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A morte na ciê ncia
A SBHC REVISTA
ethos científico nos obituários da revista A Illustração
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Marcelo Fetz* –
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“A morte é um problema dos vivos” afirma o sociólogo Norbert Elias[i]. A maneira pela qual as sociedades lidam socialmente com a morte muda conforme o contexto histórico; a morte, assim sendo, tem sentido e significado determinados socialmente. Ela ainda indica a existência de formas particulares de coesão social entre os grupos de uma determinada sociedade. “Os mortos não têm problemas”, destaca Elias[ii]. Tudo aquilo que envolve a morte – os seus rituais, as formas de tratamento, de representação, de luto, de rotina, de quebra de rotina, etc. – diz respeito ao modo pelo o qual aqueles que permanecem vivos decidiram lidar com aqueles que se foram. De acordo com Mary Douglas, não há morte sem ritos de morte: “os ritos são a forma indispensável para exprimir e solidificar os vínculos, suscitar a partilha de emoções, valorizar certas situações, assegurar e reforçar a coesão social”[iii].
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Introdução
A morte é tema recorrente nas ciências sociais e na história. Na antropologia, ela tem sido explorada com certa centralidade exatamente por surgir como sendo uma porta de entrada para a compreensão das formas de reprodução da vida social, a exemplo das pesquisas de Marcel Mauss[iv] e de EvansPritchard[v]. Para Laqueur[vi], todas as sociedades, independentemente de sua condição histórica, dedicam partes significativas de seu tempo ao tratamento daqueles que morreram. Isso nos fornece uma pista da importância conferida por Mauss[vii] àquilo que denominou por “morte sugerida pela coletividade”. Strathern, por sua vez, analisou o fenômeno da morte e sua relevância para o entendimento do conceito de pessoa. De acordo com a antropóloga britânica, “quando a vida cessa – quando a pessoa não é mais ativa em suas relações com os outros –, os que se relacionaram com o falecido devem alterar seu vínculo”[viii]. Esta alteração, no entanto, não faz com que a existência social do morto seja finalizada; ao contrário, faz com que o grupo vivo reaprenda a conviver com os que foram ainda que estes não mais estejam presentes fisicamente na vida cotidiana das pessoas. Poucos, porém, foram os estudos que se dedicaram à análise da função e do papel social da dinâmica da morte no campo científico. Ainda que inúmeros estudos tenham sido elaborados nas últimas décadas com o objetivo de compreender a relevância do ambiente social exterior à ciência para a construção e legitimação social de determinadas teorias/práticas científicas, nenhum deles tratou da morte. Os estudos de Robert K. Merton[ix], por exemplo, exploraram de modo frutífero as formas pelas quais o ethos científico é alimentado e movido pelo prestígio social coletivamente criado e mantido pela comunidade científica. David Bloor[x] e Barry Barnes[xi] radicalizaram os preceitos da sociologia do conhecimento no instante em que propuseram uma abordagem microssociológica dedicada exclusivamente ao entendimento do condicionamento social do conhecimento científico. No campo da história das ciências, Thomas S. Khun[xii], Steven Shapin e Simon Schaffer[xiii] introduziram modificações conceituais que causaram uma verdadeira revolução copernicana nas formas de entendimento das relações entre ciência e sociedade na história moderna. Ainda assim, a dúvida com relação a importância social da morte de cientistas para a ciência permanece viva: de que forma a morte é representada pela comunidade científica e qual a sua função social? Este pequeno artigo pretende contribuir com este debate mórbido, mas profundamente interessante e importante para a construção social da ciência – especialmente no que se refere à mineralização social do prestígio acadêmico de determinados cientistas para os quais a morte, ao invés de indicar o final de uma trajetória científica, implica em seu coroamento e, de certa forma, na eternização da presença de certos estilos de pensamento dentro da comunidade científica dos vivos. Se, conforme notou Khun[xiv], os paradigmas científicos tendem a um processo de crise com a substituição das gerações de cientistas, podese sugerir a hipótese de que é exatamente no processo de substituição de gerações que reside a crença social na ciência. Para que isso possa se efetivar no seio da sociedade mais ampla, os vínculos de convívio com os mortos devem ser alterados por aqueles que permanecem vivos no momento da morte de protagonistas chave da ciência. Na ciência, portanto, os ritos de morte teriam um papel central na reafirmação da coesão social da comunidade científica ao conferir aos mortos uma posição de prestígio tão forte que seja capaz de mobilizar as ações dos vivos. Para elaborar a ideia, analisaremos dois obituários publicadas em A Illustração, periódico quinzenal sobre artes e ciências que circulou no Brasil no século XIX. Estas notas de morte foram dedicadas a dois cientistas naturais: Jean Baptiste Dumas e CharlesAdolphe Wurtz.
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A morte científica: duas notas da Revista Illustação (1884)
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A revista A Illustração, quinzenário lusobrasileiro editado em Paris, somou 184 números entre maio de 1884, data do seu lançamento, e fevereiro de 1892, último exemplar editado. A Illustração integra um conjunto mais amplo de revistas que foram publicadas no decorrer da segunda metade do século XIX no Brasil. Conceitualmente denominadas por “revistas ilustradas”, estes periódicos são caracterizados pela diversidade de temas – ciência, literatura, arte, poesia, política – e por abrigar em suas páginas um estilo de pensamento crítico que se opunha, em grande medida, ao Segundo Reinado, no que parece ser uma tentativa de promover as “luzes” e o florescimento de uma “sociedade ilustrada” nos trópicos[xv]. Dito com outros termos, eram periódicos relativamente curtos – aproximadamente 15 páginas – que apresentavam uma ampla variedade de assuntos. A ciência, os cientistas e as principais descobertas da época eram tópicos constantemente retratados pelos editores. No caso da A Illustração, a ciência francesa obteve grande destaque em suas páginas. O primeiro número da publicação apresenta a nota de morte de JeanBaptiste Dumas (1800 1884)[xvi]. Químico francês, Dumas foi membro da Académie des Sciences e reconhecido por suas pesquisas sobre a determinação do Nitrogênio em compostos orgânicos, a densidade do vapor e os pesos atômicos das moléculas de carbono e oxigênio.[xvii] O obituário publicado por A Illustração afirma, assim, que não apenas a França havia perdido um filho notável, mas que toda a ciência chorava pelo falecimento de um de “seus apóstolos mais ativos e célebres”[xviii]. A nota obituária diz que o ilustre cientista “passou toda a sua vida entre as quatro paredes do seu laboratório, para gloria do Seu paiz e bem da humanidade”[xix]. A nota continua por meio de um breve percurso acerca da vida intelectual de Dumas, destacando a rapidez com a qual o químico francês conquistou posição de destaque na academia em decorrência da apresentação de novas teorias científicas: “professor erudito, escriptor elegante, publicou entre outras obras: um Tratado de chimica applicada às artes, Lições sobre a philosophia chimica, Estudo.sobre a estatística chimica dos seres orgânicos”[xx]. O artigo ainda lembra o reconhecimento obtido por Dumas: membro da academia de ciências de Paris desde 1832, e transformado em secretário perpétuo desta mesma associação em 1868, o químico ainda substituiria o político François Guizot (1787 1874), no ano de 1875, na Academia Francesa. A Illustração ainda disserta sobre a vida política de Dumas, ao relembrar que em 14 de agosto de 1863 ele fora laureado com a Grã Cruz da Legião d'Honra por suas atividades públicas. Citando um jornalista de época, o obituário reconhece que “todo o bom cidadão de França, lamentará hoje a sua morte... e há de ficar como um dos trez homens que representam com mais gloria a sciencia no estrangeiro. É uma das trez cores da grande bandeira pacifica: Dumas – Lesseps – Pasteur”[xxi]. A nota se encerra afirmando que o funeral de Dumas foi verdadeiramente principesco e realizado em Paris. O terceiro número de A Illustração traz a público nova nota obituária, novamente de um cientista francês[xxii]. CharlesAdolphe Wurtz (18171884) foi um químico discípulo de Dumas que também atuou e foi reconhecido pela comunidade científica pelos seus trabalhos na área da “nova química”[xxiii]. No decorrer de sua carreira, Wurtz sintetizou inúmeras substâncias no campo da química orgânica. Em 1855 publica trabalho sobre reação de acoplamento entre dois haletos de alquila que, ao reagirem com sódio, produzem um alcano. A reação descrita na publicação levaria o nome de “Reação Wurtz”, uma homenagem ao cientista que a descreveu pela primeira vez. A nota obituária destaca as atividades científicas que Wurtz desenvolveu junto à Dumas, em uma estratégia de escrita direcionada para a potencialização da noção de perda presente na morte destes dois personagens “excepcionais” da ciência francesa e mundial. Conforme afirma o obituário: “hoje um novo enterro passa na nossa frente, e na noite d'uma cova a sociedade vê desaparecer um outro chimico celebre, companheiro de Dumas”[xxiv]. O obituário segue com uma descrição substanciada da trajetória acadêmica de Wurtz: estudante de medicina, recebendo o título de doutorado no ano de 1843, Wurtz atuou na escola de medicina de Paris e no Instituto Agronômico de Versailles. Eleito em 1856 para a Academia de Medicina, Wurtz ainda se engajaria no comitê de higiene, na Sociedade Química, na Sociedade Philomatica, entre outras. Em 1865 é indicado para a Academia de Ciências, sendo posteriormente condecorado com a medalha Faraday no ano de 1878. É eleito para a Academia de Ciências no ano de 1867 e atuaria como chefe da delegação francesa durante a realização da Exposição Universal em Londres, no ano de 1869. A nota diz: “nos progressos da chimica as glorias da França eram: Dumas, Wurtz e Pasteur. Hoje só lhe resta Pasteur”[xxv]. A nota segue com um breve apontamento acerca do pensamento científico de Wurtz, com especial destaque para a defesa por ele feita da teoria atômica no campo da química. Por fim, o obituário se encerra com trecho que trata das glórias acadêmicas de Wurtz que foram reconhecidas e laureadas por seus pares científicos durante a sua vida e obra: “deixa um grande número de obras d'um imenso valor que contribuíram, juntamente com os trabalhos de J.B. Dumas, para os grandes progressos da chimica, obtendo muitas e as mais elevadas recompensas nacionais”[xxvi]. Breve análise Os obituários de A Illustração sinalizam um movimento de ressignificação dos laços entre os vivos e os mortos no campo científico. É, portanto, um fenômeno muito semelhante àquele observado por Strathern[xxvii]. Do ponto de vista do conteúdo das notas obituárias, chama nos especial atenção que, nos dois casos, as narrativas enfatizaram os ritos científicos responsáveis por conferir prestígio acadêmico aos cientistas, a exemplo das premiações e da participação engajada nas academias científicas da época. O resumo da vida da pessoa cientista, de acordo com os dois obituários, é, portanto, moldado de acordo com os ritos de
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SBHC Sociedade Brasileira de História da Ciência Boletim Boletim 10 A morte na ciência passagem pelos quais as obras acadêmicas foram julgadas. A economia simbólica do campo e seus esquemas de acúmulo de capital simbólico, hierarquização e diferenciação, que são tomados como fundamentos para a avaliação da vida científica[xxviii], parecem ditar a regra da compreensão da morte em face da vida. Nesse sentido, a vida é obra e a obra é morte; conforme observado por C. W. Mills[xxix], a personalidade de um cientista é sempre julgada em função da competência social de sua obra, ou seja, a morte é oportunidade de refazer os laços sociais entre os vivos. Nesse sentido, as notas obituárias reforçam o ethos social da comunidade científica: elas servem tanto para preservar quanto para reforçar a lógica interna de funcionamento do campo acadêmico[xxx]. A morte é cientificamente aproveitada como mecanismo de consolidação do prestígio social atribuído a determinados agentes sociais, os quais demostraram aptidão por sobreviver sob a égide das regras, normas e padrões de conduta ditados pela comunidade científica. A experiência de morte parece gerar uma expectativa entre os vivos de que a obra será eternizada por meio do prestígio conquistado durante a vida. Esta alteração de vínculo, que é processada durante o momento de ruptura, é de fundamental importância para a compreensão da sobrevivência ou superação de determinadas teorias científicas, podendo ser um caminho metodológico para o diálogo com as teses de Thomas Kuhn. Os obituários reforçam ainda o mito da excepcionalidade acadêmica, destacando os feitos de uma atividade profissional, a ciência, como se fossem produtos de uma vocação divina. No contexto brasileiro de época, a construção de uma imagem heroica da ciência e do cientista gênio contribuiu para a sua difusão social da ciência no Brasil, fortalecendo a legitimidade social do pensamento científico. * Doutor em Sociologia pela UNICAMP (2013), Pós Doutor em Sociologia pela UNICAMP (2013 e 2015) e Pós Doutor em Estudos Sociais da Ciência pela Universidade de Edimburgo (2014). Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
[i] ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2001. p. 10. [ii] ELIAS, 2001, op. cit., p. 10. [iii] DOUGLAS, Mary. De Ia souillure. Paris: Maspero, 1971. p. 12. [iv] MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. [v] EVANSPRITCHARD, Edward E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. [vi] LAQUEUR, Thomas. “Spaces of the dead”. Ideas from the National Humanities Center, vol. 8 (2), 2001. [vii] MAUSS, 2003, op. cit. [viii] STRATHERN, Marylin. After nature: english kinship in the late twentieth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 64. [ix] MERTON, Robert K. Science, technology and society in seventeenth century England. New York: Howard Fertig, 1970. [x] BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery. London: Routledge, 1991. [xi] BARRY, Barnes. Scientific knowledge and sociological theory. London: Routledge, 1974. [xii] KHUN, Thomas S. The structure of scientific revolutions. Chicago London: Univ. of Chicago press, 1966. [xiii] SHAPIN, Steven; SCHAFFER, Simon. Leviathan and the Air Pump: Hobbes, Boyle, and the Experimental Life. New jersey: Princeton University Press, 1985. [xiv] KUHN, 1966, op. cit. [xv] KNAUSS, Paulo; MALTA, Marize. Revistas ilustradas: modos de ler e ver no Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Mauad, 2011. [xvi] A ILLUSTRAÇÃO. Revista quinzenal para Portugal e Brasil. 1o Ano, Vol. 1 No. 1. Paris, 5 de maio de 1884. [xvii] ROYAL SOCIETY (GB). Proceedings of the Royal society of London, 18001939. London: Harrison and Sons, 1884. [xviii] A ILLUSTRAÇÃO, 5 de maio de 1884, op. cit., p. 6. [xix] A ILLUSTRAÇÃO, 5 de maio de 1884, op. cit., p. 6. [xx] A ILLUSTRAÇÃO, 5 de maio de 1884, op. cit., p. 6. [xxi] A ILLUSTRAÇÃO, 5 de maio de 1884, op. cit., p. 6. [xxii] A ILLUSTRAÇÃO. Revista quinzenal para Portugal e Brasil. 1o Ano, Vol. 1 No. 3. Paris, 5 de junho de 1884. [xxiii] ROCKE, Alan J. Nationalizing Science: Adolphe Wurtz and the Battle for French Chemistry. Cambridge: Massachusetts and London: MIT Press, 2001. [xxiv] A ILLUSTRAÇÃO, 5 de junho de 1884, op. cit., p. 38.
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SBHC Sociedade Brasileira de História da Ciência Boletim Boletim 10 A morte na ciência [xxv] A ILLUSTRAÇÃO, 5 de junho de 1884, op. cit., p. 38. [xxvi] A ILLUSTRAÇÃO, 5 de junho de 1884, op. cit., p. 38. [xxvii] STRATHERN, 1992, op. cit. [xxviii] BOURDIEU, Pierre. Science de la science et reflexivite: cours du College de France, 20002001. Paris: Raisons d'agir, 2001. [xxix] MILLS, C. Wright. The sociological imagination. New York, NY: Grove, 1961. [xxx] MERTON, Robert K. Social theory and social structure. New York, NY: Free Press, 1968.
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