A música misturada de Hermeto Pascoal: considerações sobre a faixa “Ailin”, do disco Mundo Verde Esperança (2002)

July 27, 2017 | Autor: Daniel Santos | Categoria: Music, Popular Music, Etnomusicology, Música, Etnomusicologia, Música Popular Brasileira
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XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – João Pessoa – 2012

A música misturada de Hermeto Pascoal: considerações sobre a faixa “Ailin”, do disco Mundo Verde Esperança (2002) Daniel Zanella dos Santos

Universidade do Estado de Santa Catarina – [email protected]

Resumo: O que se examina neste trabalho são aspectos relacionados aos processos que Hermeto Pascoal denomina de “mistura” em sua música, através de considerações sobre a faixa “Ailin”, do disco Mundo Verde Esperança (2002). São estudados primeiramente aspectos harmônicos e em seguida aspectos melódicos, que procuram demonstrar como elementos da música espanhola são incorporados na linguagem musical de Hermeto nesta composição. Palavras-chave: Hermeto Pascoal, música espanhola, análise. The mixed music of Hermeto Pascoal: considerations about the track “Ailin”, from the album Mundo Verde Esperança. Abstract: What is examined in this work are aspects related to the processes that Hermeto Pascoal calls "mixing" in his music, through consideration of the track “Ailin”, from the album Mundo Verde Esperança (2002). Are studied primarily the harmonic aspects and then melodic aspects, seeking to demonstrate how elements of Spanish music are incorporated into the musical language of Hermeto in this composition. Keywords: Hermeto Pascoal, Spanish music, analysis.

1. Introdução Na tentativa de compreender o pensamento musical de Hermeto Pascoal, este trabalho procura perseguir pistas deixadas pelo próprio compositor, tanto em suas declarações quanto em sua obra. O compositor faz frequente menção às misturas musicais como centro de sua práxis, referências que podem ser encontradas em inúmeras de suas entrevistas e textos: Como sempre começo compondo em um estilo, e acabo misturando tudo – por isso digo sempre que a música é universal. Voa e voa sem parar. (PASCOAL, 2004, p. 266) As pessoas pensam que evoluir é fazer uma harmonia cada vez mais pesada. Para mim evolução é saber mexer com misturas. O mais difícil nessa música que eu chamo de universal é justamente saber misturar... Evolução é saber misturar. (PASCOAL apud ARRAIS, 2006, p.7) Quando eu cheguei no sul, eu fui juntando a música. A gente nunca fica fixo num estilo só, é uma mistura. (PASCOAL apud CAMPOS, 2006, p.20)

Como exemplo musical foi escolhida a música “Ailin”, décima quarta faixa do último disco de estúdio lançado por Hermeto Pascoal e Grupo, o álbum Mundo Verde Esperança. Será realizada uma breve análise de aspectos harmônico-melódicos 1 que tem por objetivo investigar como se dão os processos de mistura, e a relação com as fontes de onde elementos musicais são emprestados e transformados.

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2. Considerações Analíticas Aspectos harmônicos A estrutura harmônica de “Ailin” é baseada no movimento entre duas tríades maiores separadas pela distância de um semitom, e em alguns trechos, a variação ou a expansão desta idéia. O descenso da tríade por intervalo de semitom estabelece um jogo de relações, no qual o primeiro acorde parece enfatizar o segundo como uma espécie de centro, ou lugar de chegada (bII-I). Este dispositivo harmônico é empregado por Hermeto como uma maneira de alusão a algumas características musicais associadas à música espanhola, dentre as quais se destacam, na esfera da harmonia, a cadência andaluza e o modo flamenco. De acordo com Fernández Marín (2006, p.35) a cadência andaluza é uma sucessão descendente de acordes do modo menor, que caminha da tônica até a dominante (Im – bVII – bVI – V ou Dm – C – Bb – A em Ré menor) em forma de semi-cadência. O tetracorde da cadência andaluza coincide com o primeiro tetracorde do “modo flamenco”, este último um modo com a mesma estrutura intervalar do modo frígio, mas com o acorde de primeiro grau maiorizado, característico da música flamenca. Manuel (2006, p.96) denomina este mesmo modo de “Modo Frígio Andaluz”, e atribui a terça maior do acorde de primeiro grau a uma influência de modos da música árabe:

Figura 1: Comparativo entre cadência andaluza, modo frígio harmonizado e modo flamenco harmonizado.

Para Fernández Marín (2006), assim como as tonalidades maiores e menores têm um acorde de função dominante, este sobre o acorde de quinto grau (V7) e suas outras versões (VIIo, subV7, etc.), o modo flamenco também possui sua “dominante flamenca”, mas neste

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caso sobre o acorde do segundo grau abaixado (bII) e suas versões. Ela demonstra como opções possíveis para este acorde, normalmente o sétimo grau abaixado (bVIIm7 ou Cm7 no modo de Ré flamenco) e o quinto grau (Vm7(b5) ou Am7(b5)), ambos com baixo no segundo grau

da escala (Cm7/Eb ou Am7(b5)/Eb, portanto em primeira e segunda inversão

respectivamente). A autora destaca que esta sensação de dominante se dá pela força que a progressão bII-I tem através do baixo 2:

Figura 2: Equivalências entre as variações do acorde de “dominante flamenca”.

O acorde de bII da cadência andaluza recebe esta definição de dominante por anteceder o acorde de encerramento – local típico do acorde de função dominante – e não por possuir o intervalo de trítono entre a terça maior e a sétima menor característico dos acordes dominantes. Caso estilisticamente a música permitisse o emprego de tétrades, seguindo a diatonicidade este acorde apareceria com uma sétima maior, se tornando um bII7M. Sendo assim, ele se configuraria como um acorde de sexta napolitana, este amplamente utilizado na história na música ocidental, um emblemático representante da função de subdominante. Ainda no campo das tétrades, outra sétima possível para o acorde de bII seria a sétima menor, resultando em um acorde do tipo bII7. Fernández Marín (2006, p.46) demonstra que este acorde, a exemplo do acorde de bII7M, também tem amplo uso na música nacionalista espanhola. Tendo o acorde de Ré Maior como centro, esta suposição configuraria um acorde de Eb7, subV7 na tonalidade de Ré Maior, acorde de função dominante, porém menos provável em “Ailin”, já que é uma nota inexistente na escala do momento. Portanto o acorde de bII de “Ailin”, apesar da sensação de atração que o baixo por semitom descendente exerce, se mostra mais próximo de um acorde de subdominante do que de um dominante, compondo uma espécie de cadência subdominante-tônica. Em “Ailin”, o movimento bII-I enfatiza primeiramente o acorde de Lá Maior como centro, conformando os acordes Bb/A-A. Esta harmonia dura do início da música até o compasso 32, quando termina primeira frase da seção A. As únicas seções que estão inteiramente ao redor do centro em Lá são a Introdução e a seção de Improvisação. No compasso 33, início da segunda frase da seção A, há uma mudança súbita para o acorde de Eb/D, o qual passa a enfatizar o acorde de Ré Maior como centro 3. Este se estabelece durante a maior parte da seção A, durante toda a Seção B e a Coda; é ainda o centro que dura o maior

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número de compassos e encerra a música. Somente com este centro é que serão realizados alguns procedimentos de expansão e variação do movimento bII-I. Entre os compassos 41 e 49, terceira frase da seção A, se encontra a primeira variação do movimento bII-I:

Figura 3: Terceira frase da seção A (compassos 41-49) cifrada.

A progressão se inicia no compasso 41 com o acorde de Mi Maior, um tom acima do acorde de Ré Maior, considerado neste trecho como acorde de repouso. Ela caminha um semitom acima (Fá Maior, compasso 43), retorna um semitom (Mi Maior, compasso 45), desce mais um semitom (Mi bemol Maior, compasso 47) e repousa semitom abaixo, no acorde de Ré Maior (compasso 49). O acorde de Mi Maior pode ser entendido como um segundo grau emprestado do modo de Ré Lídio, em conformidade com a escala na qual a melodia do trecho é tocada. Contudo, é importante salientar que este acorde faz parte de um movimento cromático de expansão do bII-I. Primeiramente ele é expandido ascendentemente para então descer cromaticamente até o repouso em Ré Maior. Entre os compassos 53 e 56, início da seção B, aparece o acorde de sétimo grau, Cm7 em posição fundamental, que também poderia ser entendido como um substituto ao segundo grau abaixado (ver figura 2), porém sem a força de atração exercida pela condução descendente de baixo Eb-D caso o Cm7 aparecesse em primeira inversão (“El giro plagal VII – I es muy usual en algunos estilos flamencos” (FERNÁNDEZ MARÍN, 2006, p.45)). Aspectos melódicos Dentre os elementos melódicos que se destacam nos processos de mistura investigados neste trabalho estão as escalas e as ornamentações. Ao longo da música Hermeto utiliza basicamente uma escala, primeiramente com o centro na nota Lá e depois na nota Ré. Ela é formada pela seguinte estrutura:

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Figura 4: Escala utilizada em “Ailin”.

Esta escala tem a mesma estrutura intervalar do modo frígio, mas com a inclusão da terça maior em pontos específicos. Neste sentido ela converge com a formação do modo frígio maiorizado, com o qual se qualificam as melodias harmonizadas sobre o modo flamenco (FERNÁNDEZ MARÍN, 2006, p.36). A autora demonstra como se dá a formação do modo frígio maiorizado:

Figura 5: Modo frígio maiorizado (FERNÁNDEZ MARÍN, 2006, p.36).

Apesar da analogia entre as escalas, não se afirma aqui que “Ailin” está em modo flamenco ou frígio maiorizado, como Fernández Marnín entende a música flamenca. É preciso entender cada modo em sua maneira de fazer, já que “quando definidos apenas pelas arrumações internas de seus intervalos, os modos dizem bem pouco sobre música” (FREITAS, 2008, p.450). Um estudo comparativo mais aprofundado sobre a utilização da escala entre Hermeto nesta música e a música espanhola foge ao escopo deste artigo. A convivência entre as terças maior e menor do modo frígio maiorizado, utilizado na música espanhola, pode ser encontrada também em “Ailin”. Logo na primeira frase, que começa no segundo compasso, a melodia do flugelhorn se inicia com a nota Dó natural sobre o acorde de Bb e encerra-se com a nota Dó sustenido sobre o acorde de A. É interessante ressaltar a nota Ré sustenido (quarta aumentada) utilizada ao final da frase, nota não diatônica que cria um tipo de breve referência ao modo lídio:

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Figura 6: Convivência entre as terças maior e menor da escala.

Um exemplo do uso das terças maior e menor da escala pode ser encontrado entre as duas primeiras frases da seção A, que apresentam utilização semelhante para as diferentes terças da escala. Na primeira frase, sobre o centro em Lá, a nota Dó natural serve de bordadura inferior para a nota Ré natural, terça do acorde de Si bemol Maior, ao final de uma frase que se encerra na quinta do acorde de Lá Maior:

Figura 7: Bordadura inferior com a terça menor da escala.

A próxima frase, agora em torno de Ré, tem um uso parecido, mas com a terça maior da escala. A nota Fá sustenido serve de bordadura inferior para a nota Sol natural, terça do acorde de Mi bemol Maior, ao final da frase que se encerra na quinta do acorde de Ré Maior:

Figura 8: Bordadura inferior com a terça maior da escala.

Este pequeno exemplo sugere que Hermeto não está preocupado com uma sistematização do uso das terças, como acontece na música flamenca. As terças parecem estar subordinadas às necessidades estéticas do compositor no trecho em questão. No campo da ornamentação Hermeto realiza um procedimento idêntico nas duas frases. Em ambas, as suas repetições terminam com um ornamento em forma de grupeto sobre a quinta justa do acorde de repouso, o qual é encontrado amplamente também na música espanhola. Ao adicionar uma segunda voz a estas melodias na seção A’, o procedimento é

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repetido, agora sobre a fundamental do acorde de Lá Maior na primeira frase e sobre a terça do acorde de Ré Maior na segunda.

Figura 9: Ornamentos destacados na seção A’.

3. Considerações finais Na tentativa de fugir de rótulos estilísticos, Hermeto usa o termo Música Universal para definir seu pensamento musical, termo que ele justifica afirmando que em sua música cabem misturas de todas as influências. Sendo assim, todas as culturas musicais participariam deste processo de inclusão. Neste sentido os encontros musicais produzem uma música híbrida, algo novo que não é a simples imitação de um estilo. Contudo Burke (2003) coloca duas questões gerais ao estudar o hibridismo cultural: a primeira é a questão dos estereótipos ou esquemas culturais na percepção e na interpretação do mundo e a segunda se refere às afinidades e convergências entre imagens oriundas de diferentes tradições. Em “Ailin”, Hermeto parte da sua percepção de música espanhola para incorporar elementos desta dentro de sua práxis, pegando emprestado “de carona” uma parte da carga de imagens e conceitos que estes elementos carregam. Ao mesmo tempo é clara a sua preferência por culturas musicais folclóricas, étnicas e populares que estão fora do circuito do mass media, e tem certo apelo de identidade regional. A recusa da mídia de massa é uma característica importante na carreira de Hermeto, que ressoa como critério para a escolha das músicas “misturáveis”. Uma situação paradoxal se estabelece na medida em que Hermeto também não abandona a identidade brasileira, o que o leva a criar uma música “desterritorializada que se recusa a negar suas raízes” (REILY, 2000, p.8).

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Referências: ARRAIS, Marcos Augusto Galvão. A música de Hermeto Pascoal: uma abordagem semiótica. São Paulo, 2006. 176 f. Dissertação (Mestrado em Música) Universidade de São Paulo. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. CAMPOS, Lúcia Pompeu de Freitas. Tudo isso junto de uma vez só: o choro, o forró e as bandas de pífanos na música de Hermeto Pascoal. Belo Horizonte, 2006. 143 f. Dissertação (Mestrado em Música) Universidade Federal de Minas Gerais. FENÁNDEZ MARÍN, Lola. El flamenco en la música nacionalista española: Falla y Albéniz. Revista Música y Educación, Vol. 19, n. 65, pp. 29-64, março 2006. FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular. Campinas, 2010. 817 f. Tese (Doutorado em Música) Universidade Estadual de Campinas. FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Dos modos em seus mundos: usos do termo modal na teoria musical. In: Congresso da ANPPOM, n. 18, 2008, Salvador, pp. 450-457. MANUEL, Peter. Flamenco in focus: an analysis of a performance of soleares. In: TENZER, Michael. Analytical Studies in World Music. New York: Oxford University Press, 2006. p. 92-119. PASCOAL, Hermeto. Calendário do Som. 2. ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. REILY, Suzel Ana. Brasilian Musics, Brasilian Identities. British Journal of Ethnomusicology, Milton Keynes, Vol. 9, n.1, pp. 1-10, 2000. ZANIN, Fabiano Carlos. O violão flamenco e as formas musicais flamencas. Revista Científica FAP, Curitiba, Vol. 3, pp.123-152, jan./dez. 2008. Notas 1

Este trabalho faz parte de uma pesquisa em andamento que leva em consideração ainda aspectos rítmicos e de arranjo que foram suprimidos para a viabilização do presente texto. 2 Zanin (2008, p.129) ressalta em um artigo sobre o violão flamenco que “Muitas vezes o II e I graus [do modo flamenco] formam por si mesmos uma cadência dentro do modo, com uma relação funcional V-I, existindo cantes que são construídos quase que exclusivamente em torno destes graus.” 3 A mudança de centro da nota Lá para a nota Ré, ou seja, quarta justa ascendente (ou quinta justa descendente), sugere uma modulação análoga àquela da região da dominante para a região da tônica, consagrada pela música tonal da tradição ocidental. Contudo, nas músicas em modo flamenco, as duas modulações mais comuns são para o sexto grau do modo flamenco (Fá maior em Lá flamenco), considerado como primeira relativa maior do modo, ou para o terceiro grau (Dó maior em Lá flamenco), considerado segunda relativa do modo (FERNANDEZ MARÍN, 2006, p.20).

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