...) Eu sempre amei a senhora. Embora tenha vindo de outra galáxia... sempre servi a seus desígnios! O mesmo poder... a energia do sol... alimenta a nós dois! (...) Eu suplico... em nome de um planeta moribundo... libere essa força... mãe... mãe... (...) Eu juro... este filho adotivo honrará seu nome! (Superman, após a detonação de uma ogiva nuclear, em O cavaleiro das trevas, n°4, p.26-29)

Há dois tipos de messianismo – o primeiro é o da tradição, que visa restaurar, reafirmar a velha ordem no novo atrás de uma capa envelhecida. Superman foi criado por camponeses estadunidenses, seus valores, sua moral representa o caipira norte-americano. Junto com sua educação de simplicidade, de humildade, vem o fardo do legado das estrelas, grandioso, poderoso. Unindo as duas tradições pelo que elas têm de comum, na moralidade, na condição para o bem, Superman torna-se o herói dos fracos, daqueles que precisam de uma luz, de um salvador que venha voando cheio de esperanças. As crises de Superman acontecem quando ele falha na obrigação de ser um messias, ou percebe o fracasso da humanidade, como na graphic novel Paz na Terra (1998), de Paul Dini e Alex Ross, onde Superman usa toda sua influência para acabar com a fome no mundo, mas no final percebe-se frustrado – nem todos estão preparados ou querem um salvador. São comuns cenas em que uma multidão desesperada o cerca, e no final, o homem de aço precisa se retirar voando – ou se enterrar, inclusive em Gotham.

108 “Papai dizia que seria necessário alguém especial, sem interesses pessoais, para fazer todos perceberem o que o mundo tem a oferecer. Alguém que colocasse de lado as próprias necessidades em nome do bem comum” (Paz na Terra, p. 18-19). Superman é o herói da coletividade – ostensivo e óbvio para que todos vejam claramente o único filho do pai celestial. Superman é a ressurreição do velho messias, cristalizado, limitado nos pensamentos e ações, imóvel como um homem de aço.

Para sair da apatia, as pessoas precisam de exemplos dramáticos. Não posso fazer isso como Bruce Wayne. Como homem sou de carne e osso, posso ser ignorado ou destruído, mas como símbolo, como símbolo posso ser incorruptível... posso ser eterno... (...) Alguma coisa elementar... alguma coisa aterrorizante... (Batman begins)

O outro messias se dará pelo choque e pela ruptura – uma interrupção messiânica benjaminiana. Não será nenhum exemplo esse novo messias, a não ser de quebra do próprio exemplo. No Batman estarão a ironia, o cinismo, a vontade como força maior. Ele não herdou seu uniforme, é um menino mimado bilionário cheio de desejos. No indomesticável morcego não há moral, há negociações entre jogos, brincadeiras que devemos aceitar provisoriamente a fim de que se siga adiante. Batman não traz nenhum bem-comum, pelo contrário, ele por si só se demonstra a impossibilidade e recusa dessa condição. Para o abandono do bem-comum não é preciso adeptos, mas todos ao procederem na refutação do coletivo, inevitavelmente tornamse partidários do homem-morcego. Talvez o homem ainda não saiba, mas o morcego está lhe devorando, sugando seu sangue, nutrindo-se com sua energia vital para um grande uivo na escuridão – na luz enxergamos o que nos é dado, mas nas sombras vemos aquilo que ninguém mais vê, as imagens que não se compartilham, que consomem cada um de um modo. Sobre um cavalo selvagem, negro, violento, surge um cavaleiro das trevas – messias da vontade sombria.

109 Você sempre soube o que dizer... diz sim... a qualquer um com distintivo... ou a uma bandeira. (...) Você traiu a todos nós Clark. Deu a eles o poder... que devia ter sido nosso. Exatamente com seus pais ensinaram. Meus pais me ensinaram coisa diferente. Caídos nesta rua sangrando muito... morrendo sem razão nenhuma... eles me mostraram que o mundo só faz sentido quando você o força a fazer. (...) Poderíamos ter mudado o mundo... agora olha só para nós... eu me tornei um risco político... e você... você, uma piada... (Batman na batalha contra Superman, no “beco do crime”, em O cavaleiro das trevas, n°4, p. 40-44)

5.3

ALÉM-DO-MORCEGO

Batman foi uma aposta da promissora indústria de quadrinhos em 1939. Frank Foster já havia formulado um homem-morcego sete anos antes, mas o projeto não foi à frente. Devido ao aumento dos problemas sociais e a violência urbana amplificada pela grande depressão de 1929, além também da segunda guerra mundial que começava, Batman foi apresentado ao mundo inicialmente como uma distração, um escapismo, algo para que o público não se horrorizasse tanto quanto o mundo lá fora – mas em todo entretenimento reside uma vingança. Batman era a lembrança de um projeto decadente: por mais que, a partir do surgimento de Robin, as histórias se tornassem mais leves, a sombra ainda estava lá. É uma oportuna coincidência uma das personagens mais emblemáticas da desconfiança e falência da modernidade no mundo das hqs de heróis estadunidenses ter nascido no mesmo ano em que se iniciava a segunda guerra mundial. Assim como a economia e o urbanismo das grandes metrópoles mostravam a modernidade e o progresso como phármakon, a guerra obscureceu de vez qualquer fé num projeto moderno – não haveria mais como crer num futuro melhor pela pura ciência, quando o que se via eram avançados campos de concentração e de extermínio culminado em bombas atômicas. A razão, promessa para um futuro justo e livre, foi a grande arma no planejamento sistemático de genocídios, na criação de armas de destruição em massa, e no controle sobre qualquer forma de vida, e conseqüentemente de morte.

110 Batman é fruto disso tudo: um homem atormentado pela destruição da sua promessa de futuro feliz. Nas hqs, até hoje, Batman sempre lembra de sua vida anterior ao assassinato dos pais como algo simplesmente perfeito – sua feição torna-se igual de uma criança. Seu pai é um médico exemplar, e sua mãe é uma esposa incomparável. Os dois se amam tanto quanto amam o único filho. Mas a modernidade se vingou, os pais de Bruce foram assassinados, não por um serial killer, ou um louco fantasiado, mas um trabalhador braçal, desempregado, desesperado, mais nervoso que suas próprias vítimas, que ainda teve a decência de não machucar fisicamente uma criança. Depois, quando Batman tornou-se aliado dos policiais, compareceu a eventos públicos, e deu coletivas à imprensa, a modernidade adoecia ao ver um criminoso bem-aceito. Batman é urgentemente necessário a esse mundo que desaba e clama por algum outro referencial. Se no morcego encontramos algo da morte do homem, nele não estaria também um pouco da profecia do além-do-homem? Arte é um desperdício e Batman é um desperdício: não possui um propósito meramente utilitarista, é uma inscrição no mundo que acontece sem necessidade objetiva de um por que nem de um para quê. O objetivo do morcego supostamente é combater crimes como o que ele sofreu, mas até quando? Batman só iria parar quando não houvesse mais crimes. Como evitar todos os crimes, como controlá-los? Por outro lado, no morcego a vontade nietzscheana mostra alguns dos seus maiores poderes, num sombrio convite ecoado no aparecimento infinito de mais loucos vilões e jovens destemidos heróis. Não há respeito por limites ou regras, a não ser por aquelas escolhidas por si próprio. Batman, como uma boa criança mimada, jamais aceita um não. Na sobreposição indefinida da ordem e do caos, da inevitável contradição de justiça e liberdade, no choque e no colapso inerentes à vontade, entre o escravo e o tirano, Batman parte para além do bem e do mal, para além do homem. Mas assim como é duvidoso lhe con-

111 ferir um começo, tanto quanto o é lhe proferir um final – Batman não é ainda um superhomem nietzscheano. Nietzsche anuncia como potencialidade do além-do-homem a capacidade de se autocriar, de se tornar arte, ir além... Batman parece atingir isso, mas em partes: aos poucos ele foi criando seu estranho visual, forjando sua louca razão. Quando o morcego adentrou a janela, só houve pretextos racionalizados em estilhaços de vontades, desejos e obsessões. Seu passado é um eterno devir, e sua identidade está sempre a se construir. Porém, ele não consegue ir adiante, – vê-se envolto numa rostificação, que ele demonstra compreender como só mais uma ficção no mundo. Mesmo assim, não consegue abandoná-la e partir em busca de outras ficções. Deleuze, no capítulo “Platão e o Simulacro” da Lógica do Sentido, parte de uma proposta de reversão do platonismo, tornando clara a motivação do platonismo, encurralando esta motivação, apontando as principais diretrizes e engrenagens da filosofia de Platão: “...o motivo da teoria das Idéias deve ser buscado do lado de uma vontade de selecionar, de filtrar” (p. 259). Distinguindo dois tipos de imagens: a cópia – semelhança do original, do ideal, onde para Platão tudo se inicia, como um boneco de argila vindo de uma fôrma –, e o simulacro – a dissimilitude, o falso, aquilo que não veio de fôrma alguma. “A dialética platônica não é uma dialética da contradição nem da contrariedade, mas uma dialética da rivalidade, uma dialética dos rivais ou dos pretendentes”, numa seleção de linhagem, para “filtrar pretensões, distinguir o verdadeiro pretendente dos falsos.” Essa divisão sucessiva que constitui a dialética platônica. Quando chega à sua tarefa seletiva, a dialética pára abruptamente, e no lugar aparece um mito – que “não interrompe nada, ele é, ao contrário, elemento integrante da própria divisão”. “O mito, com sua estrutura sempre circular, é realmente a narrativa de uma fundação. É ele que permite erigir um modelo segundo o qual os diferentes pretendentes poderão ser julgados. O que deve ser fundado, com efeito, é

112 sempre uma pretensão” (p. 260). Por meio do mito a divisão “atinge seu fim, que não é a especificação do conceito mas a autenticação da Idéia” (p. 261). Com a cópia, como um pretendente bem fundado, semelhante ao modelo do ideal; e o simulacro, como um falso pretendente, o platonismo trata de...

...garantir o triunfo das cópias sobre os simulacros, de recalcar os simulacros, de mantê-los encadeados no fundo, de impedi-los de subir à superfície e de se ‘insinuar’ por toda parte.(...) A grande dualidade manifesta, a Idéia e a imagem, não está aí senão com este objetivo: assegurar a distinção latente entre as duas espécies de imagens, dar um critério concreto (DELEUZE, 1974, p. 262-263).

A cópia, pretendendo se assemelhar ao ideal, precisa moldar-se física e espiritualmente às Idéias. Já o simulacro, nas sombras de estranhas pretensões, torna-se “ uma agressão, uma insinuação, um desequilíbrio, uma subversão, (...) sem passar pela Idéia” (p. 263). O cristianismo segue a mesma cartilha: somos simulacros de Deus, e só podemos reconquistar nosso direito de cópia se voltarmos às semelhanças com o pai, se nos aproximarmos do Mesmo, enquanto o diferente, o simulacro não cristão, o Outro, acaba por se tornar o demoníaco. Transformar esse simulacro em semelhante, ou expulsá-lo de vez da frente de nossos olhos é o objetivo do platonismo. O Simulacro é distinto, estranho; justamente por isso, por seu poder de corromper, ele é tão perigoso. “O platonismo funda assim todo o domínio que a filosofia reconhecerá como seu: o domínio da representação preenchido pelas cópias-ícones e definido não em uma relação extrínseca a um objeto, mas numa relação intrínseca ao modelo ou fundamento.” (p.264)

(...) a filosofia não deixa o elemento da representação quando parte à conquista do infinito. Sua embriaguez é fingida. Ela persegue sempre a mesma tarefa, Iconologia e adapta-a as exigências especulativas do Cristianismo (o infinitamente pequeno e o infinitamente grande). E sempre a seleção dos pretendentes, a exclusão do excêntrico e do divergente, em nome de uma finalidade superior, de uma realidade essencial ou mesmo de um sentido da história (p.265).

113 No simulacro estarão a interrupção messiânica e a quebra do exemplo do Mesmo e do Semelhante. Como vontade de potência, do diferente, do plural, um exemplo permanece: de desenlace do próprio exemplo. O porvir dionisíaco se apresenta na figura do simulacro: “...neste sentido ele subverte a representação, que destrói os ícones: ele não pressupõe o Mesmo e o Semelhante, mas, ao contrário, constitui o único Mesmo daquilo que difere, a única semelhança do desemparelhado” (p. 270).

Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias. (...) O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução. (...) Não há mais ponto de vista privilegiado do que objeto comum a todos os pontos de vista. (...) A semelhança subsiste, mas é produzida como o efeito exterior do simulacro, na medida em que se constrói sobre as séries divergentes e faz com que ressoem (p. 267-268).

Batman é um simulacro traumatizado. Assim como no mito de Platão, onde todas as almas avistaram o plano das Idéias e chegaram até a Terra com a lembrança de um ideal de mundo, Batman avistou também esse ideal antes dos seus oito anos de idade. Mesmo como um simulacro, um divergente do ideal, ele ainda carrega consigo esse passado que o assombra e o amarra, impendindo-o de alçar vôos maiores. Batman é uma ótima oportunidade da morte do homem, mas depois dele precisa-se prosseguir... sair das sombras, deixar de vê-las como oposição da luz, e construir um outro olhar, inexplicável. “O treinamento não é nada. A vontade é tudo!” (Ra’s em Batman begins). Talvez essa esperança resida no filho de Batman com Tália, Ibn al Xu'ffasch – filho do morcego em árabe, também chamado de Damian Wayne –, neto de Ra’s al Ghul. No conflito do mistério e do poder ilimitado herdado pelo avô, com o legado das sombras e a superação dos medos do pai, talvez Ibn consiga continuar de onde seus antecessores cessaram, partindo para o além do homem, do bem e do mal – para além-do-morcego...

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: A INQUIETUDE

Toda vez que leio uma narrativa de Batman, vejo a mesma coisa: o vigilante toma para si uma situação de ameaça à vida, parte numa aventura – às vezes mais concentrada em levantamento de pistas e provas, às vezes com muita pancadaria e explosões gratuitas. Um vilão se personifica numa individualidade ou numa coletividade, isso não importa – há algo para ser combatido. No final, o morcego é vitorioso, mas com algum pesar... ele sabe que ainda há muito por fazer, e por mais que se esforce, sua dor não passa. Embora nos filmes e seriados costume ficar clara a narrativa de uma aventura – um crime acontece, Batman se envolve, um vilão o ameaça, e no final, o herói triunfa –, nas hqs – que em comparação com as narrativas dos audiovisuais, se assemelham mais a uma telenovela – Batman está constantemente resolvendo diversos crimes ao mesmo tempo. O morcego nunca descansa. Uma imagem habitual é Batman lançando suas cordas, voando entre os arranha-céus atrás de mais outro crime a ser resolvido – sendo que acabou de solucionar um, deixando um vilão desmaiado, amarrado, à espera da polícia. A eterna repetição na vida de Batman não se reduz às suas ações. Na memória, tudo está sempre por acontecer de novo: em apenas um ano de histórias, é possível que se tenha repetido a morte de seus pais dezenas de vezes. A origem das personagens periféricas também nunca cessa de voltar a acontecer: somente o começo do primeiro Robin já foi recontado diversas vezes com grande precisão de detalhes. Desde sua primeira aparição em 1940, na Detective comics 38, sua narrativa foi recontada em minisséries como Vitória sombria, Batman: Ano três, e atualmente na linha regular Grandes astros: Batman & Robin – além dos vários filmes e desenhos animados. Essas repetições também acontecem na noção de legado dos heróis. O homem ou a mulher podem mudar, mas o herói permanece: basta ver que atualmente estamos no terceiro

115 Robin, na segunda Batgirl... A Batwoman, personagem característica dos anos 1950, está também de volta, assim como a Caçadora, que antes da Crise nas infinitas Terras era filha do Batman e Mulher-Gato, e que nos anos 1980 apareceu como uma outra vigilante, contemporânea do homem-morcego. Nem os vilões estão imunes, Cassius Clay é atualmente o quinto Cara-de-barro. Toda vez que a história recomeça, o pressuposto original permanece o mesmo, mas as pequenas diferenças, as mais sutis, como alguns enquadramentos, cores ou palavras, acabam tornando a história novamente viva. Essa vivacidade está na narrativa, mas também está no leitor que pela milésima vez se emociona com a mesma história. Nesta repetição psicótica, no pacto de morcego entre leitor e escritos, está, talvez, a maior potência desse ghotamita universo em quadrinhos. A repetição torna-se a maior força de destruição do mundo do homem. Giorgio Agamben, no texto O cinema de Guy Debord, aponta uma simples, porém muito útil noção de repetição:

O que é uma repetição? Há na modernidade quatro grandes pensadores da repetição: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze. Todos os quatro nos mostraram que a repetição não é o retorno do idêntico, o mesmo enquanto tal que retorna. A força e a graça da repetição, a novidade que ela traz, é o retorno como possibilidade daquilo que foi. A repetição restitui a possibilidade daquilo que foi, torna essa coisa novamente possível. Repetir uma coisa é torná-la novamente possível. É aí que reside a proximidade entre a repetição e a memória. Pois a memória não pode nos restituir tal qual aquilo que já foi. Isto seria o inferno. A memória restitui ao passado sua possibilidade. É o sentido dessa experiência teológica que Benjamin via na memória quando dizia que a lembrança faz do não-consumado (inaccompli) algo consumado (accompli). A memória é por assim dizer o órgão de modalização do real, aquilo que pode transformar o real em possível e o possível em real (AGAMBEN, 1995). 21

Foi esse trabalho de memória que me impus ao realizar esta dissertação, revisitando diferentes quadrinhos das minhas recordações. Na repetição do meu pacto com o morcego, pude torná-lo novamente possível – recriá-lo e ao mesmo tempo descriá-lo.

116 Não se deve considerar o trabalho do artista unicamente em termos de criação: ao contrário, no coração de todo ato de criação, há um ato de des-criação. Deleuze disse certa vez, sobre o cinema, que todo ato de criação é sempre um ato de resistência. Mas o que significa resistir? É antes de tudo ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte do que o fato que está aí. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento se define, antes de mais nada, por sua capacidade de des-criar o real. (AGAMBEN, 1995)

No repetir o universo do morcego consegue atingir a morte do homem: na negação do real – própria dos quadrinhos –, e do progresso, que nunca acontece na cronologia que auto-engana – Bruce já teve três Robins e continua sempre com uma aparência de aproximadamente uns trinta e cinco anos. A morte do homem também ocorre na personagem de Batman conforme já apontado na morte da individualidade, da origem, da razão, da moral... Se o homem-morcego não consegue chegar a ser o emblema do além-do-homem nietzscheano, é porque a tarefa não cabe a ele, nem sequer se faz necessária. A repetição se preocupará com essa missão. Assim como Batman sempre se repete, sempre se repetirá a necessidade de prosseguir a ele – o que une Batman a seus leitores é a psicose compartilhada do eterno retorno. Em oposição ao silêncio que se tornou o homem, para ir adiante, avançar na inquietude, adentrar no devir, o morcego retorna eternamente com a lembrança de que, na sombria morte, sempre caberá ao leitor procurar uma outra vivacidade – na vontade, voar para mais além...

21

AGAMBEN, Giorgio. “O cinema de Guy Debord” (conferência em Genebra, novembro de 1995, publicada em Image et mémoire, Paris: Desclée de Brower, 2004). Tradução de Antônio Carlos dos Santos (texto fotocopiado).

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REFERÊNCIAS

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FILMOGRAFIA

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122

ANEXOS

123

Primeira aparição, 1939 – desenho de Bob Kane.

Batman de Alex Ross, 1999.

Em Batman:ano um, o morcego encontra Gordon – desenho de David Mazzucchelli, 1987.

124

Batman, de Neal Adams, 1971.

Batman: ano 100, de Paul Pope, 2006.

Robin. de Frank Miller. Grandes astros: Batman & Robin 2, 2006.

Batman, de Jim Lee. Grandes astros: Batman & Robin 1. 2006.

125 Asa Noturna, de Jim Lee, em Silêncio, 2003.

A morte de Robin, de Jim Aparo, 1988.

Batman, de Alex Ross, 1999.

126

Mulher-Gato, de Jim Lee, em Silêncio, 2003.

Mulher-Gato, de Tim Sale, em O longo dia das bruxas, 1997.

Mulher-Gato, de Jim Balent, 1996.

127 Batman, de Tim Sale, 2000.

Batman, de Simon Bisley, 1993.

128

Coringa, de Dave McKean – Asilo Arkham, 1989.

Coringa, em A piada mortal – desenho de Brian Bolland, 1988.

129

Duas-Caras, de Tim Sale. Vitória sombria, 2000.

Duas-Caras, de Dave McKean – Asilo Arkham, 1989.

130

O cavaleiro das trevas, de Frank Miller, 1986. Batman begins, de Christopher Nolan, 2005.

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