A (não) Reforma Agrária desenvolvimentista do Matopiba no Maranhão

June 5, 2017 | Autor: Saulo Costa | Categoria: Human Geography
Share Embed


Descrição do Produto

Vias de Fato São Luís, agosto de 2015



ANO V



R$ 2,00

NÚMERO 60

Mudança na Lei de Zoneamento e do Plano Diretor

São Luís ameaçada!

A gestão do prefeito Edivaldo Holanda Junior poderá entrar para a história como aquela que piorou a situação de São Luís de maneira dramática e irreversível. O problema (grave!) é a possibilidade real de alteração da Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo e do Plano Diretor da cidade, a ser encaminhada, após uma controversa e pouco divulgada série de audiências “públicas”, para a Câmara de Vereadores. A capital maranhense é uma cidade que cresceu (na verdade inchou) desordenadamente nas últimas décadas, com sérios problemas estruturais, sociais e ambientais; praticamente sem saneamento básico, com esgoto a céu aberto, com um trânsito caótico, um transporte público ruim, o calor aumentando por conta do desmatamento, tendo uma poluição crescente (apesar de ignorada pela maioria), com uma escassez de serviços básicos etc. E tudo isso pode piorar! Pela proposta de alteração da Lei de Zoneamento e do Plano Diretor, as grandes construtoras – preocupadas exclusivamente com seus próprios lucros – poderão fazer prédios com mais de 30 andares, fato que obviamente aumentará o crescente caos urbano da cidade para níveis impensáveis. Nas décadas de 1970 e 80 o limite era de seis andares. Na década de 90 este limite passou para 15 andares, numa mudança que contribuiu para o atual inchaço desordenado, pois feita sem um planejamento urbano adequado (esgoto, mobilidade etc.). Outra proposta de alteração é transformar em área industrial boa parte da zona rural de São Luís, em mais um violento ataque ao meio ambiente e às comunidades que habitam a Ilha há mais de 100 anos, entre elas as que vivem na área da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim. No que se refere às indústrias, somente a termelétrica a carvão que hoje funciona na área Itaqui-Bacanga, próxima a Vila Maranhão, já ultrapassa os limites de emissão de poluentes jogados no ar, apontado em seu relatório de impacto ambiental. Atualmente, esta termelétrica já emite – durante todo um ano – cerca de 13 mil toneladas de poluentes. Sendo as termelétricas definidas como “fábricas de morte”, este é apenas um dos nossos graves problemas. Para o advogado Guilherme Zagalo (que fez parte do Movimento Reage São Luís, que conseguiu barrar a instalação do polo siderúrgico na zona rural da capital maranhense) hoje, “o Distrito Industrial de São Luís opera fora da lei e precisa reduzir suas atividades”. Este quadro se torna ainda pior pela quase absoluta falta de informação e participação da sociedade, diante de problemas já existentes e de novas e iminentes ameaças. As audiências públicas para a alteração deste Plano Diretor, exigidas por lei, foram, segundo várias organizações sociais, convocadas de maneira errada e no afogadilho. Por conta disso, estas mesmas organizações sociais estudam meios de entrar na Justiça, para barrar este processo puxado pela prefeitura. Está sendo considerado inadmissível que Edivaldo Holanda Junior passe por cima de tudo e de todos, ampliando as possibilidades de devastação e caos na Ilha, para atender apenas aos interesses de construtoras e de grandes empresas poluentes. São Luís está ameaçada. Este é um fato! O que vamos fazer? Páginas 6 e 7

Poluição, ausência de saneamento básico e de mobilidade urbana, são alguns dos grandes e atuais problemas de São Luís, que poderão ser agravados com as mudanças na Lei de Zoneamento e do Plano Diretor. A foto, para cartão postal, pode até ser bonita, mas a realidade da capital maranhense poderá se tornar cada vez mais complicada. O que fazer?

Editorial

Um bilhão de motivos Página 3

Entrevista Marcia Palhano Páginas 4 e 5

Cultura As noites e suas músicas Página 11

Diretos Humanos Povo Ka’apor expõe sua pauta de luta Páginas 8 e 9

José Reinaldo Tavares, Marcelo Tavares e o “pacto” com José Sarney

UFMA Estudantes mobilizados Página 2

Opinião Wagner Cabral Luís Antônio Pedrosa Diogo Cabral Saulo Barros da Costa Páginas 10 e 12

2

OPINIÃO

Vias de Fato

São Luís, agosto de 2015

UFMA

Estudantes mobilizados!

Após aprovação de um polêmico Regulamento Disciplinar do Corpo Discente em reunião ocorrida no dia 1ª de julho do Conselho Universidade (CONSUN) da UFMA, uma série de reuniões de estudantes e manifestações ocorreram dentro da universidade. O Regulamento, que consta de 11 capítulos, dispõe de direitos e deveres do corpo discente, proibições e responsabilidades e sanções disciplinares, que podem ir de advertências à expulsão. Alguns trechos do texto – que foi parcialmente modificado – causaram especial polêmica como, por exemplo, os que afirmam ser proibido “provocar ou participar de atos de indisciplina ou outras manifestações que perturbem a ordem”, “fumar nas dependências da instituição na forma da legislação vigente” e, como dever do discente, “comparecer à instituição condignamente trajado”. O porte e consumo de bebidas alcóolicas, proibido no artigo 5º, bem como a intenção de sufocar críticas à Universidade, amparada pelo parágrafo III do mesmo artigo, apontam para o que os estudantes denunciaram em nota, como continuidade de uma política de “gestão universitária autoritária” por parte do Reitor Natalino Salgado. A nota, que faz parte da campanha “Todos Contra o RDD” – encabeçada por integrantes do Coletivo Mandacaru, da Assembleia Nacional dos Estudantes Livres (ANEL) e independentes – explica ainda que: “Neste contexto, a administração superior da UFMA continua se valendo de atitudes autoritárias que, a nosso ver, culminam em um conjunto de medidas repressivas.Com saudade da ditadura, o REItô da dinastia Salgado, convidou a Polícia Militar a garantir a segurança e a ordem dentro do campus universitário. Não bastando este decreto, tivemos a recente aprovação verticalizada de um Regulamento Disciplinar Discente, recheado de indeterminações textuais e inconstitucionalidade. Em pleno fim de período, com o esvaziamento da universidade, o REItô, presidente do Consun, convoca o conselho de forma extraordinária e com pauta única para aprovar o Regulamento. Além de tolher a individualidade e livre expressão da subjetividade dos alunos, condicionando o julgamento sobre suas roupas e atitudes à moral e bons costumes, o Regulamento é uma ferramenta para tentar conter os movimentos sociais dentro da universidade, em um contexto que as lutas são cada vez mais necessárias. Com a PM no campus, aprovou-se uma resolução que criminaliza as manifestações que perturbem a ordem. Tentativa de se estabelecer

dentro da universidade uma política de vigilância, onde o medo é a ferramenta ideológica de desmobilização, este documento coercitivo incentiva a delação entre estudantes, que podem sofrer penalidades graves, como expulsão, cabendo ao REItô designar o defensor do acusado de quem o julgamento ele próprio conduzirá a executará as penalidades”. Intervenção como as de alunos do curso do Teatro (ocorrida no dia 3 de julho, com considerável cobertura da imprensa local) e do Coletivo Mandacaru (ocorrida no dia 6 de julho), o lançamento da campanha “Todos Contra o RDD” e articulação de assessorias jurídicas populares como CAIM e NAJUP revelaram a insatisfação do corpo discente e a presença de estudantes mobilizados, prontos para disparar críticas necessárias contra o que eles consideram de “gestão anti-democrática vigente na Universidade Federal do Maranhão”. O Mandacaru, por exemplo, organizou o concurso "Look Condigno". Foi uma sátira a proposta do Regimento Disciplinar Discenteque determinava, entre outras coisas, como os estudantes deveriam se vestir. Em meio a toda essa movimentação, após curiosa ocupação de quatro dias promovida pela gestão do Diretório Central dos Estudantes (DCE) apoiado pela reitoria, Natalino sentou com estudantes da “base amiga” para dialogar. Consta, em matéria divulgada no dia 10 de julho, no site oficial da UFMA, que ele recebeu do DCE um documento com alterações no texto do Regimento e algumas propostas – mantendo-se assim a ausência de amplo debate no meio discente para construção do documento. Na matéria consta ainda que Natalino afirmou: "o regimento é para proteger o aluno e regular sua vivência e seu bem-estar. Esse debate irá aperfeiçoar a proposta". Sobre a parceria firmada entre a Polícia Militar e a UFMA, mencionada na nota citada, o Coletivo Mandacaru em parceria com a APRUMA promoveram um espaço formativo a fim de incitar o debate sobre segurança pública no seio da comunidade acadêmica. A oficina “Cultura e Violência no Mundo Contemporâneo”, realizada entre os dias 14, 15 e 16, no Centro de Ciências Humanas (CCH) da UFMA, ministrada por Wagner Cabral, professor do Departamento de História da UFMA, é uma mais uma das ações que confirmam a presença de um movimento estudantil ativo na universidade, interessado em debates qualificados sobre os problemas enfrentados pelos espaços murados da UFMA e pela sociedade maranhense.

A gestão de Natalino Salgado segue enfrentando protestos de estudantes.

A oficina “Cultura e Violência no Mundo Contemporâneo”, realizada em julho no Centro de Ciências Humanas (CCH) da UFMA e ministrada pelo professor Wagner Cabral (História/UFMA), mobilizou vários estudantes.

O coletivo de estudantes Mandacaru organizou o concurso “Look Condigno”. Uma sátira a proposta de Regulamento Disciplinar

O jornal Vias de fato, fundado em 2009, tornou-se um projeto de comunicação da Sociedade Maranhense de Mídia Alternativa e Educação Popular Mutuca. Fundadores: Alice Pires, Altemar Moraes, Cesar Teixeira e Emilio Azevedo Coordenação: Alice Pires, Altemar Moraes, Claudio Castro, Elmo Cordeiro, Emilio Azevedo, Igor de Sousa, Rejane Galeno e Zema Ribeiro. Contatos: 988558224 e 981455052 • Correio Eletrônico: [email protected] • Site: viasdefato.jor.br

São Luís, agosto de 2015



Vias de Fato

POLÍTICA

3

 EDITORIAL

Um bilhão de motivos

No final do mês de julho, o meio político maranhense ficou agitado por conta de um artigo do deputado federal José Reinaldo Tavares (PSB-MA), publicado no Jornal Pequeno (21/07/15), onde ele propôs um “pacto pelo Maranhão”, numa articulação, “acima da política”, que uniria o governador Flávio Dino e o ex-senador José Sarney, para melhorar “a vida sofrida de nossa população”. O ex-governador diz que pretende “unir todos pelo desenvolvimento do Maranhão”, pois com todos juntos será “muito mais fácil e mais rápido mudar” a realidade do estado. No final do texto, ele pede a “reflexão de todos”. É impossível levar o conteúdo desta proposta a sério. É lógico que ao falar de pacto, José Reinaldo não está preocupado com o “sofrimento do povo maranhense”. Ao propor este repentino flashback ele mandou um recado para a classe política, se reposicionou moderadamente dentro da conjuntura e sinalizou uma insatisfação em relação a Flávio Dino, o governador que ele ajudou a chegar ao poder. No meio dos discursos em torno da proposta, José Reinaldo deixou claro, desde já, antes das eleições municipais de 2016, que é pré-candidato ao Senado em 2018. E entre adulações e elogios ao atual governador, disse que o mesmo poderia “atender mais a classe política”. Resumindo, a ação do deputado faz parte da luta incessante por espaço no campo político e institucional (poder, orçamento), entre a capital e a província. E os que falam em “gesto histórico”, “projeto maior”, “proposta nobre”, “diálogo com adversários”, apenas fazem coro com a malandragem evidente. São ecos da picaretagem reinante. Para nós, a importância desta movimentação de José Reinaldo (externada no texto publicado no Jornal Pequeno) é a possibilidade que ela nos oferece para analisarmos o baixo nível da classe política maranhense, seus interesses nebulosos, somado à incapacidade (e ao desinteresse) que toda esta turma tem de debater os verdadeiros problemas sociais maranhenses. Vamos, então, como sugeriu o comentado artigo do pacto, refletir e relembrar alguns fatos. No início da década passada, entre os anos de 2003 e 2004, tornou-se público no Maranhão um desentendimento entre as senhoras Alexandra Tavares e Roseana Sarney Murad. Alexandra, na época, era a primeira dama do Estado, esposa do então governador José Reinaldo, eleito pelo PFL. Roseana, a filha de José Sarney, era senadora pelo PFL e pré-candidata a voltar ao governo em 2006. Esta briga pessoal teve consequências políticas, provocando uma enorme crise no alto comando da oligarquia maranhense. Por conta da esposa, José Reinaldo surpreendentemente rompeu com Sarney, seu antigo padrinho. (Registramos, ao fazer esta breve retrospectiva, que a miséria do Maranhão, suas causas e consequências, não foram, logicamente, a motivação para o rompimento. Os dramas da população entram depois, como discurso). Aquela conhecida crise palaciana abriu um espaço considerável para os setores mais ou menos independentes da política local e para alguns poucos e autênticos adversários do oligarca e da oligarquia, um espaço político e também eleitoral. Em meio ao clima de ódio e ressentimento entre os ex-aliados, houve certa ampliação do debate público e a divulgação de novas e antigas denúncias contra os donos do poder no Maranhão. É nesta conjuntura que Jackson Lago se elege governador em 2006 e Flávio Dino em 2014.

Esta “saga” de José Reinaldo, com as picuinhas e desavenças entre afilhados e afilhadas, os discursos de “libertação” e as cambalhotas em torno de pactos “acima (ou abaixo) da política”, revela o padrão da maioria dos atuais “homens públicos” do Maranhão.Na foto, de 2009, José Reinaldo aparece posando, alegremente, com a capa do livro “Honoráveis Bandidos”... A qualidade da foto (a resolução) está ruim, mas a mensagem é ótima. De fato, uma imagem, em certos casos, vale mais que um bilhão de palavras.

O patrimonialismo é a ideologia e a partir daí eles bajulam, agridem e até falam, cinicamente, das mazelas da população. Num passado recente, houve cólera recíproca e terríveis agressões e insultos envolvendo as relações de José Sarney com João Castelo, Epitácio Cafeteira e Ricardo Murad. Depois de um tempo – com novas eleições e velhos interesses – tudo se acomodou dentro da estrutura oligárquica do Estado.

É neste período em que se amplia a desmoralização nacional de José Sarney, a ponto de ele ficar fora do jogo eleitoral de 2014, pois estava abatido pela opinião pública. O atual deputado federal José Reinaldo, figura central da crise (hoje divorciado de Alexandra), tornou-se, desde 2006, um dos principais fiadores do projeto de poder de Flávio Dino, mantendo atualmente seu sobrinho, Marcelo Tavares, no cargo de Chefe da Casa Civil do governo do Estado. Apesar do cargo pomposo, é sabido por todos que o poder de Marcelo foi diminuído pelo governador Flávio Dino, ao longo do primeiro semestre, fato que evidentemente desagradou ao tio, lhe criando problemas para seus projetos futuros. Agora em julho, em meio ao rebuliço provocado pela “proposta de pacto” com Sarney, o governador Flávio Dino baixou a medida provisória nº 208 – publicada no Diário Oficial do dia 23 de julho – regulamentando “a estrutura administrativa do Estado do Maranhão”, onde a Casa Civil passará a “coordenar o programa de financiamento BNDES/ Estado do Maranhão”. Na prática, Marcelo Tavares vai administrar algo em torno de R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais). Se onde tem fumaça tem fogo, o artigo de José Reinaldo foi a fumaça e essa montanha de dinheiro do BNDES está no meio da fogueira...

Vale lembrar, nestas reminiscências sobre a política maranhense, que em setembro do ano passado, dias antes da eleição que conduziu Flavio Dino ao Palácio dos Leões, um grupo de organizações sociais lançou um manifesto onde está dito: “É lógico que o Maranhão precisa de mudanças! Porém, é impossível falar em mudar esta trágica realidade, sem tratar de duas questões: o modelo de desenvolvimento econômico e a democratização do Estado”. O texto falou de um Maranhão com uma “economia assassina”, de um poder público “que age contra a sociedade” e de uma classe política que “com raras exceções”, “não é servidora pública, mas sim um bando, atuando para saquear o Estado”. Este documento; intitulado “Do Maranhão: um manifesto ao povo brasileiro”; repercutiu nas redes sociais e foi registrado em sites como Adital, Revista Fórum, Combate ao Racismo Ambiental e Brasil de Fato, tendo a assinatura, entre outras, da CPT, Cáritas, CIMI, MST, Vias de Fato, Moquibom, Fóruns e Redes de Defesa dos Direitos da Cidadania e CSP Conlutas. Apesar da repercussão, a tradicional classe política maranhense calou diante da crítica. Não quis o debate. Sobre estes “bandos” citados, que vagam pela política maranhense, o que prevalece são os ajuntamentos familiares que gravitam em torno do poder. Esta “saga” de José Reinaldo, com as picuinhas e desavenças

entre afilhados e afilhadas, os discursos de “libertação” e as cambalhotas em torno de pactos “acima (ou abaixo) da política”, revela o padrão da maioria dos atuais “homens públicos” do Maranhão. O patrimonialismo é a ideologia e a partir daí eles bajulam, agridem e até falam, cinicamente, das mazelas da população. Num passado recente, houve cólera recíproca e terríveis agressões e insultos envolvendo as relações de José Sarney com João Castelo, Epitácio Cafeteira e Ricardo Murad. Depois de um tempo – com novas eleições e velhos interesses – tudo se acomodou dentro da estrutura oligárquica do Estado. Registre-se que agora em julho, enquanto José Sarney escreveu artigos falando da lua, Sarney Filho foi a favor da proposta de pacto, deixando uma ponte com o antigo aliado do seu clã. Ex-ministro dos Transportes do fatídico governo Sarney, José Reinaldo tornou-se vice-governador do Maranhão (na chapa de Roseana), em 1995, beneficiado por uma fraude feita dentro do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Maranhão, em 1994. Em 2002, Roseana renuncia para disputar o Senado e ele assume o governo, tendo Alexandra como principal aliada política. Um dos seus primeiros atos enquanto governador foi nomear Jorge Murad (marido e sócio de Roseana) como secretário de estado, para que o genro de Sarney não corresse o risco de ser preso, sob os ventos da Operação Lunus (lembram-se dela?). Seis meses depois desta nomeação, em outubro de 2002, José Reinaldo se reelege para o governo no primeiro turno, com menos de 50% dos votos exigidos pela Lei, em mais uma manobra feita com a ajuda da “Justiça” Eleitoral do Maranhão, sob o comando do “poderoso chefão” da grande máfia maranhense. Como se percebe, o idealizador do novo “pacto pelo Maranhão”, já estava bem encaminhado para o lixo da história, quando rompeu com seu mentor, ajudando a impedir a volta de Roseana ao governo, em 2006. Ali, bem ali, independente das motivações, ele prestou um grande serviço à sociedade e à política maranhenses, abrindo novas possibilidades. Agora, sob o argumento de que quer “mudar o Maranhão”, ele aparece em uma cortina de fumaça sugerindo, resignado, chamar José Sarney e outros entulhos. Ao povo maranhense, sugerimos que lembre Mário Quintana, quando ele diz que “todos estes que aí estão; atravancando o meu caminho; eles passarão...”.

Vias de Fato

4  P O L Í T I C A

São Luís, agosto de 2015

ENTREVISTA MARCIA PALHANO

Risco de morte em defesa da vida Ela sofre ameaças de morte por conta de sua luta ao lado das quebradeiras de coco do Maranhão e desde 2011 encontra-se na lista do Programa Nacional dos Defensores dos Direitos Humanos. Estamos falando de Marcia Palhano, nossa entrevistada deste mês agosto. Formada em pedagogia, integrante das pastorais sociais da Igreja Católica, ligada à diocese de Grajau, hoje ela faz parte da coordenação estadual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Maranhão. Recentemente, esteve no IV Congresso Nacional da CPT, realizado entre os dias 12 e 17 de julho, em Porto Velho/RO. Em sua militância diária, entre outras pautas, ela luta por uma legislação e por uma realidade que conceda acesso a terra, para as quebradeiras de coco. O município de Dom Pedro, onde ela mora, é um caso emblemático de violência contra camponeses e povos tradicionais no Maranhão. Lá o prefeito é Hernando Dias de Macedo (PCdoB), irmão do deputado estadual Fábio Macedo (PDT), filhos do empresário Dedé Macedo, aliados do governador Flávio Dino (PCdoB). Nesta entrevista, ela fala, entre outros assuntos, sobre a luta das quebradeiras de coco, sobre o Congresso Nacional da CPT, a questão quilombola e sua opinião sobre o novo governo do Maranhão. Vias de Fato – Durante o IV Congresso da Comissão Pastoral da Terra (CPT) realizado recentemente, entre os dias 12 e 17 de julho, em Porto Velho/RO, as quebradeiras de coco do Maranhão falaram sobre o enfrentamento com os latifundiários em nosso estado. Qual o conteúdo exato desta fala? Como foi a participação delas neste congresso? Marcia Palhano – As quebradeiras de coco da região dos cocais foram falar de suas lutas pelos babaçuais livres. Trata-se de uma experiência, de uma luta de mulheres, que estão se recusando a viver sob o jugo dos latifundiários e estão lutando para conquistarem a lei municipal, que lhes garanta o acesso aos babaçuais de onde tiram parte de seu sustento e é fundamental para o prosseguimento da luta, para garantir a existência dessas comunidades tradicionais. Nos municípios de Dom Pedro, São José dos Basílios e Governador Archer alguns grupos de mulheres extrativistas receberam acompanhamento da CPT da Diocese de Grajaú. Elas criaram associações de quebradeiras de coco, que, além do trabalho conjunto de coleta e quebra do coco, lutam pela aprovação da “Lei do babaçu livre”.

terras, além de impedirem as quebradeiras de coco de ter acesso aos babaçuais, derrubam as palmeiras, colocam agrotóxicos nas mesmas. Para impedir a livre circulação das quebradeiras em suas terras, muitos criadores de gado, além do cercamento, transformaram babaçuais em áreas de pasto, numa atitude criminosa contra o meio ambiente e a cultura das populações tradicionais.

“Reafirmamos a insistência na defesa da Reforma Agrária contextualizada e ressignificada, a partir da diversidade camponesa, que inclui o reconhecimento dos territórios das comunidades tradicionais, como lugares de reprodução da vida e das culturas”.

Esta Lei já foi aprovada nos municípios de São José dos Basílios e Governador Archer, enquanto no município de Dom Pedro está ainda em discussão. Vias de Fato - Este IV Congresso da CPT reuniu mais de mil pessoas de todas as regiões do Brasil. Qual a avaliação que você faz deste evento? Marcia Palhano –O Congresso é um dos grandes momentos da caminhada da CPT, onde podemos ouvir os clamores dos camponeses e camponesas, das comunidades quilombolas, das quebradeiras de coco, dos sem-terra e assentados, dos ribeirinhos e dos pescadores, dos pequenos produtores familiares, dos assalariados, dos trabalhadores em situação análoga à escravidão, dos povos indígenas, submetidos a muitas formas de desrespeito, agressão e violência, em relação à posse e ao uso da terra e às relações de trabalho daí derivadas. Por fim, o congresso foi um espaço para ouvir o clamor da própria Terra, que sofre a contínua depredação da sua rica biodiversidade, o envenenamento dos solos e das águas, sob a lógica do desenvolvimento econômico. No Congresso reafirmamos a nossa missão e o compromisso de fidelidade ao Deus dos pobres e aos pobres de Deus, compromisso que parte de um posicionamento claro diante do latifúndio, do Estado que está a serviço do capital, do trabalho escravo, da natureza, da água, que garanta efetivamente o direito à terra aos camponeses e às camponesas. Vias de FatoAlém da questão das quebradeiras de coco, o que mais foi tratado sobre os problemas do Maranhão, neste congresso da CPT? Marcia Palhano – A CPT comple-

tou seus 40 anos. Ao nascer, em 1975, a CPT tinha duas grandes linhas de ação: fazer com que as Igrejas entendessem como prioritária a defesa da vida camponesa e enfrentar os grandes projetos. Estas linhas de ação permanecem atuais, mas a elas foram sendo incorporados novos desafios, que a realidade sempre mutante apresenta. O Congresso é um espaço para olhar bem mais profundamente a realidade do campo, não só do Maranhão, mas de todo o Brasil. Contamos com a presença de 850 camponeses, vindos de todo o Brasil e com este olhar reafirmamos a insistência na defesa da Reforma Agrária contextualizada e ressignificada, a partir da diversidade camponesa, que inclui o reconhecimento dos territórios das comunidades tradicionais, como lugares de reprodução da vida e das culturas. A CPT atua, também, como presença solidária e de serviço, junto aos povos e comunidades tradicionais, impactados por grandes projetos. Vias de Fato - Será lançado em breve um documentário para denunciar a derrubada dos babaçuais do Maranhão. Fale sobre esta denúncia. Sobre este problema relacionado às quebradeiras de coco e suas consequências. Marcia Palhano – Primeiro queremos garantir a essa categoria a legitimidade da existência; e para isso é preciso dar visibilidade às derrubadas dos babaçuais, que acontece de forma devastadora com uso de tratores e correntes. Denunciar este crime é garantir a sobrevivência dessas comunidades tradicionais, que têm parte de sua renda familiar oriunda da extração da amêndoa do babaçu. Os proprietários das

Vias de Fato - Hoje, no cotidiano, como se dá a violência contra as quebradeiras de coco no Maranhão? E, no geral, a violência contra as mulheres do campo? Marcia Palhano –Aqui, no nosso município de Dom Pedro, a violência contra as mulheres já começa pela negação, por parte dos latifundiários, da existência das extrativistas. As ameaças psicológicas são recorrentes como forma de pressão dos proprietários, para garantir a exclusividade da compra do coco. Há ainda casos de violência física, quando as quebradeiras são encontradas dentro das propriedades, quando lhe são tomados os babaçus. Há ainda casos em que a mulher ou o companheiro precisam roçar a quinta, ou seja, limpar a área de pasto, para ter acesso aos babaçuais. Desde 2007, quando as quebradeiras de coco começaram a se organizar, em Dom Pedro, pela criação da Lei Municipal do Babaçu Livre, as ameaças só foram se intensificando. Foram, inclusive, ameaçadas de morte por fazendeiros dentro da Câmara Municipal. Além disso, temos que lamentar a total indiferença do Poder Executivo, da prefeitura de Dom Pedro, para com este problema. Vias de Fato - Como você falou, baseada na Lei do Babaçu Livre foram criadas leis municipais em Governador Archer e São José dos Basílios, município vizinhos de Dom Pedro, para proteger os babaçuais e garantir o acesso das quebradeiras de coco nas terras. Qual o motivo de não haver uma lei em Dom Pedro, o município onde você mora? Marcia Palhano – O motivo de não haver ainda uma lei em Dom Pedro é devido à falta de vontade política dos ditos “políticos” locais para com os menos favorecidos. Em Dom Pedro ainda não temos uma legislação ambiental; o Município é totalmente desprovido no quesito meio ambiente; um exemplo claro de tudo isso é que todos os córregos do município estão sendo entupidos por construções de propriedades particulares e com o apoio do poder publico. Não existe explicação cabível

São Luís, agosto de 2015

para não se aprovar a Lei do Babaçu Livre no município de Dom Pedro; infelizmente a Câmara Municipal parece não ter autonomia sobre suas demandas e decisões. Todas as vezes que as quebradeiras foram à Câmara tiveram que escutar o mesmo “refrão”, segundo o qual o projeto de Lei do Babaçu Livre é inconstitucional e que é preciso ouvir a posição dos latifundiários, para não prejudicar o direito, que eles acham “sagrado”, à propriedade das terras. Agora esta motivação é totalmente facciosa e sem fundamento jurídico, porque, se estas Leis fossem realmente inconstitucionais, como é que elas foram aprovadas e vigoram em vários municípios do Maranhão? A verdade, que ninguém quer reconhecer publicamente, é que em Dom Pedro os poderes legislativo e executivo estão totalmente reféns e manipulados pelo poder econômico dos latifundiários. Vias de Fato - No Maranhão é comum os prefeitos terem o controle das Câmaras Municipais. Como ocorre em Dom Pedro? Lá é diferente? Ou o prefeito Hernando Dias de Macedo tem o controle total da Câmara Municipal? Marcia Palhano – Não saberia dizer até onde se daria o controle político do prefeito na Câmara Municipal, mas é fato notório que a Câmara Municipal de Dom Pedro não funciona regularmentee não cumpre com suas obrigações legais, como regulamenta a Lei Orgânica do Município e o Regimento Interno da Casa. Os mesmos determinam que os vereadores deveriam reunir-se semanalmente, nas terças feiras, para discutir, apreciar e deliberar pautas que venham contribuir para a efetivação de políticas publicas municipais em prol do bem comum. Porem, após um monitoramento da Câmara, durante os primeiros três meses de 2015, a mesma se reuniu somente duas vezes e estas sessões aconteceram após uma pressão da sociedade civil organizada. Vias de Fato - O governador Flávio Dino é aliado do grupo de Dedé Macedo, pai do prefeito Hernando Dias de Macedo (PCdoB) e do deputado Fábio Macedo (PDT). Como você observa a atuação dele nesta questão das quebradeiras de coco, dos camponeses e das questões fundiárias? É possível promover a mudança no Maranhão, sem estar verdadeiramente ao lado dos camponeses? Marcia Palhano – É fato que o fim da dinastia Sarney no Maranhão gerou muitas expectativas; no entanto não se pode negar que muitas alianças, que foram feitas pelo governo atual, não deixam muitas esperanças para os homens e mulheres camponeses. Temos um ditado popular que diz: “Quem não quer ver lobo, não lhe vista a pele”. A sensação que se tem é que a única mudança que presenciamos é dos atores, mas o cenário permaneceu o mesmo. De fato, apesar dos espaços de diálogo que se tem conseguido junto ao governo estadual, a realidade camponesa



Vias de Fato

não é prioridade também deste governo. De acordo com os dados do relatório “Conflitos no Campo no Brasil em 2014”, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Maranhão é líder nacional em número de conflitos fundiários. O Estado é campeão em número de pessoas ameaçadas de morte no campo e divide a segunda colocação com Rondônia e

Vias de Fato - Em 2011, você já foi agredida fisicamente, por conta de sua luta social. Recentemente, em maio deste ano, você recebeu ameaças de morte. Fale sobre estes problemas. Você se sente segura? Marcia Palhano – Não posso dizer que seja uma situação confortável a em que me encontro, mas como militante

“Desde 2007, quando as quebradeiras de coco começaram a se organizar em Dom Pedro, pela criação da Lei Municipal do Babaçu Livre, as ameaças só foram se intensificando. Foram, inclusive, ameaçadas de morte por fazendeiros dentro da Câmara Municipal. Além disso, temos que lamentar a total indiferença do Poder Executivo, da prefeitura de Dom Pedro, para com este problema”.

“Não se pode negar que muitas alianças, que foram feitas pelo governo atual, não deixam muitas esperanças para os homens e mulheres camponeses. Temos um ditado popular que diz: “Quem não quer ver lobo, não lhe vista a pele”. A sensação que se tem é que a única mudança que presenciamos é dos atores, mas o cenário permaneceu o mesmo”. Nesta foto estão o prefeito Hernando Macêdo (PCdoB), o governador Flávio Dino (PCdoB) e o deputado estadual Fábio Macêdo (PDT).

Mato Grosso, no número de assassinatos no campo, atrás apenas do Pará. Vias de Fato - O Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu esteve, em junho, com o governador Flávio Dino e encaminhou uma pauta de reivindicações. Qual a sua avaliação sobre esta pauta? Marcia Palhano –Avalio que este foi um momento importante, pois as pautas apresentadas pelo Movimento, se forem executadas, beneficiarão as extrativistas do Estado do Maranhão na garantia de seus direitos e na participação popular, garantindo avanços para estas trabalhadoras, que representam cerca de 300 mil pessoas em todo o Estado. É importante salientar que estas conquistas estão acontecendo por mérito da organização das quebradeiras de coco, através do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, o MIQCB, e não por benévola concessão do Governo.

dos movimentos sociais queria responder através deste questionamento: nós, que dizemos estar em um país democrático, o que deu de errado nessa tal democracia? Pois, quem luta neste país por uma sociedade mais justa, é fadado a ter que apanhar,ser marginalizado e viver sob as ameaças de morte. O Estado brasileiro, segundo a relatora das Nações Unidas para os Direitos Humanos, está implementando um processo de criminalização com os ativistas dos movimentos populares. Tem uma lista de 107 pessoas, que estão sendo processadas pela “Justiça”, por combaterem a organização e resistência das populações e comunidades tradicionais. Eles fazem perseguições políticas, difamações, ameaças e tentativas de criminalização dos que apoiam estas lutas. O Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos conceitua como tal “todos os indivíduos, grupos ou órgãos da sociedade que promovem e protegem os direitos

E N T R E V I S TA

5

humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidos”. Estou na lista de proteção dos defensores dos direitos humanos desde 2011, mas isso não significa segurança nenhuma, muito menos no Estado do Maranhão, onde os crimes de pistolagem normalmente ficam impunes. Mas, a luta pela defesa de uma vida mais digna, sobretudo pelos menos favorecidos, não pode parar. Para mim é uma missão como cristã. Deus é meu alicerce, por isso sigo na luta e essa luta nunca vai ser em vão. Vias de Fato - Como integrante da CPT, qual a sua avaliação sobre as recentes conquistas do movimento quilombola, com a conquista dos territórios do Charco e Santa Rosa dos Pretos? Marcia Palhano – Para mim é uma grande vitória; mas é preciso ressaltar, que esta conquista não foi uma concessão por parte do Estado, e sim fruto da organização dos próprios quilombolas, através do movimento Moquibom. O último evento foi o acampamento “Negro Flaviano”, que reuniu cerca de 100 quilombolas de 40 comunidades, que ocuparam as instalações do INCRA em São Luís. Eles precisaram ficarpor 10 dias em greve de fome, para que fossem atendidas suas reivindicações. A Constituição de 1988 garante o direito dos povos indígenas e quilombolas do Brasil a suas terras tradicionais. No entanto, mais de 20 anos após a promulgação da mesma, apenas 21 territórios quilombolas foram reconhecidos e titulados pelo governo federal. O Maranhão é o estado mais prejudicado: nenhuma titulação até hoje foi feita no Estado, apesar de aqui estarem cerca de 30% das comunidades quilombolas do país. Atualmente, há 336 processos de solicitação de titulação dessas terras em aberto. Essa situação revela a importância da organização e da resistência das comunidades tradicionais pela conquista dos seus territórios,contra um Estado insensível e omisso. O direito está garantido no papel, no entanto, não se concretiza na prática. É inadmissível que esta situação precária, em que se encontram os povos quilombolas no Brasil, se prolongue durante tanto tempo, colocando em risco a vida e a identidade destes grupos. Para essas famílias, a terra é o local de moradia e de trabalho, é meio de vida, fonte de alimentos e de renda; mas é também a base para suas produções culturais e simbólicas. Por isso, para eles, a terra é muito mais que um dado biológico, ou econômico. Sem a terra, não se tem vida digna para esses povos. A inércia do Governo Federal em garantir esse direito levou a esta situação crítica que vemos hoje. A lentidãono processo de identificação e titulação das terras traz, ano após ano, consequências muito negativas para estas comunidades. A insegurança jurídica sobre suas terras, muitas vezes, gera conflitos com os fazendeiros, que querem tomar à força, as mesmas, e assim, ameaçam, atacam e até matam.

6  D I R E I T O S H U M A N O S

Vias de Fato

São Luís, agosto de 2015

Plano Diretor de São Luís e suas Audiências nada Públicas Revisão da lei que pode alterar definitivamente a cara da cidade e a forma como seus moradores se relacionam com ela é feita a toque de caixa e sem a devida publicidade

A capital maranhense é uma cidade que cresceu (na verdade inchou) desordenadamente nas últimas décadas, com sérios problemas estruturais, sociais e ambientais; praticamente sem saneamento básico, com esgoto a céu aberto, com um trânsito caótico, um transporte público ruim, o calor aumentando por conta do desmatamento, tendo uma poluição crescente (apesar de ignorada pela maioria), com uma escassez de serviços básicos. E tudo isso pode piorar! E piorar muito! Por isso, todos tem que estar atentos às mudanças que querem fazer na Lei de Zoneamento e no Plano Diretor da Cidade.

“Isso aqui já está atrasado. Estou perdendo dinheiro com essa demora”. A frase, dita por um dos engravatados que no dia 18 de junho assistia a uma prévia do que seriam as audiências públicas para a revisão da Lei de zoneamento, uso e ocupação do solo e do Plano Diretor de São Luís é emblemática da parcela que espera se beneficiar com a alteração dessas importantes leis. Essa primeira audiência (que não conta entre as que são obrigatórias para que se alterem essas leis) foi chamada pelo Ministério Público e pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo, e serviu como um pontapé inicial dessa discussão na cidade. Talvez o que os engravatados e seus representantes nos órgãos públicos não esperassem fosse aparticipação e pressão da sociedade, que acabou por alterar o calendário com o qual a prefeitura, nesta gestão de Edivaldo Holanda Junior, pretendia resolver a questão: estavam previstas apenas oito audiências para tratar de assunto tão sério, o que impossibilita um debate fundamental para uma cidade de mais de um milhão de habitantes. Para se ter uma ideia do que está envolvido, essas leis disciplinam praticamente todo o cotidiano da cidade, desde a mobilidade urbana, poluição, dimensão das construções que podem ser feitas ou ampliadas, formas de uso e ocupação das áreas, política habitacional, entre outros temas. Alteração do Plano Diretor: a que demandas atende? Às da população ou às da especulação imobiliária e dos grandes empreendimentos poluentes sem compromisso com a cidade? A participação dos movimentos sociais, pesquisadores e populares nes-

se primeiro momento foi fundamental para frear um pouco o ímpeto daqueles que avaliam estar perdendo dinheiro com uma mudança que deve ser feita em benefício da cidade, não apenas dos que querem lucrar com ela. Foi assim que a secretaria de Urbanismo e Habitação, uma das pastas responsáveis (juntamente com o Conselho da Cidade e o Instituto da Cidade) por tocar a revisão desse conjunto de leis, aceitou aumentar o número de audiências públicas para tratar do assunto com a população. De oito, a secretaria comprometeu-se a ampliar para 15 audiências. Desnecessário dizer que esse número segue insuficiente para assegurar a participação da população na discussão. Inclusive porque o calendário segue apertado: as audiências, que já começaram a acontecer, deveriam ser realizadas, todas elas, dentro de um mês, de 21 de julho a 22 de agosto. A pressão contra esse atropelo proposto pela prefeitura segue, e assim, na audiência ocorrida no dia 30 de julho, no Sesc Olho d’Água, foi anunciada a realização de mais uma, no dia 25 de agosto, no Parque do Bom Menino. Desnecessário dizer o quão pífia é essa ampliação. Entretanto, é importante ressaltar a importância da participação popular nessa etapa (que deve ser questionada na justiça pela forma como vem sendo levada a termo pela prefeitura), inclusive para questionar o porquê de um assunto tão sério ser tratado tão no afogadilho: quem se beneficia com o futuro da cidade sendo tratado dessa maneira? Segundo matéria produzida pelo Instituto da Cidade (Incid) e distribuída para jornais e blogues alinhados à prefeitura de São Luís, um dos objetivos

da alteração da legislação é a proteção ambiental. Não é o que se observa, entretanto, na proposta de alteração que pode ser consultada na página da prefeitura na Internet: há a previsão de alteração do padrão das construções em várias partes da cidade, que poderão, se aprovada a proposta, passar a contar com prédios de mais de 30 andares, numa extrema concentração populacional em meio ao caos já vivido hoje em várias partes da cidade, especialmente em relação ao trânsito e ao transporte coletivo. Essa é uma demanda clara das construtoras em detrimento da qualidade de vida na cidade. Outro ponto que demonstra que de proteção ambiental a proposta de revisão do Plano Diretor não tem nada é a alteração no zoneamento da cidade, transformando várias áreas, hoje rurais, nas quais há comunidades centenárias, em industriais, mistas ou de retroporto. É dessa forma que se pretende proteger o meio ambiente em São Luís? Proposta de revisão das leis do Plano Diretor e do Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo é considerada ilegal por vários setores da sociedade e pode ser barrada na justiça: alteração pode piorar a poluição na capital, que já exibe níveis alarmantes Com essa alteração no zoneamento, em vez de promover a proteção ambiental na Ilha, a prefeitura de São Luís pretende, ao contrário, expandir o distrito industrial sem realizar as audiências específicas para tal fim, omitindo ainda os prejuízos que hoje, mesmo sem estar regulamentado, o DISAL (Distrito Industrial de São Luís) gera para a cidade e seus habitantes: para se ter uma ideia, o lançamento de partículas na área do Porto do Itaqui, por empresas como Vale e Termelétrica da Eneva, não ra-

ramente ultrapassa os níveis aceitáveis pela legislação ambiental brasileira, sem que haja o mínimo de fiscalização pelo poder público, nem sanção a essas empresas – ao contrário, espera-se alterar a lei para que elas expandam seus negócios poluentes na cidade! Exemplo: a termelétrica, que em seu relatório de impacto ambiental apresentado para permitir sua instalação na Ilha, previa a emissão de 400 mg/Nm3 de SO2 (dióxido de enxofre) na atmosfera, solicitou a duplicação desse limite, já que é frequente a ultrapassagem dos limites permitidos atualmente. Os dados constam no Relatório de Cumprimento de Condicionantes da Licença de Operação do empreendimento. Com isso, somente a termelétrica pode lançar mais de cinco mil toneladas de dióxido de enxofre na cidade, sem contar plantas recentemente duplicadas, como Alumar e Vale, que também ultrapassam os limites previstos pela legislação ambiental sem muita dificuldade. Na área, também já foi constatada a contaminação de águas subterrâneas, algo extremamente grave por se tratar de uma região importante para a recarga dos aquíferos da Ilha. Os dados, referentes aos níveis de poluição na Ilha, foram apresentados pelo advogado Guilherme Zagalo durante os encontros que vêm acontecendo na Faculdade de Arquitetura da UEMA com representantes de movimentos sociais, pesquisadores, advogados, estudantes, jornalistas etc, para analisar como envolver a cidade nessa importante discussão. Para Guilherme Zagalo (que fez parte do Movimento Reage São Luís, que conseguiu barrar a instalação do polo siderúrgico na zona rural da capital maranhense) hoje, “o Distrito Industrial de São Luís opera

São Luís, agosto de 2015

fora da lei e precisa reduzir suas atividades”. Temas como esse, de suma importância, não aprecem nas discussões propositalmente esvaziadas para alteração das leis municipais, feitas a toque de caixa pela Prefeitura de São Luís. O esvaziamento das audiências recai sobre a prefeitura, e por si só já seria suficiente para anular esse arremedo de discussão tocada pelo poder público. Se na época que precisava justificar o aumento da tarifa do transporte público a cidade era encharcada por inserções em horário nobre na TV com a prefeitura mostrando investimentos no setor de transporte (até hoje não sentidos por quem pega ônibus todos os dias), o mesmo não se viu na convocação da população para as audiências: nada na TV, no rádio, ou ao menos carros de som nas ruas, cartazes em espaços públicos. Resultado: audiências com baixa presença da população. Mas não é apenas essa a justificativa para se pressionar para a anulação de um processo feito à revelia dos principais interessados, que são os habitantes: para se alterar o Plano Diretor (Lei 4669/06), é necessário, segundo a lei, que o Conselho da Cidade convoque as audiências. Não é o que se verifica no Edital, em que consta apenas a assinatura do presidente do Incid, José Marcelo do Espírito Santo. Com base nisso, um conjunto de movimentos populares, advogados, professores, deve entrar com pedido de anulação das audiências já realizadas até agora, exigindo que a prefeitura cumpra a lei e faça nova convocação, iniciando novamente todo o processo e aprofundando a discussão. Isso não impede que haja participação nas audiências, até mesmo para denunciar que o adensamento populacional, que permite o surgimento de torres habitacionais em várias áreas de uma cidade carente de transporte e saneamento, apenas para ficar em duas grandes demandas, pode até beneficiar quem acha que está perdendo dinheiro com a demora da aprovação dessas al-



Vias de Fato

DIREITOS HUMANOS 

terações, mas dificilmente atende quem pega ônibus todos os dias, quem está sem áreas de lazer, sem parques, sufocado por uma cidade que não inclui seus habitantes – nem nas discussões dos rumos que São Luís deve tomar. Quando esta edição do Vias de Fato estiver circulando, deverão acontecer ainda audiências na Cidade Operária (UEB Tancredo Neves, 6 de agosto), Sacavém (UEB Darcy Ribeiro, 8 de

de áreas rurais, produtoras de alimentos e pescados, para as indústrias. Essa falta de discussão no âmbito do próprio Conselho deve dar fôlego na luta contra esse projeto de cidade não-inclusiva pretendido pelo atual ocupante do Palácio La Ravardiére. E a prefeitura conta com aliados poderosos nas demais instâncias de poder na defesa dessa proposta. A alteração de zona rural para industrial, por

Edivaldo Holanda: compromisso com a população e com o futuro da cidade? Ou com as construtoras e as grandes empresas poluentes?

Para Guilherme Zagalo (que fez parte do Movimento Reage São Luís, que conseguiu barrar a instalação do polo siderúrgico na zona rural da capital maranhense) hoje, “o Distrito Industrial de São Luís opera fora da lei e precisa reduzir suas atividades”.

agosto), UEMA (11 de agosto), UFMA (13 de agosto), Maracujá (15 de agosto), Casa do Trabalhador (Calhau, 18 de agosto), Cohatrac (UEB Primavera, 20 de agosto), Vila Maranhão (22 de agosto) e, agora, Parque do Bom Menino, 25 de agosto. Uma rápida vista revela ainda a sobreposição de audiências em algumas áreas e a falta de participação de outras áreas da cidade, mais um produto do atropelo da prefeitura. Além dos problemas apontados, alteração da legislação municipal revela que a mudança prometida pelo grupo que hoje está no poder em São Luís e no Maranhão não se livrou da herança sarneysista que lhe convém como tocador do projeto de “choque de capitalismo” Além de tudo o que foi dito, interessante ressaltar que parte do Conselho da Cidade não se sente contemplada pela proposta defendida pela prefeitura, que privilegia prédios-torres demandados pelas construtoras, bem como a entrega

exemplo, é uma demanda da secretaria de Indústria e Comércio do Maranhão que, dessa forma, mantém para a área o mesmíssimo projeto da oligarquia Sarney: contribuir para expulsar comunidades da área, importantes para a preservação ambiental, e entregá-la para o grande capital. Assim, é posto mais uma vez em xeque o discurso da mudança propalado pela prefeitura e pelo Governo do Estado: em reunião com o atual secretário de Indústria e Comércio (Seinc) para tratar de problemas na zona rural causados pela expansão industrial na região, como a luta da comunidade do Cajueiro para permanecer em seu território, foi solicitado ao secretário Simplício Araújo, no dia 30 de janeiro de 2015, que sua pasta abrisse mão da gestão de terras na área, e repasse os territórios de interesse social para o Instituto de Terras do Maranhão (ITERMA), para que promovesse a regularização fundiária e desse tranquilidade a quem lá

vive há décadas. Ao contrário disso, a Seinc mantém a gestão, herdada dos governos Roseana, e mais: mantém a indicação para que a área seja alterada de rural para industrial. A reunião, na qual foi apresentada a solicitação ao secretário, é uma prova de que a manutenção desse projeto não se dá por ignorância da gravidade do problema, mas por uma opção em defender interesses econômicos que se contrapõem aos interesses da população. É preciso envolver a população no debate sobre os rumos que terá a cidade nos próximos anos e a quem deve ser atendido por essas alterações! É fato que o Plano Diretor e a Lei de Zoneamento carecem de revisão para atender ao crescimento da cidade, que aconteceu de forma desordenada. A questão é: a quem deve atender essas alterações? A uma população carente de serviços e equipamentos urbanos básicos e de proteção ambiental, ou a um conjunto de especuladores que avalia estar perdendo dinheiro e que é preciso avançar sobre as reservas ambientais da Ilha e concentrar a população ainda mais em grandes torres sem serviços urbanos ao redor? As discussões sobre os rumos da cidade seguem. Além da participação nas audiências, é feito o convite a todos que sentirem interesse para que participem das reuniões que debatem o tema, convocadas por militantes sociais, professores, jornalistas e interessados no assunto. Elas acontecem geralmente aos sábados, a partir nas 9h, no Auditório da Faculdade de Arquitetura da Universidade Estadual do Maranhão, na Praia Grande, Centro Histórico de São Luís. Em sábados de audiência, a indicação é que, em vez da reunião, todos participem das audiências públicas, e questionem a falta de publicidade delas e a forma como esse assunto está sendo conduzido. Para confirmar a realização das reuniões, acompanhe a página do jornal Vias de Fato no facebook, onde serão divulgadas.

Depoimento do professor da rede pública Hugo Rodrigues, que acompanhou a Audiência Pública no bairro da Alemanha: “A audiência pública ocorrida na UEB Miguel Lins, na Alemanha, para a discussão sobre a revisão da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo e do Plano Diretor de São Luís, a terceira já realizada na cidade, iniciou com uma metodologia desastrosa. A mesa composta apenas pela equipe técnica que elaborou a revisão da referida lei e do Plano Diretor levou mais de uma hora para descrever conceitos arquitetônicos, ambientais e da engenharia e propôs que a plenária fizesse apenas perguntas escritas. A apresentação mostrou apenas os aspectos de interesse da equipe técnica que na mesa representou a prefeitura de São Luís. A intervenção da Frente de Luta pela Mobilidade Urbana na Grande Ilha, no início, na pessoa de Bruno Rogens, foi decisiva para mudar a metodologia e permitir a participação do plenário. Durante toda a audiência membros da população local apontaram que a audiência não foi devidamente divulgada, apontaram a omissão do poder público municipal na construção de um hospital num terreno baldio localizado no bairro da Alemanha e a falta de asfaltamento. Durante toda a audiência foi questionada a legitimidade da mesma, haja vista a baixa participação popular e a irregularidade na sua convocação, pois no edital constava a discussão sobre a revisão do Plano Diretor e a equipe técnica se negou a responder qualquer pergunta sobre o tema, sequer

7

tratou disso nas apresentações iniciais. A plenária da audiência estava dividida entre os membros da comunidade, da Frente de Luta pela Mobilidade Urbana na Grande Ilha, do Fórum pela revisão da Lei de Zoneamento e do Plano Diretor (espaço em que a Frente está inserida) e o empresariado da construção civil, da especulação imobiliária e seus assessores. Me causou espanto a declaração de um projetista que teve a audácia de dizer que a expansão horizontal de São Luís foi um erro, bairros como Cidade Operária, São Raimundo, Cohatrac, Cohab, Cohama, Cidade Olímpica não deveriam existir. Segundo ele a cidade deveria ter crescido verticalmente e se orgulhou dos tempos, na década de 60, em que a cidade tinha todos os serviços concentrados no centro e todos tinham que se deslocar até lá para usufruir dos mesmos. Para finalizar, ele propôs que deveria haver um limite de gabaritos (número de andares dos prédios) na orla marítima e nas áreas próximas ao aeroporto e no resto da cidade um gabarito ilimitado, acreditam? A maioria esmagadora das perguntas questionava as condições de saneamento e mobilidade urbana de São Luís para receber essa proposta de revisão da lei; outras questionaram a legitimidade da audiência e qual o motivo da ausência de discussão sobre o plano de mobilidade urbana, saneamento básico e do Plano Diretor”.

8   D I R E I T O S H U M A N O S

Vias de Fato

São Luís, agosto de 2015

Povo ka’apor expõe sua pauta de luta Indígenas do povo Ka’apor realiza encontros e rodas de conversa em preparação para conferência nacional de política indigenista. Abaixo, texto produzido pelos indígenas. Nos dias 18,19, 20 e 21 de julho de 2015, no Centro de Formação de Saberes Ka’apor, primeiro Ka’ausak ha (área de proteção) criada em 2013 para proteger nosso território realizamos do nosso jeito com nossas lideranças do nosso Conselho de Gestão Ka’apor, Conselho das aldeias e lideranças Ka’apor uma grande conversa sobre os temas Conferência Nacional de Política Indigenista. Sob a proteção de nossa floresta e forças de MairTamui (Aquele que criou no inicio tudo que existe hoje) iniciamos nosso encontro, nossas rodas de conversas com muita vontade de continuar mudando nossa vida para uma realidade melhor em nome de nosso Janderuhã ha ka’arehe (Nossa Floresta é nosso plano de vida). Durante nosso deslocamento e nossa conversa com as lideranças chegou notícias de caminhões madeireiros entrando em nosso território, lideranças das áreas de proteção sendo perseguida e ameaçada em um ramal do município de Nova Olinda do Maranhão. Segundo as lideranças, a pessoa tinha as mesmas características do assassino que atirou em nosso parente Eusébio Ka’apor solto e fazendo ameaças na entrada das aldeias. Com isso, tivemos que tomar providencias. Como a Funai não enviou para nós e nossa CTL local os temas e programação da preparação da conferência local no Estado, resolvemos por conta própria realizar conversa e tomar decisões. No primeiro dia realizamos conversa sobre a realidade brasileira e realidade dos povos indígenas no Brasil. Momento de reflexões tristes, mas com muita vontade de continuar lutando por dias melhores. Falamos sobre a Política do governo para os povos indígenas no Brasil. Que devemos continuar lutando pela nossa autonomia, se organizando do nosso jeito e fortalecendo nossas lideranças e nossas formas de organização, isso é o nosso governo. Conversamos sobre nosso Conselho de Gestão Ka’apor, como está desenvolvendo o trabalho, a relação com os órgãos do governo do Kamará (branco). Essa é nossa forma de acompanhar a gestão de nosso território e trabalho nas aldeias. Conversamos sobre o trabalho do Conselho das Aldeias, nosso Acordo de Convivência nas aldeias. Olhamos para a nossa Associação Indígena que tem fortalecido nossa luta e organização. E iniciamos uma grande conversa sobre a gestão de nossa saúde e nossa educação. No segundo dia conversamos sobre nosso trabalho de proteção territorial, como vamos fortalecer a defesa e proteção territorial, nosso jeito de se organizar para proteger, a continuidade de nosso Projeto de Etnomapeamento e a situação de nossas famílias que estão

em nossas áreas de proteção em busca de sustentabilidade, respeitando e protegendo a floresta. No terceiro dia a Coordenação Técnica Local Ka’apor apresentou o trabalho de apoio aos nossos parentes, as dificuldades encontradas com o governo, com a Funai. Mas, que ele está se fortalecendo por ter apoio de nossas aldeias, de nosso povo. Por isso, continuar desenvolvendo o trabalho. Nesse dia conversamos sobre o papel do Conselho Nacional de Política Indigenista. A CTL Ka’apor e nossos apoiadores apresentaram o tema da Conferencia Nacio-

tinuamos conversando sobre nosso trabalho em defesa do território e sustentabilidade em nossas áreas de proteção criadas na entrada de ramais de invasores; como estamos recuperando as áreas degradadas pelos madeireiros; como estamos trabalhando nossas roças para melhorar nossa alimentação e proteger nossa floresta; o que vem dando certo nessas áreas, o que precisa melhorar, ser fortalecido, como nossas famílias estão vivendo de forma a não depender apenas de Bolsa Família, como continuar respeitando nossa floresta. Com o aumento de ameaças e perseguições as

Os Ka’apor tiveram conversa sobre a realidade brasileira e realidade dos povos indígenas no Brasil. Momento de reflexões tristes, mas com muita vontade de continuar lutando por dias melhores. Falaram sobre a política do governo para os povos indígenas no Brasil. Eles continuarão a exigir mudanças na política do governo para a garantia de seus direitos originários.

nal “A relação do Estado brasileiro com os povos indígenas no Brasil sob o paradigma da Constituição de 1988”, com os eixos de trabalho: territorialidade e o direito territorial dos povos indígenas; autodeterminação, participação social e o direito à consulta; desenvolvimento sustentável de terras e povos indígenas; direitos individuais e coletivos dos povos indígenas; diversidade cultural e pluralidade étnica no Brasil; direito à memória e à verdade. Continuamos dias 28 e 29 de julho de 2015 no Centro Educacional La Salle, município de Presidente Médici nossas conversas sobre nossa gestão territorial. Nesses dois dias reunimos lideranças de nosso Conselho de Gestão, Conselho das Aldeias, nossos Ka’ausak ha (Guerreiros Ka’apor em defesa da floresta). Contamos com a presença de nossos parentes Gamela e do Conselho Indigenista Missionário. Nossa conversa foi marcada por longas reflexões sobre a situação de nossos parentes Munduruku, Guarani Kaiowá, Terena, Tupinambá. Depois passamos a olhar para nossas atividades de etnomapeamento, ações de vigilância e fiscalização de nosso território, assim como, rever o jeito do trabalho que esta sendo feito e planejar novas ações. Na tarde do dia 29 de julho de 2015 con-

nossas lideranças nas aldeias; nenhuma informação por parte da polícia civil sobre o inquérito policial que apura o assassinato de nosso parente Eusébio Ka’apor; nenhuma ação e manifestação da Funai sobre a criação dos Postos de Vigilância e Fiscalização para a proteção de nosso território conforme a Ação Civil Pública do ano passado e determinação judicial, decidimos paralisar no dia 30 de julho de 2015 a BR 316 no município de Nova Olinda do Maranhão para exigir desses órgãos maior atenção e proteção para nosso território e nosso povo. Mas, mesmo tendo apoio de pessoas da região, nacional e internacional sobre a ação que fizemos na BR 316, por ser justa e legítima, nenhum órgão do governo do Estado e Federal se manifestou de forma a responder nossas necessidades e situação de risco que estamos vivendo em nosso território. Os executores e mandantes do assassinato de Eusébio Ka’apor continuam soltos na região, intimidando e perseguindo nossas lideranças. Não vamos desistir de nossa luta em defesa e proteção de nosso território que é nossa vida. Durante nossas conversas e reflexões em nosso Centro de Formação Saberes Ka’apor e Centro de Formação La Salle, avaliamos que a realidade

brasileira não é favorável aos povos indígenas no Brasil. Muitos povos tem sofrido, seus direitos tem sido prejudicados, muitos parentes tem sido mortos por não ter mais território e nem perspectiva de viver. A gente acredita que essa realidade só mudará quando a gente deixar a nossa vida ser orientada pela nossa cultura originária, nossos saberes ancestrais e tradicionais, dialogando com os conhecimentos da cultura do não indígena que respeita nossa cultura e jeito de ser e viver. Como os não indígenas forçaram o contato com a gente, tomaram parte de nossos territórios no Brasil, ensinaram a cultura deles pra gente e exigem que a gente viva conforme as leis deles, nós exigimos que eles respeitem também nossa cultura, nossas leis e garanta que a gente viva em nossos territórios do nosso jeito. Pra isso, apresentamos algumas ideias, ações que a gente vem adotando, desenvolvendo, que pode garantir os nossos direitos no Brasil e melhorar a gestão de nosso projeto de vida em nosso território. A seguir, conversamos sobre cada eixo e entendemos que para mudar a realidade dos povos indígenas no Brasil é necessário a gente continuar fazendo o que tem dado certo, o que tem fortalecido nossa autonomia e autodeterminação, e continuar exigindo mudanças na política do governo para a garantia de nossos direitos originários. Por isso, apresentamos algumas propostas: No tema Territorialidade e o direito territorial dos povos indígenas: - fiscalizar e combater intensamente todas as formas de crimes contra a natureza. - garantir a regularização das terras indígenas que estão aguardando por esse trabalho, principalmente a demarcação de todas as Terras Indígenas do país, garantindo os territórios com relatório de identificação já publicado, como é o caso de nossos parentes Tupinambá da Terra Indígena dos Tupinambá de Olivença. - respeitar e garantir a regularização da Terra Indígena de nossos parentes Munduruku, assim como, as ações de autodemarcação que estão sendo realizadas em seu território. - retirar todas as ações judiciais contra a comunidade indígena Guarany Apyka’i. Suspenda imediatamente o uso de seguranças privadas no local. Cancele o contrato de arrendamento da área com a Usina São Fernando conforme estabelecido no TAC com o MPF para plantio de cana-de-açúcar e entre em acordo com a comunidade indígena para o uso da área, permitindo que as famílias indígenas vivam no local até que o grupo de trabalho da Funai realize os relatórios e inicie o processo de demarcação e processo de demarcação do Apyka’i.

São Luís, agosto de 2015

- garantir e regularizar os territórios e reconhecimento dos parentes Krenye, Gamela e Tremembé que foram expulsos de seus territórios originários. - que o governo cumpra a determinação judicial de implantação dos Postos de Vigilância e Fiscalização da TI Alto Turiaçu conforme o processo nº 2008.37.00.005728-5, para evitar a invasão pelos não indígenas, principalmente de madeireiros em nosso território indígena. - garantir e apoiar todas as ações e etapas de Gestão Territorial e Ambiental Indígena realizadas pelas organizações indígenas. Respeite as formas de nossas comunidades realizarem a proteção de nossos territórios evitando derrubadas, realizando fiscalização do nosso jeito para evitar grandes impactos e melhorar a proteção de nosso território. - que as populações indígenas possam ser escutadas e decidam sobre a implantação de empreendimentos e adoção de atos da Administração Pública com impacto direto ou indireto nas terras indígenas. - incentivar e apoiar a realização de Seminários permanentes de Vigilância e Proteção Territorial junto aos Povos Indígenas. Nos Direitos individuais e coletivos dos povos indígenas - anular imediatamente das leis que fere nossos direitos constitucionais, como PEC 215, PEC 38, PEC 237, PLP 227, Portaria 303/AGU. - garantir efetivamente o acesso das comunidades indígenas aos programas de Atenção Básica, Média e Alta Complexidade de forma igual aos não indígenas. - criar e implantar nos Estados, Hospitais Federais para o atendimento de Média e Alta complexidade para a população indígena. - cancelar imediatamente o projeto de implantação e implementação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI). - criar, fortalecer e ampliar os CRAS Indígena com maior participação de profissionais indígenas. - criar imediatamente as categorias AIS, AISAN, Técnico de Saneamento Indígena com uma política de valorização salarial para o incentivo e qualificação profissional visando a qualidade da saúde indígena nas aldeias. - contratar intérpretes indígenas para todas instâncias e órgãos que se relacionam com a gestão da política pública para os povos indígenas, como os DSEIs, CASAIs, Polos Bases, CRAS e outros. - tornar de fato, democrático, transparente e participativo os Distritos Sanitários de Saúde Indígena como verdadeiros espaços de controle social indígena e não de interesses de grupos políticos locais. - garantir e efetivar políticas públicas de educação escolar indígena considerando a educação e formas de organização e cosmovisão de cada povo indígena. - criar, reconhecer e dar condições de funcionamento de Conselhos de Educação Escolar Indígena. - criar um Programa Nacional de Formação de Gestores e Técnicos Educacionais Indígenas com a gestão realizada pe-



Vias de Fato

los próprios educadores indígenas. - criar e apoiar o funcionamento de um Programa Nacional de Política Multilinguística para a valorização e ensino das línguas indígenas brasileiras. -apoiar e reconhecer as experiências de Ensino Médio Técnico Integrado no âmbito das SEDUCs e Institutos Federais no Brasil, como as experiências de Magistério Indígena, Agroecologia, Saúde e Meio Ambiente, Gestão Ambiental e outros. - incentivar e apoiar no âmbito das Universidades Federais, Universidades Estaduais e Institutos Federais a criação de cursos que respondam as necessidades e condições objetivas dos Povos Indígenas, como os cursos de Licenciaturas Interculturais e outros. - garantir Censo Nacional de educação específico para as escolas indígenas. - garantir igualdade salarial e remuneração igual ao piso nacional do magistério indígena com o reconhecimento dos títulos acadêmicos para fins de progressão salarial de profissionais indígenas. - realizar avaliação diferenciada das escolas indígenas. - estabelecer diretrizes nacionais para formação continuada em educação inclusiva, considerando as dificuldades e problemas de aprendizagens por educandos indígenas; as línguas de sinais específicas, braile, dislexia, autismo e demais necessidades especiais. - reconhecer e apoiar as experiências de educação escolar indígena e educação indígena que tem valorizado os projetos de vida de cada povo. - elaborar e efetivar um Programa Nacional para a formação permanente, com planos de carreira e acompanhamento pedagógico de gestores e técnicos indígenas para escolas indígenas. Na Autodeterminação, participação social e o direito à consulta - Que o governo respeite e garanta os procedimentos de consulta prévia aos povos indígenas conforme o artigo 6º da Convenção 169, assim como, apoiar e respeitar as formas de consulta dos povos que já realizam, favorecendo a autodeterminação e protagonismo indígena. - Que o governo apoie e aprove a proposta do Ministério Público Federal de criação do Parlamento Indígena. - Criar uma comissão parlamentar indígena para acompanhar as propostas de leis que tratam sobre nossas questões no congresso nacional e nas assembléias legislativas. - Garantir o cumprimento do usufruto exclusivo pelos indígenas dos territórios indígenas conforme o previsto nas legislações indígenas. Na Diversidade cultural e pluralidade étnica no Brasil - reconhecer as experiências em andamento nas comunidades indígenas de reprodução oral/comunitária sobre práticas culturais, tradições orais e saberes indígenas para formação de educadores indígenas, agentes de saúde e saneamento e agentes agroflorestais indígenas. - garantir a efetivação do protagonis-

DIREITOS HUMANOS

mo indígena no cumprimento da lei n° 11.645 nas escolas nãoindígenas. No Desenvolvimento sustentável de terras e povos indígenas - considerar em todas as ações, programas e planos de defesa territorial e ambiental o princípio do Bem Viver a partir dos processos produtivos tradicionais de cada povo indígena. - incentivar, estimular e apoiar a rede de intercâmbios de sementes entre povos indígenas no Brasil. - financiar, apoiar ações que visem a soberania e segurança alimentar e nutricional de todos os povos indígenas. - garantir apoio permanente e segurança aos indígenas em ações de reflorestamento dos territórios indígenas degradados pela ação do agronegócio, projetos agropecuários, empreendimentos industriais e minerais e ação madeireira em especial com árvores nativas, frutíferas, com as metodologias e técnicas dos próprios indígenas para que venham gerar sustentabilidade ambiental de forma responsável para as famílias indígenas. - garantir o registro da produção indígena junto aos órgãos de meio ambiente

9

e desenvolvimento agrário, assim como o selo orgânico. - reconhecer e ampliar as experiências de Educação e Formação a nível Fundamental e Médio de Agentes Indígenas Agroflorestais e Agroecologia. - incentivar, apoiar a criação de banco de sementes tradicionais gerenciados pelos próprios indígenas para a manutenção dos conhecimentos tradicionais agro-cultural de cada povo com a criação viveiros de espécies nativas para uso alimentar e medicinal. No Direito à memória e à verdade - garantir o direito de propriedade intelectual aos povos indígenas evitando pelas vias legais o roubo de conhecimentos tradicionais. Conselho de Gestão Ka’apor, Conselho das Aldeias, Conselho Político-Pedagógico do Centro de Formação Saberes Ka’apor, Guerreiros Ka’apor em Defesa da Floresta, Educadores e Gestores da Educação e Saúde Ka’apor, CTL Ka’apor, Lideranças Ka’apor. Centro de Formação Saberes Ka’apor, 31 de julho de 2015. “Tupanjandenamõixo”

10  O P I N I Ã O

Vias de Fato

São Luís, agosto de 2015

A passagem da vingança para a matança Diogo Cabral*, Luís Antônio Pedrosa* e Wagner Cabral** Os linchamentos, geralmente, são mais frequentes em tempos de tensão social e econômica. Essa modalidade de extermínio também sempre esteve relacionada a preconceitos e práticas discriminatórias que condicionaram as sociedades a aceitar esse tipo de violência como prática normal de "justiçamento popular". Não é à toa que seu formato atual foi dado no contexto da opressão racial existente ao longo da colonização dos EUA. Assim como existe uma certa aura de perdão em torno do agente da lei que pratica extermínios, os linchamentos invocam justificativas. A mais alegada atualmente é o aumento da criminalidade e a fragilidade do sistema de segurança pública e de justiça. A palavra tem origem vinculada ao nome do Coronel Charles Lynch ou ao Capitão Willian Lynch, ambos coetâneos ao século XVIII. A lei de Lynch, a partir de 1837, designou o ódio racial contra índios e negros e consolidou práticas que deram origem ao grupo racista KuKluxKlan. Assim como ocorreu no sul dos Estados Unidos, o linchamento tem como mola propulsora a desconfiança da lei e a reivindicação de anarquia, terreno fértil para a proliferação da barbárie. No Brasil, ela se dirige basicamente à principal clientela do sistema penal: jovens, negros e pobres. O caldo de cultura para esse tipo de violência é alimentado por amplos setores da mídia policialesca, que vegeta na periferia da programação das grandes redes de televisão e rádio e, atualmente, até nos discursos religiosos fundamentalistas mais inflamados. Tal como o preconceito, quando flagrado geralmente é negado. E nenhum desses agenciadores diriam claramente que defendem o linchamento. O incentivo se dá por vias indiretas, fortalecendo noções do senso comum cuja lógica descamba para o mesmo lugar de sempre: a violência. Os lugares comuns frequentemente invocados por esses grupos formadores de opinião podem ser facilmente perceptíveis: a) A polícia prende mas a justiça solta; b) Adolescentes infratores não são punidos; c) O ECA protege "menores" bandidos; d) Bandido bom é bandido morto; e) Direitos humanos só defende bandido. Essa cantilena, repetida infinitas vezes e das mais variadas formas, suscita o espírito de desamparo e de vingança na população. Os elevados índices de criminalidade são analisados a partir das suas consequências exclusivamente, exigindo soluções cada vez mais repressivas. Assim, esse discurso conservador vai evoluindo para soluções cada vez mais drásticas e irracionais, mobilizando adeptos, como num efeito dominó, em atitude de manada, culminando no retrocesso da representação política atual, como é exemplo a bancada da "bala", do "boi" e da "bíblia". O linchamento é estimulado pela nova pauta reacionária instalada. Ela quer que cada cidadão possua uma arma para se

defender dos ditos criminosos; ela quer a pena de morte e a prisão perpétua; ela quer a tortura institucionalizada; ela quer a redução da maioridade penal; ela quer mais presídios e mais polícia; ela quer a criminalização dos grupos sociais que reivindicam direitos; ela quer a volta da ditadura militar e a satanização das identidades sexuais e religiosas. Enfim, essa pauta quer muito mais. A cena do linchamento no bairro São Cristóvão, periferia de São Luís, é a cópia de todas as outras. Até no poste se assemelha, como versão atual do Pelourinho. A praça pública ou o palco do espetáculo sangrento são as redes sociais. Neste universo de compartilhamento de imagens, surgem dois homens, um morto, completamente desnudado e amarrado com cordas a um poste e outro espancado, também amarrado.

cobertura da imprensa local ou nos sumários relatórios da SSP-MA, temos: a) 4 casos envolvendo estupro ou violência doméstica; b) 4 casos envolvendo assassinatos (ou tentativa de), inclusive um caso de linchamento de um policial (PM); c) 4 casos em que não foi possível reunir informações suficientes para identificar os motivos; d) 18 casos de linchamento de supostos assaltantes (60% do total). O que impressiona não é somente a crueldade do linchamento de Cleidenilson Pereira da Silva, mas também a “invisibilidade” das outras 29 mortes por linchamento ocorridas nos últimos dois anos e meio, bem como a impunidade dos envolvidos e o silêncio do Estado. Nesse sentido, desde o início do ano, foi apresentada ao governo do Maranhão a proposta de

A cena do linchamento no bairro São Cristóvão, periferia de São Luís, é a cópia de todas as outras. Até no poste se assemelha, como versão atual do Pelourinho.

Do virtual para o real, a cena se desenrola em São Luís do Maranhão, uma das cidades mais violentas do Brasil, apontada como a 10a cidade mais violenta do mundo (pela ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz), capital de um Estado onde a desigualdade social detém indicadores alarmantes. Aqui o “(in)justiçamento” possui a regularidade de uma vítima por mês, desde o ano de 2013, segundo levantamento da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).Trata-se de mais um caso de linchamento. Não por acaso, mais um jovem negro, suspeito da prática de assalto, trucidado por pauladas, garrafadas, facadas e enforcamento, em plena via pública. De janeiro de 2013 até julho de 2015, houve 29 linchamentos com vítimas fatais, resultando em 30 mortes na Grande São Luís (houve um caso de linchamento duplo, de adolescentes de 16 e 17 anos). Além destes, houve pouco mais de uma dezena de linchamentos que não resultaram em morte. A média, portanto, é de um linchamento fatal por mês – medida da barbárie naturalizada no cotidiano urbano. O mapa abaixo esclarece a incidência dos linchamentos na capital maranhense e ilustra esta forma de fazer ‘justiça’. Segundo os motivos atribuídos para os linchamentos com vítimas fatais, na parca

criação de um Sistema Estadual de Informações sobre Violência e Segurança Pública, visando o monitoramento dos mais diversos tipos de violência, numa parceria Estado-Sociedade Civil, de modo a subsidiar a formulação de políticas públicas de prevenção social da violência e combate à impunidade. Continuamos aguardando a resposta do governo estadual... George Sorel, em seu estudo no início do século XX, informa que a força bruta, o derramamento de sangue e a crueldade seriam interpretados usualmente como costumes de povos antigos, de sociedades atrasadas. José de Sousa Martins chama atenção para o fato de que no Brasil, no entanto, os linchamentos diferem profundamente do que a própria imprensa classifica como chacinas, praticadas por justiceiros ou, mesmo, policiais. Nos debates a respeito dos linchamentos, é possível perceber que muitos confundem a ação dos linchadores com a ação dos chamados justiceiros, apesar da enorme diferença entre as motivações de uns e outros. Boa parte das pesquisas sociológicas colocaram grande ênfase nas orientações positivas dos agentes da luta pela cidadania, dando ênfase ao estudo dos movimentos sociais, orientados por objetivos sociais evidentes e modernizadores, isto é, de algum modo politizados. Evidentemente, estamos diante de um fenônemo novo e distinto, inserido den-

tro de um conjunto de práticas elaboradas pelo pensamento conservador, em tudo diferente das práticas de gestação da cidadania onde a chamada “justiça popular” poderia ter lugar. Para os grupos vulnerabilizados, a conjuntura de fortalecimento do ódio e do preconceito leva a situações extremas, emergindo o linchamento como um dos mecanismos desse ideal de justiça, seletivo, emocional, permeado de rituais súbitos, irracional e refratário aos procedimentos formais dos julgamentos reconhecidos pelo Estado de Direito. Jean Améry, sobrevivente do campo de concentração de Bergen-Belsen, em seus escritos testemunhais, nos esclarece que o prisioneiro do lager nazista denominado de Muselmann era um cadáver ambulante, um feixe de funções físicas já em agonia e que deveria ser excluído da consideração humana, ou, notadamente, conforme Primo Levi, em seu livro É isto um homem?,oMuselmann é o não-homem que habita e ameaça todo ser humano, a redução sinistra da vida humana à vida nua e que não pode nem ser chamado de vivo nem ter uma morte que mereça esse nome. A passagem de uma vingança ordinária para a matança transforma os homens em objetos e os redefine e insere em dois grupos racionalizados, notadamente aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer. O primeiro, o grupo dos bons, dos intocáveis, que também são diferenciados internamente por representações classistas,e o segundo, daqueles que representam o mal, a feiura, a imundice, os negros e pobres da periferia que cometem os delitos contra o patrimônio dos bons e que deixaram de ser homens e viraram feras. Estas redefinições e rearranjos não encontram guarida no ordenamento jurídico nacional, no entanto, constituem-se como regra padrão, como nomos que, contraditoriamente, são utilizadas em larga escala pelo próprio Estado, que, teoricamente, as repele. Assim, de acordo com Hannah Arendt, “grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em termos utilitários. [...] Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários para tornar os homens supérfluos”. Decapitações, torturas, linchamentos e chacinas não podem ser explicados como uma fatalidade, mas sim caracterizados como um mecanismo eficaz de controle absoluto sobre a vida humana, induzido por ações/omissões estatais que, cada mais vez, golpeiam, como punhal, à traição, o corpo do inimigo declarado e marcam o fim e a ruína de qualquer ética da dignidade humana. * Advogados da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos. ** Historiador, Prof.Ms. do Curso de História da UFMA, membro do Conselho Diretor da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e do Observatório da Violência.

São Luís, agosto de 2015



Vias de Fato

C U LT U R A

11

As noites e as músicas das noites de São Luís

Projetos Milhões de uns, de Joãozinho Ribeiro, e RicoChoroComVida, de Ricarte Almeida Santos, oferecem cardápio musical distinto ao comumente ouvido na noite ludovicense e podem suscitar debates acerca de modelos e financiamento Por Zema Ribeiro* A equação não fecha: apesar da maior oferta de cursos de música na capital maranhense, pouco se vê, em termos de evolução, da música praticada em barzinhos, geralmente limitada ao modelo voz e violão e ao repertório de medalhões da chamada MPB ou o ditado pela moda das novelas e outros programas de televisão. Por outro lado, uma interessante cena autoral é pouco vista em bares, o que é mais ou menos explicável por dois fatores: o custo, tido como alto por empresários, para levar uma banda para uma apresentação em um bar; e a suposta falta de interesse do público em repertório desconhecido para ele; no geral, as pessoas que vão ahappy hours parecem pouco preocupadas com o que está sendo tocado ou quem está tocando – algumas chegam a se revoltar contra a cobrança de couvert artístico. Difícil elaborar uma fórmula para resolver o impasse, mas acreditamos que alguns passos seriam importantes: a cobrança de couverts artísticos honestos, o repasse integral dos mesmos aos artistas (há bares que ficam com parte dele e das gorjetas aos garçons), maior qualificação dos profissionais da música, o que apontaria para sua valorização, entre outros, além dos investimentos, a longo prazo, que extrapolam o universo dos barzinhos, entre proprietários e músicos: a aposta na educação e na cultura, como formadoras de plateia, melhor preparando nossas crianças – homens e mulheres de amanhã – para a fruição artística. Dois importantes projetos ora realizados em São Luís vão na contramão dos problemas apresentados por aqui. Falo da temporada Milhões de uns, capitaneada pelo compositor Joãozinho Ribeiro, e do projeto RicoChoroComVida, produzido por Ricarte Almeida Santos. O primeiro celebra os 60 anos do compositor Joãozinho Ribeiro, em uma

série de shows de lançamento e noites de autógrafo de Milhões de uns – vol. 1, seu disco de estreia, gravado em novembro de 2012; o segundo é uma espécie de reedição do saudoso Clube do Choro Recebe, produzido pelo sociólogo e radialista entre 2007 e 2010 no

A estreia de RicoChoroComVida aconteceu no sábado 1º. de agosto, com casa absolutamente cheia, discotecagem de DJ Franklin, e shows de um quarteto formado por João Neto (flauta), Luiz Cláudio (percussão), Luiz Jr. (violão sete cordas) e Wendell Cosme (cavaquinho e bandolim), e do cantor Claudio Lima (foto).

Bar e Restaurante Chico Canhoto (Cohama), com breves passagens por La Pizzeria/ Pousada Portas da Amazônia (Praia Grande) e Associação do Pessoal da Caixa (APCEF, Calhau). Milhões de uns circula por diversos palcos/bares de São Luís, já tendo passado por Bar do Léo, Seu Guma e Malagueta, estes últimos no Renascença. RicoChoroComVida tem endereço fixo no Barulhinho Bom (Rua da Palma, 217, Praia Grande). Os shows de Joãozinho contam com a participação de convidados especiais, que participaram ou não de seu disco. Entre os nomes que já passaram pelo projeto estão Célia Maria, Chico Saldanha, Cesar Teixeira, Lena

Machado, Adler São Luís e Milla Camões. A estreia de RicoChoroComVida aconteceu no sábado 1º. de agosto, com casa absolutamente cheia, discotecagem de DJ Franklin, e shows de um quarteto formado por João Neto (flauta), Luiz Cláudio (percussão), Luiz Jr. (violão sete

– embora a coisa não seja assim tão automática, como posso fazer parecer. Ambos os projetos têm equipes apaixonadas pelo que produzem – eu diria mesmo que dinheiro é consequência. Milhões de uns e RicoChoroComVida têm patrocinadores e apoiadores – desta feita também do

Milhões de uns, sob o comando de Joãozinho Ribeiro, circula por diversos palcos/bares de São Luís, já tendo passado por Bar do Léo, Seu Guma e Malagueta, estes últimos no Renascença.Milla Camões (à esquerda) foi uma das artistas que passou pelo projeto.

cordas) e Wendell Cosme (cavaquinho e bandolim), e do cantor Claudio Lima, que desfilou um repertório inusitado, como é a proposta do projeto, desde sempre. As canjas contaram com as luxuosas presenças de Serra de Almeida (flauta), Paulo Trabulsi (cavaquinho), Osmar do Trombone, Osmarzinho (saxofone) e da cantora Célia Maria, convidada da próxima edição do projeto, a acontecer dia 5 de setembro, véspera de feriadão. O grupo que acompanhará a cantora ainda será anunciado pela produção. Estes eventos musicais têm muito em comum. Por um lado um público fiel que segue Joãozinho e Ricarte em suas empreitadas por onde elas são anunciadas; por outro, formam plateia, e muita gente que jamais havia ouvido falar em choro, por exemplo, passa a ser um apreciador

poder público, mas em geral de pequenos empresários que admiram a obra musical de Joãozinho Ribeiro e o gênero popularmente conhecido como “chorinho” – e a cumplicidade dos palcos que os sediam. A remuneração das equipes envolvidas, entre músicos, cantores, técnicos de som, produtores, assessores etc., pode ser pequena, não ser ideal, estar abaixo do mercado e outros eteceteras, mas suas realizações podem suscitar uma série de debates acerca de modelos, de financiamentos (público e privado), de interesse público e, sobretudo do maravilhamento causado nas plateias, comumente cheias, que presenciam os espetáculos, sempre diferentes entre si, tornando cada experiência única. *ZEMA RIBEIRO escreve regularmente em www.zemaribeiro.org

BAR DO CHICODISCOS Nos encontraremos por lá

Rua de São João (esquina com a Rua dos Afogados), nº 389-A. Entrada pela Rua de São João

12  A T U A L I D A D E

Vias de Fato

São Luís, agosto de 2015

A (não) Reforma Agrária desenvolvimentista do Matopiba no Maranhão Saulo Barros da Costa* O modelo de desenvolvimento econômico e social com base nos monocultivos, atrelado à máxima exploração de biomas e à perspectiva de hegemonia territorial agroexportadora, são marcas do Plano de Desenvolvimento Agrícola (PDA) do Matopiba, assinado pela presidente Dilma Rousseff e a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Kátia Abreu, em 6 de maio de 2015. São ares de mundialização da agricultura brasileira (Oliveira, 2014) em territórios do cerrado maranhense. O Plano é demarcado na circunscrição dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, passando pelos biomas cerrado (90,94%), amazônia (7,27%) e caatinga (1,64%), que chega à grandeza de 143 milhões de hectares. O bioma cerrado é alvo do Plano devido a espaçada concentração espacial de empreendimentos agrícolas, com grande notoriedade para as microrregiões de Barreiras/BA, Gerais de Balsas/ MA, Alto Parnaíba Piauiense/PI e Jalapão/ TO. São os grandes expoentes produtores de soja da dinâmica nacional. Com acordo de cooperação direta entre Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), através do Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (GITE), foi formulado um Sistema de Inteligência Territorial Estratégica (SITE). Este Sistema é composto de escolhas de fatores territoriais como divisão administrativa, dinâmica econômica e natural, para escolha de cinco elementos que são: quadro natural, quadro agrário, quadro agrícola, quadro de infraestrutura e quadro socioeconômico. Estes estudos iniciaram em 2010 e balizaram notas técnicas, que justificassem a criação do decreto presidencial nº 8.447. Das 31 microrregiões eleitas pelo SITE, 15 são maranhenses, que totalizam 132 municípios e 23.982.345,87ha, referentes a 72,25% do território estadual. Dentro desta delimitação, o PDA do Matopiba adota antecipadamente que deste montante de terras, apenas 23,7% encontra-se legalmente ocupadas por Unidades de Conservação (14), Terras Indígenas (15), Assentamentos (400) e Quilombos (23). A inicial premissa é que 18.530.709,87ha podem receber incentivos e investimentos de diferentes magnitudes, com objetivo de expansão do agronegócio e alcançar novos horizontes de exportação. O território em questão do Matopiba

A expansão do Porto do Itaqui, construção de terminais de grãos, quanto a possível criação do porto privado da Suzano Papel e Celulose S. A. em São Luís, são elementos desta engenharia.

possui outra face que não está posta nos estudos do GITE, mas que assinala a trajetória de povos e comunidades tradicionais do Maranhão, diante dos conflitos permanentes e estrutura agrária concentrada e exploradora. Segundo dados do caderno de Conflitos no Campo – Brasil (CPT, 2014), das 123 ocorrências de conflitos no campo no ano passado no Estado do Maranhão, 82 estão na delimitação do Matopiba, totalizando 5.522 famílias atingidas e em conflitos permanentes nas relações de trabalho, com exploração e expulsão de seus territórios, tanto pelo poder público como privado. O Matobiba se caracteriza como um novo (velho)investimento que possui em sua constituição a perpetuação desta estrutura social e agrária. As denúncias são enfáticas ao descreverem a violência do Poder Público, como no município de Santo Amaro do Maranhão, localizado na microrregião dos Lençóis Maranhenses. 1149 camponeses e ribeirinhos em conflito com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em busca de permanecerem em seus territórios e desenvolverem suas práticas. Não será a criação de clusters produtivos que almejará a mudança devida para as comunidades; é a permanência, a

autonomia e os seus territórios que estão em questão. A comunidade quilombola Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru Mirim, vivencia um conflito histórico com a Vale pelo acesso e retomada de seu território. São 500 famílias que são dilaceradas pelos trilhos da Ferrovia Carajás, que impedem a dinâmica e acesso ao território. Apesar do recente decreto assinado em 22 de junho de 2015 pelo Governo Federal, a demonstração oficial de interesse para fins de desapropriação apenas representa instância da luta, mas não sua efetividade. Os conflitos, ameaças e explorações continuam, apesar de também serem entendidos dentro da perspectiva econômica agrícola do Matopiba. A conflituosidade mostra que o embate não está na política desenvolvida nacional ou estadualmente, mas na efetiva mudança na trajetória do capitalismo que concebe o campo como fins de exploração. O território é a vida dos povos e comunidades. O Matopiba é mais uma política moderna (e colonial) nos moldes capitalistas que tem como base as cinco dimensões de recortes territoriais, abrangidas pelo SITE: quadro natural, agrário, agrícola, infraestrutura e socioeconômico. E os ele-

mentos culturais, políticos e identitários? Ou será a aptidão natural e econômica que possibilita a reprodução camponesa de povos e comunidades tradicionais? Santa Rosa dos Pretos e o território Gostoso, Pati e Barro, em Aldeias Altas, desenvolvem a aversão histórica política às bases do Matobipa: autonomia, gestão e permanência territorial, segundo suas práticas e saberes ancestrais, demarcando as bases de suas relações de poder. Todo o impulsionar desta política segundo demandas do agronegócio, encravadas na história de municípios como Balsas/MA e Barreiras/BA, é arquitetada por um conglomerado logístico e exportador. Não obstante, novos investimentos nos transportes, armazenamento e logística estão em curso, como nos rumos das conversas ainda no primeiro mês do governo Flávio Dino e a ministra Kátia Abreu. Tanto a expansão do Porto do Itaqui, construção de terminais de grãos, quanto a possível criação do porto privado da Suzano Papel e Celulose S. A. em São Luís, quanto as disputas atuais na mudança radical no Plano Diretor da Ilha de São Luís, são elementos desta engenharia, que atende um ramo econômico territorial mundial, devastador em suas práticas, e resultante apenas em commodities agrícolas, além da celulose. Na verdade o Matopiba é o próprio agronegócio. Na essência estamos diante de um modelo estratégico militar de controle territorial, denominado de Sistema de Inteligência Territorial Estratégica (SITE), do Matopiba. É uma prática de controle do território pelo capital, com propagandas de emprego e renda, com intenções de condicionamento ideológico e imaginário das comunidades e povos tradicionais. Em tempos de crise econômica e fiscal, apenas fundamenta a posição pela não reforma agrária e abissais concentrações no espaço geográfico nacional, com bases num desenvolvimentismo agrário exportador. A (não) reforma agrária é explicitada quando, mais uma vez, comunidades são vilipendiadas em greves de fome, como no último mês de junho, na sede do Incra Regional Maranhão, demonstrando como a política territorial nacional é escrita, privilegiando o desenvolvimento de monocultivos em detrimento dos territórios das comunidades rurais. *Geógrafo, doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco. [email protected]

Arte na telha

Elmo Artesanato Encomendas pelo fone: (98) 99606-43-24 • Facebook: Elmo Artesanato

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.