A morte pela pena do tabelião: testamentos e doações no Porto medieval

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A morte pela pena do tabelião: testamentos e doações no Porto medieval 1. A Morte A morte é a “mais inelutável realidade que todos os homens têm de defrontar”1. Na Idade Média, o homem concebia a sua vida como um presente divino, e a morte apresentava-se como o início de uma nova etapa que o levaria ao encontro com Deus e à vida eterna. A vontade individual de assegurar o futuro da alma conduziu a que o registo escrito fosse escolhido preferencialmente, em detrimento do contrato oral, pelo carácter de perenidade de que se revestia, constituindo uma garantia de preservação eterna das formas de intercessão presentes nos testamentos e doações que chegaram até aos nossos dias2. É aqui que entra a figura do tabelião como autor de documento de prova: a capacidade de doar aos actos firme valor probatório faz com que o seu próprio testemunho confira uma certeza de confiabilidade extraordinária ao acto. A nossa análise insere-se numa investigação em desenvolvimento que aborda o notariado público da cidade do Porto, em Portugal, durante o período compreendido entre 1242 e 1495. A cronologia adoptada coincide com a primeira referência sobre um tabelião público portuense (1242) e o final do reinado do último monarca do século XV, D. João II (1481-95). A investigação tem dois vectores essenciais: os “Homens” e os “Documentos”. Esta perspectiva comporta naturalmente a História das Mentalidades, já que o homem é um ser complexo, e a ciência da História tem como objectivo conhecer e explicar o seu tempo3 que não se esgota com o estudo da organização social, da economia, da política, das instituições e da religião. De que tem medo o homem medieval? O que o aflige? Certamente, como qualquer ser humano, por vezes tomaria consciência de como a vida pode ser breve e frágil, e a morte inevitável a todos. Desta maneira, é assaz importante para caracterização da mentalidade, detectar e definir as influências que propagam o medo e constituem causa de perturbação: a ameaça da fome, a má produção agrícola, desastres naturais, elevados impostos sobre o povo, guerras e epidemias… Tudo

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MATTOSO, José – “O culto dos mortos na Península Ibérica (séculos VII a XI)” in Lusitania Sacra, 2ª série (4) 1992. p.13 2 VILAR, Hermínia e SILVA, Maria João – Morrer e testar na Idade Média: Alguns aspectos da testamentária dos séculos XIV e XV. Lusitânia Sacra, 2ª Série, 4 (1992). p.40 3

Vd. BLOCH, Marc – Introdução à História. Lisboa: Europa-América, 1997. p.89.

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contribui para a instalação do medo como um traço psicológico colectivo4. De facto, na sociedade medieval, a presença da morte é absorvente, tanto na realidade como no imaginário5. Numa análise diplomatista e tipológica, aferiremos a documentação produzida pelos tabeliães públicos, e neste caso em concreto, daremos maior relevância às disposições de últimas vontades, entre os quais contamos com testamentos e doações mortis causa. É sobre estes últimos que nos iremos centrar, atendendo à sua importância como fontes históricas de primeira qualidade por quantos se dedicam a estudos de história económica e social, privilegiando particularmente os cultores da história das mentalidades, com uma forte incidência no âmbito devocional, de certas estratégias de poder e de posição do homem face aos problemas do além-morte6. Na Idade Média, a importância destes dois tipos de documento é redobrada: com efeito, é particularmente difícil encontrar testemunhos que nos aproximem um pouco mais do indivíduo, das suas relações de parentesco ou de serviço, do enquadramento material e espiritual do seu quotidiano, ou seja, da sua vida mais íntima. A magnificência desta documentação, não reside somente no seu conteúdo, mas também na sua raridade, principalmente para cronologias mais recuadas. Nestas circunstâncias o estatuto social do testador também é um factor relevante, sendo sobretudo conhecidos diplomas relativos às personalidades régias, eclesiásticas e membros da nobreza7. No entanto, o nosso acervo documental permite-nos vislumbrar o “homem comum” medieval, entre cidadãos, mercadores, almocreves, cutileiros, marinheiros, cavaleiros e escudeiros, assim como de mulheres. Servimo-nos maioritariamente de fontes primárias: os fundos Livros dos Originais, Censual do Cabido da Sé do Porto, Mosteiro de São Domingos e de São Francisco, depositados no Arquivo Distrital do Porto; o fundo de João Martins Ferreira no Arquivo Histórico Municipal da mesma cidade, e diversos fundos arquivísticos das instituições monásticas diocesanas, reunidos, sobretudo, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. O tema da morte tem na corrente da nouvelle histoire um lugar de elevada importância, e é tratado sistematicamente pela historiografia a partir do primeiro quartel do século XX, suscitando interesse de forma progressiva por autores de diversas áreas, desde a antropologia à sociologia,                                                                                                                           4

Vd. DELEMEAU, Jean – La Peur en Occident (XIV-XVIII siècles): Une cité assiégée. Paris: Fayard.1978pp.31-75. 5 Vd. LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicholas – Uma história do Corpo na Idade Média. Lisboa: Teorema, 2005.p.109. 6 Vd. MARQUES, José – O Testamento de D. Lourenço Vicente e as suas capelas na Sé de Braga e na Lourinhã. In Homenagem à Arquidiocese Primaz nos 900 anos da dedicação da catedral, Braga, 1990 p.185. 7 Vd. PIZARRO, José Augusto Sottomayor – Pela morte se conhece um pouco da vida: a propósito do testamento de D. Chamôa Gomes de Tougues fundadora do Mosteiro de Santa Clara de Entre-os-Rios. Carlos Alberto Ferreira de Almeida: in memoriam, vol. II, pag. 219-234

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desde o último quartel da mesma centúria. Está em linha com a evolução que conduziu os investigadores interessados essencialmente sobre as atitudes diante da vida, das estruturas da família, e da morte. Philippe Ariès foi um dos que mais contribuiu para a temática em questão ao reconstruir sucessivas formas e expressões do sentimento acerca da morte individual, deixando várias sugestões metodológicas para as gerações futuras8. A historiografia medieval portuguesa da segunda metade do século XX mostrou-se receptiva à história das mentalidades e não ficou à margem dos estudos sobre o tema da morte: Oliveira Marques foi o primeiro a incidir na investigação sobre este assunto9, mas foi nas últimas duas décadas do século passado que surgiram mais e diversas abordagens, nomeadamente sobre pestilências10, sepulcros11, pobreza12 e a vivência da morte na Plena13 e Baixa14 Idade Média. Destacamos especialmente a publicação de um conjunto de artigos apresentados como resultado do projecto de investigação “Ritos e imaginário da morte em Portugal – Idade Média”, na última década do século passado15. A temática dos testamentos também foi alvo de diversos estudos, sendo a conezia bracarense a mais privilegiada16, seguindo-se a de Coimbra17, e também Viseu e Lamego18, com alguns estudos                                                                                                                           8

ARIÈS, Philippe – L’homme devant la Mort.  Paris: Éditions du Seuil, 1977.  ISBN 2-02-004731-4 MARQUES, A.H. de Oliveira – A Sociedade Medieval portuguesa: aspectos de vida quotidiana. 3ª ed . Lisboa: Sá da Costa, 1974. 10 ROQUE, Mário Costa – As pestes medievais europeias e o “regimento proveytoso contra a pestenença”. Lisboa, Valentim Fernandes [1495-96] Paria, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. 11 BARROCA, Mário Jorge - Necrópoles e sepulturas medievais de Entre-Douro-e-Minho (séculos V a XV). Trabalho apresentado no âmbito das Provas Públicas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1987, 12 TAVARES, Maria José – Pobreza e Morte em Portugal na Idade Média. Lisboa: Ed. Presença, 1989. 13 BEIRANTE, Maria Ângela – Para a história da morte em Portugal sec XII a XIV. (Separata de Estudos de História de Portugal: homenagem de A.H. de Oliveira Marques, vol 1) Lisboa, 1982. 14 VILAR, Hermínia – A vivência da morte no Portugal medieval. A Estremadura portuguesa (1330-1500). Rendondo: Patrimónia, 1995. Veja-se também VILAR, Hermínia e SILVA, Maria João Marques – Morrer e testar na Idade Média: alguns aspectos da testamentária dos séculos XIV e XV. Lusitania Sacra. 4, 1992.pp.39-59. 15 O Reino dos Mortos na Idade Média Peninsular. Dir. José Mattoso. Lisboa : João Sá da Costa, 1996 ISBN 972-9230-44-7 16 Entre os quais MARQUES, José – O testamento de D. Fernando da Guerra. Bracara Augusta. 33:75-76, 1979.pp.175-206; e também O Testamento de D. Lourenço Vicente e as suas capelas na Sé de Braga e na Lourinhã. In Homenagem à Arquidiocese Primaz nos 900 anos da dedicação da catedral, Braga, 1990 p.185; VELOSO, Maria Teresa Nobre – A morte nos testamentos dos clérigos bracarenses no século XII, Coimbra, 1988; COELHO, Maria Helena da Cruz – O arcebispo D. Gonçalo Pereira: um querer, um agir. In IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga. Actas. Vol. 2/1. Braga: Faculdade de Teologia da Universidade Católica, Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, 1990, pp. 389-462; ANTUNES, José – O testamento de Fernando Joanes de Portocarreiro, deão da Sé de Braga e prior de Guimarães. Theologica. 282,1993.pp.407-32; CARVALHO, Elisa Costa – A morte do alto clero bracarense (séculos XII a XV), Braga, Universidade do Minho, 1999; RODRIGUES, Ana Maria – A morte e a comemoração dos defuntos na Sé de 9

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parcelares. Merece especial destaque a publicação de 151 testamentos de prelados e clérigos das catedrais portuguesas desde o século XI até ao reinado de D. Dinis, que representa um importante conjunto documental que contribui sobremaneira para o estudo e conhecimento dos homens e das instituições religiosas 19 . Os testamentos régios da primeira dinastia também já se encontram estudados20, e da segunda dinastia até ao final do século XV21. No século XXI, estudos analíticos sobre as capelas fúnebres22, o quotidiano23, obituários24, a arte tumular25, e o vestuário26, completam a bibliografia sobre este assunto. 2. Os Documentos Tanto o testamento como a doação mortis causa surgem e difundem-se no período medieval como documentos de forte conteúdo escatológico (subjacente a todo o documento) e religioso (normalmente manifestado nas fórmulas iniciais) apresentando, dessa maneira, um propósito espiritual particularmente característico27. Este tipo de documentação tem uma forte componente                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Braga nos finais da Idade Média. Cadernos do Norte. Série História 3, vol 20 (1-2), Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2003, p.184-218. 17 MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa – Geraldo Peres, cónego da Sé de Coimbra no século XIV. Revista Portuguesa de História. 31:1, 1996.pp. 393-430; MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa e SARAIVA, Anísio Miguel de Sousa – O chantre de Viseu e cónego de Coimbra Lourenço Esteves de Formoselha (…1279-1318†): uma abordagem prosopográfica. Lusitania Sacra. 13-14 (2001-2002).pp.75-137; COELHO, Maria Helena da Cruz e MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa – Les testaments du clergé de Coimbra: des individus aux réseaux sociaux. In Carreiras eclesiásticas no Ocidente Cristão (séc. XII-XIV): encontro internacional. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, 2007.pp.121-138. 18 SARAIVA, Anísio Miguel de Sousa – The Viseu and Lamego clergy: clerical wills and social ties. In Carreiras eclesiásticas no Ocidente Cristão…p.139-49. 19 Testamenti Ecclesiae Portugaliae (1071-1325). Coord. Maria do Rosário Barbosa Morujão. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa Universidade Católica Portuguesa, 2010. 20 MOTA, António Brochado da – Testamentos régios da primeira dinastia (1109-1383). Mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 21 MAURÍCIO, Maria Fernanda – “Os Testamentos Régios (Séculos XII a XV) – Aspectos vários in Separata Revista Clio-vol. III, Centro de História da Univ. de Lisboa, 1981. 22 ROSA, Maria de Lurdes – “As Almas Herdeiras”. Fundação de capelas fúnebres e afirmação da alma como sujeito de direito (Portugal 1400-1521), Lisboa. Faculdade de C.S.H. – U.N.L., 2006, 2 vols. 23 CHAMBEL, Pedro – “Marcas do Quotidiano nos Monumentos Funerários. A Representação de Animais na Tumulária Medieval do Entre-Douro-e-Minho” Medievalista [Em linha]. Nº 1 Ano 1 [Consultado 07.04.2016 às 19h15]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA1/medievalista-tumularia.htm. 24 SANTOS, Maria José Azevedo dos - “Um Obituário do Mosteiro de S. Vicente de Fora” Academia Portuguesa da História – Documentos Medievais Portugueses, II Série, Lisboa, MMVIII 25 DIAS, Marta – A arte funerária medieval em Portugal: uma relação com a liturgia dos defuntos. Porto: FLUP, 2014. 26 RIBEIRO, Clara – Género e representação: a indumentária feminina nos jacentes portugueses dos séculos XIII a XV. Lisboa: FLUL, 2014. 27 VILAR – A vivência da morte… p.55.

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tabeliónica “concretizada na utilização e justaposição de cláusulas e fórmulas estereotipadas, constitui um elemento de filtragem e de distanciamento em relação ao testador e à sua capacidade de intervenção individual”28. Dos 1044 instrumentos públicos que concernem o corpus desta pesquisa, 7,28% dizem respeito à categoria documental de disposições de últimas vontades. Dentro desta categoria existe uma maioria de testamentos (59,21%) sobre as doações mortis causa (40,79%). O primeiro acto testamentário data cronologicamente de 1260 e o último de 1491, e em relação às doações, o primeiro de 1288 e o último de 1492. O acto testamentário inicia-se, invariavelmente, com a Invocatio. No século XIII as fórmulas da invocação são pouco mais variadas: D. Julião Fernandes, bispo do Porto (1247-60) inicia o registo das suas últimas vontades invocando “In nomine Domini nostri Jhesu Christi in quo est Deus et preter quem non est Deus”29, caso único nos testamentos consultados até agora. No último quartel dessa centúria a invocação mais utilizada é “In nomine Sante et Individue Trinitatis Patris et Filii et Spiritus Sancti Amen”, sendo que a partir da década de 1290 verificamos a fórmula mais simples e típica “In nomine Domini Amen”, que será a mais comum em toda a documentação, ao longo dos séculos XIII a XV, em língua latina até à década de 20 do século XIV, e sucessivamente em língua portuguesa a partir de então, de forma mais ou menos constante. A consideração do momento final é abordada usualmente de início, assim como a sanidade mental do testador, atestando na primeira pessoa a total capacidade das suas funções psicológicas, sendo a cláusula mais comum “Temente dia de mha morte e o dia do juízo en meu siso e emtemdimento comprido faço mha manda e testamento”. A primeira disposição é, invariavelmente, a encomenda da alma a Deus, sendo que a mais constante é “mando a mha alma a Deus e a Santa Maria sa madre e a toda a corte celestial”. O retracto estabelecido é como o de um cortejo celeste que acompanha a alma ao seu destino. O registo por escrito das disposições de últimas vontades efectuadas por uma elite culta – o tabelionado – segundo formulários notariais próprios veicula uma visão letrada e religiosa da morte. Desta maneira, as motivações de redacção explicitadas com maior pormenor, podem servir como componentes e variáveis que nos permitem não só percepcionar o conceito de Além, mas também conseguir separar a fórmula notarial restrita e fixada pelo tabelião do toque individual da espiritualidade do testador.                                                                                                                           28

VILAR, Hermínia – Rituais da morte em testamentos dos séculos XIV e XV (Coimbra e Santarém) In O reino dos mortos… p.165-66. 29 ADP, Cartório do Cabido, Livro dos Originais; Livro 1678, fl.16.

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A encomendação da alma de D. Filipa Coutinho,   mulher de Luís Álvares de Sousa, do conselho do Rei e vedor da sua fazenda, parece um bom exemplo do individualismo espiritual presente na testamentária: “posta nas maos e poder de Deus por infirmidade que Lhe prouve me dar com todo o meu siso e entendimento no presente dia e ora que me deu temendo Elle meu senhor poderoso de que nom ssey quando a mim lhe prazera chamar desta bida presente pera dar de mym e de meus dias e obras conta e nom sendo çerta quando sera eu provendo mha morte primeiramente espiritual como he de razam de todo o boom xpao e despois corporal hordeno na presente meu testamento cedulla codicilo a minha postumeira voontade a que adiante sse segue primeiramente a Deus meu criador e senhor mando e recomendo a minha alma que lhe praza piadosamente (…) como presente per testo biber e morrer na sua santa fé católica”30. Encomendação da alma e profissão de fé na Santíssima Trindade, conforme expressa no testamento de João Eanes, mercador, e de sua mulher, Guiomar Eanes, cujas tencooes nom forom outras salvo viver e morrer na santa fe catholica de nosso senhor Jhesuu Xpo creendo verdadeiramente a ffe catholica padre e filho e espiritu santo tres pessoas em huum soo verdadeiro Deus tres em pesssoas e hum em essência. A explanação da ortodoxia da doutrina romana apostólica está profundamente explicitada pelo rigor dos conceitos teológicos e de fundamentação bíblica, pedindo o auxílio da Virgem Maria, Mãe de Deus para que sejam perdoados suas almas e seus pecados nom por serem dignos de averem de rogar porque sempre lhe forom ingratos e desconhecidos o que nos permite entender a consciencialização individual do merecimento da vida eterna no Céu. Amiúde, os testamentos são expositivos sobre a remissão dos pecados do primeiro outorgante. Algumas disposições são particularmente elucidativas sobre a vida do testador, e dessa maneira, indicativas de como o Homem encarava e vivenciava a sua existência. D. Vicente Domingues, chantre do Cabido da Sé do Porto entre 1287 e 1312, é esclarecedor sobre quem deseja que se cantem missas sobre o altar por alma do bispo dom Vicente, do meu padre e de mha madre e de meus irmãos e irmãas e daqueles onde venho e daqueles de que recebi ajuda e prestança, criança e ensinança 31 e daqueles de que ouvi algữa cousa como nom devya e daqueles por que pequey e errey e com que pequey e errey per qualquer maneira e a que soo teudo assi a mortos come a vyvos e por mha alma. Estipula especificamente as orações a serem cantadas, a primeira Omnipotens sempiterne Deus cui nunquam sine spe supplicatur etc, em cima da missa de comemoração de Santa Maria, e a segunda oração seja da Trindade e a terceyra seja Ominpotens sempiterne Deus qui vivorum dominaris etc, sendo que em cada festa do Natal, Aparição, São Vicente de Páscoa, Ascensão, Pentecostes, Trindade, São João Batista, São Pedro, São Paulo, Santiago, São Lourenço, Santa Maria Madalena, Santa Cruz, São Miguel, e de Todos os Santos, se digam missas dessas festas e a segunda oraçom de Santa Maria e a terceyra de Todolos Santos, ordenando para essas capelas uma casa na Ribeira32. Essas capelas ficariam a encargo de Pedro Durão, cónego do Porto, seu sobrinho e testamenteiro, que deveria procurar clérigos de bons costumes para cantarem as ditas missas. De facto, a junção familiar com os amigos ou com aqueles que tinham sido próximos ao defunto não se operava apenas na sepultura e na contiguidade física dos corpos. Para o testador medieval o cumprimento da sua vontade surgia como essencial para a sua salvação, pois representando o seu testamento a concretização escrita de forma a alcançar o Além, a sua não efectivação poderia pôr em causa essa intenção. Desta maneira, entendemos a preocupação em estabelecer parentes ou amigos próximos como testamenteiros que pelo seu estatuto se veriam compelidos ao desempenho desta função33. O ordenamento do local da sepultura e o destino do seu legado também vêem discriminados no acto. Os testamentos que se situam cronologicamente nos séculos XIII e XIV são na sua maioria de eclesiásticos, habitualmente membros do Cabido da Sé do Porto, o que pode justificar que a maioria das sepulturas ordenadas seja dentro da Igreja Catedral, por vezes especificando o local exacto. D. Abril Peres, cónego do Porto e abade de Cedofeita, manda que o seu corpo seja enterrado na Sé, ao lado de Vasco Fagundes, outrora tesoureiro do Cabido34, e D. Vicente Mendes, chantre, ordena seu corpo “soterrar na See do Porto en tal maneyra que tenha a cabeça so os pees do cruxifixo grande”35. Os únicos exemplos de testamentos leigos são os de Martim Eanes Barvão36 e Paio Martins37, ambos cidadãos do Porto, que mandam ser sepultados no cemitério de Santa Maria. Apesar de não ser certo quando se começa a fazer inumações nas Igrejas, sabemos que esse uso já

                                                                                                                          32

Testamenti… pp.570-72.  VILAR – A vivência da morte… p.115 34 Testamenti… p.548. 35 Testamenti… pp.568-74. 36 ADP, Cartório do Cabido, Livros dos Originais; Livro 1686, fl 12. 37 ADP, Cartório do Cabido, Livro dos Originais; Livro 1667, fl.40. 33

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existia nos finais do século XIII. Os enterramentos eram feitos numa espécie de cemitério que era construído por uma parte do dextro ou passal da Igreja38. Assistimos, assim, a uma progressiva ocupação dos espaços sagrados em detrimento dos cemitérios exteriores, bem visível já no século XV, onde os enterramentos dentro das igrejas e mosteiros é uma generalidade. João Eanes, mercador da cidade do Porto, foi enterrado dentro do mosteiro de São Francisco da dicta cidade na sua sepultura que ele tem dentro no dito mosteiro junto do altar de Santa Cruz, enquanto Guiomar Eanes, sua mulher, no mosteiro e adro de São Domingos da dicta cidade na cova que ella tem soo o alpendre junto com o altar de Santa Cruz39. Álvaro Rodrigues de Azevedo e Beatriz Eanes, sua mulher, cidadãos da cidade do Porto, têm sepultura na Sé do Porto, ao lado de Vasco Leite, cavaleiro40. D. Filipa Coutinho manda ser sepultada no mosteiro de Sam Francisco do Porto no cabido e me levem bestida em seu abito e mando (…) minha enterraçom segunda minha pessoa e condiçom de linhagem”41. Sublinhamos o requisito expresso de enterramento com o hábito franciscano, não só no que diz respeito à devoção individual praticada, mas também como representação social, já que este requisito é particularmente comum entre testadoras do grupo feminino42. No fólio 392 do mesmo Tomo das Capelas de São Francisco, vem especificado que a capela da referida testadora e de seu marido: “é a capella de Santo António próxima á porta principal da Igreja, ao entrar ao lado do Evangelho; e estava antes da reedificação deste convento em 1764, entre a Portaria e a nave do claustro que se derigia à Porta do Carro”. A veneração a uma santidade em particular é raramente expressa. Joana Martins, viúva de Martim Francisco “beendo e conssiirando em como ella era muy velha fraca e como ia sua vida era apouquentada e outrossy e como ela era muii pecadora contra Deus e outrossy como ela avia mui gram devoçom em o bem aventurado Sam Domingos querendo a el tomar e por cura e ssaude de ssua alma e daqueles a que he theudo”43. Este é um raro exemplo de explicitação de devoção em particular e a relação directa com o legar de bens e enterramento no mesmo mosteiro. Os mosteiros de São Francisco e São Domingos predominam nas instituições de capelas e enterramentos. Era-lhes atribuído um papel especial na intervenção pelos defuntos, devido à sua                                                                                                                           38  

ALMEIDA, Fortunato de – História da igreja em Portugal. 2ª ed. . Coimbra : Fortunato de Almeida, 1930. p. 739. 39 ADP, São Francisco, Capelas, Tomo I fl. 2-4. 40 ADP, Cartório do Cabido, Livro dos Originais; Livro 1682, fl.43. 41 ADP, Cartório de São Francisco, Capelas, Tomo III fl. 398. 42 PINA, Isabel Castro – Ritos e imaginário da morte em testamentos dos séculos XIV e XV. In O reino dos mortos… p.128. 43  ADP, São Domingos, Livro dos pergaminhos, perg. 76.

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missão de pregadores da palavra de Deus, e a prática de confissão e educação de jovens colocavamnos próximos do crente, fazendo a sua influência se sentir nas mais diversas classes sociais. Frei Pedro Esteves, prior de S. Domingos, e Frei Rodrigo, guardião do Mosteiro de S. Francisco, são confrontados por Fernão Bravas, mercador, cidadão e procurador do Cabido da Sé do Porto, acerca do direito do Bispo dessa cidade sobre as sepulturas em mosteiros da urbe. Este documento noticia pormenorizadamente o enterro de Maria Domingues, mulher de Pedro Geraldes, cujo procedimento foi inteiramente presenciado pelo tabelião do Porto, Nicolau Martins, a 9 de Janeiro de 1320. O prior e o guardião dos mosteiros “disserom que eles tiinham no seu moesteiro hữa pasada que se hi mandara deytar per nome Maria Domingues mulher de Pero Giraldez a qual pasada eu dicto tabeliom vii jazer en huum leyto no coro do moesteiro dos dictos frades de san Francisco e mandarom logo os dictos priol e guardiam aos outros seus frades fazer sa onrra aa dicta passada assy como de costume e mandaram fazer na dicta clastra do moesteiro sopoltura a qual eu dicto tabaliom vii fazer (…) e logo depoys que os dictos frades fizeram seu offizio aa dicta pasada forom na soterrar na dicta crasta estando eu dicyo tabeliom presente e meterom na os frades na cova e poserom lhi uma tavoa grande e hua pequena sobrella e cobrirom na de terra”44. Sobre a distribuição do património, o testador parece ter sido impelido por uma vontade dupla já que se por um lado procurava assegurar uma vida eterna para a sua alma no Paraíso despojando-se dos seus laços materiais, por outro tentava eternizar a sua presença na terra: “Ao definir o futuro do seu património, o testador parecia pretender a sua posse, ao mesmo tempo que através dos legados feitos para cerimónias religiosas, procurava eternizar neste mundo a memória da sua passagem e assegurar no Além um lugar para a sua alma”45. A delegação de bens cabe principalmente à família, instituições religiosas, amigos, e pobres carenciados. Teresa Eanes estabelece o mosteiro de São Domingos como herdeiro de todos os seus bens, deserdando João Álvares Pereira, cavaleiro, pois “por quanto Joham Alvarez Pereira nom teve o que me prometeu ante mim e ssy quando lhe fiz o porfilhamento e nom curou de mim como el e todollos da cidade bem sabem Eu dita Tareija Anes o revogo do perfilhamento que lhe fiz se lho fazer podia e deito e lanço o dicto Joham Alvarez Pereira de todollos meus bens assy moveis como de raiz aos quais ele entendia de biir per razom do dito perfilhamento assy como engrato e desconheçido e me leixou morrer desamparada”46. Para a lavra do testamento, Rui Gonçalves, tabelião público do Rei na cidade do Porto, teve de se deslocar a casa de Teresa Eanes, perto da ponte de São Domingos.                                                                                                                           44

 ADP, Cartório do Cabido, Livros dos Originais; Livro 1685, fl.14. VILAR e SILVA – Morrer e testar na Idade Média … p.41. 46   ADP, São Domingos, Pergaminhos originais dos títulos do convento, caixa 775, perg. 83.   45

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A deslocação do tabelião ao domicílio do outorgante não é para nós novidade. De facto, tanto o caso das doações, mas principalmente dos testamentos, fazem referência à presença física do tabelião em casos específicos, dependendo da saúde do doador/testador. Gonçalo Gonçalves, tabelião público do rei na cidade do Porto, visita a casa de Alda Gonçalves, viúva de Martim Gonçalves, mercador da cidade do Porto, para a lavra de uma públicaforma do seu testamento, requerido pela supracitada, pois se encontrava jazendo doente em huma cama47, a 25 de Janeiro de 1384. O tabelião público Gonçalo Vasques dirige-se à cruz de São Domingos, na cidade do Porto, para a escritura do testamento de Teresa Eanes, mulher de Rodrigo Eanes e filha de João Domingues, prior de Marmam [sic] e cónego do Porto, pois a testadora confessara em primeira pessoa que se sentia mal48. Fernão Vasques, marinheiro, morador na Rua da Lada na cidade do Porto, deixa em testamento todos os seus bens a favor de Maria de Paiva, sua criada, filha de Nuno Álvares, vinhateiro e Maria Afonso, como recompensa dos serviços prestados a si e à sua mulher, jazendo e temendo a Deus e o dia do juízo a que ey de parar49. Frei Álvaro Gomes, frade do mosteiro de São Domingos, doa a Catalina Eanes, filha de João de Lagea, marinheiro, uma casa na Cordoaria, arrabalde da cidade do Porto, jazendo em cama de dor que Deus me deu50. No dia 1 de Julho de 1469, de forma a aceitar o emprazamento de João Baldaia, escudeiro e criado do Infante D. Henrique, e Fernando Álvares Baldaia, mercador da cidade do Porto, estabelecido no testamento de Inês Gonçalves, mãe dos outorgantes e viúva de Álvaro Fernandes, escrivão da moeda, o mosteiro de São Domingos pede o consentimento da testadora para o estabelecimento do contrato antes da sua morte51. Fernão Vicente, tabelião público da cidade do Porto, desloca-se no mesmo dia a casa de Inês Gonçalves, onde testemunha que se encontrava doente na cama. Oito dias mais tarde, o mesmo tabelião, elabora uma quitação do segundo dote do seu casamento, testemunhando novamente que Inês Gonçalves ainda se encontrava doente e fraca em seu leito52. O tabelião não redige apenas os testamentos, ele testemunha a condição física e mental do testador, evidenciando a plenitude das suas funções mentais e psíquicas. Encontra-se na presença do enfermo, literalmente ao seu lado, atesta os seus momentos finais. Quiçá, não terá presenciado o último suspiro de alguns destes homens e destas mulheres?                                                                                                                           47

ADP, São Domingos, Pergaminhos originais dos títulos do convento, Tomo 2º, perg. 33 b). ADP, São Domingos, Pergaminhos originais dos títulos do convento; caixa 776, perg. 35. 49 AHMP, João Martins Ferreira, PERG-740 (B224). 50 ADP, São Domingos, Pergaminhos originais dos títulos do convento, Tomo 2º, perg. 12 a) (Inserto). 51 ADP, São Domingos, Livro dos pergaminhos, perg. 85. 52 ADP, São Domingos, Pergaminhos originais dos títulos do convento, Tomo 2º, perg. 31 c). 48

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Tanto o testamento como a doação é omisso no que diz respeito a hora e causa exacta da morte, logo nunca poderemos aferir com total certeza a questão acima colocada. Portanto, todos os dados que nos permitam balizar temporal ou circunstancialmente o fenecimento de um indivíduo são de elevada importância. Fernão Vicente, tabelião público do Porto, é o primeiro responsável pela escritura de um pedido de autorização à Câmara do Porto por parte de Vasco Afonso, pedreiro, e Maria Fernandes, sua mulher, com o objectivo de doar um chão a Fernão Gonçalves, carpinteiro, no dia 14 de Fevereiro de 1476. Entretanto o tabelião faleceu, o que levou Vasco Afonso e Fernão Gonçalves a solicitarem ao Concelho que mandasse ao tabelião Pedro Fernandes, sucessor de Fernão Vicente, que lavrasse os referidos documentos, tendo para o efeito de ser emitido um alvará por um oficial da vereação53. Todavia, a função do tabelião não se finaliza com a lavra do instrumento público. É a ele que cabe guardar, arquivar, registar e anotar toda a documentação. Frei João de Landim, guardião do mosteiro de São Francisco da cidade do Porto, pede a Gomes Eanes Aranha, bacharel, cidadão e juiz ordinário na mesma cidade, o teor de duas cláusulas do testamento de Fernão Anes de Póvoas, cidadão e morador na dita cidade, pelo qual doa rendas de casas, e institui um legado em seu nome, em pública-forma. Por seu turno, o juiz ordena a Tristão Rodrigues, tabelião geral na comarca e correição do Entre-Douro-e-Minho e em especial na cidade do Porto, que trate da lavra do traslado, pois como afirma o tabelião “porque o testamento era em posse de mim (…)o qual per mandado do dito juiz busquey”54 . O mesmo guardião do supracitado mosteiro pede a Álvaro Domingues, cidadão e juiz ordinário da cidade do Porto, o instrumento do testamento de Gonçalo de Sá, fidalgo, morador na mesma cidade, redigido por Lourenço Pires a 30 de Junho de 146955, e aprovado por Lourenço Eanes a 12 de Fevereiro de 1471, em pública-forma. A escritura da pública-forma de 6 de Março de 148356 ficou a cargo de Lourenço Eanes, pois era o tabelião que detinha o testamento em seu registo. O mesmo tabelião, Lourenço Eanes, foi no dia 17 de Fevereiro de 1475, juntamente com André Gonçalves e Tristão Rodrigues, tabeliães da cidade do Porto, à porta da Sé Catedral

                                                                                                                          53

AHMP Livro 5º de Pergaminhos, perg 33, sumariado em AMARAL, Luís Carlos - Subsídios documentais para o estudo da propriedade imobiliária no concelho do Porto medieval. In Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto. Porto: Câmara Municipal. 2ª Série, Vol. 5/6 (1987-1988p.89. Doc 117. 54 ADP, Cartório de São Francisco, Capelas, Tomo I fl. 12v-13v. 55 Publicado em MORENO, Humberto Baquero – O testamento de Gonçalo de Sá, in Separata de: Boletim do Arquivo Distrital do Porto, vol. 3, 1986. p. 101-107. 56 ADP, Cartório de São Francisco, Capelas, Tomo I fl. 17v-18v.

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"concertar" a pública-forma do testamento de João Baldaia, criado de Álvaro Rodrigues e camareiro do Arcebispo de Braga, que se encontrava na posse de Gonçalo Vasques, abade de Fandinhães57. As parcas indicações aqui explanadas permitem-nos vislumbrar um pouco do trajecto da documentação, passando pelo registo e arquivamento do tabelião que esteve encarregue da escritura ou até de uma outra parte, provavelmente testamenteiro do testador em causa. Evidenciamos, sem dúvida, a importância do tabelião na escritura, testemunho e arquivo destes instrumentos. E como testadores? De facto, no nosso acervo documental não encontramos qualquer testamento de um tabelião público do Porto, mas apenas referências à existência dos mesmos. Afonso Domingues, tabelião do Porto, mandou lavrar um testamento, do qual conhecemos a pública-forma datada de 4 de Abril de 1367, duma cláusula relativa a uma almuinha com todos os seus direitos e rendas que é deixada ao Cabido da Sé do Porto58. Conhecemos também a pública-forma de duas cláusulas do inventário de bens de Lourenço Pires, pedida pelo guardião do mosteiro de São Francisco a João Vaz Neto, cidadão e juiz da cidade, em 1484, nas quais o dito tabelião tinha dado cem reais para que se cantassem missas por sua alma. O treslado dá-nos notícia de que Lourenço Pires terá morrido entre 1480 e 148159, e deixou uma viúva de nome Filipa Anes, e pelo menos um filho, Miguel, que faleceu antes da lavra da públicaforma. A falta dos originais dos instrumentos supramencionados impossibilita-nos de aferir quaisquer pormenores referentes à localização das sepulturas, património pessoal e legados pios destes tabeliães. Todavia, encontrámos 2 testamentos de mulheres de tabeliães da cidade do Porto, o que se por um lado nos permite delimitar o espaço temporal da vida do notário, por outro nos permite observar a mulher do tabelião não apenas como a “casada” ou a “viúva”, mas também como a detentora e administradora de propriedade e bens. Gonçalo Eanes, tabelião do Porto, vai a casa de Martim Martins, tabelião da mesma cidade, na rua dos Mercadores, no dia 25 de Setembro de 1400 para lavrar o testamento de Maria Gonçalves, mulher de Martim Martins, que jazendo doente na cama doou a metade de umas casas e exido que ela e seu marido tinham na rua da Lada, nessa cidade, com a condição de que os frades de São Domingos dissessem para sempre uma missa “officiada em cada hum ano por bespera de Santa

                                                                                                                          57

ADP, São Domingos, Pergaminhos originais dos títulos do convento, Tomo 2º, perg. 17 b) nº2 ADP, Cartório do Cabido, Livros dos Originais; Livro 1678, fl 10. 59 O instrumento público refere que “poderia haver tres annos pouco mais ou menos que morrera”. ADP, Cartório de São Francisco, Capelas, Tomo I fl. 19. 58

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Maria de Março por alma della dicta Maria Gonçalves e acaba a dicta missa que os freyres sayam sobre ela com responso, cruz, augaa benta”60. Sabemos também que Maria Freitas, mulher de Bartolomeu Fernandes, tabelião público da cidade do Porto, manda lavrar o seu testamento no dia 11 de Abril de 146961, por Lourenço Eanes, tabelião na mesma cidade. O mosteiro de São Francisco da cidade do Porto devia de dizer uma missa de aniversário anual por Guiomar Dias, mãe de Lourenço Eanes, tabelião do Porto, que tinha deixado cem reais ao dito mosteiro, mediante apresentação do testamento (9 de Agosto de 1475) pelo seu filho. É o próprio Lourenço Eanes, como administrador dos aniversários de sua mãe que pede ao juiz a certidão, testemunhada apenas por três pessoas, todos tabeliães do Porto (André Gonçalves, Afonso de Leão e Diogo da Rocha), que escreve de sua própria mão “para ser mais firme”, a 9 de Novembro de 147862, especificando que as missas fossem cantadas sobre a sua cova dizendo o responso com a cruz e água benta. No que diz respeito às doações, normalmente são iniciadas pela declaração da atribuição do benefício de livre e espontânea vontade e com todo o juízo e racionalidade do doador, indicando claramente a sua consciência e sanidade mental. Os destinatários destas doações são habitualmente uma instituição religiosa, secular ou regular, e por vezes alguns membros do clero alto (Bispo ou Abade), em específico. Este tipo de documento é também expositivo no que diz respeito à remissão dos pecados e/ou devoção do primeiro outorgante. A maioria das doações pro anima no nosso acervo documental referem-se a propriedades e dinheiro, e raramente a géneros. Maria Martins de Baguim, filha de Dona Mor, ao doar o padroado da Igreja de Santa Maria de Campanhã ao Bispo e Cabido do Porto, a 16 de maio de 1301, estabelece o contrato in remissionem peccatorum meorum ac pro mea et parentum meorum animabus et specialiter obtentu et contemplatione reverendi patris domni G dei gratia episcopi Portugalensi63, especificando a remissão dos pecados não só pela sua alma como também pela dos seus pais. Pedro Homem, cavaleiro, e Afonso Martins clérigo, seu irmão, filhos de Martim Fraião doam o padroado da mesma Igreja, sublinhando os laços de parentesco que os une a seu tio, D. Sancho Pires, bispo do Porto, (1296 – 1300)64.

                                                                                                                          60

ADP, São Domingos, Livro dos pergaminhos, perg. 9 ADP, São Domingos, Pergaminhos originais dos títulos do convento; caixa 776, perg. 31 62 ADP, São Francisco, Capelas, Tomo I fl. 11-11v 63 Censual do Cabido da Sé do Porto. Porto: Imprensa Portuguesa, 1924. pp.136-138. 64 Censual do Cabido … pp.131-133. 61

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As referências a doações de padroados de igrejas ao Bispo e Cabido da Sé do Porto são uma constante na documentação. Das 15 doações entre os séculos XIII e XIV, presentes no corpus, 9 dizem respeito aos padroados das igrejas de Santa Maria de Campanhã, Santa Maria de Válega, Santo André de Canidelo e São Cosme de Gondomar, facto que está intrinsecamente relacionado com os actos estarem depositados no cartulário da Catedral do Porto. Estes contractos têm a particularidade de serem todos testemunhados por tabeliães públicos da cidade do Porto, sem qualquer excepção. Esta ocorrência, de forma contínua, mostra inequivocamente a força do testemunho do tabelião portador de fides publica, dando assim uma maior solenidade e segurança à lavra do acto, algo que nenhuma das partes (a dadora e a receptora) podiam minimamente dispensar. Aquando da doação ao Cabido da Igreja do Porto, no dia 9 de Novembro de 1334, de dois casais no lugar de Novelas, em Riba de Sousa, por D. Gonçalo Pereira, Arcebispo de Braga, especifica que a doação é estabelecida per muito bem que recebemos da Igreja do Porto e devoção que em ela avemos que nos perteençe per razom da nossa pessoa aho Cabido da Igreja do Porto dous casaaes que nos avemos que nos pertence per razom de nossa pessoa e nom da Igreja de Braga65. Fica, portanto, perfeitamente esclarecida a separação dos bens pessoais de D. Gonçalo, que tinha ocupado o cargo de deão da Igreja do Porto entre o final do século XIII e início do XIV, e os da Sé bracarense. Apesar de ser mais comum na documentação testamentária, a verdade é que também as doações mortis causa nos podem dar algumas indicações sobre a localização da sepultura dos outorgantes. Domingos Martins Ginho, cónego do Porto, numa doação ao Cabido da Sé da mesma Igreja por alma de Martim Soares, específica que Martim Soares jaz ao lado de Martim Domingues, irmão de Domingos Martins, para que nos aniversários das suas almas vão sobre ele com cruz e água benta66. As doações de património imobiliário pelas almas dos outorgantes e de seus familiares é uma constante desde o século XIII ao XV. O Cabido da Sé do Porto parece privilegiado comparativamente com outras instituições religiosas, nomeadamente o Mosteiro de São Domingos ou o de São Francisco. Nessa centúria continuam as outorgas à Catedral portuense: a 3 de Março de 1427, Margarida Eanes Pimenta doa a metade das casas da porta de Vandoma, em que mora Mor Pimenta, sua irmã, para seus aniversários67, e a 3 de Julho do mesmo ano Maria Eanes, filha de Mor Domingues, mulher de João da Guarda, já falecidos, doa o casal de Penedo, na freguesia de                                                                                                                           65

ADP, Cartório do Cabido, Livros dos Originais; Livro 1678, fl 18. ADP, Cartório do Cabido, Livros dos Originais; Livro 1678, fl 23. 67 ADP,  Cartório do Cabido, Livros dos Originais; Livro 1678, fl. 12. 66

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Valadares, pelos quais havia de haver 6 maravedis por aniversários de Pedro Eanes Bocado, seu avô, e dois em cada ano depois de ela falecer, diante da capela-mor, especificando as orações a serem cantadas: um responso e uma Salvé Rainha68. No dia de Ano Novo de 1440, Catelina Lourenço, parteira, moradora na cidade do Porto, doa ao Cabido da mesma cidade umas casas com exido em cima da Vila, na rua dos Trapeiros, com a condição do Cabido rezar missa por seu aniversário, no mês de Julho69. A 8 de Agosto de 1443, Inês Esteves, moradora na rua das Tendas na cidade do Porto, servidora de Rodrigo Eanes, abade de Fânzeres, doa a Vicente Henriques, pai de Henrique Henriques, cónego, duas casas na rua das Tendas, e dez maravedis por ano ao Cabido da Sé da mesma cidade por aniversários dela e de seu amo70. Teresa Vasques, doa ao Cabido da Sé do Porto, 20 libras por umas casas na rua das Cangostas e 18 por outra na mesma rua, 103 libras e 14 soldos pela metade de umas casas na Ribeira para se fazerem 6 aniversários pela alma de seu marido João Rodrigues Taborda, cavaleiro do Duque de Bragança71, a 10 de Janeiro de 1454. Contudo, estas disposições de últimas vontades não são somente estabelecidas entre quem deseja que se cante missas por suas almas, e a instituição beneficiária da doação, mas também depois da sua morte os contratos são estabelecidos através dos seus testamenteiros. É este o caso de Vicente Eanes, cónego da Sé do Porto, testamenteiro e herdeiro de Constança Álvares, mulher que foi de Álvaro Eanes, carpinteiro, casado com Isabela Álvares, moradores no campo do Souto, faz doação da metade das casas no mesmo campo ao dito Álvaro Eanes, por um aniversário anual no dia de São Miguel de Setembro, pela alma de Constança Álvares, a 21 de Dezembro de 1471. Em conclusão, o perfil do testador presente no nosso acervo documental pode ser sumarizado por ser maioritariamente do sexo masculino e clérigo durante os seculos XIII e XIV. No século XV a quase totalidade dos testadores são leigos, e assistimos a uma presença crescente do sexo feminino. Se até ao século XV existe uma clara estabilidade de eclesiásticos, predominantemente de membros do cabido, a partir dessa centúria o cenário é totalmente diferente: várias pessoas da sociedade média e alta que se estendem a cidadãos, mercadores, almocreves, cutileiros, marinheiros, cavaleiros, escudeiros e mulheres que são detentores de vasto património, e que querem assegurar a continuidade da administração e exploração dos seus rendimentos e despesas e de acordo com o seu sentimento religioso. São documentos produzidos pelos estratos mais privilegiados da sociedade medieval.

                                                                                                                          68

ADP, Cartório do Cabido, Livro dos Originais; Livro 1686, fl. 21 a). ADP, Cartório do Cabido, Livro dos Originais; Livro 1678, fl. 7. 70 ADP, Cartório do Cabido, Livro dos Originais; Livro 1678, fl. 22. 71 ADP, Cartório do Cabido, Livro dos Originais; Livro 1686, fl. 13. 69

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Entendemos, portanto, a importância destas disposições de últimas vontades como testemunhos escritos e de excelência da memória documental, como característica fundamental de uma sociedade, na sua maioria analfabeta. A escrita é muito mais do que uma simples transcriçãotradução da realidade, é também um veículo de memória: a todas as transacções confere realidade e durabilidade, assegurando a sua sustentabilidade. Não só guarda a memória dos indivíduos e dos factos, como garante a sua publicação e divulgação, tecendo entre os homens um laço que transcende gerações. Não só agora, mas também na hora das suas mortes.

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