A mulher em Atenas: uma análise centrada no Contra Neera de Apolodoro

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Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Licenciatura em Arqueologia e História

Cultura Grega 2014/2015

Docente: Luísa Nazaré Silva Ferreira Ana F. Amor Santos

A mulher em Atenas: uma análise centrada no Contra Neera de Apolodoro A presente análise do discurso acusativo de Apolodoro, o Contra Neera, que integra o Corpus Demosthenicum, tem como principal objetivo explorar brevemente as diferentes conceções do género feminino em Atenas do século IV a.C., consolidando-os com outras fontes, estas nem sempre contemporâneas do discurso, mas que parecem espelhar ideias concordantes. De destacar que esta é uma análise indireta, patenteada pelo sexo masculino, e que, tratando-se de um discurso acusativo, os seus dados não são objetivos, visto que transmitem a opinião de indivíduos lesados que procuram vingança pelo mau comportamento que Estéfano, companheiro de Neera, estrangeira e hetera. Ainda assim, não é na legitimidade do discurso de que nos ocuparemos, mas na informação que este oferece sobre o sexo feminino. Ao longo do discurso é percetível a existência de muitas figuras femininas no quotidiano do homem socialmente ativo para além da esposa legítima (gyne), e é aliás na legitimidade da esposa de Estéfano, Neera, que se centra o caso. Isto porque, de acordo com a lei vigente do século IV a.C., a esposa legítima era aquela que produzia descendentes cidadãos, sendo para tal necessário que a própria fosse cidadã [(D.)59.46]; ora, Neera é acusada de ser não só estrangeira, como hetera e antiga escrava, condições que levavam à ilegalidade do matrimónio que contraíra com Estéfano (cidadão ateniense), bem como de outros atos que ambos praticaram. Assim se depreende que a gyne constituía um veículo para a legitimação da vida social e pública do homem. O dever cívico das cidadãs atenienses era cumprir a sua função de maternidade através do casamento, algo comparável aos deveres e serviços públicos exercidos pelos homens em relação ao Estado, de modo que as obrigações familiares complementavam as obrigações sociais para com a comunidade. É, pois, por isso que se dá grande importância ao dote de uma rapariga, visto que ao preservar-se o bem-estar feminino, conservava-se também o sistema social em que assentava a Pólis ateniense. No documento em questão, aquando do episódio em que Estéfano dá Fano, filha de Neera, em casamento a Frastor, como se sua filha se tratasse, Apolodoro refere que esta era acompanhada de um “dote de trinta minas”[(D.)59.50], possivelmente como modo de legitimar essa união; de referir que esse dote não lhe é devolvido quando Frastor expulsa Fano, grávida, e que por isso Estéfano inicia uma ação de alimento contra Frastor [(D.)59.51]. Neste caso, o que nos parece fundamental é a referência de uma lei que previa a devolução do dote [(D.)59.52] a mulheres repudiadas – lei intrinsecamente ligada à legitimidade de matrimónios (pois era necessário um dote para voltar a casar). Apolodoro diz ainda, a respeito do dote, que “se uma mulher não tem recursos, a lei dá-lhe um dote suficiente, mesmo se, de alguma maneira, a natureza lhe atribui uma aparência desfavorável” [(D.)59.113]. Na verdade, é possível traçar um perfil da esposa ideal através das críticas do autor a Neera e a Fano, visto o acusador patentear comportamentos e características nessas mulheres que não eram aceitáveis numa esposa de um cidadão. O passo em que Apolodoro, de modo a persuadir o júri do processo, cria um cenário do que aconteceria caso Neera fosse absolvida, é de resto um bom exemplo: envolvendo as próprias mulheres dos jurados, o autor garante que ficariam “revoltadas” [(D.)59.111], pois tal absolução seria sinónimo de concordância com os seus atos, e que os seus maridos acreditavam que as “levianas(…)têm a liberdade de fazer aquilo que quiserem” [(D.)59.111]. De sublinhar que a gyne estava à margem do tipo de vivência social não religioso, pois uma mulher respeitável não assistia a um banquete, mesmo que este se desse na sua própria casa. Aliás, durante o século V a.C., a mulher grega foi encerrada e confinada ao gineceu. De referir também que a mulher era sempre dependente de algum familiar do sexo masculino, algo que é desde logo mencionado por Teomnesto no inicio da acusação a Neera [(D.)59.11]. Ora, a mulher ideal traçada indiretamente por Apolodoro assemelha-se, no nosso parecer, a um passo de Semónides de Amorgos em Sátira Contra as Mulheres, ainda que não sejam contemporâneos (2.ªmetade do sécVII a.C.). Semónides não só enaltece a mulher que gera “uma bela e bem reputada progénie” – fator tão patenteado ao longo de todo o discurso de Apolodoro –, como refere o caracter reservado desta “fada do lar”, que não gosta de falar de sexo [fr.7West,vv90-91]. Outra ideia que parece ligar estes dois documentos é a de que a esposa deve permanecer em casa a cuidar da mesma, sendo desprezível aquela que não o faz; veja-se que Semónides critica esse tipo de mulher e a compara a uma porca [fr.7West,vv.2-4], e, semelhantemente, Apolodoro sublinha negativamente que Neera e Fano não conseguem gerir as suas casas [(D.)59.50]. 1

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No discurso acusativo de Apolodoro, fazem-se outras referências a atributos inaceitáveis numa esposa legítima: a desonestidade de Fano e a desobediência ao marido [(D.)59.51]; a embriaguez de Neera [(D.)59.33] – um estereótipo bem patenteado por Aristófanes na Lisistrata [vv200-209] –; a caracterização de Neera como “esbanjadora” [(D.)59.36] e a referência aos seus vestidos, joias e escravas que leva consigo quando abandona Frínion [(D.)59.35] – tema também ele comum na caracterização de qualidades negativas femininas em autores como Teócrito [vv34-37]. Ao longo de toda a acusação, a figura de Neera parece ser frequentemente caracterizada como interesseira e manipuladora, por se aproveitar várias vezes dos seus companheiros. Partindo da afirmação de Apolodoro, de que “as heteras nós as temos para o prazer, as concubinas para o cuidado diário do corpo, mas as esposas para que tenham filhos legítimos e mantenham a guarda fiel da casa” [(D.)59.122], entende-se hetera como uma cortesã, ainda que o autor pareça referir-se à prostituição em geral; a concubina (pallake) dedicar-se-ia aos cuidados quotidianos do corpo; e a gyne, mãe dos filhos legítimos, tinha por principal função ser a fiel guardiã do lar. E se da última já falámos, das primeiras ainda muito se poderá dizer: No episódio já mencionado da tentativa de persuasão do júri, Apolodoro demonstra como seria ultrajante para as suas esposas serem comparadas com a figura leviana de Neera e de sua filha, desde logo porque a figura da hetaira era associada à vida mundana, frequentando inclusivamente ambientes e eventos sociais reservados aos homens, desde banquetes privados às festas de Elêusis ou às grandes Panateneias [(D.)59.24], – opondo-se, com a sua liberdade, à vida silenciosa e reclusa das esposas legítimas, que passariam os seus dias no gineceu. As heteras tinham uma formação humana, cultural e social muito ampla, desde logo por contactarem com uma franja da sociedade importante, incluindo intelectuais, políticos e filósofos. Neste sentido, a hetaira era a cortesã de um elevado nível social, sendo importante referir que a grande maioria das heteras eram iniciadas na profissão sob a orientação de uma mulher experiente (que no caso de Neera foi Nicareta), ou mesmo sob a orientação da própria mãe [(D.)59.50]. Por seu turno, as pallakai assumiam a função de concubinas [(D.)59.118], chegando mesmo a dar filhos aos homens com quem conviviam e que as sustentavam. Neste sentido, aparecem com um estatuto intermédio entre a hetera e a esposa legítima, visto que eram companheiras de homens nas suas casas, espaços onde permanecem diariamente, que nem gyne. De destacar que os filhos de uma concubina podem ser reconhecidos, não tendo, contudo, o mesmo estatuto de legitimidade conferido aos filhos oferecidos pela gyne, legalmente casada. Ainda que de má reputação, a prostituição feminina era legal e vista como uma profissão, pelo que importa mencionar o papel da porne a prostituta comum, escrava ou livre, que ganhava a vida geralmente num bordel, ainda que esta não seja diretamente mencionada no Contra Neera. Sublinha-se que as “mulheres públicas” tinham um estatuto à margem da lei, como aliás é patenteado em todo o discurso de Apolodoro. Na verdade, estas mulheres poderiam ser livres, até mesmo cidadãs (ainda que fossem casos raros), mas o mais frequente era dedicarem-se a essas profissões desde pequenas por terem estatuto de escravas. Era uma realidade desta época crianças crescerem em bordéis para se tornarem prostitutas, por serem compradas em idade muito jovem – aliás, é essa a história de Neera [(D.)59.18-19]. Neera fora inicialmente escrava de Nicareta e ainda em “idade núbil” começa a “traficar o corpo” [(D.)59.22], tornando-se hetaira; avançando alguns episódios agitados de sua vida (nos quais é novamente comprada como escrava, mantendo contudo a sua profissão de cortesã), Neera torna-se amante e concubina de Estéfano, coabitando com o mesmo na casa deste, de modo semelhante a uma esposa, sem no entanto o ser, iniciando uma fase mais estável da sua vida. No exórdio do Contra Neera faz-se referência a atos de violência para com o sexo feminino: Apolodoro é acusado de espancar e matar uma mulher [(D.)59.9]. Ainda que não haja alusão ao estatuto da mulher, é possível deduzir-se que seria uma escrava, visto que o caso fora apresentado ao antigo santuário de Palas (Paládio), que julgava casos de homicídio de escravos, metecos ou estrangeiros. Episódios como este não seriam invulgares, mesmo com mulheres livres e cidadãs, como podemos inferir, por exemplo, do poema já aludido de Semónides, que canta a violência do sexo masculino para com a sogra: “Nenhum homem a refreia com ameaças, / nem que, zangado, lhe parta os dentes / à pedrada” [fr.7W, vv16-18]. O próprio incumprimento de certas leis por parte da mulher resultaria em castigos corporais, tal como é mencionado por Apolodoro quando especifica que a mulher se deve abster dos sacrifícios em Atenas (exceto a estrangeira e a escrava), e que, caso contrário, “sofram aquilo que se deve sofrer, exceto a morte”, não sendo o individuo que a castigar punido [(D.)59.85-86]. O autor explica assim o temor das mulheres, que resulta num caracter moderado, obediente e cumpridor das suas tarefas em casa. 2

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Docente: Luísa Nazaré Silva Ferreira Ana F. Amor Santos

Em suma, o Contra Neera apresenta-se como uma boa fonte de conhecimento para os diversos tipos de mulher de Atenas do século IV a.C., não só no concernente a heteras e concubinas, mas também a um modelo de esposa ideal. Face a outros documentos, parece-nos que o autor deste discurso acusativo, bem como a sociedade em que este se inseria, é herdeiro de um modo de olhar a mulher em construção há já vários séculos anteriores a si.

Bibliografia:  Apolodoro (2011), Contra Neera. Tradução do grego de G. Onelley. Introdução, notas e índice de Ana Lúcia Curado, Coimbra, Imprensa da Universidade.  Aristófanes (2010), Lisístrata. Introdução, tradução do grego e notas de Maria de Fátima Silva, in Aristófanes. Comédias II, Lisboa, IN-CM. (vv.200-209).  Onelley, G. B. (2012), O Estatuto Social da Cortesã no Contra Neera. Todas as Musas, n.º2, Jan-Jun 2012. (p.81-92).  Rodrigues, N.S. (2001), A mulher na Grécia Antiga, in M.C. Curado Santos (org.), A mulher na História. Actas dos Colóquios sobre a temática da mulher – 1999/2000. Câmara Municipal da Moita (81-104).  Teócrito (2009), Idílios. XV. (vv200-209). In: Rocha Pereira, M. H., Hélade. Antologia da Cultura Grega, Lisboa, Guimarães Editores, 2009 (10ªed.). (476-482).

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