A Música e a Voz nos Livros de Cavalarias Portugueses

May 30, 2017 | Autor: Margarida Sa | Categoria: Idade Média, Cavalaria, Idade Moderna
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Margarida Santos Alpalhão A Música e a Voz nos Livros de Cavalarias Portugueses Colaboradora do Centro de Estudos sobre o Imaginário Literário (CEIL), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Av. de Berna, 26 C, Edifício ID sala 2.08, 1069-061 Lisboa, Tel. 217908300 ext. 1579, [email protected]

Resumo: The main objective of this paper is to beginning the collection of events and look for lines of interpretation for the presence of music and the voice of some characters in the works considered as romances of chivalry. This search begin using two Portuguese texts – Palmerin of England, by Francisco de Moraes and Memorial das Proezas da Segunda Tauola Redonda, by Jorge Ferreira de Vasconcelos – without however fail to note that there are several Spanish texts that could also be called from this point of view.

Palavras-chave: Romances of chivalry, music, musical instruments, voice

Constitui objectivo deste trabalho iniciar a recolha de ocorrências e procurar linhas de interpretação para a presença da música e da voz de algumas personagens nas obras consideradas no conjunto dos livros de cavalarias. Refira-se, desde já, que se entende aqui a voz como a expressão do canto, ou «som produzido pelo aparelho fonador enquanto instrumento musical» 1, e a música como «combinação harmoniosa e expressiva de sons»2. Encetaremos este percurso recorrendo a dois textos portugueses, sem no entanto deixar de anotar que há vários textos castelhanos que também poderão ser convocados deste ponto de vista, como, por exemplo, o pretensamente terminal El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha. A este propósito, e no mesmo tom do autor, não será inútil

1

A. HOUAISS e M. S. VILLAR, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, Lisboa 2002, 6 vols, s.v. voz. 2 HOUAISS e VILLAR, Dicionário Houaiss, cit., s.v. música.

lembrar que foi por causa de um apito de cana, tocado por um capador de porcos, que o protagonista decidiu abraçar a ordem de cavalaria 3. Vejamos, no entanto, que lugar a música e o canto ocupam em outras manifestações, também artísticas, medievais e renascentistas, antes de nos dedicarmos com detalhe ao texto literário.

José Augusto Alegria escreveu que, «para as primeiras gerações cristãs, o canto foi sempre um estímulo destinado a solenizar os actos comunitários do culto. (…) Este nobre sentido atribuído ao verbo cantar anda expresso na conhecida sentença de S. Agostinho quando diz que “cantare et psallere negotium est amantium” o que significa: “Só quem ama sabe cantar e salmear capazmente”»4. Estamos a referir uma época longínqua e um olhar marcadamente religioso sobre o canto, muito diferente daquele que se encontrará no final da Idade Média e início da Idade Moderna e que resulta da laicização da utilização da música, como a encontramos nos livros de cavalarias que, como se sabe, têm a sua época áurea na Península Ibérica no século XVI, época posterior à das gestas e cantares da Idade Média peninsular tardia 5 (relembre-se, a este título, o Campeador6 ou o Lidador7), e da lírica peninsular, comprovadamente musicada, recolhida

nos Cancioneiros, designadamente no

Cancioneiro da Ajuda8.

3

, M. de Cervantes Saavedra, El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha I, 5.ª ed., de L. A.

MURILLO, Editorial Castalia, Madrid 1991, p. 87: «Estando en esto, llegó acaso a la venta un castrador de

puercos, y así como llegó sonó su silbato de cañas cuatro o cinco veces, con lo cual acabó de confirmar Don Quijote que estaba en algún famoso castillo, y que le servían con música, y que el abadejo eran truchas, el pan candeal, y las rameras damas, y el ventero castellano del castillo; y con esto daba por bien empleada su determinación y salida. Mas lo que más le fatigaba era el no verse armado caballero, por parecerle que no se podría poner legítimamente en aventura alguna sin recibir la órden de caballería». Sobre esta obra e a oitava continuação amadisina, Lisuarte de Grecia, de Juan Díaz, (1526), veja-se J. F. S. CARBONELL, «De Rolandín el músico al Caballero de los espejos: Cervantes y el segundo Lisuarte de Grecia», Lemir 12 (2008), 275-288, (1-11-2010) URL= http://parnaseo.uv.es/lemir/Revista/Revista12/Revista12.htm. 4 J. A. ALEGRIA, O ensino e a prática da música nas Sés de Portugal (da Reconquista aos fins do século XVI), Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa 1985, p. 24. 5 C. GEORGES elenca as obras espanholas classificáveis neste conjunto em «”Cantares” et “romances” (simple aperçu)», Bulletin Hispanique, t. 47, n.°1 (1945) 5-25. 6 Poema de Mío Cid, edição de C. SMITH, Catedra, Madrid 1991. 7 «Gonçalo Mendes da Maia, o “Lidador”», in Narrativas dos Livros de Linhagens, selecção, introdução e comentários de J. MATTOSO, INCM, Lisboa 1983, p. 41-43. 8 Cancioneiro da Ajuda, ed. C. M. de VASCONCELLOS, INCM, Lisboa 1990, 2 vols.

Não será inócuo que, neste (e para este) percurso, a literatura, e principalmente a crítica, se sirva de palavras da família do verbo cantar para mencionar diferentes produções e recolhas literárias. Do mesmo modo não será de estranhar que as duas artes assentassem parte da sua existência na memória humana, conforme documentam, quer José Alegria 9, quer Paul Zumthor10. As próprias iluminuras de múltiplas obras produzidas na Idade Média ou no Renascimento permitem uma leitura interessante para o imaginário relativo à música 11 e reveladora da ligação que esta arte teria com o(s) texto(s) e com o próprio contexto social. Se olharmos para os quinhentistas livros de horas de D. Fernando e D. Manuel I, por exemplo, verificamos que a trombeta, o alaúde e a corneta12, marcam presença, nos meses de Fevereiro, Abril, Maio e Dezembro: a trombeta no de D. Fernando (Maio), o alaúde no de D. Manuel (Abril), e a corneta também nesta obra (Fevereiro e Dezembro)13. E poder-se-iam arrolar aqui inúmeros outros exemplos, como aqueles que encontramos no catálogo da exposição A imagem do Tempo, no qual as iluminuras reproduzidas nos permitem assistir a momentos diversos acompanhados de música: um jantar do rei Ricardo de Inglaterra ao som de trombetas; uma tarde dançante no simbólico jardim do Roman de la Rose, onde os músicos tocam dois instrumentos de sopro e um de percussão e uma harpa; uma dança de pastores, ao som da gaita-de-foles, celebrando a Boa Nova; uma oração do rei David, acompanhado por músicos que tocam trombetas e outro instrumento de sopro, harpa, rabeca, alaúde e órgão; outros momentos da vida do rei David em que o próprio toca harpa e carrilhão; um momento de devoção mariana de René de Lorena, secundado por dois anjos que tocam harpa e alaúde, ou, para concluir, observar um missal que contém um rei David, tocador de harpa, com

9

ALEGRIA, O ensino e a prática da música, cit., p. 31. P. ZUMTHOR, «Mémoire et communauté», em La lettre et la Voix, Seuil, Paris 1987, p. 155-177. 11 E que permitiu o artigo de C. PAGE, «Biblical Instruments in Medieval Manuscript Illustration», Early 10

Music, Vol. 5, N.º 3 (Julho 1977) 299-309. 12 Instrumento também mencionado como «corneta de caça, parente da trompa», por J. de F. BRANCO em A música na obra de Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa 1979, p. 14. 13 Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, Livro de Horas de D. Fernando, f. 5v e Livro de Horas de D. Manuel I, ff. 9v, 6v e 22v.

feições de D. Manuel I de Portugal14. E se preferirmos observar iluminuras em contexto cavaleiresco também não é difícil. Para começar bastará observar os trombeteiros inclusos nas iluminuras que compõem Le Livre des Tournois du Roi René15 ou ler o, em temos interpretativos, cauteloso, mas ilustrado, capítulo «les animaux musiciens» que Sophie Cassagnes-Brouquet publicou, há pouco, a propósito dos manuscritos iluminados da matéria de Bretanha existentes na Biblioteca Municipal de Rennes16. Não podemos esquecer, neste âmbito, e porque foram geradoras de imagens interpretáveis do ponto de vista de várias ciências, que é também durante a Idade Média que ganham forma e consistência as entradas régias ou triunfais nas cidades, actos que François Autrand classifica como uma festa17, e que os momentos de óbito também eram solenizados e acompanhados de várias manifestações, designadamente musicais 18. O próprio Livre des Tournois du Roi René, acabado de referir, mostra exemplos iconográficos de uma entrada triunfal, acompanhada de trombetas, e o Livro de Horas de D. Manuel I apresenta a cerimónia de enterro do rei, ainda que não tenha sido possível descortinar qualquer instrumento musical nas iluminuras observadas, como se poderia esperar, segundo o retrato que Damião de Góis faz do rei: «Tinha a voz clara, & bem entoada (…). Foi mui musico de vontade, tanto que as mais das vezes que estaua em despacho, & sempre pela sesta, & depois que se lançaua na cama, era com ter musica, & assi para esta musica de camara, como para sua capella tinha estremados cantores, & tangedores, que lhe vinhaõ de todalas partes Deuropa (…). Todolos domingos, & dias sanctos jantaua & ceaua com musica, de charamelas, saquabuxas, cornetas, arpas, tamboris, & rabecas & nas festas principaes com atabales, & trombetas, que todos em quanto comiam tangiam cada hum per seu gyro, alem destes tinha musicos mouriscos, que cantauam, & tangiam com alaúdes,

14

A. A. NASCIMENTO (Coord.), A Imagem do Tempo. Livros manuscritos ocidentais, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa s/d [2000], p. 230 e 263; 285; 299; 305, 307, 319-321, respectivamente. 15 Le Livre des Tournois du Roi René, Éditions Herscher, Paris 1996. 16 S. CASSAGNES-BROUQUET e M. CLOUZOT, Les romans de la table ronde. Premières images de l’univers arthurien, Presses Universitaires de Rennes /Bibliothèque de Rennes Métropole, Rennes 2009, p. 106-113. 17 Veja-se, sobre o assunto, F. AUTRAND, «L’allée du roi dans les pays de Languedoc 1272-1390», em La circulation des nouvelles au Moyen Âge, Paris, Publications de la Sorbonne /École Française de Rome, 1994, p. 95. 18 Uma introdução a este assunto, em contexto português, encontra-se no capítulo «O grande espectáculo da vida e da morte», em A. M. ALVES, «A etiqueta de corte no período manuelino», Nova História, n.º 1 (1984) 15-18. Ainda desta autora, sobre o assunto anterior, veja-se As entradas régias portuguesas: uma visão de conjunto, Livros Horizonte, Lisboa 1983.

& pandeiros, ao som dos quaes, & assi das charamelas, harpas, rabecas, & tamboris dançauam os moços fidalgos durando o jantar…»19

Com efeito, secundando o movimento europeu nascido antes, no século XVI em Portugal verificaram-se mudanças significativas na prática e ensino da música, actividade a que se dedicaram também os humanistas, até porque a música «de acordo com os ideais cavalheirescos (...) era uma componente essencial da formação cultural de um fidalgo»20.

Veja-se agora, socorrendo-nos dos livros de cavalarias, como a música e o canto emergem em contexto literário, anunciando (e denunciando) a sua utilização em contexto secular. Francisco de Moraes, no seu Palmeirim de Inglaterra (comprovadamente de 1543 ou 44), dando corpo ao empréstimo entre Literatura e História sobre o qual vários críticos se têm debruçado, não deixa de, manifestamente, convocar a música. Na obra não faltam ocasiões em que as trombetas anunciam o princípio e o fim de torneios e batalhas, como acontece, por exemplo, logo no início, no torneio de investidura dos cavaleiros novéis: «E por esta causa houve tantos, posto que em comparaçam bem poucos pera os da outra banda que eram mais de dous mil. E postos em ordem ao tocar das trombetas remeterom de cada parte com tamanho impeto como a cobiça da honra traz, onde s’ela deseja alcançar.» (…) «O Emperador mandou tocar as trombetas e recolher cada um a sua capitania»21.

Ou no torneio que celebra a libertação de Dom Duardos e demais cavaleiros, opondo os ingleses aos cavaleiros da corte do imperador Palmeirim de Oliva:

19

D. GOES, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, Officina de Miguel Manescal da Costa, Lisboa 1749, p. 595. 20 R. V. NERY e P. F. CASTRO, História da Música, Comissariado para Europália91 - Portugal/ INCM, Lisboa 1991, p. 26. 21 F. de Moraes, Palmeirim de Inglaterra, ed. M. ALPALHÃO, in O Amor nos Livros de Cavalarias – O Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Moraes: edição e estudo, Tese de Doutoramento em Línguas e Literaturas Românicas, apresentada à Universidade Nova de Lisboa, 2009, Cap.º XII, p. 178 e 182, respectivamente.

«As trombetas foram logo tocadas a sinal de começarem.» (…) «El Rei vendo que os ingreses iam de vencida e de todo desbaratados, mandou tocar as trombetas em sinal d’acabarem. O príncipe Graciano recolheo os seus que sairom do campo tam contentes e oufanos quanto o preço e o gosto da vitoria merecia. E assi envoltos no sangue de seu vencimento juntamente com os tres companheiros se vierom aos cadafalsos pera acompanhar el Rei e a Rainha com os mais senhores e princesas, que decerom tam acompanhados d’estormentos, charamelas e trombetas, atabales e outros de outras maneiras conformes ao dia e a seu contentamento quanto pera tais principes e tamanho alvoroço parecia necessario22.»

E, na parte final da obra, na primeira das batalhas de que decorrerá a destruição de Constantinopla: «Assentado tudo e postos a ponto, com maior e mais sinalado e temeroso estrondo do mundo ao som de muitas trombetas tocadas de cada parte romperom as primeiras batalhas do Soldam de Persia onde houve notaveis encontros …» (…) «A este tempo por ser ja tarde de cada parte se tocarom as trombetas a recolher, acodindo cada um a sua capitania»23.

Também em entradas triunfais se encontram ecos, na literatura, de factos documentáveis historicamente. E a música marca presença quando Arnedos, rei de França, e Recindos, rei de Espanha, chegam à corte de Palmeirim de Oliva para o casamento dos cavaleiros mais nomeados da obra (Florendos, Palmeirim, Graciano de França, Beroldo de Espanha, Platir, Francião, Rosuel, Belisarte, Dramiante, Frisol, Dramusiando e Lionarda, rainha de Trácia, com Floriano, …):

«Como o dia que chegarom ao porto fosse sereno e alegre, deu muita graça à armada que coalhava o mar, contentava os amigos, assombrava o povo e a terra, com tiros d’artilharia, trombetas e cheremelas e outros instrumentos conformes ao lugar e ao aparato da frota»24.

Francisco de Moraes redigiu ainda um outro motivo de encontro entre música e literatura: de entre os muitos cavaleiros da obra, um é mesmo apelidado de “o Musico”: 22

F. de Moraes, Palmeirim de Inglaterra, cit., Cap.º XLVI, p. 330 e 333-334, respectivamente. F. de Moraes, Palmeirim de Inglaterra, cit., Cap.º CLXVI, p. 1096 e 1109, respectivamente. 24 F. de Moraes, Palmeirim de Inglaterra, cit., Cap.º CL, p. 996. 23

trata-se de Francião, filho de Polendos, rei de Tessália, e «da fermosa Francelina»25, que é armado cavaleiro conjuntamente com Palmeirim e que participa no torneio e no serão que se segue à cerimónia, dançando com Bernarda, filha de Belcar, duque de Ponto e Duraço. No entanto, o cavaleiro que se revela executor musical não é Francião, mas Floramão. Também designado Cavaleiro da Morte e Cavaleiro Negro, Floramão vive uma vida solitária após a morte da sua donzela, Altea, momento em que Palmeirim o encontra: «dentro de aqueles edeficios ouvio tocar um instrumento de cordas que por estar algum tanto longe nam soube conhecer o que era, porem o som dele que por baixo dos arvoredos vinha rompendo lhe avivou os espritos pêra ter mas que sentir e mais de que se aqueixar, porque nos corações namorados estas sam as faiscas com que se mais acende o fogo em que ardem, e indo contra aquela parte nam entrou muito pelos edeficios quando em a das çoteas que neles havia, qu’era d’aboboda, vio estar um homem vestido de negro, a barba grande e crecida, a pessoa grave, e no sembrante do rosto representava tristeza e vida descontente, tocava um cravo de vozes grandes, que soava tanto ao longe, que podia ouvir-se fora no campo. A harmonia do qual detendo-se na concavidade de aquela aboboda, fazia o som tam singular que por força quem o ouvisse se enlevava de maneira que, perdido o sentido, causava esquecimento de todalas outras cousas, e ele de quando em quando acodia com alguns vilancetes tristes conformes à sua tençam.» (…) Depois sabendo daqueles edificios que ali estavam e achando a maneira deles conforme a sua condiçam e vida, levou ali o corpo de Altea sua senhora, e fazendo sua habitaçam naquela cova, como atras se disse, despendia os dias e noites na contemplaçam de seu cuidado e duçura de sua musica, no qual exercicio era excelente e universal, tendo consigo toda maneira d’istrumentos que mandara trazer de Costantinopla que daí duas jornadas estava, passava com eles sua vida solitaria, porque nestes casos musica é rainha dos outros remedios, ou ao menos peja e ocupa o tempo aa tristeza que mate mais ao longe»26.

Temos, portanto, a função da música claramente enunciada em situações de amores contrariados: a música é a «rainha» dos remédios. E o texto confirma o diagnóstico enunciado ainda a propósito de outro cavaleiro – Florendos –, que, enquanto proibido

25

F. de Moraes, Palmeirim de Inglaterra, cit., Cap.º XI, p. 176.

26

F. de Moraes, Palmeirim de Inglaterra, cit., Cap.º XIX, p. 204 e 208, respectivamente.

pela sua donzela de pegar em armas, se dedica à vida contemplativa nas margens do Tejo, onde encontra Floramão 27: «E acordando achou-se a si e ao penedo cercado d as ovelhas que arredor dele e

sombra duns

freixos passavam a sesta. O pastor qu’as guardava sentado no alto do penedo tocava de quando em quando a frauta com vilancetes e cantigas tam namoradas e bem compostas, que nam parecia de homem de sorte tam baixa, aas vezes deixava de tanjer e com seu gado ao redor praticava suas dores como quem nam estava isento delas, e de mestura co’estas palavras acudia com sospiros cansados, que faziam a quem os ouvia ter em muito sua pena»28.

Num outro momento, chegando perto do castelo de Almourol, onde se encontram Florendos e Floramão, são três cavaleiros (Beroldo, Platir e Daliarte) que se dedicam ao canto: «Todos juntamente vinham cantando a tres vozes c’os elmos tirados um vilancete tam entoado e d a soada tam galante e bem composta quanto na realidade da musica se podia achar. Como o principe Floramam de seu natural fosse musico, pareceo-lhe tam bem aquele vilancete, que o julgou pola milhor cousa que nunca vira, porque alem das falas serem singulares e eles cantarem concertadamente, a menh que pera isso era a mais graciosa que a natureza podera dar, juntamente co’as ramas dos altos arvoredos por baixo dos quaes o tom vinha soando com a saudade contemplativa e namorada. Dava tanta graça ao cantar que se nam podia mais esperar d’homens humanos. Depois disso o 1 7c rumor das agoas do Tejo era tam pequeno e elas corriam tam sossegadas e com a clareza tam viva que tudo parecia que seguia a consonancia. E posto que Florendos e Miraguarda muito folgassem d’os ouvir, soo Floramam desejava que nam tivesse fim e enquanto se o vilancete cantava 1 7d por lhe nam esquecer o escreveo no tronco d a arvore como ja outra vez fezera cortando as letras nele, que depois crecerom a compasso com o mesmo tronco e estiverom nela tanto tempo té que o mesmo tempo consomio e gastou a arvore e as letras»29.

Veja-se, agora, o segundo dos livros de cavalarias portugueses apontados no objectivo deste estudo: Memorial das Proezas da Segunda Tauola Redonda, de Jorge

27

Veja-se, além da referência seguinte, o Cap. L , p. 7, onde Floram o tocava « a frauta». F. de Moraes, Palmeirim de Inglaterra, cit., Cap.º LXI, p. 400. 29 F. de Moraes, Palmeirim de Inglaterra, cit., Cap.º CIX, p. 650-651. 28

Ferreira de Vasconcelos30. De equilíbrio e construção diferentes de Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Moraes, a obra de Vasconcelos apresenta um enunciado com duas partes distintas: a primeira destas duas partes corresponde à quase totalidade da obra (capítulos I-xlv) e a segunda parte corresponde, em especial, ao capítulo do Torneio de Xabregas31, acompanhado dos dois que o enquadram (capítulos xlvj-xlviij). É nesta segunda parte que se encontra um torneio, para recreação do príncipe D. João 32, acompanhado, aquando da apresentação ao rei e na entrada de cada participante, por música e instrumentos variados. Mas vejam-se exemplos concretos. O torneio é apresentado pelas três Parcas, «Cloto, Lachesis & Antropos», que «cantauam (…) a tres vozes, muy soantes & em suaue consonancia»33, através de um «romance», num discurso de índole profética. São seis sátiros, tocadores de orlos 34, que pedem autorização ao rei para a realização do torneio. A descrição do espaço, antes do início, revela-se colorida, na margem do Tejo, e sonora no rio, pois havia «muytas n os, nauios, carauelas, & muytos genero de barcos cõ ricos toldos, suaue musica de diuersos & muytos instrom tos, …». O espectáculo propriamente dito começa com uma «salua disparando grossa artelharia» e um «pregão», findo o qual «rocarã os menestris»35. Desfilam, em seguida, os mantedores, acompanhados de «atãbores» e «pifaros»36.

parecem, depois, dois

cavalos-marinhos entre os quais «auia h a estancia em que vinh

menestrijs de

charamelas Italianas»37. Ainda com este tipo de charamelas se apresentam dois 30

[J. F. de VASCONCELOS], Memorial das Proezas da Segunda Tauola Redonda, João de Barreira, Coimbra 1567. 31 Este capítulo da obra de Vasconcelos deve, de resto, ser cotejado com uma carta de Francisco de Moraes, dirigida a D. Leonor de Áustria (1498-1558), então viúva de Francisco I de França com o qual casara na sequência da viuvez ocorrida com a morte de D. Manuel I de Portugal, carta na qual este escritor faz o relato deste mesmo torneio (e a qual apresenta variantes e divergências relativamente à obra em análise): A. D. MIGUEL, «Carta que Francisco de Morais enviou a raynha de França em que lhe escreve os tor/neos, e festa que se fes en Xabregas era / de 155...», Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, XXXVII (1998) 127-154. 32 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 214v. 33 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., Cap.º xlvj, f. 215v. 34 Instrumento de sopro, oboé rústico alpino, segundo o Diccionario de la lengua española, Real Academia Española, Madrid 2001, s.v. orlo. Instrumento musical asiático, segundo A. M. da SILVA, Diccionario da lingua portugueza, Typographia Lacerdina, Lisboa 1813, s.v. órlo. Trata-se de uma espécie de flauta curva, pequena. 35 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 221v, para as duas primeiras, e f. 222r, as seguintes. 36 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 222v. 37 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 225r.

cavaleiros. E dois outros se seguem, acompanhados de «pífaro, atambor e trombeta» 38. E é também com pífaro e tambor que se apresentam vários outros candidatos à participação no torneio. Surge, entretanto, uma bruxa «tangendo h a trombeta taliana de guerra»39 e outras quatro que acompanham um cavaleiro «cantado (…) [uma] cantiga cõ suaue armonia»40. Segue-se, entra uma outra nau no porto com «h a corneta»41 à proa e transportando Ninfas que, perante os reis, «cessaram (…) de tanger seus instromentos, & Diana de cantar»42. Continuam, no entanto, «cantado & occupãdo os ouuidos com sua melodia»43, enquanto a assistência esperava a entrada do príncipe D. João, que aparece em campo ao som de trombetas e é acompanhado, enquanto se mantém em campo, por «at bores & pífaros» que «soau q parecia rõperem os maiores exercitos do mundo»44.

conclus o das festas faz-se enquanto «tocaram os menestrijs

j tos»45. Seguiu-se-lhe um serão. No capítulo que Vasconcelos intitula «Do remate destas festas», o último da obra, encontram-se alguns tópicos da vida do príncipe D. João, no qual o texto menciona a entrada «notauel»46 da princesa D. Joana de Áustria, filha de Carlos V, na cidade de Lisboa, que foi recebida com «bataria de grossos tiros per toda a praya». Após o encontro dos príncipes, o autor anuncia que as fadas «tornaram a cantar lamentosamente» um «romance»47 e que acabado este entraram em cena as três Cárites ou Graças, «Aglaya, Eufrosina & Pasitea»48, que, acompanhadas de Vénus, Cupidos e Ninfas «as quaes tangia h a rabeca, harpa & viola darco, cõ h a toada assaz triste»49, cantaram uma elegia.

Que divergências, ou pelo contrário, que permanências encontramos nos dois textos? Separados por pouco mais de vinte anos, ambos apontam a trombeta como 38

[VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 227v. [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 228v. 40 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 229r. 41 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 229v. 42 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 230v. 43 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 232v. 44 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 234r. 45 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 234v. 46 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 236v. 47 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 247r, nos dois casos. 48 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 237v. 49 [VASCONCELOS], Memorial das Proezas, cit., f. 238r. 39

instrumento musical presente nos torneios, embora tambores, pífaros e charamelas apenas surjam no texto de Vasconcelos. Os executores musicais mais destacados não são, aparentemente, da mesma categoria nos dois textos: são essencialmente os cavaleiros que se dedicam à música no texto de Moraes; são instrumentistas designados pelo instrumento que tocam aqueles que surgem no texto de Vasconcelos. E as duas situações são verificáveis historicamente 50. As entradas também aparecem em ambos os livros de cavalarias. Em qualquer dos casos, a presença de(stes) instrumentos nestes momentos narrativos coincide com dados históricos que se podem colher em várias fontes, o que permite confirmar que a presença da música nestes livros não pode ser entendida como estranha (estranha será, porventura, a sua ausência em mais momentos), mas antes como um empréstimo entre História e Literatura. As funções atribuídas à música, que se encontram na ficção, também não são difíceis de encontrar em outras manifestações culturais que nos dão conta da utilização dessa arte como elemento de espectáculos ou actos cerimoniais vários, bem como de remédio para males de amor. E não era este o sentido de muitas cantigas galego-portuguesas que mencionam a «cuita d’amor»? Ou ainda do ditado popular que diz que quem canta seus males espanta? A falta de documentos antigos pode condicionar afirmações sobre a antiguidade da música, mas não é impossível supor que os habitantes de Foz Côa, ou de uma qualquer gruta da mesma época, além de desenhos, poderiam possuir noções de música e usá-la em rituais, sagrados ou profanos. Até porque a Antropologia nos mostra que há povos que, não possuindo códigos de escrita, nem por isso deixam de dançar e cantar. No contexto da cultura europeia ocidental, João de Freitas Branco não deixa de mencionar, para a Península Ibérica, autores latinos que mencionaram danças e cantos hispânicos da era pré-cristã51. Atestando a sua presença no quotidiano humano há muito.

50

Bastará pensar nos reis trovadores, por exemplo, no primeiro caso. Quanto à segunda situação veja-se, por exemplo, B. BERNHARD, «Recherches sur l’histoire de la corporation des ménétriers, ou joueurs d’instruments, de la ville de Paris», Bibliothèque de l’école des chartes, vol. 4 (1843) 525-548, para o período em análise. 51 J. de F. BRANCO, História da Música Portuguesa, 4.ª edição actualizada, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 2005, p. 51.

Não se esqueça ainda que a música, parte do quadrivium (quatro maiores das sete artes liberais), fazia parte do percurso do ensino medieval, disputando com a Astronomia o sétimo lugar 52. Em suma, a música, com ou sem voz, não só tem acompanhado a existência humana, pautando os seus momentos significativos, como está indissociavelmente ligada ao sentimento que condiciona (em maior ou menor grau) o curso da existência do Homem: o amor.

52

E. F. CORPET, «Portraits des arts libéraux d’après les écrivants du Moyen Archéologiques, t. 17 (1857) 89-103.

ge», Annales

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