A NARRAÇÃO EM MÚLTIPLAS VOZES: O USO DA POLIFONIA EM DOIS ROMANCES DE NUNO CAMARNEIRO

May 22, 2017 | Autor: Alexandra da Cunha | Categoria: Comparative Literature, Portuguese and Brazilian Literature, Narratology, Narrativas
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Alexandra Lopes Da Cunha é bacharel e mestre em Administração de Empresas, ênfase em Marketing pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutoranda em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Autora de Amor e outros desastres, (2013), Vermelho-Goiaba (2014) e Bífida e outros poemas (2016). Bolsista CAPES.
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A NARRAÇÃO EM MÚLTIPLAS VOZES: O USO DA POLIFONIA EM DOIS ROMANCES DE NUNO CAMARNEIRO

Ma. Alexandra Lopes Da Cunha

"Uma história são pessoas num lugar por algum tempo. As margens da página, como silêncio, estabelecem limites certos para que um conto não se confunda com o que não lhe pertence. Pode-se contar uma história enchendo uma caixa vazia ou desenhando paredes à volta da gente". (A voz do narrador em Debaixo de algum céu de Nuno Camarneiro, 2015, p. 17).

O parágrafo de abertura do romance: Debaixo de algum céu, do escritor português Nuno Camarneiro (2015) serve como reflexão sobre o processo de narrar histórias, sobre o fazer literário. Há a questão da duração, os limites entre a realidade e a ficção, a forma de apresentar uma história, qualquer história.
Há aspectos que não ficam patentes neste parágrafo, questões tais como a escolha do narrador. No livro, no entanto, há um personagem que inicia esta narração, justamente ele, o narrador, que o faz em terceira pessoa. Mas não é só: neste romance e no seu anterior, No meu peito não cabem pássaros (2012), o autor adota múltiplos focos narrativos, exemplos autênticos de romances polifônicos, conforme a definição de Mikhail Bakhtin (2008).
O romance polifônico, segundo Bakhtin, uma criação de Dostoiévski, permite a adoção de múltiplas vozes, independentes e equipolentes, ou seja, capazes de dialogar em pé de igualdade com as outras vozes constitutivas da narrativa e também distintas da voz do autor. A polifonia é a independência, a convivência, o diálogo entre vozes distintas umas das outras.
O objetivo do presente trabalho é analisar a construção dos romances de Nuno Camarneiro a partir do conceito de polifonia com o intuito de especular acerca dos objetivos desta construção narrativa, bem como do impacto da leitura que experimenta o leitor.



NO MEU PEITO NÃO CABEM PÁSSAROS:
A passagem do Cometa Halley em 1910, um evento cósmico do qual a maioria dos seres humanos ignorava a existência e a regularidade, parece ser o ponto em comum em três vidas distintas, separadas por distâncias continentais dos três personagens principais do romance de estreia de Nuno Camarneiro: Fernando Pessoa em Lisboa, Jorge Luís Borges em Buenos Aires e Karl, personagem criado por Franz Kakfa e que viveria então em Nova Iorque.
Vidas que correm paralelas, como tantas outras vidas, mas que são as de dois nomes que marcariam a literatura deste século XX que então se iniciava e, indiretamente, representa o terceiro nome: o escritor tcheco Franz Kafka.

KARL: O HOMEM FICCIONAL NA REAL CIDADE DE NOVA IORQUE

A tríade de personagens em que o autor joga o foco narrativo se alterna. O primeiro, o Karl ficcionalizado primeiramente por Kafka, é um imigrante miserável numa Nova Iorque de imensos arranha-céus e é limpando as vidraças destes que se ocupará Karl nos primeiros capítulos. Emprego perigoso e mau pago:
"Dois homens pendurados por arneses a oitenta metros de altura. Os que trabalham dentro chamam-lhe pardais com uma ironia desnecessária. Quarenta e oito horas semanais de equilibrismo pagas a quatro dólares, um bom emprego para quem acaba de chegar à cidade. A fome mata-se, muitas vezes, com número de circo, ser equilibrista ou palhaço é só uma questão de oportunidade" (Camarneiro, 2012, p. 11).

Um personagem fictício dentro de outra ficção, numa cidade em que jamais pisou Kafka, seu criador primeiro, mas que parece servir como um apoio a um triângulo geográfico imaginado por Camarneiro: os outros dois vértices: na Europa, o país que, conforme os versos de Pessoa, debruça-se sobre o Atlântico, está justamente ele, Fernando Pessoa. Na parte meridional do Continente Americano está Borges, que a Buenos Aires se sentia ligado visceralmente, então havia necessidade de um terceiro vértice ao triângulo e, entre um poeta que quase não viveu uma vida além da poesia, e um que viveu e criou mundos imaginários, haveria de existir um ser que nunca efetivamente existiu fora da ficção, mas que teria, nesta história em particular, a vida mais concreta, mais próxima das rudezas e agruras de uma vida menor, isenta de presença literária.
Karl é um homem simples, sem instrução ou argúcia. As necessidades prementes de recursos exigem que ele se arrisque para ganhar a vida.
A Nova Iorque em que vive é a brutalidade em concreto e vidro. Seres humanos bestializados esmeram-se em desenvolver ardis que os permitam sobreviver. Pela sua ingenuidade, Karl deixa-se usar por um deles, um sujeito que vende uma máquina que recuperaria energias perdidas. Por um dólar, deixa o andaime e permite que o amarrarem ao mecanismo, toma descargas elétricas que o fazem sofrer e inutilizam-no um braço. Por um dólar, o braço inutilizado, perde o emprego de lavador de vidraças até encontrar outro sujeito que o irá enganar: Thomas, que o embebeda e bebe às custas dele.
Thomas, no entanto, serve de professor a Karl. Com ele, o personagem amadurece e torna-se distinto. Passa um período a vender bíblias a estrangeiros recém-chegados, ludibria-os, argumentando que é uma exigência legal possuir uma em Nova Iorque. E, num outro momento, ao encontrar com Thomas, confronta-o, ganhando-, assim, o seu respeito. Passa a trabalhar para ele num prostíbulo: ajuda com drinques e limpeza. E lá, apaixona-se por uma prostituta.
Assim, Karl é sempre um personagem obrigado a enfrentar outros, tem sempre um antagonista, alguém que vem a ser um empecilho. Sua trajetória pela narrativa deixa o leitor - e a ele mesmo- exauridos.
Espoliado, tão miserável como quando chegou, Karl volta para a Europa. No capítulo de fechamento, o narrador nos dá a dimensão do fracasso enfrentado pelo personagem, não único dele, mas de toda uma leva de imigrantes que chegam e nunca alcançam a ganhar a vida naquela cidade:
"Karl foi buscar o mundo novo e o leva-o agora para casa. Tão novo e já estragado. Traz também uma língua que cedo esquecerá, algumas poucas palavras hão de resistir porque Karl não as sabe traduzir, palavras como subway ou chinatown, nomes de bebidas e palavras ordinárias cheias de sexo. Lembra-se da frase importante que leu na bíblia preta e repete-a muitas vezes: ' Não sejas demasiadamente mau, nem sejas louco, porque haverias de morrer antes do teu tempo?' São palavras que só um deus se permite dizer porque só ele sabe do tempo de cada um. Os homens vão andando como podem, com o atraso ou a pressa de quem não sabe nada nem outro lugar para onde ir". (Camarneiro, 2012, p. 176-177).


JORGE LUÍS BORGES: O CRIADOR DE MUNDOS IMAGINÁRIOS, PERSONAGEM DE SI MESMO.
Da tríade de protagonistas, o segundo a aparecer é o menino Jorge Luís Borges.
O menino Borges mora em Buenos Aires, mas brinca com a grafia da palavra, que, a cada capítulo é uma combinação distinta das letras que formam o nome da cidade. O garoto vive, de certa forma, num mundo imaginário, onde cria animais imaginários:
"A tarde é fria e cinzenta, como muitas tardes de Julho em Sueson Birea. O pequeno Jorge não pensa no frio, está deitado sobre a erva e olha para as formigas. Ninguém se atreveria a adivinhar o que pensa. Norah, a irmã, corre pelo jardim atrás de um animal que ele inventou. Jorge gosta de inventar animais, Norah, de correr atrás deles. Um cão de três pernas com bigodes de gato e rabo de burro, quando está longe sopra como o vento, de perto não há quem o saiba ouvir.
Norah admira o irmão e, por mais que tente, não vê o que ele vê. É talvez dos óculos que ele usa, tem mais olhos do que ela e vê as coisas que talvez mais ninguém consegue ver. (Camarneiro, 2012, p. 13).

A brincadeira com as letras que compõem Buenos Aires persiste durante toda a sua infância. A primeira, protegido na confortável casa da família, junto da irmã e da avó, junto aos livros. O primeiro choque com a realidade se dá ao entrar na escola e perceber não se adequar aos padrões. É mais inteligente, mais afortunado e, por isso, ridicularizado.
Também na narrativa sobre Borges há a figura do antagonista: Roberto, o vizinho, garoto oriundo de uma família pobre e desestruturada, colega de classe que, primeiro se aproxima, mas, depois, se afasta, ridiculariza Borges. É a partir do ódio que nasce no peito do menino maltratado que surge o escritor. Como não pode, ou não se permite, machucar Roberto, Borges resolve maltratá-lo ficcionalmente e começa a escrever uma história em que destrói o adversário.
A rivalidade iniciada na infância dá lugar a uma curiosidade que perseguiria o jovem Borges quando este retorna de um período vivendo em Genebra. Roberto transforma-se numa espécie de sombra, também ele escritor, ao que tudo indica, mas marginal, sorrateiro, esquivo, provavelmente, Roberto Artl.
Um homem a escrever pode virar o mundo para onde quer. No código certo de letras atrás de letras tudo o que se conhece, passado, futuro e o presente, como deve ser. Um exército venceu uma batalha porque está escritor num livro, um homem morreu, um império caiu, um deus veio à terra. O homem é a palavra, o exército e deus e tudo são palavras inventadas quando a gente se fez gente. (Camarneiro, 2012, p.88).

O homem é a palavra, Borges é a palavra, vive para e da palavra. A escrita, a literatura e Buenos Aires, tão parte de Borges que chegou a colocar exatamente esta ideia nos poemas que compõem Fervor de Buenos Aires.
Um dia, Jorge acorda velho. A morte parece-lhe deselegante, banal. Entretanto, sabe que deve morrer. A imortalidade que almejava, se vier, será pela obra que se esforça em produzir, ainda que sem olhos: "De onde chegam as respostas não importa e já não sabe, por vezes chegam e já é tanto. Uma mãe que começa a escrever sem olhos que fiscalizem, uma mãe que vai sozinha à procura da imortalidade sem deus nem outro". (Camarneiro, 2012, p. 181).
FERNANDO PESSOA: O CORPO COMO UM QUARTO A GUARDAR HETERÔNIMOS.
Fernando Pessoa entra na narrativa a bordo de um navio que o traz de volta a Lisboa: "Fernando não foi nada durante a viagem, apenas olhos de ver e uma cabeça a inventar filosofias." (Camarneiro, 2012,p.22).
A quase imaterialidade do personagem espelha a quase incorporalidade do homem Fernando Pessoa e tal se repete, diversas vezes, na narrativa. Em outro trecho: "Um quarto é um espaço vazio com coisas dentro. Muito como um homem é". O personagem se plasma às paredes, deseja viver apenas no perímetro restrito onde lê, onde escreve: "Viver num sítio é ser esse sítio" (Camarneiro, 2012,p. 29). Primeiro, Fernando é o quarto, depois, é Lisboa e é neste perímetro urbano que se permite transitar, nesta parte do mundo em que habita, deixa-se habitar por outros, ele mesmo um quarto para Bernardo Soares, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, além de ser espaço, exíguo, para o poeta Fernando Pessoa.
É no seu peito em que não cabem mais pássaros porque ele é tantos e tão distintos que não consegue ele mesmo existir como existem naturalmente os outros seres humanos:
"Alguns homens são tripas e escamas, depois de amanhados ficam um pouco que não chega e mal se vê. Há outros em que tudo se aproveita, homens com segredos nas entranhas e na pele, que contam histórias sem fim. São homens bons às vezes nem homens são, mas cães e gatos, ou crianças que brincam umas com as outras". (Camarneiro, 2016, p. 29).

O personagem Fernando é ele mesmo polifônico porque carrega em si as vozes de tantos outros. Fernando é pura linguagem, capaz de encontrar sinédoques em tudo o que vê, por exemplo. "Todos teríamos de ter palavras diferentes para o 'eu': o eu que eu sinto, o eu que tu vês, o eu que eu não sou". Para o personagem, as palavras são maiores e tornam-se suas, quando as usa. Ele e Borges, dois apaixonados por palavras, dois sujeitos maiores que si mesmos, criadores de mundos.
Fernando erra pela cidade, quase sempre só. O convívio com outros cansa-o, frustra-o:. Os bares, as conversas, as torpezas humanas:
"Fernando pensa agora na vida que se afasta dos livros assim que se fecham. Pensa nos contornos delineados das personagens e de como estes se esbatem e turvam no mundo sujo. Numa boa história há objetivos, tramas e evolução, enquanto deste lado do papel tudo são certezas e tropeços". (Camarneiro, 2012, p. 61).
No dia da aparição do cometa, Fernando não se deixa impressionar. Há em sua atitude verdadeiro desinteresse pelo o que acontece fora de si mesmo. Não é o cometa que o desperta, mas a aparição de uma figura estranha, uma mulher ruiva que escapa, sozinha, de um prédio em chamas. Ela também, como ele, parece indiferente ao fogo ao meio externo. Ela sai, sem olhar para trás e Fernando, então tocado por algo humano, segue-a. Ela vai em direção ao Tejo e adentra o rio. Ele segue-a, busca-a, salva-a.
Ele a leva para a sua casa, dá-lhe pouso e de comer. Deixa que durma em sua cama ele, mesmo que excitado pela presença dela, dorme na cadeira. Durante a noite, chega até ela e a beija, mas é apenas este o contato. No dia seguinte, ao acordar, ela não está mais lá.
Foi uma alucinação? Não, ele levou seus escritos, seus poemas. Ele se desespera, busca-a pela cidade. Ninguém a viu, ou sabe dela.
Dias depois, passa a receber seus poemas de volta, com palavras marcadas, sublinhadas, em tinta vermelha. Durante quarenta e nove dias, ela devolve os poemas anotados, sublinhados, oferece a ele uma ordem poética, uma leitura de sua poesia. Depois, desaparece. E ele prossegue ainda, durante mais algum tempo, em seu périplo de homem apagado, até se desfazer por completo e virar apenas poesia.
DEBAIXO DE ALGUM CÉU: MÚLTIPLAS VOZES, VIDAS QUE DIVIDEM O MESMO ESPAÇO.
"We live in cities"
Lorde.

Um romance que se passa durante os dias vinte e cinco de dezembro e primeiro de janeiro numa cidade litorânea. É o inverno no Hemisfério Norte, estão a passar estes dias neste local apenas os moradores de sempre, talvez alguns turistas extraviados. Um edifício de apartamentos:
"No prédio, pessoas em cima umas das outras, divididas por tijolos e cimento, apartadas em apartamentos, para que não caiam e se baralhem as vidas de cima com as de baixo. Pessoas arrumadas como histórias em estantes; só que não é assim, quase nunca é assim". (Camarneiro, 2013, p.2).

Para relatar as histórias dos moradores deste prédio de apartamentos, o autor recorre ao uso de múltiplas vozes narrativas: a do narrador, em terceira, e as vozes dos múltiplos personagens, que se alternam, em primeira pessoa. Desta maneira, o leitor vai acompanhando os narradores, adentrando em suas casas, participando de suas vidas, como uma testemunha ocular, um voyeur.
O narrador em terceira pessoa vai introduzindo os moradores dos diferentes apartamentos, oferecendo detalhes de suas vidas que serão, depois, foco dos próprios quando se narram.
O primeiro a narrar é David, um rapaz que ganha a vida a criar pessoas fictícias para uma empresa de informática. Em seus primeiros tempos nesta função, conseguia criar pessoas fictícias com facilidade, a partir de alterações de características de conhecidos, tendo como inspiração músicas, compositores. No momento em que inicia a narrativa, aflige-o uma falta de inspiração, sente como se já tivesse criado todos os seres possíveis.
Talvez o mundo esteja já farto de pessoas, afinal quantas mais poderão existir? Pensou então em reciclar gente, buscá-la ao passado, pessoas que não exerçam, mortos bem documentados. Os históricos são demasiado óbvios e não parece bem em um Napoleão a atender um telefone, que resta então? Talvez os livros, nos livros há pessoas, algumas não chegaram a viver. Pouco lhes falta para a vida, estão escritas e pensadas, o que o impede de as soprar para o mundo?". (Camarneiro, 201.p.42).

É o que faz David, começa a buscar personagens fictícias em obras ficcionais. O primeiro da lista é Ulrich do Homem Sem Qualidades de Robert Musil. Interessantemente, trata-se de uma obra inacabada, de um personagem ele mesmo interrompido.
A segunda personagem a tomar a voz é Manuela, professora de inglês numa escola primária, mãe de uma menina adolescente e de um menino um pouco mais moço que a irmã. Uma mulher que se diz satisfeita com a vida que leva, mas come caixas inteiras de chocolates.
Daniel é um padre, um homem jovem, atormentado por pensamentos que lhe parecem inadequados ao sacerdócio.
Adriano, um homem casado com uma filha recém-nascida. Passa por um período de questionamentos: não sabe se ainda ama a mulher, tem fomes diversas, tem dúvidas em relação à sua relação sentimental.
Joana é filha de Manuela, adolescente em que o corpo começa a mandar: os desejos despertam com o surgimento dos seios, a confusão do que fazer com o tempo.
Bernardino é casado com Manuela, um homem próximo à meia-idade, preocupado com a carreira profissional. Está numa espécie de ponto de inflexão da sua vida.
Frederico é o filho de Manuela, ainda preso nas fantasias e medos da infância, tem uma relação conflituosa com a irmã adolescente.
Beatriz é uma mulher deprimida, uma mulher que não soube bem crescer, que soube apenas amar e amou ao marido, mas este adoeceu e morreu e ela, então, amou ao padre Daniel e sentiu-se desmerecida em viver. É uma suicida.
Há Marco Moço que não é moço, um senhor, o zelador do prédio, um homem que passa seus dias a recolher destroços e coisas inúteis à beira mar para construir uma engenhoca que os reúna e que dê a estas coisas sem função alguma, devolver-lhes a beleza.
A estas vozes, mistura-se ao do narrador para falar da tessitura que se faz entre as vidas de cada um dos moradores deste edifício à beira mar. Pois, como nos recorda a voz do narrador, as vidas compartamentalizadas, apartadas em apartamentos, acabam por se misturar.
O transcorrer dos dias, neste período que associamos culturalmente ao término do ano, às festas natalinas que simbolizam o nascimento de Cristo para os cristãos, mas também agudizam as relações entre familiares, reunidos porque há de ser assim, as festas são passadas em família, para quem as tem, e os que não as tem, ressentem-se.
Os moradores vivem distintos momentos de suas vidas: há a infância, este período feito de medos: da morte, que se materializa na forma do corpo inerme de uma ave encontrada na sacada e da qual as crianças, Bernardo e sua irmã tem de se livrar dele, há os rancores e rivalidades entre irmãos, aguçados pela entrada na adolescência dela. Há, portanto, a juventude, a explosão de hormônios que açulam desejos não bem compreendidos e dificultam a organização, há as obrigações de filha, de irmã e de aluna. A vida feminina é representada na juventude (Joana), na maternidade (Constança) jovem, na maturidade (Manuela) estável, mas algo incômoda, na solidão desesperada de Beatriz, a suicida, e na solidão conformada de viúva de Margarida. A vida dos homens aparece retratada na infância de Bernardo, na sucessão de homens que variam em graus de maturidade: o solitário David, criador de vidas fictícias, o solitário Daniel, preso num corpo masculino visitado por desejos dos quais o sacerdote tenta fugir sem muito sucesso, os homens casados: Adriano, com uma filha de berço, incomodado com este casamento e esta filha, Bernardino, mais maduro, que extravasa desejos assistindo filmes pornográficos e tem a carreira profissional incomodamente estacionada, e Marco Moço, um senhor sozinho, o zelador do edifício, alguém útil, mas discreto, quase invisível.
A independência interior dos personagens que refletem o justamente o objetivo do autor: que desenvolvam uma personalidade própria, independente (Bakhtin, 2008). Estes personagens independentes se inter-relacionam e, eventualmente, se chocam uns contra os outros, justamente porque é assim, também, na representação da vida: as individualidades, a personalidades se atraem, se repelem, se completam, ou se anulam, no caso da suicida.
Também nesta narrativa de Nuno Camarneiro está presente uma variada tessitura de diferentes níveis e formas de narrar: a mera descrição, de caráter espacial, trechos bíblicos, canções, os diálogos mundanos. É desse caldo que se origina a sensação de se mergulhar nestas vidas individuais que se entrelaçam, ainda que o meio em que vivem, este edifício feito de aço e concreto, dividido por paredes e portas, não seja suficiente para isolá-los por completo, pois há janelas que propagam os sons, há as áreas comuns que obrigam os personagens a conviver. Seres humanos, homo fictus, na definição de Foster (2004), seres ficcionais devem poder manter-se sozinhos, devem, na visão de Bakhtin (2008) possibilitar que travemos com eles, diálogos, se assim desejarmos.
Outra característica do romance polifônico em Debaixo de algum céu é a opção em ater a narrativa no presente, eminentemente. Apenas algumas poucas informações acerca do passado são apresentadas, e somente aquelas que guardam relação com o que acontece na narrativa quando narrada. O leitor sabe pouco sobre a vida pretérita destes vários personagens: um emprego anterior de David e uma antiga relação amorosa, alguns flashes do casamento de Margarida com seu marido holandês, como se conheceram Constança e Adriano, os périplos de Marco Moço até chegar a ser zelador do edifício, entre outros: "Do seu passado recordam apenas aquilo que, para elas, continua sendo presente e é vivido como presente" (Bakhtin, 2004).
Há uma economia na opção narrativa que dá velocidade à narração. É a contiguidade, ainda mais evidente pela opção de colocar todos os personagens num condomínio, dividindo um mesmo espaço.
O romance polifônico surgiu como resultado de seu tempo. Para Bakhtin (2004), Dostoiévski pôde desenvolvê-lo porque o próprio mundo se acelerava, as cidades inchavam, a revolução industrial ganhava músculos e exigia outros para serem gastos em suas linhas de montagem. Por isso, a multiplicação das vozes, o turbilhão de pensamentos, a rapidez. Como na epígrafe que abre este capítulo, vivemos em cidades, compartilhamos espaços, entramos em choques eventuais com nossos semelhantes. Também no romance há a necessidade de espelhamento desta realidade inegável: somos mais de sete bilhões de humanos, eminentemente urbanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo James Wood (2001), é o personagem o mais difícil da ficção. E para que a ficção funcione e se torne, como preconiza Henry James (2011), uma "coisa viva", é necessário que os personagens sejam, eles mesmos, "coisas vivas".
O personagem que funciona é aquele que é bem construído e esta arquitetura, segundo Bakhtin (2010), faz-se a partir de uma escolha. Os pontos escolhidos pelo autor da obra para iluminar serão aqueles que lhe parecem os mais importantes para caracterizar os elementos da obra. Assim, a caracterização dos personagens serve aos objetivos do autor para aquela obra (Candido, 2005).
Na ficção de Nuno Camarneiro, percebe-se a opção em apresentar as suas obras, a partir da polifonia, ou seja, pela multiplicidade de vozes narrativas. É o caso dos dois romances neste trabalho abordado, mas também se observa a adoção do mesmo recurso em livros como Se eu fosse chão, que se passa em três períodos de tempo: 1928, 1956 e 2015, em que múltiplos narradores, habitantes temporários de quartos de hotel, apresentam recortes de suas vidas.
Como se pôde perceber, o autor vem refinando a ideia de trabalhar em múltiplas vozes. Na primeira obra analisada, No meu peito já não cabem mais pássaros, publicada em 2012, o autor desenvolve sua narrativa a partir de três narradores distintos: Karl, Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa. Narrado em terceira pessoa, este narrador acompanha seus personagens num recorte de tempo: as primeiras décadas do século XX. É o ponto em comum entre os personagens: o que compartilham neste universo ficcional é viverem ficcionalmente no mesmo período de tempo.
Estão separados por grandes distâncias geográficas, coabitando as páginas do romance. Do que trata a obra? Por que haveria o autor de escolher esta determinada forma de narrar?
Os personagens servem à narrativa, que fala sobre vida, a vida ficcional destes três personagens. Dois deles foram, efetivamente, figuras históricas, existiram. Viveram vidas reais, ainda que se possa ter a impressão de que não foram totalmente reais, como é o caso de Fernando Pessoa, uma figura tão pouco concreta em vida, mas que sim, que caminhou, trabalhou e respirou em Lisboa, mas que parece, dentro da ficção de Camarneiro como, aliás, já havia sido na ficção de José Saramago, mais espectral que real, e a de Borges, um homem que dizia ter sido mais leitor e frequentador de bibliotecas que qualquer outra coisa, um homem capaz de criar mundos imaginários, habitado por seres igualmente imaginados. São, na narrativa de em No meu peito não cabem pássaros, seres reais que se ficcionalizam por completo. O caso de Karl, o terceiro personagem é ainda mais curioso porque sempre foi uma criação, a primeira, pela mente de Franz Kafka.
É assim uma obra que fala da interpolação entre realidade e ficção, da tênue barreira que as separa e de como a literatura se faz vida e a vida se faz literatura.
Em Debaixo de algum céu, as vozes se multiplicam: há vários narradores em primeira pessoa e há um narrador em terceira. Há a concentração temporal: todo o romance se passa durante um período de dias: entre o Natal e o primeiro de janeiro e uma delimitação de espaço: todos os narradores estão concentrados num endereço comum: um edifício.
A multiplicidade de vozes plenivalentes, a multiplicidade de mundos, coexistentes, no entanto, um resultado e um espelho de nosso tempo, como acredita Bakhtin (2008). Com efeito, vivemos em grandes centros urbanos, somos obrigados a conviver com outros, a dividir espaços, mesmo que nos toque um conjunto de paredes e portas. Todos os personagens tem voz própria, tem vida própria, com seus dramas específicos. No entanto, como o narrador anuncia já no princípio da narrativa, as vidas individuais não ficam limitadas aos espaços que lhes cabem. As paredes não impedem os dramas de uns de se misturarem aos dramas de outros.
A opção pela polifonia permite ao leitor compreender um pouco deste mundo em que se vive, um mundo veloz em que as pessoas se fecham em suas casas, em suas vidas. Ao leitor lhe é negada uma visão mais profunda destes personagens, elementos de suas vidas pretéritas. Entretanto, como enfatiza Bakhtin (2008), esta é uma característica importante da narrativa polifônica: só é-nos informado daquele conjunto de fatos que tem relação com o presente narrado, como nos informa a voz do narrador: "Não saberemos de que momento nos chegam, se estão vivos ou mortos" (Camarneiro, 2015:13).
Um romance que retrata um pouco do nosso tempo, desta multiplicidade de vozes, de vidas, compartamentalizadas, um recorte no tempo, um tempo mínimo, mas cheio de significados que é o período do final do ano. Recortes de vidas que se desenvolvem, se desenrolam e se enredam. Mais uma vez, nas palavras do narrador: " Neste inverno há homens que enlouquecem e outros que se salvam. Todos caem, alguns saberão levantar-se. Pelo meio nasce Cristo e um ano novo" (Camarneiro, 2015,p.13).
Os movimentos da vida humana, marcados por eventos do calendário, por distintos momentos na vida de homens e mulheres. Todos haveremos de cair, alguns antes, outros, depois. No entanto, nestes romances de Nuno Camarneiro, embalados pela polifonia de diferentes vozes, compreendemos a rapidez do mundo, a fluidez de nossas vidas.
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 4ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
________________. Estética da criação verbal. 5ª. Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
CAMARNEIRO, Nuno. No meu peito não cabem pássaros. Rio de Janeiro: Leya, 2012.
__________________. Debaixo de algum céu. Alfragide, Portugal: Leya, 2013.
__________________. Se eu fosse chão. São Paulo: Leya, 2016.
CÂNDIDO, Antônio. A Personagem da Ficção. 11ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FOSTER, E.M. Aspectos do Romance. São Paulo: Globo, 2004.
JAMES, Henry. A Arte da Ficção. Osasco, São Paulo: Novo Século Editora, 2011.
WOOD, James. Como Funciona a Ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.


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