A mulher grega: o corpo de Fedra na peça Hipólito de Eurípides

June 1, 2017 | Autor: Fernando Zorrer | Categoria: Greek Tragedy, Euripides, Phaedra, Euripides Hippolytus
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quando, ao final do século XIX, convoca uma verdade-mulher, maliciosa, leve, "superficial por profundidade", pele porosa a contatos e contágios, como uma abertura inventiva para novas formas de se viver e amar,

11 A MULHER GREGA:O CORPO DE FEDRA NA PEÇA HIPÓLlTO DE EURíPIDES

Notas 1

Cf, meu livro P1atão: as artimanhas do fingimento (Rio de Janeiro:

Relume Dumará, 1999), especialmente o último capítulo ("A potência cosmética da mimesili'), bem como o capítulo "Nietzsche: filosofia e paródia" do meu livro Nove variações sobre temas nietzschianos (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002), 2 Cf, a esse respeito Jacqueline Lichtenstein, A cor eloqüente (São Paulo: Siciliano, 1994), especialmente o capítulo "Da toalete platônica", p. 4750. 3 Anticristo, aforismo 48. Cf., igualmente, meu livro Nietzsche, o bufão dos deuses (Rio: Relume Dumará, 1994), p. 196-197. 4

Cf. Barbara Cassin, Ensaios sofisticos (São Paulo: Siciliano, 1990), p.

252 e 253. Não é irrelevante o fato de se tratar, aqui, de uma máquina de guerra. 5 Cf., em especial, o parágrafo 13 da primeira dissertação da Genea10gia da moral, em que Nietzsche remete a valoração moral e a negatividade que lhe é constituinte à perspectiva do ressentimento. 6 Cf. Paulo César de Souza, nota 3, p. 318 da edição brasileira de sua tradução de A gaia ciência, São Paulo, Companhia das Letras, 2001. 7 Cf., a esse respeito, o texto de Sarah Kofman "Baubô, perversion théo10gique et fétichisme", in Nietzsche et 1a scene phi10sophique, Paris, Galilée, 1986, p. 225-259, Jacques Derrida, Eperons (Jes sty1es de Nietzsche), Paris, Flammarion, 1978, bem como os dois capítulos finais de meu Nove variações sobre temas nietzschianos, op. cito 8 Cf. José Gil, Movimento tota1- o corpo e a dança, Lisboa, Relógio D'Água, 2001. 9 Ibid., p. 76. 10Cf. Michel Tournier, Sexta-feira ou os 1imbos do Pacifico, São Paulo, Difel, 1985, p. 60-61, bem como meu livro P1atão: as artimanhas do fingimento, op. cit., p. 58. 11 Na segunda cena do ato lI, uma conhecida passagem celebra e convoca o amor libertado, sem nenhuma separação mais: "Die Lieb ist frei gegeben/Und keine Trennung mehi'. 12

Cf. o capítulo "Teatro e máscaara no pensamento de Nietzsche", in Nove

variações sobre temas nietzschianos, op. cito 13Cf, os livros Amizade e estética da existência em Foucau1t (Rio de Janeiro: Graal, 1999), Para uma politica da amizade (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000) e Genea10gias da amizade (São Paulo: Iluminuras, 2002.) 14 Refiro-me aqui ao subtítulo e à tese do conhecido livro de Richard Sennett intitulado O declinio do homem público (São Paulo: Companhia das Letras, 1999, 6a reimpressão).

Fernando Crespim Zorrer da Silva

o nosso trabalho restringe-se à análise do corpo que sofre tanto de paixão como do desejo de destruição, Essa trama é desenvolvida na peça intitulada Hipólito (428 a. C,) do dramaturgo grego Eurípides. A heroína é Fedra, cujo esposo Teseu está ausente do palácio. Ela, por desígnios da deusa Afrodite, apaixona -se por Hipólito, que é o seu enteado. Anossa preocupação é justamente refletir a respeito da rainha, de sua sexualidade e trazer algumas contribuições a respeito da representação da mulher na sociedade grega. É importante frisarmos que Fedra comenta como suportou a sua paixão. No longo discurso que ela faz posteriormente, sobre a vida dos homens e sobre si mesma, v. 373-430, após ter revelado o seu segredo à sua criada de confiança, comenta que inicialmente decidiu calar e esconder a doença. De fato, ela considera que a paixão pelo enteado é uma doença. Numa segunda etapa, declara que iria suportá-Ia através da loucura. E por fim, confessa que, como não conseguiu vencer a deusa do amor, Afrodite, optou por morrer. É evidente a articulação lógica da personagem para impedir que os sentimentos dominem as suas ações e não destruam a si mesma. o coro da peça é formado por mulheres da cidade de Tresena, e esse nos fornece um retrato da rainha, antes que ela mesma tenha entrado em cena. A rainha está definhando, já não possui a mesma cabeça dourada e está no terceiro dia em jejum. Na peça, Fedra não revela como irá morrer nem fala em jejum ou explica o mecanismo que vai usar para acabar consigo mesma. Outro dado significativo é que ela não optou por cometer suicídio,

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como fará posteriormente. Por que usar de uma morte lenta e dolorosa e não aceitar algo rápido como o suicídio, deixando que o seu corpo esteja livre da paixão da qual sofre? Preferimos deixar a resposta em suspenso ainda. Fedra só em um segundo momento é que usa o suicídio, pois descobrira que Hipólito ficara sabendo da paixão através da ama. A rainha possui plena convicção de que está perdida. Assim, o suicídio só ocorre como uma forma de finalização de um processo que ela começara e o interrompera pelos reveses proporcionados por acontecimentos exteriores à sua vontade. O elemento do acaso será decisivo, pois, posteriormente, a rainha dirá, num lapso, que ama Hipólito. A ama, cuja fala surge após a do coro, critica Fedra por estar inquieta, por desejar ser transportada de um lugar a outro dentro do palácio. Já conhecemos a tortura interna da personagem desde o início da peça, pois, no prólogo, a deusa Afrodite contanos que Fedra sofre em silêncio e ninguém ainda conhece a paixão, v. 40. Walter Otto1 assinala que é devido a esta deusa que surge a inspiração pela qual alguém esquece do mundo pelo amor dedicado a um indivíduo. Na Teogonia de Hesíodo, v. 521, e no próprio Hipólito, v. 447, o poder da divindade é ressaltado e não há quem possa resisti-Io. Mas não só o poder de Afrodite é celebrado, mas o próprio amor é demonstrado em três peças como algo irresistível: lfigênia emAulis, v. 544; Hipólito, v. 525; Medéia, v. 6272. Além do jejum, o coro indaga por qual divindade Fedra estaria possuída, se por Pã, por Hécate, ou pelos coribantes, ou pela figura da Mãe das Montanhas3 . O coro nota corretamente os sintomas da paixão, visto que aproxima o estado emocional de Fedra com a possessão de alguém por uma divindade. Isso é definido como um momento no qual o sujeito não pratica ações que sejam reconhecidas como suas, pelas pessoas e com as quais ela convive diariamente. O ser é outro e pede passagem para algo mais profundo que está escondido e que pode requerer cuidado por aqueles que o rodeiam. Há algo de errado com a heroína. Apesar de o coro fazer indagações a respeito de seres diferentes, julgamos que possuem relações indiretas com a situação psicológica e afetiva da rainha.

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Dentre esses seres, merece destaque Pã, que se caracteriza por ser um animal mesclado a um homem. Entre Pã e o Minotauro, há uma correspondência de constituição, pois o corpo do primeiro possui atributos de animal e homem. Este deus possui uma formidável atividade sexual, já que se apaixona pelas ninfas e pelos mancebos4. De maneira indireta, isto se refere à sexualidade de Fedra que está em crise, como demonstram as futuras cenas de delírio. Na realidade, a sua rotina diária não lhe produz felicidade. A sexualidade do deus Pã também pode ser vinculada com Pasifae, mãe de Fedra, que teve um desejo incomum entre os mortais, que foi relacionar-se sexualmente com um touro. Isso, em uma específica linha de interpretação, serve de modelo para que Fedra se apaixone pelo enteado, ato que foge à normalidade e é completamente proibitivo. Igualmente podemos estabelecer uma relação entre a Mãe das Montanhas com a mãe de Fedra. Para a rainha, a imagem da mãe vem à tona, como algo que representa dor, sofrimento e humilhação, conforme ela se expressa na conversa que mantém com a ama nos versos 337-41. Ironicamente é indagado se Fedra não realizou sacrifícios a Dictina que, por sua vez, é identificada com Ártemis. Assim, o coro disserta sobre a paixão da rainha, sem conhecer justamente o que ela está experimentando. O coro diz que não sabe a respeito do mal que aflige Fedra, e essa negação torna-se um contraponto com aquilo que os espectadores já conheciam através do mito ou do que vieram a conhecer a partir do prólogo de Afrodite. Recebemos diversas pistas ou questões que se relacionam com a situação de Fedra. Se não existisse a fala de Afrodite, a primeira intervenção do coro prepararia o leitor/ espectador à compreensão da tragédia e dos sintomas que recaíram sobre Fedra. Paixão e desejo de destruição estão intimamente ligados ao corpo. Fedra não diz que está destruindo a si mesma por amor ao não possuir o ser amado. Como dissemos anteriormente, ela já decidira que não vale a pena conduzir adiante o que sente. Ela despreza os seus sentimentos e até uma possibilidade, mesmo qu~ remota, que possa transformar a sua vida. O definhamento do corpo reflete a destruição penosa que a personagem está fazendo

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com a sua vida. O corpo transforma-se na via de saída à morte. O corpo torna-se central e igualmente é o veículo da paixão, pois é através da destruição dele que a rainha terá a libertação dos sofrimentos que carrega dentro de si. Daí nasce um mote: se você tem uma paixão que não consegue suportar, destrua o seu corpo, aniquile-o, deixe-o sem forças para reagir. Eis o estratagema da rainha. Agora, quando Fedra surge em cena, as criadas procuram ajudá -Ia a levantar a cabeça, pegar as belas mãos, retirar um adereço que carrega nos cabelos, v. 198-202. O seu corpo está se desfazendo, e isto é demonstrado pela perda de características que a definem como uma rainha, ou seja, o corpo não está mais teso, não mantém a pose real, as mãos não estão firmes, ela não quer nada sobre a cabeça. Assim, temos o desmantelamento de três segmentos: a parte emocional, o corpo esgotado, e a vestimenta que a define como um ser civilizado, feminino, pertencente à classe nobre, cuja sexualidade é fechada em sua casa e em seu íntimo. O silêncio não é a solução para o que Fedra sente. O que ela guarda dentro de si é maior do que qualquer tipo de repressão. O corpo é a extensão visível do que se desenvolve dentro da personagem, tanto é que, de maneira repentina, Fedra começa a falar e manifesta idéias como o desejo de sair de casa, de ir caçar, correr nas florestas, beber a água dos regatos, deitar-se debaixo de uma árvore sobre um chão coberto de folhas e ficar ali a repousar, conforme os versos 208-211; 215-22; 228-231. Isso nos parece o motivo, talvez inconsciente, não percebido pela personagem, de que ela almeja ainda a satisfação do seu desejo amoroso. Assim, o plano que ela apresentara anteriormente, para repudiar a paixão por Hipólito, não se caracteriza por ser totalmente eficiente. Aqui vale uma observação importante. Quando Fedra revela que deseja levar o seu corpo a repousar sobre o prado, v. 211, na literatura grega este espaço possui uma visível conotação erótica5. Hipólito, nos versos 73 e 79, dissera que havia um prado no qual só aqueles que não têm o que aprender é que podiam ali

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entrar. Um recurso usado pelo dramaturgo e que consta de outras tragédias é a ironia6; no nosso texto, Fedra ainda tem o que ensinar a Hipólito, conforme v. 728-31. Na verdade, há um visível contra ponto entre a maneira como Hipólito e Fedra concebem o prad07, pois cada um deles o representa de modo diverso. Hipólito, além de restringir o lugar por questões religiosas, sacraliza, de maneira contrária ao que tem sido realizado até aquele momento no imaginário grego. Fedra segue a tradição e concede ao prado toda a sensualidade esperada, tentando fazer que o seu corpo descanse e desfrute da sexualidade que o desejo lhe imprime ao seu coração. Como indica J. M. Bremer, o lugar que Hipólito reserva à Ártemis é em vão que Fedra o deseja. Isso é a marca de quanto cada concepção das personagens está distante e tendem a não se encontrar, pois o prado não é compreendido dentro dos mesmos parâmetros. As emoções, e isso não só nesta tragédia, mas em outras de Eurípides, como em Medéia, perturbam a razão e a personagem entra em crise, pois não consegue controlá-Ias e descobrir um mecanismo que possa não produzir a destruição para si mesma e para os outros. Fedra e Medéia tornam-se extremamente perigosas com os outros que lhe estão próximos. Fedra tem filhos do segundo casamento, mas não pensa em machucá -los, como faz Medéia que os mata, mesmo que por diversas vezes duvide em praticar essa ação. Na polarização que se pode realizar com os seres que se ama, Fedra ajuda a matar Hipólito, mas não mata os filhos que são de Teseu, ao passo que Medéia não mata o ser que ama, que é Jasão, contudo, os filhos do casamento recebem os reveses do matrimônio. O que se depreende é que o ser que é rejeitado, que recebe um alto grau de insatisfação, espalha sobre quem os despreza o terror da aniquilação, como Medéia assassina os filhos com punhaladas, mesmo que eles não sejam o motivo (Medéia sabe que Jasão aprecia os seus filhos, e atingindo-os, ferirá a Jasão) e Fedra que incrimina o enteado, utilizando-se de um recurso sofisticado que é uma carta que foi escrita antes de suicidar-se. Cada uma dessas manifestações de Fedra emerge, não de maneira deliberada, mas originam-se de alguém que é despido

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de todas as amarras que a definem como uma mulher presa ao palácio. Após cada uma destas proclamações, a ama intervém, reprimindo-a, pede que silencie. A criada faz uma sugestão que as falas são produzidas pela loucura. Ela teme até que outras pessoas escutem as frases de Fedra, v. 213. É evidente que o conteúdo das falas relaciona -se diretamente com lugares nos quais Hipólito freqüenta ou atos que ele aprecia em companhia de sua deusa predileta, Ártemis, irmã do deus ApoIo. Da mesma forma que o coro, que não sabe o que está ocorrendo com Fedra, mas aproxima-se através de palpites, a intervenção da ama realça o quanto há de irônico em algumas passagens da tragédia Hipólito. Realmente Fedra sofre de loucura, daí a ironia, pois sabemos que ela está possuída pela paixão, mas ninguém mais sabe, só Mrodite. O desejo erótico da rainha permite que o corpo torne-se livre, disposto a fazer movimentos que fogem da rotina restrita na casa, mesmo que seja em delírios. No âmbito social, as falas de Fedra expressam desejos que sugerem uma liberdade inaceitável para uma mulher do mundo grego. Normalmente ela não sai de casas, talvez só aquela que necessitava buscar meios para sobreviver. A mulher é só vista fora de casa quando ia aos cultos públicos. Quando a mulher casava, ela renunciava a diversos aspectos de sua vida, como a família, as amizades, e ficava trancada dentro de casa, cuidando dos bens e dos filhos. Outras atividades não lhe eram permitidas. A própria estrutura da casa ajudava neste aspecto, pois havia uma única porta que fazia contato com a rua9. Há diversas passagens nas tragédias, não só nas de Eurípides, mas nas de Ésquilo e Sófocles, que enfatizam que a mulher, ao estar à rua, fora da casa ou dos recintos, comete grave deslize no seu comportamento. No plano narrativo da tragédia que estamos analisando, tudo começa quando Fedra viu Hipólito e, a partir deste momento, ficou possuída, v. 27. Nesse contexto, o olhar relaciona-se mais ao corpo do que à razão. A teórica Barbara E. Gofro entende esta temática da seguinte forma: no universo grego, o olho representa um lugar do desejo e é através do olhar que ocorrem momentos de pudor e de transgressão, e até do começo da paixão. A teórica

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não menciona o texto O elogio de Helena de Górgiasll, que faz referência aoolhar. Ali o filósofo indaga qual o motivo de Helena, ao olhar PáIiis,ter-se apaixonado por ele. Olhar e apaixonar-se não se constiltuem atos criminosos, no entendimento do sofista. No texto de Eurípides, a mulher é a origem da visão, não o seu objeto. Isto significa que a mulher é agente, sujeito da ação amorosa. BaJl'baraE. Gofftambém destaca que, em contraposição ao fato de Fedra ter olhado Hipólito, este não enxerga Ártemis, deusa com 11qual mantém uma relação de companheirismo. Acreditamos que essencial é a mulher agindo na escolha do parceiro, e esta ação salienta o seu poder e o direito em expressar um desejo que se multiplica na peça, mesmo dentro de uma sociedade patriarcal. A justaposição entre Hipólito e Fedra demonstra que a rainha terá o domínio da situação; ela é quem vê, apaixona-se e decide sobre uma relação amorosa que nunca ocorreu e que fora sugerida durante toda a peça. Ainda sobre a sexualidade da mulher, tema que está em estreita relação com o corpo, são importantes outras considerações paralelas na cultura e no imaginário grego. O teórico Ken

Dowden 12 julga que a imagem da mulher está sujeita de modo desproporcional às paixões. Ele cita uma narrativa grotesca que envolve Tirésias, pois havia sido mulher e homem em sua vida. Quando Zeus e Hera disputavam sobre quem desfrutava mais no amor, se o homem ou a mulher, resolveram perguntar ao sábio. Tirésias respondeu que, se o prazer fosse dividido em dez partes, os homens ficariam só com uma e a mulher com novel3, ou seja, elas gozavam mais que os homens. Dowden confessa que, apesar das dificuldades para tratar da questão, a disposição da casa e o véu foram mecanismos para conter a sexualidade da mulher na época clássica. O quadro que temos da paixão de Fedra nos expõe esta dimensão excepcional e forte que a imagem do feminino carregava na Antigüidade Clássica. Como já declaramos anteriormente ao remeter-nos ao texto de Eurípides, Fedra pede que as servas tirem alguns acessórios que fazem parte da vestimenta, conforme os versos 198-202. O vestuário atua como um limite sobre o corpo, demarca a interação com a sociedade; além disso, a cabeça deve ser coberta com véu,

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simbolicamente ou não, impedindo que o olhar da mulher possa desejar mais do que deve. Somente depois que se tirou tais empecilhos é que ela pôde revelar o que estava se desenvolvendo em seu ser e que tipos de questões estavam deixando-a perturbada. Merece destaque que, mesmo Fedra, provavelmente com o véu, conseguiu enxergar o enteado e apaixonar-se.

pejorativo. Na transição da jovem para o casamento, é vinculada a idéia de que a mulher procede de um estado selvagem e o casamento serve justamente para amansá -Ia. Outrossim, temos o registro, em vasos, cenas de perseguição, no qual há, pelo menos, um homem que persegue uma mulher. Na verdade, a cena funciona como metáfora do casamento19 e há a idéia de que a mulher consiste em um ser selvagem e que necessita ser domesticado.

Quanto ao corpo de Hipólito, Fedra não o toca14. O homem é um ser proibido e constitui -se no motivo de destruição para ela. Há uma longa tradição na crítica literária que analisou o par Hipólito/Fedra da seguinte forma: o primeiro seria exemplo da castidade, enquanto que a mulher é a portadora da lascívia15. Ken Dowden destaca um fragmento da obra de Eurípides que revela o medo e ao mesmo tempo o poder que as mulheres carregam dentro de si. O texto é o seguinte: "Não existe parede ou posse,lnem nada tão difícil de vigiar que uma mulher"16, Dânae, frag. 322. Assim, isso se relaciona ao fato de que, mesmo com diversos mecanismos de obstrução, para conter o furor da paixão, exteriores ou internos como as suas decisões e a vontade de morte, tais aspectos não impediram que Fedra desejasse um ser proibido. Se fizermos uma pequena investigação da representação da mulher na obra de Homero, constataremos problemas similares de concepção quanto ao corpo feminino e ao seu lugar dentro da sociedade. Segundo Dowden17, há o contraste entre Penélope, inteligente e responsável, em contraposição com Calipso que se entrega aos prazeres, conforme é relatado na Odisséia. A sexualidade ainda é perturbadora para os homens e merece toda a cautela, já que no Canto X, v. 301, Ulisses é avisado por Hermes do cuidado que deve ter com Circe, pois pode perder a masculinidade e ficar como os seus colegas a agirem como porcos. Além disso, julgamos que, se o menosprezo dos homens contra as mulheres é um topos na poesia grega, não é menos verdade também o medo dos homens diante da sexualidade feminina. Há inúmeros exemplos que revelam claramente isto: a mulher é um animal que deve ser domado. O teórico John Gold18esclarece que as virgens são encaradas como seres selvagens e indomáveis. As jovens são potros não amansados. As mulheres também são encaradas como cadelas no sentido sexual, mas não no aspecto

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A caracterização da personagem Fedra na Antigüidade Clássica não passou despercebida por dois fatos relevantes. O primeiro é a reescrita do mito de Hipólito e Fedra por Eurípides, pois o texto que estamos analisando corresponde ao segundo. Isso se deve à má recepção do primeiro, intitulado Hipólito Velado. O motivo central provavelmente envolve a cena na qual Fedra declarava diretamente a sua paixão a Hipólito e este fato não agradou ao público. Um outro motivo é que Fedra e a personagem Estenobéia (só temos fragmentos da peça que atua esta personagem) são duramente censuradas por Aristófanes na comédia As rãs, v. 1043-44. Estes dois aspectos ajudam-nos a entender que os avanços femininos desenvolvidos por Eurípides foram alvo de críticas pelos seus contemporâneos. Na verdade, o dramaturgo grego foi aquele que deu a palavra a setores da sociedade que não tinham direito de utilizá-la2O.

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Gostaríamos de enfatizar que o corpo de Fedra reflete aquilo que o seu interior sofre e isto não é algo que nos surpreenda. Como o texto deixa claro, Fedra retira as vestimentas que fazem mal ao seu corpo e somente depois é que ela expressa o seu desejo sexual e amoroso pelo enteado de modo metafórico. Sabemos da proibição e dos castigos que a rainha teria por desejar qualquer tipo de homem e mais ainda aqueles que estão em alguma relação sangüínea. Importante é o que fazer com o desejo e com o corpo quando não podem ser satisfeitos. Apresentamos inúmeras referências oriundas da cultura grega que assinalam a dificuldade de como o desejo feminino é considerado na sociedade. O final trágico pelo qual se encaminha a peça Hipólito é resultado de uma série de motivos, mas, sem dúvida, a falta de interação entre mente e o corpo são responsáveis diretamente pelo desfecho

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do drama. Finalizamos, indagando o que devemos fazer com o desejo feminino: ocultá -10,reprimi -10,confiná -10em um calabouço ou conciliá-lo com a sua realidade social?

EPílOGO 1 A POLACA SANTA E AS PROFISSÕESFEMININAS

Notas OTTO, Walter. Les dieux de 1a Gnke: Ia figure du divin au miroir de l'esprit grec. Trad. Claude- Nicolas Grimbert e ArmeI Morgant. Paris: Payot, 1993. 2 SPRANGER, J. A. The attitude of Euripides towards love and marriage. The C1assica1 Review, Oxford, v. 24, p. 4-5, 1910. 3 A Mãe das Montanhas é identificada com Cibele, uma divindade que era originariamente dignificada na Frigia, mas que tinha diversos santuários na Grécia. Ela é associada como mestra dos animais. 4 GRlMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 2. ed. Trad. Victor Jabouille. Lisboa: Difel, 1993. 5 BREMER, J. M. The meadow of love and two passages in Euripides'Hippo1ytus. Mnemosyne, Paises Baixos, v. 28, fase. 3, p. 268280, 1975. 6 SEID ENSTI CKER, Bernd. Comic elements in Euripides' Bacchae. The American Journa1 of Philo1ogy, v. 99, p. 303-20, 1978. 7 SEGAL, Charles P. The tragedy of the Hippolytus: the waters of ocean 1

and the untouched meadow. 70, p. 117-169, 1965. 8

Harvard

Studies

in C1assica1 Phi1o1ogy,

MOSSE, Claude. La mujer en 1a Grecia c1ásica. Trad. Celia Maria

Sánchez. 3. ed. Madri: Nerea, 1990. 9 GOULD, John. Law, custom and myth: aspects of the social position women in classical Athens. The Journa1 of Hellenic Studies, Londres, 100, p. 38-59, 10

voI.

of v.

1980.

GOFF, E. Barbara. The noose of words: readings of desire, violence &

language in Euripides' Hippolytos. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 11 GÓRGIAS. Fragmentos e testemunhos. (sofista grego, século V a. C.). Tradução, comentário e notas de Manuel José de Sousa Barbosa e Inês Luisa de Ornellas e Castro. Lisboa: Colibri, 1993. (Mare Nostrum) 12DOWDEN, Ken. Os usos da mitologia grega. Trad. Cid Knipel Moreira. Campinas: Papirus, 1994. 13 Ver 111,vi, 7-8, p. 366-7 que se localiza em APPOLODORUS. The Library. Londres: Harvard University Press, 1954. 14

A personagem Fedra do dramaturgo romano Sêneca consegue tocá-Io.

15KOVACS, David. The heroic muse. Hopkins University Press, 1987.

Baltimore

e Londres:

The Johns

NAUCK, Augustus. Euripidis Tragoediae. Lipsiae: B.G. Teubneri, 1869. DOWDEN, op. cito 18 GOLD, John, lococito 16

17 19

SOURVINOU-INWOOD, and meanings. 153, 1987.

20

GOFF, Barbara

Christiane.

The Journa1

E., loco cito

of Hellenic

A series of erotic pursuits: Studies,

Londres,

images

V. 107, p. 131-

Álvaro L. M. Valls

Minha mãe tem antepassados

no nordeste

brasileiro.

Pesquisando sobre eles, encontrei uma curiosidade que pode servir como nosso ponto de partida. Um membro dessa família foi Juiz em Mossoró e, conforme conta Maria Yolanda Montenegro Tavares: A Constituição de 1891 ainda vigorava em 1926 quando houve uma eleição para Presidente da República. Mulheres não tinham então direito ao voto. Uma mulher, da família Viana, desejando votar e não vendo proibição explícita na Constituição contra o voto feminino, apenas omitia a palavra mulher, afirmando que: "Todo brasileiro tem o direito de votar e ser votado", ela recorreu, insistindo junto ao Juiz, Dr. Montenegro, e como ele não viu proibição expressa ao voto da mulher, mandou expedir título de eleitora para ela por sentença jurídica. Saindo vencedora do caso, ela foi a primeira mulher a votar na América Latina. 1 A primeira reação, diante dessa anedota, seria de orgulho familiar, se não me desse conta em seguida de que o fato ocorreu em 1926, já na época, portanto, da infância de minha mãe, ou seja, apenas uma geração antes da minha. Parece então que mais correto seria nos envergonharmos da democracia latinoamericana. - Estudando, porém, a vida e a obra de Edith Stein, nascida em Breslau, em 1891, e morta em Auschwitz, em 1942, uma filósofa judia alemã, nascida em terras da atual Polônia e

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