A Morte e o Espaço Urbano: Perspectiva da Cemiterada (1836)

July 24, 2017 | Autor: Alexandre Bazilio | Categoria: History, História do Brasil Imperial, Cemitérios
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história e­história

 

ISSN 1807­1783                atualizado em 05 de janeiro de 2015

 

Editorial Expediente De Historiadores

A Morte e o Espaço Urbano: Perspectiva da Cemiterada (1836) por Alexandre de Oliveira Bazilio de Souza

Dos Alunos Arqueologia Perspectivas Professores

Sobre o Autor [1] 1. Introdução

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O presente artigo discorre sobre o tema da ocupação do espaço urbano no que tange à construção de cemitérios para o enterramento dos mortos. No Brasil, essa prática ganhou força somente na segunda metade do Oitocentos, embora houvesse imposição legal nesse sentido em grandes cidades, como Salvador, desde 1835. Desse modo, o objetivo do texto é analisar os fatores que determinaram a mudança dos rituais em torno da morte somente depois da metade de século. Em sentido mais amplo, o artigo discute o papel das políticas públicas nesse processo.

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Como metodologia, utilizou­se a revisão bibliográfica, cujas Destaques

referências encontram­se ao final do texto e nas notas de rodapé. Além desta

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introdução, o trabalho inclui três partes: uma primeira seção reservada à

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conceituação de espaço urbano, uma segunda com a descrição da Cemiterada e

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uma terceira com a análise das informações apresentadas. 2. O espaço urbano e sua ocupação A definição de espaço urbano não é de modo algum simples, porquanto tal conceito é atravessado por prismas sociais e culturais.[2] Segundo Roberto Lobato Corrêa, O espaço urbano capitalista – Fragmentado, articulado, reflexo, condicionante social, cheio de símbolos e campo de lutas – é um produto social, resultado de ações acumuladas através do tempo, e engendradas por agentes que produzem e consomem espaço. São agentes sociais concretos, e não um mercado invisível ou processos aleatórios atuando sobre um espaço abstrato. A ação destes agentes é complexa, derivando da dinâmica de acumulação de capital, das necessidades mutáveis de reprodução das

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relações de produção, e dos conflitos de classe que dela emergem. A complexidade da ação dos agentes sociais inclui práticas que levam a um constante processo de reorganização espacial que se faz via incorporação de novas áreas ao espaço urbano, densificação do uso do solo, deterioração de certas áreas, renovação urbana, relocação diferenciada da infraestrutura e mudança, coercitiva ou não, do conteúdo social e econômico de determinadas áreas da cidade.[3] Atualmente, as cidades brasileiras adotam o chamado Plano de Desenvolvimento Urbano para ordenar o seu crescimento, de acordo com a Lei 10.275/01. No período imperial, entretanto, essa previsão encontrava­se principalmente nos códigos de posturas. É verdade que esses ainda hoje são utilizados, mas não de modo assaz intenso como o era no Oitocentos. Embora muito se creia que o Estado seja o coordenador mais indicado para o processo de urbanização – porquanto representa o interesse do conjunto dos sujeitos –, a construção do espaço urbano pode se dar de diversas maneiras. Uma vez que o Estado nem sempre é o agente com maior poder e alcance para direcionar a ocupação do solo, outros atores podem fazê­lo. Isso é patente mesmo no Brasil contemporâneo, onde a posse desordenada é uma constante em praticamente todas as cidades do país. 3. A Cemiterada (1836) No Brasil, o sepultamento dos mortos nem sempre teve, como lugar preponderante, os cemitérios. Até a segunda metade do Dezenove, as tradições fúnebres no país variavam imensamente, influenciadas pelas matrizes culturais de índios, negros e europeus. Dessa última, herdou­se, por conta de religiões protestantes, o hábito de enterro em cemitérios; sem embargo, a prática mais comum, diante da hegemonia católica, era o enterramento em igrejas: ritual que cumpria importantes funções simbólicas, já que se acreditava que o lócus de jazida do corpo influenciava diretamente no destino da alma. A partir da Independência, começavam a chegar da Europa também as ideias higienistas, logo difundidas por todo país. Seus discursos abrangiam inúmeros aspectos da medicina, que agora ganhava caráter social. Sobre os rituais fúnebres, dissertava­se sobre os riscos do enterro dos mortos dentro do perímetro urbano, principalmente por conta da emissão de gases venenosos. Desse modo, intelectuais da área médica, aristocratas e membros da alta hierarquia da Igreja passaram a propor a construção de cemitérios afastados das cidades. Suas motivações, todavia, nem sempre eram apenas de ordem http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=562

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sanitária: envolviam, comumente, o desejo de diminuição do poder das irmandades. Em grandes cidades, a campanha higienista adentrou os parlamentos. Em 1828, a Lei que reestruturava as municipalidades impôs a construção de cemitérios fora do perímetro urbano. Em 1834, com a reforma descentralizadora promovida pelo Ato Adicional, as assembléias provinciais começaram a produzir leis no mesmo sentido. A imposição legal não seria recebida sem fortes protestos. Mesmo antes da promulgação dos novos regramentos, já se configuravam barreiras aos novos interditos, arquitetadas principalmente por comunidades eclesiásticas. O maior entre esses movimentos deu­se em 1836, com o levante popular em Salvador denominado Cemiterada. Em 1835, a Assembleia Provincial da Bahia promulgou Lei concedendo monopólio dos enterros em Salvador a empresa privada. Embora o arcebispo fosse o presidente da Assembleia, muitos cardiais opuseram­se à medida, reclamando seus direitos constitucionais. A reação não foi à toa, uma vez que os custos desses funerais eram bastante altos e, por vezes, representavam a principal fonte de renda de algumas paróquias. O movimento foi relevante para a realidade religiosa do Brasil Império na medida em que mostrou a oposição entre os interesses das irmandades e das mais altas hierarquias eclesiásticas. O Brasil vivia então contexto de declínio da hegemonia católica; as irmandades assumiram a frente dessa revolta, porquanto funcionavam como o principal propulsor das tradições católicas na luta por sua manutenção. Outro fator importante no episódio é a concretização dos anseios de seus participantes. O contrato foi cancelado, não houve presos, os líderes não foram identificados e, principalmente, os enterros em igrejas continuaram a ter lugar em Salvador pelos seguintes vinte anos. O movimento contou com o apoio de tradicionais famílias, que assinaram petições, além de comerciantes, funcionários públicos, escravos e mulheres. Podemos destacar também que a Cemiterada foi importante marco para estabelecer a posição do Estado em relação à política de construção de cemitérios também nas demais províncias. Embora outras partes do Império não tenham testemunhado movimentos tão violentos, o enterramento em igrejas, de modo geral, permaneceu predominante até a segunda metade do século. Foi somente em 1855 que os cemitérios começaram a aparecer novamente. E isso só ocorreu por conta da devastadora epidemia de cólera que alcançou grande parte do Brasil. O número de mortos foi tão elevado que não era mais possível realizar enterros somente, ou principalmente, em templos. O discurso higienista alcançaria http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=562

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finalmente seu objetivo: os mortos passariam ao confinamento fora da cidade.[4] 4. O espaço urbano e as políticas públicas Ao se observar o episódio descrito, pode­se chegar a diferentes interpretações. Em primeiro lugar, a decretação de leis visando à criação de cemitérios pode ser vista como uma política pública de ocupação do espaço urbano de cunho sanitarista, com o objetivo de diminuir os efeitos danosos do enterramento de mortos dentro do perímetro urbano. Em segundo lugar, a revolta da Cemiterada pode ser considerada movimento que, embora defendesse os interesses de muitos membros da população, ia de encontro a um projeto definido por seus representantes. Em terceiro lugar, a falta de repressão ao movimento por parte das autoridades constituídas pode ser interpretada como falta de interesse ou força do Estado de impor a ordem. Em quarto lugar, a epidemia de cólera pode ser enxergada como uma falha ou até mesmo ausência de políticas de saúde pública. Nesse contexto, a ocupação do espaço urbano no que tange ao local para sepultamentos teria sido definida não por conta de uma política de saúde pública, mas por ausência desta. Essa seria, contudo, uma interpretação superficial dos acontecimentos relatados. Em relação às leis para criação de cemitérios, enxergá­ las como políticas públicas, em sentido estrito (ou seja, como uma medida que visa ao bem comum sem interesses particulares), significa descontextualizá­las. No caso da Cemiterada, eram os interesses de empresa particular e da Igreja que corriam riscos, uma vez que os enterramentos geravam altos lucros. Ademais, não podemos falar em representatividade efetiva em um país com apenas 10% de votantes. Em outras palavras, os interesses privados fizeram parte da opção pela lei, possivelmente muito mais do que seus objetivos sanitaristas. Em relação à segunda afirmação, é relevante retomar a questão do voto. Embora o censo da época pudesse ser considerado baixo, havia restrições de outras ordens para ser votante, como sexo, idade e mesmo acesso às urnas. Além disso, o sufrágio até 1881 era indireto, ou seja, votava­se em um corpo eleitoral.[5] Nesse contexto, seria anacrônico tentar associar políticas públicas e representatividade. As esferas do público e do privado, então entrelaçadas, não faziam sentido com a concepção de Estado como uma república democrática, expressão essa que também merece melhor explicação. Aqui, república não se encontra na acepção de forma de governo, mas de sua etimologia: a coisa pública, o bem comum. O adjetivo democrático, por sua vez, não se refere a uma forma de escolha governamental, mas como efetiva expressão da vontade de todos, segundo definição de Rousseau. Outra questão a ser levantada é o interesse dos participantes do http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=562

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movimento. O que se observa é certa fragmentação de acordo com o grupo: escravos, clérigos, senhores de escravos. Embora à primeira vista essa variedade pareça evidente, é certo que os desejos de cada indivíduo poderiam estar sobrepostos, ou mesmo usados para legitimar o movimento e camuflar suas intenções. Em particular, a defesa da crença popular de enterramento nas igrejas pode ter sido usada para justificar a manutenção do poder do clérigo e aristocracias locais. Nesse sentido, interesses religiosos esconderiam aqueles econômicos e políticos. Em relação à falta de repressão ao movimento, é preciso destacar que ela não foi de fato absoluta. Isso porque o governo imperial exerceu pressão e realizou uma devassa[6]. Contudo, essa foi irrisória. Com efeito, o evento mostra a preponderância das forças locais sobre as forças do governo central. Uma vez que a esfera pública, representada pelo Estado, estava em processo de delineamento, as forças da esfera privada e dos interesses locais prevaleceram.[7] Por fim, importante abordar a epidemia de cólera de 1855­6. Com grandes proporções, diferentes classes foram atingidas de norte a sul do país, embora negros e mulatos tenham sido os que mais sofreram. A falta de conhecimento sobre a doença levou a população a associar os acontecimentos a uma fúria divina, o que resultou também na demora das autoridades públicas em reconhecer o problema. As medidas tomadas, como a quarentena em navios, foram ineficazes.[8] Nesse cenário, a busca por alternativas de tratamento foi intensa, ainda que em vão. Como resultado, prosperou a descrença da população, gerando até receio aos cuidados médicos. Assim, a epidemia trouxe a morte pela doença e a insatisfação pela assistência prestada: a medicina revelava seu caráter conflituoso. [9] Por outro lado, a ineficiência no combate à epidemia não pode ser resumida a

uma simples ausência de políticas públicas, uma vez que medidas ineficazes não é a mesma coisa que medidas inexistentes. Ou seja, houve alguma ação por parte do Estado, dentro de certos limites, para contenção da epidemia. Como conclusão, podemos afirmar que o espaço urbano pode ser construído por políticas públicas, ou mesmo delineado por sua ausência. O episódio da Cemiterada fornece evidência de que essas são, acima de tudo, reflexos e não imposições sociais. Definir políticas públicas para a construção de um espaço urbano que atenda às necessidades da população que ali habita envolve chamar sua atenção para participar do processo. Finalmente, a análise da Cemiterada pôde demonstrar como os sentimentos dos jurisdicionados devem ser considerados na construção dos regramentos coletivos. 5. Bibliografia

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ARIÈS, P. e CHARTIER, R. História da vida privada 3. São Paulo: Companhia das Letras, s/d. CORREA, R. L. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 2000. FARIAS, R. G e Miranda, C. A. C. Cólera e Homeopatia no Recife Imperial. I Colóquio de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Disponível: http://www.pgh.ufrpe.br/brasilportugal/anais/12i/Rosilene%20Gomes%20Farias.pdf (acesso em 04/09). FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004 MENDES, E. F. Impressões da Epidemia. I Colóquio de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. URL: http://www.pgh.ufrpe.br/brasilportugal/anais/12i/Ediana%20Ferreira%20Mendes.pdf (acesso em 04/09). REIS, J. J. O cotidiano da morte no brasil oitocentista. In: NOVAIS, F. A. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. v. 2. SANTOS, C. D. dos. A formação e produção do espaço urbano: discussões preliminares acerca da importância das cidades médias para o crescimento da rede urbana brasileira. G&DR, Taubaté, v. 5, p. 177­190, 2009.

[1] Alexandre de Oliveira Bazilio de Souza, Doutorando em História pela

Universidade Federal do Espírito Santo. [2] SANTOS, 2009. [3] CORREA, 2000, p.11. [4] Os dados desta seção foram consultados em REIS, 1997. [5] FAUSTO, 2004. [6] Espécie de processo ou rito judicial nas Ordenações do Reino, com

características inquisitoriais; foi utilizada, por exemplo, quando da Inconfidência Mineira. [7] ARIÈS e CHARTIER, s/d. [8] MENDES, 2007. [9] FARIAS, 2007.

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