A Mudança de Regime em Espanha e a sua Democratização

June 13, 2017 | Autor: Fernando Saiote | Categoria: Comparative Politics, Political Theory
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A Mudança de Regime em Espanha e a sua Democratização1 Fernando Jorge Matias Saiote2

Nota Introdutória

Desde os estudos levados a cabo por Juan Linz, na década de 1970, até à bibliografia contemporânea, a mudança de regime e respetivo período de transição, ocorridas em Espanha entre 1975 e 1978 são, hoje em dia, abordadas pelo mundo académico como um caso único de estudo. Pretende este ensaio, através da leitura e análise de um texto de Donald Share3, acompanhadas de outras leituras efetuadas em torno deste tema, compreender a forma como o regime franquista fez a sua transição para a democracia, e perceber o que torna esta transição tão particular em relação a outras que ocorreram no mesmo período. A comparação estabelecida por Tzortzis com a transição do regime militar turco para um regime democrático, torna-se aqui um meio auxiliar para compreender a importância do exemplo espanhol, isto no sentido em que o caminho percorrido por ambas as transições pode considerar-se idêntico na sua génese, mas completamente díspar na sua conclusão. Outras análises feitas por autores como Linz, Pi-Suñyer, Fishman, Conversi ou Caneiro, a respeito da questão espanhola, servem também aqui os propósitos de chegar a conclusões que permitam decifrar em termos históricos a transição para a democracia ocorrida em Espanha e a forma como foi consolidada essa transição. Este ensaio encontra-se dividido em três partes. Primeiro procurar-se-á analisar o universo das transições dos regimes autocráticos para democracias durante a terceira vaga das democratizações para que se possa contextualizar a tipologia de Share e enquadrá-la na realidade espácio-temporal pretendida. Na segunda parte procura-se criar um paralelo entre as duas posições que permitiram o acordo em Espanha e, assim, entender o que foi necessário para que se atingisse esse ponto. Numa terceira parte 1

Ensaio realizado com base no texto de Donald Share: SHARE, Donald, Transitions to Democracy and Transition through Transaction. Comparative Political Studies. 1987; 19(4): 525–548. DOI: 10.1177/0010414087019004004. 2 Doutorando em História Moderna e Contemporânea – Especialidade de Defesa e Relações Internacionais, ISCTE-IUL. 3 Licenciado em Ciência Política, Língua e Literatura Espanhola pela Universidade de Michigan, obteve os graus de Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade de Stanford. As suas áreas de especialização são Política Comparada e Economia Política Comparativa, com ênfase na política do sul da Europa e América Latina.

desenvolve-se um estudo comparativo com base no tema do texto de Share, em contraponto, por meio do estudo das teorias de Linz sobre a transição espanhola, tentase encontrar um ponto comum que permita definir em concreto que tipo de transição foi a ocorrida em Espanha.

Transições na 3ª Vaga das Democratizações: Caracterização Huntington4 sugere que a democracia apenas é possível se houver desenvolvimento económico, e só é real se houver liderança política, ou seja, “as elites políticas têm de acreditar que a democracia é o mal menor para a sociedade e para eles próprios”. Num quadro geral pode considerar-se que estes dois pressupostos foram alcançados, por exemplo, nos casos da Europa ibérica ou que, pelo menos, estavam implícitos nas diretivas revolucionárias ou negociais dos processos políticos. Por um lado, o marcelismo em Portugal pareceu virar-se para uma expectável reforma total do regime, mas depressa as reais intenções vieram ao de cima, as reformas não aconteceram e precipitarem o golpe de Estado. Por outro lado as negociações desenvolvidas em Espanha permitiram a renovação do cenário político e social. A inexistência de uma “democracia perfeita”5, neste caso no decorrer da 3ª vaga de Huntington, leva a que se considere, presume-se, que as transições não tomaram o caminho correto ou que a consolidação democrática abrangeu apenas parte da sociedade, deixando uma percentagem – será indiferente considera-la expressiva ou não – sem recurso a essa democracia. Porém, convém ressalvar, não se pode agradar simultaneamente a gregos e troianos. Todas as transições ocorridas depois do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 em Portugal – tido como o início desta vaga de democratizações por diversos autores – tiveram os seus opositores, uns que pretendiam apenas reformas sectárias, ou aqueles que, no desejo da manutenção do poder, as pretendiam mais demoradas e ponderadas. As diferenças e semelhanças existentes, algumas latentes, entre as democratizações iniciadas na década de 1970 e as ocorridas nos anos mais próximos, diga-se há duas gerações atrás6, são suficientes para entender que o conceito de democracia é, em termos práticos, algo frágil, Carothers7 sublinha a este respeito que Os esforços para avaliar o progresso da terceira vaga são por vezes rejeitados como prematuros. A democracia não se constrói num dia, afirmam os militantes da democracia, e ainda é muito cedo para fazer julgamentos sobre os resultados das dezenas de transições democráticas iniciadas nas últimas duas décadas. Embora seja verdade que as situações políticas atuais dos "países em transição" não estão gravadas em pedra, passou tempo suficiente para esclarecer sobre a forma como o paradigma de transição se está a sustentar. 4

HUNTINGTON, Samuel P. (1991: 33-4). DIAMOND, Larry J. (1997: 20). 6 Considerando, neste contexto, um período de 20 anos como uma geração. 7 CAROTHERS, Thomas (2002: 9). 5

Sendo a transição democrática um ato já sobejamente estudado entre a comunidade académica, mas que é, no entanto, constantemente inovado quanto ao seu conteúdo e quanto à forma como é executado ou quanto à análise das suas tipologias, recheado de casos paradigmáticos, resta sublinhar a dificuldade que existe quanto à tipologia para cada um desses exemplos.

Espanha, o Consenso dos Opostos

Podem considerar-se inumeráveis tipologias as criadas para justificar o sucesso das transições para os regimes políticos democráticos a partir de regimes autoritários. Primeiro há a necessidade de entender o fim do regime vigente, se terá sido destituído de forma conflituosa, por meio de força humana, ou se terá sido destituído por falta de força política, por perda de apoios ou de hipótese de sucessão política. Segundo, embora difícil, convém refletir sobre se já teria sido criado anteriormente um caminho que levasse ao desfecho democrático, quer entre os membros do próprio regime autoritário, quer por estes e os afetos à ascensão democrática. Share8 escalpeliza cada um destes fenómenos no seu texto e atribui ao caso espanhol uma transição perto de ser reconhecida como consensual, uma vez que, de acordo com o autor, a transição espanhola partiu dos líderes do próprio regime autoritário. Não obstante existir a possibilidade da transição em Espanha ter partido de um consenso político, podem identificar-se alguns fatores que permitem uma análise mais aprofundada da questão. Antes de qualquer outro, o facto de Espanha ter sofrido com uma guerra civil durante 38 anos9, que deixou marcas muito profundas em termos sociais, económicos e políticos, promovendo não apenas uma resistência permanente durante o regime franquista, como uma oposição política que, embora se encontrasse no exílio, estava presente. Tal cenário permite-nos, talvez, advogar uma transição nãoconsensual, se bem que reconhecidamente partilhada entre as fações opostas. Share, num conflito teórico com as ideias de Juan Linz10, teoriza que o modelo transitório utilizado é mais simples que a dimensão dada por Linz à acção dos detentores do poder autoritário e dos seus opositores. Outro fator que poderá ser considerado nesta análise é o isolacionismo a que foi sujeito o Estado espanhol durante a guerra de 1939-45 e nos anos subsequentes “(…) que apenas termina graças à dinâmica gerada pela geopolítica da Guerra-Fria no confronto com a União Soviética.”11 Por último, refere ainda Caneiro12, a ideologia do regime franquista abominava a classe política em detrimento dos militares, acusando-a de corrupção e culpabilizando-a do início e das consequências da guerra civil.

8

SHARE, Donald (1987). CANEIRO, José G., BUESO, Eduardo A. (2007). 10 LINZ, Juan J. (1978). 11 CANEIRO, José G., BUESO, Eduardo A. (idem: 4). 12 CANEIRO, José G., BUESO, Eduardo A. (ibidem). 9

Dentro do universo criado por Huntington13, a transição espanhola, a par de outras ocorridas na mesma época, destaca-se na terceira vaga de democratizações como uma transição feita sob os auspícios da Igreja, porém não terá sido apenas este o fator que despoletou esta passagem aos regimes democráticos, Huntington (op. cit.) assinala outros quatro, dos quais se pode sublinhar, sem descurar os restantes, a questão da legitimação do regime em Espanha. Os profundos problemas de legitimação dos regimes autoritários num mundo onde que os valores democráticos são amplamente aceites, a consequente dependência desses regimes numa atuação de sucesso e a sua incapacidade em manter um “desempenho de legitimação” devido a falhas económicas (e por vezes militares).

Com a morte de Franco, em 1975, coloca-se o problema da sucessão ou da mudança, dois caminhos antagonistas que acabariam por estar em cima da mesa quer na perspetiva da política interna espanhola, quer nos apoios vindos do exterior. Caneiro (op. cit.: 3) faz menção a este facto quando refere uma entrevista a D. José VidalBeneyto14 ao jornal El País, na qual é referida a pretensão do Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, em não permitir qualquer golpe de Estado de cariz comunista enquanto a Espanha se mantivesse na esfera geoestratégica ocidental. Não há dúvida de que esta era uma forma de legitimar o regime autoritário de Franco, porém, e de acordo com Tzortzis15 “(…) a crise instaurada em 1975 era interna e política, devido à incapacidade das famílias16 em encontrar uma solução viável para o problema da sucessão.” Este outro facto levou ao Pacto de Moncloa, que permitiu a conjugação de esforços por parte de forças políticas, sindicais e associações patronais no sentido de se atingir um acordo que mais tarde levaria à redação da Constituição de 1978 e a uma consequente descentralização do poder, como refere Pi-Suñyer17. Na análise de Huntington18 é de referir igualmente a questão do desenvolvimento económico ocorrido na década de 1960 que abrangeu Espanha19 após o período de isolamento internacional, a mudança interna ditada pelo Concílio do Vaticano II que, ao abdicar da preservação do seu status quo, detida no seio do regime autoritário, optou por defender as posições dos opositores ao regime, as mudanças ocorridas na política

13

HUNTINGTON, Samuel P. (1991). Filósofo, sociólogo e politólogo espanhol (1927-2010). 15 TZORTZIS Ioannes (2014: 420). 16 SHARE, Donald (1987: 536). 17 PI-SUÑYER, Carles V. (2010: 6-7). 18 HUNTINGTON, Samuel P. (idem: 13). 19 PLIHON, Dominique, REY, Nathalie (2012: 2). 14

internacional – nomeadamente o apaziguamento entre os dois Blocos e a consolidação democrática proporcionada pelas políticas da Comunidade Económica Europeia – e, por último, o efeito “bola de neve” desencadeado por outras democratizações na Europa, na América Latina ou na Ásia (Huntington, op. cit.). Conversi20 sustenta que os movimentos nacionalistas em Espanha serviram igualmente para impulsionar o regime democrático A tentativa franquista para combater o separatismo pela centralização e repressão perdeuse dramaticamente. Portanto, uma nova visão pluralista de nacionalidade espanhola foi exigida por todas as forças que impulsionaram a mudança democrática. O plano tinha necessariamente de incluir grandes concessões à oposição nacionalista. No entanto, embora o regime estivesse, para todos os efeitos, moribundo, este teve de esperar pelo afastamento do ditador para que se descongelasse o processo de mudança.

O consenso atingido com os pactos assinados após a morte de Franco, nomeadamente a celebração do já referido Pacto de Moncloa de 197721, permitiu um crescimento social em Espanha que, conjuntamente com a elaboração da Constituição do ano seguinte e com a perspetiva próxima da entrada na Comunidade Económica Europeia abriram o caminho para a descentralização do Estado e a estabilização e consolidação democrática. Juan Carlos I de Borbón foi proclamado Rei em 1975 e, apesar de manter Arias Navarro como presidente do Governo, indigitou Adolfo Suárez como Primeiro-Ministro e este deu início ao diálogo para uma transição pacífica para a nova era. O pacto definido durante as reuniões conduzidas por Suárez em Moncloa não terá sido consensual tanto nas suas conclusões, como na sua essência. Porém convém ressalvar que, de acordo com Encarnación22, as primeiras negociações terão corrido paralelamente ao declínio do governo franquista estas já teriam tido início entre a elite do regime e as forças opositoras. Embora não precise a data, o autor refere que “os acordos de restaurante” serviram de base para uma transição pacífica em Espanha. Omar Encarnación23 sublinha ainda a posição de Nicolás Sartorius24 no período pós-Franquista, que refere a necessidade do movimento sindical espanhol se ter oposto a uma transição pactada por esta servir alegadamente de proteção às posições sociais capitalistas, à perda da luta de classes e às consequências políticas que essa mesma transição implicaria. Retenha-se 20

CONVERSI, Daniele (2002: 224). FISHMAN Robert (1989: 19). 22 ENCARNACIÓN, Omar G. (2001: 339). 23 ENCARNACIÓN, Omar G. (ibidem). 24 Militante antifranquista, fundador das Comisiones Obreras (CCOO) e membro do Partido Comunista de Espanha (PCE). 21

ainda do texto de Encarnación, que após o Pacto de Moncloa foram desenvolvidas, como se exemplifica no Quadro I, outras negociações para que se atingissem acordos sociais fundamentais à prossecução dos propósitos democráticos, porém parte deles desenvolveram-se apenas entre a Confederación Española de Organizaciones Empresariales (CEOE) e a Unión General de Trabajadores (UGT), de cariz socialista. Quadro I - Pactos Políticos e Sociais em Espanha (1977-1986)25 Pacto

Ano

Moncloa 1977

Intervenientes Partidos Políticos

Motivos Salários, Inflação, Reformas políticas

ABI

1978

UGT, CEOE

Relações Laborais

AMI

1980

UGT, CEOE

Salários, Relações Laborais

AM12

1981

UGT, CEOE

Salários, Relações Laborais

ANE

1982

UCD, CEOE, UGT, CCOO

AI

1983

UGT, CCOO

AES1

1985

PSOE, UGT, CEOE

AES2

1986

PSOE, UGT, CEOE

Salários, Emprego, Relações Laborais Salários, Relações Laborais Salários, Criação de Emprego, Reforma do Mercado Laboral, Desemprego Salários, Criação de Emprego, Reforma do Mercado Laboral, Desemprego

ABI - Acuerdo Basico Inter-confederal AMI - Acuerdo Marco Inter-confederal ANE - Acuerdo Nacional del Empleo AI - Acuerdo Inter-confederal AES - Acuerdo Economico y Social

Perante esta análise, a transição que ocorreu em Espanha pode considerar-se consentida não apenas num período pós-franquista, mas também numa altura em que o regime mostrou sinais de declínio político ou até de inconsistência política, o que criou a necessidade de uma mudança rápida e pacífica, podendo considerar-se que houve uma Ruptura entre as elites governativas do regime autoritário e que a mesma permitiu a solução pacífica. Solução que seria dificultada pela permanência de Arias Navarro como chefe do governo espanhol26, não apenas pelo seu papel durante a guerra civil espanhola, como pelos atos de que foi acusado o seu executivo entre 1973 e 1976, nomeadamente os acontecimentos de Montejurra. Arias Navarro pretendia uma

25 26

ENCARNACIÓN, Omar G. (idem: 340). LINZ, Juan J. (1990: 20).

limitação das reformas no processo transitivo. Outro facto que permite sustentar a teoria da transição pacífica é o Pacto de Silêncio27, O pacto de não-agressão, assinado no início da transição, entre as forças democráticas emergentes e os colaboradores é uma das convenções mais subtis e paradoxais realizadas neste país ao longo da história.

Um pacto político único e sem quaisquer paralelos nas transições para regimes democráticos, que asseverou a coexistência social em Espanha e, consequentemente, permitiu o restabelecimento do equilíbrio político interno e externo.

27

GABRIEL Y GALAN, J. A. (1988); PINTO, A. Costa (2006: 174).

A Transição pela Transação de Share e o Falso Dilema de Linz O risco que representa uma transição vinda do topo28 pode ser incalculável para as elites dos regimes autoritários. Não obstante a capacidade negocial e a vontade de que a transição se proceda de forma pacífica, de ambas as partes, pressupõe-se que deverá sempre existir a questão das fações e que essa questão pode tornar-se um problema no processo de negociação ou, mais tarde, no frágil período de consolidação democrática. Share e Mainwaring29, ao desenvolver o estudo comparado entre a transição brasileira e espanhola, libertam subtilmente a questão no campo académico, possibilitando o seu desenvolvimento a um nível mais abrangente, assim permitimo-nos levar mais longe a comparação e usar os termos de Linz, “Reforma” e “Ruptura”, considerados como um “falso dilema”30. Sendo duas transições iniciadas a partir do seio dos regimes autocráticos, o ponto de comparação entre Espanha e Brasil estabelece-se no tempo e na forma como foi desenvolvido o processo, onde a questão espanhola foi mais célere e melhor definida nos seus limites31, o nível de identificação entre ambos os países é bastante evidente. No caso espanhol houve, porém, dois factos que devem ser vistos como uma vantagem em relação ao processo de democratização brasileiro. Um foi papel da monarquia durante o processo de transição e a consequente elaboração da Constituição de 1978 e outro a entrada de Espanha na Comunidade Económica Europeia, em 1986, que serviu como sustentáculo da consolidação mercê da exigência do pleno funcionamento das instituições democráticas, civis e políticas. A resistência à democratização perpetrada pela linha dura dos regimes sugere uma ruptura com outras alas menos radicais do regime autoritário e tanto em Espanha como no Brasil há exemplos desse facto. No primeiro caso, a batalha que se desenrolou após o declínio do regime, principalmente depois do assassinato do delfim em quem Franco delegou os seus poderes em 1973, Luis Carrero Blanco, dividiu as famílias em torno do protagonismo que se obteria com a transição, uma questão que Share minimiza quando refere que, por si só, a situação da “transição através da transação pode não ter sido o resultado de uma disputa política interna do regime franquista”32. No segundo caso, do

28

SHARE, Donald, MAINWARING, Scott (1984). Ibidem. 30 LINZ, Juan J. (1990: 18). 31 SHARE, Donald, MAINWARING, Scott (idem: 5). 32 SHARE, Donald (1987: 537). 29

Brasil, por ter sido uma transição mais morosa, não obstante as semelhanças com a questão espanhola, o regime perpetuou-se até à década de 1980 através de medidas que limitavam a atividade de uma oposição controlada e dividida33, como seria o caso da impossibilidade de coligações, facto que inviabilizava a obtenção de maiorias parlamentares e, consequentemente, a detenção do poder legítimo. No entanto esta estratégia, sublinham os autores, proporcionava a possibilidade de dissidências entre os quadros do regime. Em ambos os casos há uma “ruptura” dentro da hierarquia autocrática e em ambos os casos são efetuadas reformas que levam a cedências do autoritarismo à democracia. Tendo em atenção as palavras de Linz34, pode perceber-se que aqui a “ruptura”, não sendo criada pela oposição aos regimes, permitindo, através de acordos bilaterais, participação de indivíduos afetos à autocracia, mas sim dentro da própria organização desses regimes, não pode ser tomada em conta como a tipologia adequada para definir estas transições, principalmente a espanhola. Porém, numa uma outra análise, de Linz & Stepan35, é referido o processo que levou às negociações desenvolvidas entre as partes, para que as reformas fossem alcançadas de forma pacífica, como “reforma pactadaruptura pactada”. Podendo parecer uma contradição por parte dos autores, pode explicar-se esta situação através dos desenvolvimentos até agora apresentados pelos seus pares e que têm vindo a ser mencionados neste ensaio. O referido “falso dilema” interpretado por Linz justifica-se por meio dos acontecimentos. Os regimes autocráticos perderam força nos panoramas político e social, as oposições emergentes fizeram uso desse declínio e imiscuíram-se no processo de mudança. Neste sentido ganha força a tipologia usada por Share no seu artigo, quando destaca a transação como meio para efetuar a transição do regime autoritário espanhol para o regime democrático.

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SHARE, Donald, MAINWARING, Scott (1984: 11). LINZ, Juan J. (1990: 19). 35 LINZ, Juan J., STEPAN, Alfred C. (1996: 61). 34

Conclusões

Aragonés ao fazer a análise das transições políticas para os regimes democráticos sublinha a importância do caso espanhol e chama à discussão exemplos como o polaco36, ao frisar a intenção de Adam Michnik37 em criar condições para que a transição polaca para a democracia pudesse seguir os passos dados em Espanha. A questão paradigmática da transição em Espanha não pode ser vista como um negócio político que ganhou protagonismo académico, tratou-se sim de uma vitória diplomática da política interna espanhola, onde o processo negocial, que teve a sua génese no seio da hierarquia autocrática, conseguiu desenvolver-se através de concessões mútuas que nem sempre se mostraram consensuais, mas que, tendo sido conseguidas, foram fundamentais para a prossecução dos objetivos comuns. A morte de Franco e o subsequente assassinato do seu sucessor, Carrero Blanco, criaram um fosso político e grande instabilidade na organização franquista, tal situação permitiu que a oposição ganhasse espaço e forçasse a inclusão nas negociações da transição, impedindo que as medidas se cingissem à vontade dos detentores do poder. Se os diversos pactos assinados ganharam peso no desenvolvimento da questão, nomeadamente através de cedências de parte a parte, não será menos verdade que o “Pacto de Silêncio” foi uma circunstância decisiva na obtenção dos consensos necessários, sobretudo por parte dos franquistas. Neste contexto não podemos deixar de concordar com as palavras de Salvador Cardús i Rios38 quando escreve que “[A] transição é, basicamente, um processo de amnésia histórica e social, e a invenção de uma nova tradição política”. A transação a que se refere Share inclui todos estes paradigmas políticos, e acaba por ser, correndo o risco do exagero do vocábulo, o graal das transições políticas - o exemplo anteriormente dado do desejo do Solidarność em seguir o caminho espanhol não será certamente único. A capacidade de orquestrar uma mudança política de consensos, por vezes camuflados nas cedências, e a aceitação dos “sectores castrenses à nova realidade”39 democrática e a sua consequente “subordinação à sociedade civil”, acaba por ser invulgar devido aos

36

ARAGONÉS, J. F. Fuentes (2006: 131). Líder do sindicato Solidarność, dos estaleiros de Gdańsk. 38 HADZELEK, Aleksandra (2012: 162). 39 MATHIAS, Suzeley K. (2009: 733). 37

fatores históricos que compõem as relações entre o “regime burocrático-autoritário”40 e a instituição militar. A militarização do Governo41 perpetrada por Franco faria antever uma maior resistência à transição, mas o não desmantelamento automático da estrutura do regime permitiu o decurso positivo das negociações, nem mesmo o gorado golpe de Estado militar de 1981 significou a décalage do processo, tendo um efeito contrário ao pretendido pelas forças militares, a sua popularidade – já precária por efeitos do fascismo – caiu, sendo depois recuperada pelo sistema democrático42.

40

Ibidem. Idem (742) 42 CANEIRO, José García, BUESO, Eduardo Arranz (op. cit.: 34) 41

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