A morte do outro na ficção de Rubem Fonseca

July 3, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Rubem Fonseca, RUBEM FONSECA LITERATURA CUENTOS
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A morte do outro na ficção de Rubem Fonseca Abraão Carvalho abraaocarvalho.com

“Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar.” Oscar Wilde

A poesia e a prosa de Baudelaire, assim como a ficção de Rubem Fonseca, se inserem em uma mesma tradição. Isto é, na tradição que a partir da literatura afetada e atravessada pela experiência urbana ocidental, cria alegorias que remetem à situação e à condição histórica da cidade moderna. No entanto, vale ressaltar, que existe aí uma distância temporal e espacial entre Baudelaire e Rubem Fonseca, uma vez que a literatura criada por um irrompe das alegorias e das paisagens urbanas da Paris do século XIX, e o outro, da cidade brasileira do século XX. Entretanto, entendemos ser a literatura de ambos atravessada por traços em comum. Rubem Fonseca caminha na direção contrária ao ato narrativo que tem o interesse de escamotear as tensões sociais e políticas no interior da realidade urbana moderna. Refutando, em certa medida, a possibilidade de na sua literatura

encontrarmos

a

coexistência

supostamente

harmônica

entre

extremos opostos, edificando a sua ficção a partir de uma dinâmica da experiência urbana que se move desde a prática da dissimulação e da violência em suas diferenciadas possibilidades. Dito de outro modo, Fonseca não se interessa em dissimular a ação ou reação violenta de um ser humano sobre outro. Extraindo portanto dos confrontos entre os antagônicos modos de vida na esfera da cidade, assim como da desagregação sócio- cultural e ausência de linguagem e memória comum entre as gerações, o que de fato consiste no horizonte orientador de sua literatura, que tem como palco o solo

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brasileiro. Ficção esta que pretende investigar os rastros e os vestígios de tais antagonismos da vida urbana. Modo de vida este, que sucumbe, em certa medida, na ruína que atravessa o solo urbano, no qual se move a experiência de um grande contingente dos passantes da cidade brasileira contemporânea, que perduram historicamente, sobretudo, como excluídos dos direitos à vida 1.

No conto “O outro”, do livro “Feliz ano novo” 2, que tal como “As flores do mal” de Baudelaire, fora censurado pelo Estado no ano de sua publicação, narra uma relação fragmentária na qual os abismos sociais criados desde o início da colonização ibérica no Brasil, ainda se fazem visíveis na cidade brasileira do século XX, antes mesmo é a violência enquanto acontecimento súbito “que brota do devaneio e do tédio”3, do qual fala Baudelaire, que dá a entonação da própria dinâmica da vida urbana. Os emblemas da vida urbana brasileira, assentada em abismos sociais extremados, que emergem desde o conto “O outro”, podem ocupar lugares radicalmente opostos, no que se refere à sociedade na qual vivemos e somos afetados. Antes mesmo, no conto “O outro”, Rubem Fonseca situa alguns dos traços da dinâmica que move a violenta sociedade brasileira. Deste modo, Fonseca trata do isolamento do modo de vida urbano enquanto o tema próprio desta ficção, que consiste na re-ação violenta que irrompe do devaneio, do 1

Quando estamos nos referindo ao ser humano excluído dos direitos fundamentais à vida, estamos falando daqueles aos quais estão destinadas as grandiosas e ilimitadas filas nos postos de saúde do Estado, para o escasso e precário atendimento médico, bem como, estamos nos referindo aos modos de vida situados no espaço urbano brasileiro onde o saneamento básico ainda não foi efetivado, sem moradia digna, alimentação adequada, vestimenta, sujeitos à precariedade do sistema de transporte coletivo que superlota os ônibus, bem como, à margem do mundo do trabalho, etc...

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“Feliz ano novo, lançado em outubro de 1975, foi recolhido pelo Departamento de Polícia Federal por despacho do ministro da Justiça Armando Falcão em dezembro do ano seguinte e teve a sua publicação e circulação proibidas em todo o território nacional, sob a alegação de ‘exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes’. Em abril de 1977, Rubem Fonseca entrou com um processo contra a União, que correu por mais de doze anos, ao longo dos quais o livro – que no momento da apreensão já tinha vendido mais de 30 mil exemplares – jamais pôde ser reeditado. Somente no final de 1989 o escritor obteve decisão favorável do Tribunal Regional Federal, liberando a sua obra”; Segunda Edição de “Feliz ano novo”, Companhia das Letras, 1989

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Baudelaire, “O Mau Vidraceiro”.

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medo e do tédio que afeta a aterradora vida urbana brasileira, referenciada, muitas das vezes por questão de sobrevivência, na perspectiva da circulação acelerada de mercadorias e capitais, que atravessa o mundo do trabalho competitivo, no qual se situa o emblema do “executivo”. Ora, mas no que consiste de fato a dinâmica da relação que irrompe entre o “executivo” e o “pedinte” no conto “O outro”? Antes mesmo de darmos uma resposta fechada e acabada a esta questão, temos a dimensão de que estamos nos referindo a modos de vida diferenciados, e que sobretudo, coexistem desde uma ordenação hierárquica, no que diz respeito às suas condições materiais de existência. Neste sentido, poderíamos dizer que a vida do “executivo” consiste em uma vida mais vida, e que a vida do “pedinte” que o aborda em diversas ocasiões, trata-se de uma vida menos vida, pois este é excluído de qualquer condição material de existência. Nesta direção, o “executivo”, tomado e afetado por aterradora perturbação diária devido às suas frustrações nos negócios, sobretudo consiste no emblema da vivência urbana referenciada na perspectiva de que tempo é dinheiro. É o tédio do modo de vida isolado sujeito ao ritmo do trabalho competitivo. Recusando uma possível relação de reciprocidade com o “pedinte”, seja material, política ou cultural, o “executivo”, abordado diariamente para que possa viabilizar dinheiro ao outro que de súbito, por diversas vezes, aparece diante de seus olhos, toma a decisão de re-agir pela via da violência, que irrompe do devaneio e do tédio da vida urbana sem laços sociais que não tenham outra mediação senão a competição e a mercadoria. Ou seja, a perspectiva que efetiva a morte violenta do outro, neste conto de Rubem Fonseca, é a via pela qual se dá a prática da vivência urbana isolada. Neste sentido, o “executivo” narra a situação, ocorrida em certa rua, na qual é abordado subitamente, mais uma vez, pelo “pedinte”: “... ele encostou o seu corpo bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador. Fui na direção de minha casa, ele me acompanhando, o

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rosto fixo virado para o meu, me vigiando curioso, desconfiado, implacável, até que chegamos em minha casa. Eu disse, ‘espere aqui’. Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta, e ele ao me ver disse ‘não faça isso doutor, só tenho o senhor no mundo’. Não acabou de falar, ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto, e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder. ”

O isolamento da vivência urbana cria de certo modo uma reação violenta que vai de encontro ao outro, que subitamente aparece nas ruas da cidade brasileira, pois como aponta Benjamin: “O conforto isola”, e é justamente deste isolamento que irrompe o devaneio que ofusca o olhar acerca do outro. Desta

forma,

neste

conto

de

Fonseca,

é

somente

a

partir

do

acontecimento súbito da efetivação da morte do outro que se abre a possibilidade de uma inversão deste olhar. Antes do assassinato, o “executivo” vê o outro enquanto “mais alto..., forte e ameaçador”, no entanto, após o tiro ser disparado em direção ao “pedinte”, este aparece agora como “um menino franzino, de espinhas no rosto, e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder”. Desde a perspectiva do “executivo”, o olhar acerca do outro oscila entre opostos extremados. Deste modo, o “executivo” consiste na alegoria do modo de vida que não possui outra mediação, senão a mercadoria, como interesse e perspectiva no âmbito das relações sociais, o que torna o olhar que orienta a reação diante do “pedinte”, algo que oscila subitamente entre maneiras opostas de olhar o outro. Ora, mas qual o sentido dessa inversão, entre extremidades opostas, na maneira de olhar o outro que aparece subitamente? Não nos parece tão nítido o sentido dessa inversão, no entanto, uma possibilidade para encaminharmos essa questão, não sem o risco de sermos 4

atravessados por um certo modo de ambigüidade, consiste em situá-la como originária do isolamento da vivência urbana, emblematizada aí, no “executivo”. Como dissemos a pouco, é deste isolamento que irrompe o devaneio e o medo que ofusca e confunde o olhar acerca do aparecimento do outro. De maneira que o modo de vida do executivo é atravessado pelo ritmo de trabalho competitivo, sobretudo, referenciado pela perspectiva de que tempo é dinheiro. Neste sentido, enuncia o executivo: “Corria contra o tempo. Quando havia um feriado, no meio da semana, eu me irritava, pois era menos tempo que eu tinha”. Essa perspectiva se evidencia na inquietação tediosa e perturbadora que afeta o executivo em seu isolamento na sua confortável moradia particular: “À noite não levei trabalho para casa. Mas o tempo não passava. Tentei ler um livro. Mas a minha atenção estava em outra parte, no escritório. Liguei a televisão mas não consegui agüentar mais de dez minutos”. Desta forma, frustra-se o “executivo”, ou mesmo o “doutor”, na acepção do “pedinte”, após um “dia terrível” de trabalho em seu escritório: “tudo dava errado: papéis não foram encontrados nos arquivos; uma importante concorrência foi perdida por diferença mínima; um erro no planejamento financeiro exigiu que novos e complexos cálculos orçamentários tivessem que ser elaborados em regime de urgência. À noite, mesmo com os tranqüilizantes, mal consegui dormir.”

É absorto em seu modo de vida isolado e sujeito ao ritmo da circulação acelerada de mercadorias e capitais, que o executivo cria um olhar acerca do aparecer do outro, que só encontra a sua inversão, após o acontecimento súbito do assassinato do “súplice” pedinte. É o medo e o tédio da vivência urbana, na acepção de Benjamin, que abre a possibilidade do executivo olhar para o pedinte como alguém “cínico”, “vingativo”, “ameaçador” e “forte”. Neste sentido, enuncia o executivo em certa ocasião em que é abordado subitamente pelo pedinte: “Apressei o passo,..., era como se eu estivesse sendo perseguido por alguém, um sentimento infantil de medo contra o

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qual tentei lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado, dizendo, ‘doutor, doutor’. Sem parar, eu perguntei, ‘agora o quê?’. Mantendo-se ao meu lado, ele disse, ‘doutor, o senhor tem que me ajudar, não tenho ninguém no mundo’. Respondi com toda autoridade que pude colocar na voz, ‘arranje um emprego’. Ele disse, ‘eu não sei fazer nada, o senhor tem de me ajudar’. Corríamos pela rua... ‘Não tenho que ajudá-lo coisa alguma’, respondi. ‘Tem sim, se não o senhor não sabe o que pode acontecer’, e ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico e vingativo. Meu coração batia, de nervoso e de cansaço. ‘É a última vez’, eu disse, parando e dando dinheiro para ele, não sei quanto.”

É atordoado com as súplicas constantes do pedinte, que o executivo reage de maneira abrupta e violenta, tal como o narrador de “O mau vidraceiro” em Baudelaire, que é tomado e afetado “por uma energia que brota do devaneio e do tédio”, bem como por um certo modo de humor; “humor”, afirma Baudelaire, “histérico segundo os médicos, satânico segundo os que pensam um pouco melhor que os médicos”. Neste sentido, o outro que aparece e mostra-se, tanto em “O mau vidraceiro”, como no conto “O outro” de Rubem Fonseca, a saber, o vidraceiro e o pedinte, são alvos de uma ação que está na ordem da violência. Ação violenta esta que irrompe do isolamento tedioso e inquietante do modo de vida urbano, desvinculado de uma tradição e atravessado pela ausência de laços sociais e culturais. Este outro que é tratado de modo violento e letal no conto de Rubem Fonseca, está no lado oposto da perspectiva de Oscar Wilde, a saber, a perspectiva de que “é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar.” Antes mesmo, o pedinte do conto de Fonseca, não encontra a segurança na mendicância da qual fala Wilde. O emblema do “súplice” pedinte, na acepção do executivo, consiste no modo de vida que perdura no espaço urbano às custas da caridade de outrem, encontrando na mendicância, e em certa extensão, na “gratidão pelas

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migalhas que caem da mesa dos ricos 4”, da qual fala Wilde, a abertura da possibilidade de sobrevivência. Neste sentido, o suplicante pedinte do conto de Rubem Fonseca, por extensão, renuncia a perspectiva de Zumbi do Jogo da Bola, que aparece no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, para o qual “É preferível roubar do que pedir esmola”. Este modo de vivência, na acepção de Benjamin, que perdura no espaço urbano em condições contrárias à vida, a saber, o pedinte do conto “O outro”, fecha a possibilidade de correr um risco maior, pois recusa também a perspectiva enunciada por Chico Science, que ao som enérgico de tambores eletrificados e guitarras distorcidas, canta tomado por um certo estado de humor e cólera: “E quem era inocente hoje já virou bandido Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido Banditismo por pura maldade Banditismo por necessidade Banditismo por uma questão de classe!”

Deste modo, ao renunciar correr um risco maior para a permanência e continuidade no espaço urbano brasileiro, o pedinte, subitamente, como que de modo abrupto, é afetado de maneira violenta e letal pela reação do executivo: “Voltei, abri a porta e ele ao me ver disse ‘não faça isso doutor, só tenho o senhor no mundo’. Não acabou de falar, ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro.” É o assassinato do pedinte que opera a distinção entre extremos opostos, e que sobretudo, abre a possibilidade de inversão do olhar acerca do outro, que em vida era tido como “forte”, “ameaçador”, “cínico” e “vingativo”, e que morto aparece agora como “um menino franzino, ...de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder”.

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Oscar Wilde, “Desobediência: A virtude original do homem”, p. 66

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Referências



BENJAMIN, W. Obras escolhidas v. I: Magia e técnica, arte e política.

Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. 

__________ Obras escolhidas v. III: Charles Baudelaire: um lírico no

auge do capitalismo. Trad. José Carlos Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994. 

BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo:

Martin Claret, 2001 

_____________. Pequenos poemas em prosa. Trad. de Aurélio B. de

Holanda. Rio: Nova Fronteira, 1980 

OLIVEIRA, B. “A ótica da rua carioca: lendo Rubem Fonseca através

de Benjamin e Baudelaire.” In Alea: Estudos Neolatinos. Rio de janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2000. 

FONSECA, R. Feliz ano novo. São Paulo: Companhia das Letras,



....................., Contos Reunidos. Organização: Boris Schnaiderman.

1989. São Paulo. Companhia das Letras, 1994. 

BRITO, B. Lógica do Disparate. Vitória: Edufes; CCHN Publicações,

2001.

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