A Morte e o Além no Mundo Semita (Uma Visão de Circulação Ideológica)

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CONCEÇÕES SOBRE A MORTE E SOBRE O ALÉM NO MUNDO SEMITA. (Uma Visão de Circulação Ideológica)

Marco Fortunato Arrifes

INTRODUÇÃO Não obstante a falta de unidade que podemos diagnosticar no pensamento mítico da Antiguidade Oriental1, da sua análise emerge claramente um conjunto de princípios genéticos, que integrados e desenvolvidos de forma sincrética irão desembocar em tradições religiosas posteriores, incluindo o cristianismo. Por aqui se entende que para um entendimento pleno de muitos dos princípios que enformam a cristandade é necessário um estudo atento da sua arqueologia intelectual. Assim, neste artigo, definimos como objetivo a perseguição de alguns exemplos que possam ilustrar essa circulação ideológica. Dos mitos da criação aos modelos de organização familiar e social, dos modos de olhar o corpo e a natureza às conceções de guerra e paz, muitos seriam os domínios passíveis de análise. De todo o modo é inquestionável que a temática da morte é uma das mais profícuas para qualquer tentativa de esboço comparativo, desde logo porque aqui nos situamos num plano ao qual nenhuma civilização humana foi indiferente, e sobre a qual sempre a humanidade refletiu, utilizando os instrumentos próprios dos seus respetivos contextos civilizacionais. Assim, aquilo que aqui nos propomos apresentar é uma abordagem sintética de dois aspetos parcelares das religiões semitas: a paisagem do inframundo e a ideia da ressurreição, na medida em que nos parecem poder servir de bom exemplo para justificar o que supra apelidámos de circulação ideológica.

A “PAISAGEM” DO INFRAMUNDO.

Apesar de não nos surgir como evidente que a morte seja na Mesopotâmia tão central como na mentalidade egípcia, onde sem grande exagero quase se pode afirmar que se vive para 1

A despeito do título do trabalho a nossa atenção irá centrar-se apenas nos Assírios, Babilónicos e Hebreus. Se bem que existam muitos pontos de contacto com os restantes povos semitas, as diferenças são também significativas; mas aqui não temos espaço para sobre elas refletir.

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morrer, o certo é que também nas margens do Tigre e do Eufrates a finitude humana atormenta, questiona e inspira. Antes de mais a morte é uma característica identitária, no sentido em que diferencia o humano do divino, e se só por exceção é possível dela fugir, por regra ela nunca é entendida como o fim, mas apenas como uma outra forma da existência. A morte é o contrário da vida, mas existir é viver e morrer (não apenas no sentido do passamento mas no sentido do “viver” a morte). Deste modo entende-se que a preocupação do Homem mesopotâmico mais do que perceber como e porque se morre é a de entender como se “vive” no além, nessa terra de onde nunca se regressa, o reino de Ereskigal e Nergal. Por aqui se entende também a relevância de entender o espaço, que à falta de reflexão ensaística a poesia nos descreve como sendo o reino dos mortos. Para os mesopotâmios o universo era visto como um globo, formado por dois hemisférios simétricos, o superior onde se encontrava o céu, e o inferior onde se localizava o inferno, local onde habitavam os defuntos2. Dos primeiros mitos acádicos a descreverem esses espaços sinistros, a epopeia de Gilgamesh coloca na boca de Enkidu, amigo dileto do herói, uma narração desse mundo. Regressado da morte, através de um buraco escavado na terra, o espirito de Enkidu narra o que viu nos infernos3 e logo aqui tomamos contacto com uma realidade de tal modo percecionada como terrível que o próprio Gilgamesh afirma ir sentar-se e chorar, para escutar as terríveis notícias do inframundo. Diz Enkidu:

«Aqueles que quiseste, os que eram gratos a teu coração, todos os que acariciaste, estão agora roídos pelos vermes, estão cobertos de pó. Seus espíritos não têm descanso nos infernos.»

Outros textos demonstram que o inferno não é um local muito agradável. É o caso da «Descida de Istar aos Infernos» e a «Visão do Inframundo de um príncipe Assírio».4 No primeiro, Istar, a suméria Inanna, decide visitar os infernos onde reina sua irmã Ereshkigal. Depois de ultrapassar sete portas, e de em cada uma delas se ver despojada de uma peça de 2

BOTTERO, idem, p. 53 Utilizamos aqui o termo inferno por facilidade de expressão. Não nos parece que esse conceito se adeque em pleno a esse “mundo de onde não se regressa” mesopotâmio. 4 Traduções livres a partir dos títulos em Castelhano apresentados por CARAMELO, pp.92 e 96. 3

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roupa ou uma jóia, atinge o seu destino completamente despida. Para muitos este despojamento total pretende simbolizar a nudez das «almas», que surgem transparentes diante dos deuses. Aquilo com se depara é uma terra sem luz, coberta de pó e onde os seus habitantes, vestidos como pássaros, se alimentam de lama. O segundo texto, provavelmente do século VIII a.c., narra a visão do príncipe Kummâ. Num sonho, este príncipe, que segundo Francisco Caramelo talvez seja Assurbanipal5, tem uma visão terrífica do reino de Ereshkigal, um mundo de silêncio onde pululam deuses monstruosos. Alguns destes são metade homens e metade animais como são os casos de Nedu e Mamitu. O primeiro, o guardião, tem cabeça de leão, pés de pássaro e mãos humanas, já o segundo com cabeça de cabra tem mãos e pés humanos. A completa escuridão, o silêncio absoluto, a lama, o pó e os vermes que compõem a paisagem deste inframundo Mesopotâmico, não são assim muito diferentes de outras realidades infernais, que podemos diagnosticar em tradições posteriormente passadas a escrito, como o Sheol dos antigos Hebreus, ou o inferno cristão. Com efeito, em relação ao primeiro exemplo supra referenciado aquilo que os exegetas bíblicos conseguem identificar no Antigo Testamento, é uma visão muito vaga do além como um lugar subterrâneo e escuro, mas também silencioso6 e coberto de pó e lama. Os termos que denotam a estada no Sheol são: «Campo da morte», «Trevas», «profundezas do abismo», «poço», «fosso», «ruína»7. Bom exemplo da filiação com as tradições Mesopotâmicas é também a presença do mar associado ao caos, e que assim nos remete para as narrações sobre Atsu e Tiamat no Enuma Elis, o mito da criação mesopotâmico, o qual por seu turno também contribui para o nosso entendimento da visão do mar como principal adversário de Deus, na criação cristã. É evidente que ao longo do tempo a atitude dos Hebreus perante a morte foi-se alterando, em função da evolução das suas conceções religiosas mas também das mudanças sociais e políticas que se vão verificando. Contudo ao nível de análise em que aqui nos situamos parece não ser muito arriscado afirmar que as mudanças não foram significativas, o Sheol continuará a ser a «terra sem regresso», situada nas entranhas da terra e um mundo de poeira e obscuridade, embora a paisagem possa ser por vezes adornada com pântanos perigosos, rios tormentosos ou abismos engolidores.

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CARAMELO, idem, p.96 PODELLA, 1994, P. 150 7 PODELLA, idem, p. 148. 6

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Quanto ao cristianismo a amplitude temática de análise poderia ser tão vasta, que qualquer tentativa de síntese comparativa que aqui se possa tentar será sempre pobre, muito limitada e sobretudo superficial. De todo o modo parece poder afirmar-se que os Evangelhos se mostram relativamente discretos nesta matéria. O inferno, quase sempre designado como Geena8, (que era um local real no exterior de Jerusalém) é descrito como a terra do fogo que não se apaga 9, as trevas exteriores10, ou como no Apocalipse de S. João, o reino do fogo e do enxofre castigador. Ao invés, as tradições populares e os escritos extra canónicos, apócrifos ou apocalípticos, irão desenvolver bastante as crenças infernais. De tal modo muitas destas se tornarão populares que acabarão mesmo por ser integradas na doutrina oficial. Nestes a influência oriental é evidente e por tal em toda esta literatura continuamos a assistir à localização subterrânea, ao predomínio da escuridão, à emergência do fogo como elemento de punição, mas também a existência dos vermes e répteis, como se verifica no Apocalipse de Pedro, que se bem tenha sido excluído do Cânone, foi muito conhecido nas comunidades cristãs primitivas.

RESSURREIÇÃO? Na perspetiva Mesopotâmica que nos é revelada através dos seus poemas da criação, Enuma elis, e Atra-hasis, o homem, criado para servir os deuses, é radicalmente marcado pela inevitabilidade do seu destino; a morte. Nesses textos verifica-se igualmente, que os processos de criação do homem assentam na ideia de que a matéria-prima primordial é, em parte, de origem divina. No Enuma elis a humanidade é criada a partir do sangue e dos ossos do deus Kingu; no Atrahasis, o sangue e a carne de Wê-ila, juntaram-se ao barro para criar o Homem. Em ambos os casos estamos perante divindades negativas, deuses maléficos que acabaram derrotados, o que se por um lado ajuda a explicar a finitude e menoridade do homem, por outro lado também contribui para o entendimento do facto de o «espetro»11 continuar a existir no «mais além».

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Esta expressão surge por doze vezes no texto bíblico; em Mateus (7 vezes), Marcos (3), Lucas (1) e Tiago (1). 9 Mc. 9,43, Mt. 5,22, Mt. 18,9 10 Mt.8,12 – 22,13 – 25,30. 11 Corresponde de alguma forma à componente espiritual e tem origem na carne do deus derrotado.

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O espetro como tem origem divina continua a existir depois da morte, o que é ao mesmo tempo uma tentativa de resolver o problema da ausência do nada na mentalidade mesopotâmica. Significa isto que o que viajava12 para o inframundo era a componente imaterial, o etemmu(m), pois a componente material, quer dizer a carne e os ossos, permanecia neste mundo. Mas nesse inframundo uma característica se impõe desse logo; a vida ali, não obstante o cenário sinistro supra descrito, mais não é que a continuação da vida terrena. Ou seja não existe qualquer ideia de castigo ou recompensa, e muitas das vezes parece mesmo que se reproduz a estratificação social terrena; o que quer dizer que são sempre os mesmos a sofrer. O sistema é concentracionário, não faltam os guardiões e as portas, às vezes até as muralhas porque deste mundo ninguém pode sair13. Não se abandona o mundo dos mortos, ou seja não há ressurreição, mas isto não significa um castigo, por que neste mundo não há julgamentos. Os castigos são terrenos porque todos aqueles que em vida contrariam as normas morais são imediatamente castigados, em virtude da capacidade que os deuses revelam de intervir no real. As doenças, os acidentes ou a esterilidade por exemplo são entendidas como castigos divinos, pelo que não há necessidade de construir um aparelho ideológico que remeta o castigo ou a recompensa para depois da morte. Dito isto também é verdade que em textos como «A Descida de Istar aos Infernos» e a «Visão do Inframundo de um príncipe Assírio» estas realidades parecem começar a alterar-se. Istar abandona o mundo dos mortos e Kummâ, nos seus sonhos, tem uma visão do que lhe poderá suceder se não tiver uma vida reta. Podemos então aceitar que o primeiro exemplo nos remete para uma aproximação à ideia de ressurreição e o segundo, embora nos situemos em domínios oníricos, parece convocar um primeiro esboço, nestas tradições, de uma ideia de julgamento dos mortos.

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Note-se que a utilização desta expressão não se trata aqui de uma liberdade poética, na medida em que corresponde à visão mesopotâmica da morte como uma viagem. De tal modo assim é que as primeiras oferendas, pão e cerveja, têm como finalidade alimentar o defunto durante essa longa viagem. Posteriormente as oferendas mantêm-se, porque no inframundo não há comida nem bebida e se os mortos não forem alimentados podem regressar para atormentar os vivos. 13

A única e estranha exceção a esta visão generalizada parece ser o Hades Homérico. Com efeito e apesar de Cerbero daí se entra e sai com muita facilidade.

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De todo o modo o regresso de Ishtar não significa necessariamente uma validação moral, a deusa não torna por ser justa mas sim por ser necessária. Estamos longe das promessas de retribuição cristãs. CONCLUSÃO Em jeito de conclusão parece poder afirmar-se que é muito evidente a circulação imagética dos cenários do inframundo. Com efeito o essencial das imagens utilizadas para descrever o mundo dos mortos, utilizadas no mundo semita, farão o seu caminho e podem ser encontradas em outras tradições ideológicas. Os vermes, a escuridão, os monstros, a lama, os pântanos, as profundezas, de uma forma ou outra circulam por várias das religiões da antiguidade. Parece óbvio que a gramática visual encontrada remete não só para aquilo a que Stephen Bertman apelida de pessimismo do Homem mesopotâmio14, mas sobretudo para um negativo do que é entendido como ideal. O que se encontra no inframundo é o que não se quer encontrar no quotidiano, embora a insistência com que a ideia de silêncio nos surge pareça ser um campo interessante para posteriores análises, sobretudo porque noutros textos este é entendido como uma qualidade, e a sua falta muitas vezes utilizada como argumentário crítico, nomeadamente em relação às mulheres. Quanto às ideias de julgamento dos mortos e de ressurreição, aquilo que se pode afirmar, a despeito dos vislumbres identificados nos textos «A Descida de Istar» e «Visão do Inframundo de um príncipe Assírio» é que não são, aqui, ideias significativas. Note-se o que se verifica no Sheol dos antigos Hebreus15; aí a sorte que espera os bons e os maus é a mesma, não há julgamento nem punição ou recompensa. Digamos que o inferno é terreno. Em relação aos Hebreus verifica-se uma mutação interessante a partir do séc. VIII a.c. na medida em que ao contrário dos textos mais remotos, onde se presente uma ideia de castigo coletivo, que se podia expressar na guerra ou nas pestes, agora parece começar a surgir uma perspetiva de castigo individual. Todavia sempre terreno. «Todos saíram do pó e ao pó todos voltam»,16 «Que tu vivas dez anos, cem anos, mil anos, no Sheol não censurarão a tua vida»17. Ou seja é na terra que deus castiga ou recompensa.

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BERTMAN, 2005,p. 281 Salvaguardando, como é óbvio, que a emergência do monoteísmo que se vai impondo, é central para entender todas as evoluções que se vão registando no pensamento hebraico. 16 Eclesiastes (3,20) 17 Eclesiastes (41, 3-4) 15

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Provavelmente não é possível saber quando e onde se começou a verificar uma diferenciação dos infernos, e sobretudo a ligação à ideia da retribuição pós morte, que virá a ser tão central no cristianismo. Todavia não deixa de ser curioso lembrar que essas perspetivas estão bem presentes na Antiguidade Egípcia, onde se acreditava que a imortalidade da alma (o Ka)18, estava dependente da decisão de Osíris no seu celebrado tribunal. Nesse julgamento dos mortos o que está em causa é uma óbvia valoração moral da conduta em vida, e aqueles que perante Osíris não conseguiam provar a positividade da sua vida, acabavam condenados a uma série de terríveis atrocidades que visavam a destruição total do corpo19. A conservação do corpo era fundamental, daí a mumificação, porque a crença na imortalidade assentava na conceção de que o Ka, durante a noite, regressava ao corpo; mas só se ele estivesse devidamente conservado, o que a não verificar-se inviabilizava a vida eterna.

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Se bem que a equivalência entre os dois conceitos, Ka e alma, seja redutora e simplista e a própria noção de Ka não seja consensual. 19 Em rigor é arriscado falar de religião egípcia. No sentido em que são muitas. Mas pelo menos esta tradição expressa no livro dos mortos, e a sua corte de torturas atrozes, deve ter influenciado fortemente o pensamento grego, e por aí o judaico cristão. Essa influência, acreditamos, ter-se-á verificado sobretudo ao nível do imaginário e não tanto dos conceitos essenciais.

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BIBLIOGRAFIA

BERTMAN, Stephen. (2005). Handbook to Life in Ancient Mesopotamia, Oxford University Press. BOTTERO, Jean. (1994), La Mitologia de la Muerte en la Antigua Mesopotamia, in Arqueologia del Infierno, cor. Paolo Xella, Editorial Ausa, Sabadell. CARAMELO, Francisco. (2008), Arqueología de la muerte: el origen de las ideas bíblicas de infierno y de resurrección. In Arqueología, Historia y Biblia De la torre de Bael al templo de Jerusalén, ed. Juan Luis Montero Fenollós, Ferrol: Sociedad de Cultura Valle-Inclán. PODELLA, Thomas, (1994), El Más Allá en Las concepciones Veterotestamentárias: El Sheol, in Arqueologia del Infierno, cor. Paolo Xella, Editorial Ausa, Sabadell.

Marco Fortunato Arrifes Setembroe de 2015

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