A narrativa das Aparições de Fátima - uma problemática museológica

July 5, 2017 | Autor: Helder Farinha | Categoria: Museum Studies, Museum Education, Religious Tourism, Tourism and Religion, Museums and Religion
Share Embed


Descrição do Produto

A NARRATIVA DAS APARIÇÕES DE FÁTIMA Uma problemática museológica

Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra Mestrado em Lazer, Património e Desenvolvimento Museologia e Património Docente: Doutora Joana Brites Discente: Helder João Santos Farinha

Índice Introdução ..................................................................................................................................... 2 1-

Nova museologia e o valor formativo dos museus ............................................................... 3

2-

Estudo de caso e as problemáticas da “Mensagem de Fátima” para os museus ................. 6 2.1- Museu Milagre de Fátima .................................................................................................. 6 2.2- Museu Municipal de Ourém .............................................................................................. 8 2.3- Dois museus e duas questões: a religiosa e a histórica ................................................... 11

Conclusão .................................................................................................................................... 15 Bibliografia .................................................................................................................................. 16

1

Introdução Os museus e o património sempre foram utilizados como meios de construção de memória e até de fabricação de identidades e encenação de “realidades”. Espaços de preservação e de interpretação de cultura e identidade, de educação e aprendizagem lúdica, variam quanto a tipologia e a sua orientação depende das entidades que as gerem com todas as restrições e limitações muitas vezes a elas inerentes. O conceito de museologia tem mudado de uma museologia mais tradicional a uma proclamada nova museologia. Nos dias de hoje, a par do que tem sido a rápida mudança de paradigma com a sociedade, o património e o turismo, fala-se em museologia pósmoderna. Os museus adaptam-se, adequam-se e surgem novas questões, novas formas de ver as problemáticas museológicas, os conceitos alargam-se, passam fronteiras, cruzam-se com outras disciplinas, outras valências, as entidades passam (ou deveriam) trabalhar em rede. O modo, ou a estratégia que cada museu escolhe para se mostrar e para educar públicos, pode passar pelo uso de novas tecnologias ou de formas arrojadas de museografia, mas é no modo como comunica para o visitante e como passa a sua mensagem, que um museu consegue, com mais ou menos sucesso, acrescentar valor ao visitante através das experiências que proporciona. Todas as temáticas ou patrimónios têm em si mesmas questões específicas que devem ser problematizadas e pensadas, antes de as mostrar ao público. Questões como a Fé e a Religião estarão certamente entre as mais difíceis de tratar pela museologia, devido a serem temáticas sensíveis de serem abordadas e dependentes de crenças e verdades absolutas, que muitas vezes esbarram em rigor e metodologia científica. E colocam algumas questões interessantes que podem ser: Como se faz um museu sobre experiências de cariz religioso? Como se junta ciência, nomeadamente ciência histórica, com fé e dogma? Qual a missão e quais os valores de um museu deste tipo? Converter? Educar? Exultar? Esclarecer? Através da análise de dois casos práticos relacionados com o fenómeno das Aparições de Fátima, veremos como seguindo tipologias, posicionamentos e estratégias bem diferentes, dois museus interpretaram e dão a conhecer ao visitante duas experiências e dois valores muito diferentes sobre a mesma questão.

2

1- Nova museologia e o valor formativo dos museus A ideia que se costuma ter de museu é a de um espaço com objetos em exposição, que um visitante percorre com um fim pedagógico, cultural e por vezes lúdico, rodeados de uma aura formalista e quase sagrada. Uma definição de museu que surge com a Nova Museologia é-nos apresentada da seguinte forma: “Os museus são instituições permanentes, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, abertas ao público, que adquirem, preservam, pesquisam, comunicam e expõem, para fins de estudo, educação e lazer, testemunhos materiais e imateriais dos povos e seus ambientes.” (ICOM, 2009) Num museu é a preservação de um dado património e da memória a ele associada, a parte mais visível e contundente. Algo muito presente na Museologia Tradicional. Esta ligação ao património e à sua conservação e interpretação estão na génese da existência dos museus. Dessa interpretação e da sua transmissão aos indivíduos vem a Educação. A Museologia, especialmente a Nova Museologia, surgida também com o paradigma dos Novos Patrimónios, entendidos num conceito mais vasto do que até então, começou a valorizar-se a interdisciplinaridade da interpretação museológica por exemplo e o fato de que um museu não deveria ser só o que estava dentro de “quatro paredes”, mas ter uma abrangência mais territorial e para feito para a comunidade. Voltando à relação do museu com o património, segundo a maioria dos autores a ideia de preservação do Património está acima de tudo associada à preservação de objetos materiais acompanhada de uma série de procedimentos (como guarda, conservação, restauro, documentação e exposição) com a finalidade de educação prioritariamente ao redor de objetos (Ceravolo, 2009). Mas que objetos? Porque são estes mais importantes e por isso escolhidos face a outros? Para Suely Ceravolo “A ‘musealidade’ outra proposta de identificação do objeto da Museologia traz em si um valor atribuído – conferido por alguém – e, novamente, é a instituição pela via de objetos concretos que se vê privilegiada”. Esta escolha é assim selecionada por quem organiza a exposição museológica e é daqui que parte o valor atribuído a um bem em detrimento de outro. (Mensch, 1994) [...] “uma abordagem específica do homem frente à realidade, cuja expressão é o fato de que ele seleciona alguns objetos originais da realidade, insere-os numa nova realidade para que sejam preservados, a despeito do caráter mutável inerente a todo objeto e da sua inevitável decadência, e faz uso deles de uma maneira, de acordo com suas próprias necessidades”. (Scheiner, 2009) “Diríamos que sim, que certamente a Museologia, como qualquer outra esfera de pensamento e de atuação, pode ser usada para justificar determinados fins. Aqui, no caso, seria a elaboração de narrativas sobre museus, memória, património, cultura e sociedade que atendessem a interesses específicos, reificando determinadas ideias ou conceitos e colocando outros no esquecimento. […] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.” Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (Le Goff, 1984). A memória, representada através do 3

património, sofre assim um processo de “fabricação”. Por norma, o cérbero humano faz escolhas no processo de informação. Memoriza e processa informação que considera importante, para esquecer e descartar a que não é. O património serve assim, muitas vezes, os interesses e os valores de alguns sobre os restantes. A Museologia Tradicional centrava-se nos objetos e nas coleções. Cada objeto exposto era-o assim devido ao valor que lhe era dado. A grande mudança surgida com o movimento da Nova Museologia é a de que esta moveu o seu objeto de estudo dos museus e das coleções para o universo das relações: relação do homem com a realidade, do homem com o objeto, do homem com a natureza, do homem com o homem, etc. Dada a complexidade deste fenómeno, ela deve entendida num universo de multidisciplinaridade e até de transdisciplinaridade. Alguns autores apontam que deve ser entendida na relação do trinómio “objeto”, “lugar” e “instrumentos”. (Ceravolo, 2004) “A Museologia como área de conhecimento científico se concretiza sobre indícios variados do Património cultural e natural (o objeto), em qualquer lugar que eles se apresentem (o lugar), através de procedimentos de preservação, conservação, documentação, exposição, educação, divulgação e disseminação de conhecimentos (os instrumentos).” Os processos pelos quais se deve produzir e montar conhecimento nos museus fica assim traçado nestes eixos, que exigirão maior complexidade e rigor científico aos museus. A ideia de que os museus possuem em si uma dimensão educativa é sempre tomada como consensual pelos profissionais do setor. Esta ideia não impede no entanto que se questione esta noção (Valente, 2009). A finalidade da educação é, tal como vimos anteriormente, a identificação e escolha dos elementos culturais para serem assimilados pelos indivíduos, ara produzir conhecimento. Como aponta Jean Claude Forquin (1991) educação e cultura andam sempre juntas. Segundo este autor, o que se transmite com a educação é algo que precede o indivíduo, um processo contínuo e perpetuo de seleção e decantação dos valores, fazeres, conhecimentos, etc.. Para Forquin, “a educação e a cultura aparecem como faces rigorosamente recíprocas e complementares de uma mesma realidade: uma não pode ser pensada sem a outra e toda a reflexão sobre uma desemboca imediatamente na consideração da outra” (Forquin, 1991). O que chega ao indivíduo através da educação, é, uma vez mais, algo que já foi processado e escolhido para ele assimilar, processos que se vão mudando e atualizando com o tempo, adaptando-se aos novos públicos. Esta função de processar informação para ser transmitida e assimilada decorre de um projeto pedagógico, voltado para a produção de saber e conhecimento, atribuídos a objetos, símbolos, expressões artísticas etc. Ao conservar e mostrar um dado património, o museu está assim a gerar efeitos educativos, é em si mesma um meio educativo (Valente, 2009). E como observa Jaume Trilla (1998), a dimensão educativa inerente ao museu pode ser ampliada, potenciada e orientada, passando de uma função implícita e quase inconsciente a uma tarefa explícita e premeditada. A Educação é assim sempre uma parte implícita de um museu, está na sua génese. Há quem veja nos museus um bom complemento à própria escola, quem os entenda como meios pedagógicos que colmatariam as falhas do ensino nas instituições. Outros profissionais de museus acham que contudo, essa não deve a ser a preocupação da instituição.

4

A relação entre ensino e os museus não poderá ser vista de forma assim tão simples. A educação em muitos museus é vista como não formal e por isso evita-se muitas vezes o termo “ensinar” (Valente, 2009). (Valente, 2009). “A educação não formal é a perspectiva que embasa as relações humanas de apropriação de saberes no interior das instituições como museus, que se dá na comunicação entre visitante e conhecimento, gerando um efeito educativo, ou seja, que corresponde de maneira geral ao desejo do educador de provocar a mudança de atitude dos indivíduos, em relação a um conhecimento.” Inserida no universo educativo, a educação não formal é entendida como a atividade organizada, sistematizada e realizada fora da demarcação do sistema educacional oficial (Trilla, 1998). Para a maioria dos autores, a Educação é um processo inerente ao museu, que deriva da conservação e interpretação de um determinado património. Embora não se deva confundir Educação (nomeadamente a informal que está inerente à maioria ou totalidade dos museus) com Ensino. Esta educação produz conhecimento (embora processado) sobre o mundo que nos rodeia e produz transformações de consciência e de valores no indivíduo.

5

2- Estudo de caso e as problemáticas da “Mensagem de Fátima” para os museus As questões da Educação num equipamento como um museu, que tenta interpretar uma realidade e transmiti-la aos visitantes, para com este fim produzir conhecimento e entendimento ao indivíduo, são o cerne da produção e do valor acrescentado de um museu. Existem mensagens mais fáceis de interpretar que outras, mas todas são diferentes e desafiantes. Como se expõe por exemplo, mensagens de cariz religioso ou como se interpretam fatos mais ou menos históricos de acontecimentos religiosos? Como se lida com um tema tão fraturante, pessoal e antagónico como a Fé, com todas as suas certezas dogmáticas e incertezas céticas? Que tipo de públicos capta? Agrada a todos? Para quem interessa? Analisando um caso paradigmático e nem sempre consensual e pacífico, que apela muitas vezes mais às paixões e aos sentidos que aos fatos históricos e ao conhecimento científico (que aqui é muito escasso) como o das Aparições de Fátima, vemos dois exemplos díspares nesta matéria, que é o Museu Milagre de Fátima em Fátima e o Museu Municipal de Ourém, nomeadamente o núcleo da Casa do Administrador, que foi um dos palcos da história das Aparições de Fátima, precisamente na sua vertente mais polémica e controversa.

2.1- Museu Milagre de Fátima Situado em Fátima, mesmo junto ao Santuário e à Igreja da Santíssima Trindade, numa das principais e mais movimentadas artérias da cidade, a Avenida D. José Alves Correia da Silva, rodeado por cafés, restaurantes e hotéis, o Museu Milagre de Fátima está aberto todos os dias na cave do Centro Comercial Espaço Fatimae. Ainda na superfície e no exterior do museu, por entre o ruído visual de letreiros, além do ruído da movimentada avenida, destaca-se o símbolo do museu (um sol esquematizado em cores de amarelo, laranja e branco sobre uma fotografia de um céu azul), que dá para um elevador que levará o visitante para a receção do museu. Se não se optar por este acesso, pode-se sempre ir dentro do centro comercial, onde alguma sinalética leva facilmente ao museu. O museu é de gestão privada, pertencente a uma empresa chamada Pacis Vrbs – Eventos e Animação Turística, Lda. e ocupa uma área considerável do piso mais baixo do centro comercial, estando o lado direito dessa área praticamente ocupado por ele. Não possui exposições temporárias sendo composto apenas por uma exposição única e recorre quase exclusivamente ao recurso audiovisual para ir apresentando através de filmes e hologramas muito apelativos para o visitante, sobre o fenómeno das Aparições. Existem alguns textos explicativos da época e da mensagem, colocados com letras legíveis brancas sobre paredes negras, algo extensos e sem referência a fontes bibliográficas mas em todas as línguas também usadas nos folhetos do museu. Uma das salas tem fotografias que ocupam as paredes, mas que servem também elas de suporte ao audiovisual. Nesta sala encontramos outro tipo de elemento: uma encenação de “janela” gradeada, muito pequena, com um terço pendurado. Os filmes, ecrãs táteis, velas interativas que se “acendem” através de um computador e um mapa interativo colocado no chão de uma sala ou colunas que vão passando mensagens ou gravações de discursos como os do papa João Paulo II nas suas visitas a Fátima, são o essencial dos suportes deste museu. 6

Voltando à área da receção, esta está relativamente bem identificada e com um expositor com folhetos em todas as línguas utilizadas pelo museu (Português, Espanhol, Francês, Inglês, Alemão, Italiano e Polaco). Desde ali, vemos também as lojas, uma junto à receção e que está na saída da exposição e outra mais à direita, ambas com os mesmos artigos, típicos de muitas lojas de artigos religiosos espalhados pela cidade. A sensação que se têm quando se entra nesta área é semelhante àquela de quando se vai a um cinema num centro comercial em qualquer outra cidade, com a noção de que aquele “cinema” apenas passa “filmes” sobre as Aparições de Fátima, uma vez que as duas lojas perto da receção dificilmente existiriam noutro cinema de centro comercial de outra qualquer cidade. Pago o bilhete geral que custa 7,50€ embora haja descontos, somos imediatamente guiados por uma das funcionárias por uma porta lateral para o interior. A porta não é percetível como tal desde o exterior, confundindo-se com o que a rodeia. Assim que entramos, surge-nos um ambiente escuro, que será praticamente constante em toda a visita, com três ecrãs onde passam três filmes sobre três temáticas distintas: a Revolução Soviética, a Primeira República e parte da realidade socioeconómica da primeira metade do século XX, como a Primeira Guerra Mundial e a exploração do trabalho infantil. Segue-se uma reconstituição física da chamada Loca do Anjo, onde nos aparece uma figura difusa e angelical realizando diversos gestos. Sensores especialmente colocados desligam os vídeos do espaço anterior para depois ligar o seguinte. Alguns vídeos e hologramas tem de ser ativados pela guia, que obrigatoriamente nos acompanha durante toda a visita, que vai intercalando as explicações sobre o que veremos a seguir e sobre a interpretação das Aparições que o museu faz, com o audiovisual. A visita a este museu não pode, portanto, ser feito sem o guia. Depois de passarmos por mais um holograma, desta vez num espaço que tenta reconstruir a Cova da Iria em 1917 e onde nos aparece Nossa Senhora após um relâmpago e a comunicar com os Pastorinhos (que nunca aparecem dando a sensação que a figura holográfica fala diretamente connosco), seguimos para uma sala que simula os interrogatórios feitos após as Aparições. Diversas vozes vão ecoando pela sala, repetindo pedidos, praguejando e vociferando ameaças, enquanto um foco vai incidindo sobre a figura que supostamente estaria a falar. No auditório é-nos mostrado aquele que é considerado como o “ponto alto” da visita, que é o filme em 3D. São emprestados uns óculos ao visitante, para de seguida ser passado um filme que tenta ilustrar o “Milagre do Sol” apelando a várias sensações do visitante que vão além do efeito das imagens em três dimensões, chegando mesmo a simular-se alguma “fumaça” e um intenso odor a rosas, segundo as descrições feitas nos relatos da época e principalmente nas “Memórias da Irmã Lúcia”, publicações que serviram de base ao exposto neste equipamento e que apenas nos é revelado pelo guia. As restantes salas, também escurecidas e com equipamento audiovisual, mostram-nos os horrores do inferno alegadamente mostrados aos videntes em ecrãs e noutro mostra-se os santuários marianos espalhados pelo mundo através de um mapa interativo colocado no chão e que mostra imagens na parede imediatamente colocada à nossa frente. Na última sala, se o visitante desejar pode deixar um donativo e escrever o nome de alguém num computador que tem na sua frente e uma vela holográfica “acender-se-á” com o nome ali digitado. A visita termina num espaço iluminado e todo branco, o que causa esforço para alguma adaptação visual ao visitante após ter vindo de um espaço pouco iluminado, que é uma das lojas do museu, cheia de artigos religiosos, onde nos oferecem um folheto do museu com uma oração. 7

A visita é feita num espaço em círculo, entrando-se pela esquerda da receção e saindose pela direita, na loja, mas o visitante nunca tem essa noção, visto estar dentro de um espaço escuro bombardeado com todo aquele audiovisual, o que pode provocar alguma confusão e desorientação. O único ponto de apoio é de fato o guia. O Milagre de Fátima é mais um equipamento interativo e lúdico que um museu. Construído para o turista e o peregrino de Fátima, para um público católico, mas cuja mensagem passa facilmente para qualquer pessoa. Instalado na cave de um centro comercial e gerido por uma empresa, com um grande investimento e recursos económicos, recorre às experiências do audiovisual mais recente e inovador para provocar sensações no visitante, manipulando-as e assim levá-lo a pensar que presenciou o próprio milagre de Fátima, tal como as fontes oficiais e as fontes mais conservadoras e católicas relatam.

2.2- Museu Municipal de Ourém O Museu Municipal de Ourém é um museu polinucleado situado em Ourém, de gestão do município e que foi inaugurado a 4 de julho de 2009 e pertence atualmente à Rede Portuguesa de Museus. Um dos núcleos museológicos é a Casa do Administrador, inaugurado precisamente em 2009 e está situado no centro da cidade. Ocupa o espaço onde anteriormente estava uma casa de habitação do princípio do século XX que terá pertencido ao antigo Administrador de Vila Nova de Ourém, Artur de Oliveira Santos. Da antiga casa, pouco resta a não ser uma das paredes laterais do museu. A arquitetura do edifício moderno tenta relembrar a antiga casa, nomeadamente através da reconstituição da varanda no piso superior, mas basta uma olhada numa fotografia da casa antiga para ver a diferença. A construção com elementos em madeira e ferro, quer no interior quer no exterior, tenta dar um certo ar rústico com claros traços de modernidade. A localização do museu, embora identificado com placas na avenida principal da cidade, quase em cima do corte para a Casa do Administrador (e apenas nesse local em toda a cidade!), não lhe confere grande visibilidade. Embora localizado no centro e junto à Avenida D. Nuno Álvares Pereira, está na parte de trás desta, numa praça do antigo centro da Vila Nova de Ourém que se deslocou nos anos 60 para a avenida. A zona mistura edifícios de traça do final do século XIX e inícios de XX com outros mais recentes, que nasceram aquando do forte crescimento da construção civil nos anos 80 e 90 de Ourém. Um dos edifícios emblemáticos bem perto da Casa do Administrador é o antigo Hospital de Santo Agostinho que quer o Administrador quer os Pastorinhos conheceram. A praça onde está situada a casa, está muito diferente da época, praticamente toda em pedra de calçada, sem jardim ou sombra como a que um antigo Salgueiro que estava junto a um fontanário provia. Ambos os elementos desapareceram do local, para ali se erguer um monumento à República, uma obra contemporânea do pintor moçambicano Roberto Chichorro. O monumento foi inaugurado a 5 de outubro de 2010, mas apesar da placa identificativa junto ao monumento e da existência de um folheto dentro do museu sobre a obra e o seu autor, poucos são os que se identificam ou valorizam o monumento. O largo Dr. Vitorino de Carvalho onde está a casa continua a ser um espaço pouco atrativo, onde alguns passam mas ninguém para ou fica. A Casa do Administrador possui um espaço que foi desenhado e concebido para vir a ser a cafetaria do museu, mas que devido às suas dimensões reduzidas e a outros fatores, acabou por ser readaptado para as funções culturais e do serviço educativo do museu. Se 8

a cafetaria estivesse em funcionamento e com uma boa gestão, talvez pudesse ter sido um excelente atrativo e mais-valia para o museu, contudo assim a Casa do Administrador também beneficiou de um espaço para as suas atividades, que não teria de outra forma e que em regra atraem muito público para o Serviço Educativo ou para eventos e espetáculos que ali se realizam e dão a conhecer o museu. Já no interior e passando a receção e a loja, que contém pouco merchandising do museu e bastante do município e de artesãos locais com peças que têm pouco que ver com a casa. A Casa do Administrador visita-se num tempo médio de entre dez minutos e meia hora. Não existe folheto sobre a exposição ou as exposições (informam-nos que estão em elaboração) e os painéis estão em português apenas, embora as legendas das peças estejam bilingues em português e inglês. Quando se tratam de estrangeiros, são os funcionários, que dominam outra língua além da sua língua materna, que fazem visitas guiadas, na maioria em inglês. Este núcleo tem uma exposição permanente subdividida em duas partes. A primeira chama-se “Ourém Afeições” que funciona como postal ilustrativo das realidades históricas, geográficas e culturais de Ourém, incindindo sobre os patrimónios do concelho e que ocupa o restante do piso térreo e em não mais que cinco painéis, de forma esquemática e de fácil entendimento. Embora não nos dê muitos detalhes sobre, por exemplo as tipologias da construção tradicional em Ourém, o visitante fica com uma rápida ideia que essas tipologias existem e que o principal foco da Casa do Administrador não é esse. A outra parte da exposição permanente, que ocupa metade do pequeno piso superior, intitulada “Vila Nova de Ourém 1900” foca o visitante na realidade história e socioeconómica de Ourém e do mundo no início do século XX. Seguindo uma cronologia básica e uma ordem temática simples, em oito painéis somos informados do contexto e da realidade da época de uma forma informal mas com o máximo de rigor possível e sempre que possível com objetos da época, do acervo do museu, ilustrando o assunto ali tratado. Desde a implantação da República e da instabilidade política desse período, passando pela Primeira Grande Guerra e pelos surtos epidémicos como o surto de Gripe Espanhola. A vida do Administrador Artur de Oliveira Santos, embora um pouco presente em toda a exposição com textos e editais passados por si no tempo da sua administração, é essencialmente ilustrada com uma breve biografia num dos painéis, retirada da Enciclopédia Luso-Brasileira e um busto da república e noutro sobre a Latoaria, primeira profissão de Oliveira Santos, com a sua antiga oficina em destaque em documentos e fotografias apresentados neste painel. Na varanda, que fica sempre aberta quando existem visitas, é possível termos uma vista sobre o exterior e imaginarmos como seria aquele local à época, uma vez que os edifícios que se nos apresentam em frente são os que são datados do início do século XX como o hospital antigo, na sua maioria conservando a traça arquitetónica da época. Ainda na varanda e voltados para o exterior, estão dois painéis com fotografias da casa na época que o Administrador a habitou e os vinis que servem de filtro da luz natural para o interior, apresentam-se nas janelas da casa com fotografias de Oliveira Santos. Finalmente, o espaço dedicado às exposições temporárias que ocupa a outra metade do primeiro piso. As exposições temporárias têm um tempo médio de duração de três a seis meses, ocupando na sua maioria o tempo máximo, devido a restrições orçamentais. São sempre que possível realizadas com peças do acervo do museu ou então com outras que se enquadrem com o espírito e a missão do mesmo. O Museu Municipal de Ourém (MMO) tem nas suas reservas, situadas num edifício igualmente histórico da antiga Vila Nova onde estão os serviços de conservação e 9

restauro), peças que vão de temáticas tradicionais e etnográficas a achados arqueológicos. O acervo documental e fotográfico está noutro edifício próximo, no Arquivo Municipal. Os painéis estão bem elaborados e seguem-se uns aos outros de forma sequencial e nuns casos cronológica, noutros a sequência é temática mas lógica. São de grande tamanho com as informações escritas a branco em fundo negro, as cores oficiais do museu, não sendo muito exaustivos nas descrições e explicações mas também sem serem simplistas. Apresentam muitas vezes pequenos excertos de documentos da época no caso da exposição “Ourém 1900”, sempre que referidos ao administrador ou às suas funções, são sempre documentos seus. As fotografias e as tabelas que também acompanham alguns dos textos são bem visíveis e estão identificadas com uma legenda curta e quase sempre elucidativa. Além destes elementos, praticamente todos os painéis são acompanhados por vitrinas onde nunca mais do que quatro ou cinco objetos, dependendo do tamanho e do espaço que ocupam serão em maior ou menor quantidade na vitrina e que ilustram o que os painéis explicam. Não existem muitos mas a Casa do Administrador possui elementos audiovisuais a acompanhar as exposições. A exposição temporária tem um pequeno televisor onde passam fotografias da primeira metade do século XX de Ourém, dos espaços e lugares que caracterizavam a Vila Nova nessa época. Frequentemente as exposições temporárias também tem um vídeo ou slideshow a acompanhar que vai passando enquanto decorre a visita ou então a exposição é complementada com um documentário com não mais de 20 minutos que passa na pequena mas agradável sala de projeção no piso térreo, no final da visita. O museu é acessível também para pessoas com mobilidade reduzida pois possui um elevador para o efeito. O elevador está sinalizado mas “mascarado” em ambos os pisos com fotos de Ourém na primeira metade do século XX, enquadrando-o com as exposições. Embora pequeno e pouco visível dentro da cidade, a Casa do Administrador é percetível e percecionado pelo visitante enquanto museu desde o exterior, devido aos painéis e aos vinis com fotografias nas janelas e a estar bem identificado com letras metálicas e grandes, perto da entrada. Apesar disso, os vidros da loja e da receção e a madeira que decora o exterior e praticamente cobre os mesmos, não permitem visualizar o interior do museu, que assim parece fechado mesmo quando está dentro do horário de serviço. As exposições são de fácil entendimento e algumas, nomeadamente as temporárias, chegam mesmo a ser criativas no modo como são montadas. Um exemplo é a exposição que ali decorre no momento sobre trajes tradicionais, onde vemos calças suspensas e rente ao chão com os respetivos sapatos logo por baixo, como se alguém estivesse a usar essas peças, encenando assim o modo como eram usadas. É relativamente fácil fazer uma visita às exposições e o visitante sai com um entendimento do que ali é mostrado. Se optar pela visita guiada, sem custo adicional aos 2.50€ do bilhete geral da entrada, fica-se certamente com uma ideia ainda mais apurada de algumas das realidades ali retratadas e os guias de um modo geral dominam aqueles conceitos e estão bem informados. Contudo, uma visita e em média em 20 minutos chega para ver todo o núcleo e o visitante só ali voltará se eventualmente a exposição temporária se alterar, o que geralmente demora e não existe bilhete somente para visitar a temporária, tendo de pagarse na mesma o preço geral ou com desconto da entrada no museu. Contém um acervo de boa dimensão e bem conservado e dispõe de recursos humanos e de serviços também em bom número, deparando-se contudo com as restrições orçamentais típicas de um museu de gestão municipal, que não lhe permitem por exemplo 10

ter exposições permanentes com mais frequência ou outro tipo de publicidade e divulgação.

2.3- Dois museus e duas questões: a religiosa e a histórica Como ficou patente, trata-se pois de dois equipamentos completamente diferentes e geridos por duas instituições (uma privada e outra pública), substancialmente diferentes também, principalmente no que toca ao modelo de gestão e de negócio. * O Museu Milagre de Fátima – Museu Interativo, recorre às tecnologias mais avançadas e interativas possíveis para criar um produto essencialmente baseado na estimulação e manipulação de todos os sentidos do visitante e provoca-lo ao máximo com sensações tão diferentes como medo e confusão com maravilhamento e alegria. A mensagem que passa é claramente unilateral, inspirando-se apenas numa única fonte e numa única narrativa: a considerada oficial pela Igreja Católica. O intuito é claramente o de convencer o visitante de que todo aquele fenómeno não só foi real, como o pode experimentar ali mesmo. O enquadramento histórico da época das Aparições (primeira metade do século XX) é apresentado de forma simples, como uma época negra onde o mundo parecia à beira do Apocalipse e onde Fátima surgiu como uma luz de paz e esperança. A interpretação histórica é parcial e ideologicamente orientada, com algumas incongruências. A revolução Bolchevique é apresentada sempre em cores de vermelho vivo (como as visões do inferno, mais adiante) e palavras como “massacre” aparecem recorrentemente nalguns visores, quando se trata de enfatizar as perseguições religiosas da época. A intensão é de transmitir que o mundo estava na época perto do fim e dominado pela guerra e pelo mal e que as Aparições foram premeditadas por agentes do outro mundo para salvar este mundo e a humanidade impotente. Todo o ambiente visa provocar terror e esmorecimento no visitante. E é bastante eficaz ao fazê-lo, a começar pelo fato de todas as suas salas serem escuras, também para que o audiovisual possa ter ainda mais impacto. Por contraste, as “aparições”, em ambientes campestres e limpos, em branco, com imagens de luz e de santos a saltarem para a frente do visitante, podem provocar algum temor no início, mas logo transmitem paz, maravilhamento e esperança. A última parte da exposição visa mostrar o poder e a universalidade da Mensagem de Fátima, falandose constantemente na “Reconversão da Rússia”1. É já no fim, que se pode “acender” uma vela por um ente querido e se desemboca na loja. Os muitos visitantes que o museu recebe (em média cerca de 800 por mês), essencialmente turistas de Fátima, a maioria religiosos e escolas religiosas, deixam-se encantar pelas maravilhas que a tecnologia proporciona e pela história poderosa, épica e em jeito de “Conto de Fadas” que ali é narrada, sem grande espaço à colocação de grandes questões sobre aquilo que se vê, ouve e sente. O visitante sai ainda do museu com uma oração no bolso, dada ao final e o cheiro das rosas impregnado na pele, de modo a não se esquecer do momento criador de Fátima. O filme sobre o Milagre é aliás o momento em que todos os sentidos do visitante são provocados e levados ao extremo, conferindo uma experiência completa e absoluta sobre

1

As referências constantes a este país parecem espantar os próprios visitantes desta nacionalidade, segundo o guia.

11

esse acontecimentos, como se de fato inquestionavelmente tivessem sido reais tanto em 1917 como ali, dentro daquele auditório. A sala denominada “A dúvida”, acerca do momento do interrogatório que foi conduzido aos pastorinhos, rodeia literalmente o visitante com imagens de personagens históricos e fictícios que se vão iluminando sem grande ordem, acompanhadas por um áudio que vão libertando frases associadas a esses personagens em simultâneo. Todas essas frases são encenadas, ou melhor “baseadas” no que a irmã Lúcia terá escrito nas suas Memórias sobre o que lhe foi perguntado a ela e aos primos sobre o “Segredo”, mas levará o visitante mais desinformado a levá-las por autênticas, tal o modo bem-sucedido como são apresentadas. Este momento pretende encenar os momentos difíceis que as três crianças terão enfrentado após a primeira aparição e até ao momento da sua prisão2. Retratado diante do visitante por uma amostra de janela gradeada, pequena e escura, com um terço estrategicamente colocado no meio das grades. Tudo isto cumpre a função maior da Mensagem, apresentar as crianças simplesmente como mártires do bem na luta contra o mal. E será certamente eficaz. A indicação de que os Pastorinhos estiveram encarcerados e foram ameaçados de morte pelo Administrador, esbarra somente nos fatos históricos da época ilustrados com excertos breves de alguns textos da época na Casa do Administrador – Museu Municipal de Ourém, da qual não se fala nem se dá conhecimento no Museu Milagre de Fátima. O museu está publicitado em vários sítios, tem página de internet própria, dinâmica e interativa e as informações estão traduzidas em várias línguas em todos os suportes. A direção tem feito esforços junto dos agentes turísticos de modo a vender o seu produto da forma mais eficaz possível e em parceria com outros museus da região como o MMO3. Como anteriormente referido, este espaço, muito voltado para o turismo e para a assimilação fácil de uma história completamente processada e produzida para consumo imediato, desejada por muitos sem a questionar, é mais um equipamento lúdico com funções de exaltação e manipulação religiosa que um museu. Destinado a servir mais o turista religioso que a comunidade, mais a entreter que a criar conhecimento propriamente dito, uma vez que nunca questiona, nunca apresenta fatos nem fontes e é sempre condicionado pela visita orientada. Este equipamento será certamente agradável para quem tem fé no milagre de Fátima e que ali se dirige para ter uma experiência de cariz religioso e metafísico recorrendo às novas tecnologias, um produto para consumo turístico imediato, uma curiosidade e um momento de lazer e maravilhamento para os restantes. * A Casa do Administrador, local histórico relacionado com a história das Aparições, por outro lado, não encena nem provoca os sentidos com a dimensão do Museu Milagre de Fátima. Recorre a textos da época, devidamente identificados na sua origem e na sua fonte, a maioria muito curtos, a objetos da época e a fotografias para contextualizar a mesma época (primeira metade do século XX). 2

Esta questão causou sempre muita polémica e incerteza quanto à veracidade histórica da mesma. A Irmã Lúcia escreve sobre a sua detenção e a dos primos para a prisão para interrogatório a par da sua presença, assumida sempre como Rapto, dos videntes na casa do Administrador. A permanência das três crianças na casa do Administrador foi relatada por Lúcia ainda em 1924 no primeiro relatório oficial, corroborando a memória de diversas testemunhas de populares de Ourém na época. A prisão apareceria depois e a estada na casa do Administrador é mesmo removida por parte de alguns autores mais próximos ideologicamente de Fátima. 3 Museu Municipal de Ourém.

12

O discurso é simples e informal, mas os fatos históricos são apresentados de uma forma mais descomprometida. Os gráficos e dados estatísticos da época, assim como os excertos, podem fazer com que o visitante confirme por si alguns dos fatos ou então tire as suas conclusões. A época também é retratada como uma época de grande instabilidade política, económica e social, com destaque para a Primeira República, a Primeira Guerra, o Racionamento e a Gripe Espanhola, mas não da forma dramática nem no tom apocalíptico do museu de Fátima. Logo no início da exposição, no primeiro piso, somos “apresentados” à família que ali viveu numa enorme fotografia iluminada, que nos apresenta os antigos moradores de sorriso no rosto, de forma informal e afável. Temos assim uma perspetiva completamente diferente do mesmo personagem que nos aparece a vociferar impropérios e ameaças de morte a três pobres crianças do campo no museu anterior. Aqui somos postos em contato com réplicas dos textos e documentos que fariam parte dos afazeres de Administrador e nos painéis, dos editais que Oliveira Santos passou para dar ordem de racionamento aquando da primeira grande guerra, ou a ordem de limpeza das ruas e de obrigatoriedade de caiar as casas contra o surto de gripe. A escassez de alimentos e a subsequente fome implícitas nos painéis, dando conta das carências sentidas pela população na época através uma vez mais de documentos. O mesmo para a realidade da Grande Guerra. Tudo aqui é dado ao visitante de uma forma simples, direta, bem fundamentada e sem aparentes interpretações facciosas da realidade histórica. Quanto à questão das Aparições, nas quais o Administrador esteve grandemente envolvido, bem como a casa, nunca é o foco central deste museu, parecendo de certa forma demitir-se de questões dogmáticas e passando ao lado de controvérsias religiosas e políticas. A questão religiosa aqui, ou nunca é assumida ou é relegada para segundo plano, ao contrário do antigo proprietário da casa. O único painel que apresenta a passagem dos Pastorinhos pela casa, com as fotografias das três crianças do lado esquerdo, onde aparece um pequeno excerto do relatório oficial dado por Lúcia em 1924 a corroborar a sua estadia e a dos primos na casa do Administrador de Ourém por dois dias e do lado direito uma fotografia do Administrador acompanhada com um excerto de não mais de quatro linhas de um artigo de jornal onde se defendia das acusações contra si feitas, admitindo a estada dos três videntes em dois dias de agosto de 1917. Os relatos corroboram-se, equilibram-se e amenizam o alo negro de velhacaria que pairava no museu de Fátima sobre o Administrador. Quase que o visitante o perdoa. Ou pelo menos passa a conhecê-lo na medida de personagem histórica de relevo para o concelho de Ourém e a compreender os fatos ali apresentados à luz da época histórica. O museu com este tipo de apresentação não “afirma” nada, não contesta nem corrobora qualquer fação política ou religiosa, não assume partidos, demarca-se de polémicas. Apresenta o que os intervenientes deixaram escrito em documentos da época, sem outro processamento ou interpretação que o corte e escolha do texto para “provar” que a casa acolheu as três crianças de Fátima entre 13 e 15 de agosto de 1917. No meio, o objeto que é apresentado é um antigo canapé4 que indica a legenda que ali terá dormido a vidente Jacinta Marto quando esteve em Ourém por essa altura. Esta peça a par do boletim de óbito da mesma vidente (na vitrina com objetos referentes aos surtos epidémicos da época) são as únicas em todo o museu que nos remetem para a história das Aparições. Aliás, ao contrário do Museu Milagre de Fátima,

4

Peça de mobiliário semelhante ao sofá.

13

aqui podemos estar em contato com duas peças que fizeram parte de um ou outro episódio da vida das crianças e que a documentam sem virtualidades. O mesmo canapé parece encenar um episódio da vida naquela casa, uma vez que já nada resta dela. Essa é aliás um desapontamento que alguns visitantes, principalmente os mais crentes deixam neste museu: a de que já não podem ver o quarto onde estiveram as crianças, por exemplo. Têm no entanto a “relíquia” para adorar e admirar, do canapé onde diz a tradição, uma das videntes dormiu uma descansada sesta, parecendo contrariar as declarações de pressões, maus tratos, violência e ameaças de morte que terão sofrido na prisão. Muito díspar este momento de paz e relaxamento com o de medo e ansiedade, encenado com a janelinha de gradeado negro e terço pendurado no museu anterior. Embora mais pequeno e à primeira vista mais “tradicional” por não ser tão tecnológico e com menos recursos que o primeiro museu analisado, a Casa do Administrador está mais focado na comunidade local e no território do que as questões relacionadas com Fátima e as Aparições. Com muito menos visitantes (uma média de 200 por mês), é um museu essencialmente local e regional, não conseguindo captar o turista religioso tradicional de Fátima ou o Peregrino, que desconhece de todo a existência deste equipamento. Cumpre assim as suas funções de museu municipal e, não esquecendo que foi a casa do Administrador do concelho e palco da história do fenómeno religioso de Fátima, não assume interpretações faciosas nem partidárias, sem no entanto faltar à verdade fatual e histórica nos documentos e objetos que apresenta. Muito menos divulgado, sem folheto de apresentação das exposições e monolingue nos suportes físicos, é no entanto um museu dirigido a todos os tipos de público, que certamente se surpreenderão com a informação bem condensada, clara, esquemática e simples ali apresentada. Aqui o visitante não sairá estasiado com uma experiência do outro mundo e talvez por isso muito menos marcante, mas o museu cumpre com as suas funções educativas, de produção de entendimento e conhecimento científico de um modo informal e aberto.

14

Conclusão A mensagem ou mensagens que cada museu, centro de interpretação ou equipamento cultural transmite ao visitante, fruto do processamento da informação que adquiriu e montou de maneira a ser adquirida pelo indivíduo, difere quer nos meios e suportes utilizados, na linguagem e naqueles que sãos os objetivos, valores e missão de cada um o destes equipamentos. Nestes processos de escolha e processamento, existem sempre omissões deliberadas de alguns fatos para realçar outros ou para ser mais fácil ao indivíduo assimilar as ideias e os conceitos valorizados. No caso de temáticas mais fraturantes e polémicas como questões relacionadas com fé e religião, a abordagem, a interpretação e presentação podem inclinar-se para posicionamentos mais extremos e para “verdades absolutas”. Os casos de estudo apresentados são ilustrativos e paradigmáticos de duas abordagens completamente diferentes quanto à interpretação e formação dos visitantes relativo à mesma época histórica e ao mesmo fenómeno e como o visitante é condicionado e guiada pelas diferentes interpretações. O Museu Milagre de Fátima é acima de tudo um equipamento lúdico, que apresenta a versão oficial dos acontecimentos através de experiências audiovisuais, de provocação de sensações intensas e impactantes no visitante, mas onde não se acrescenta nada aos fatos. O visitante apenas se deixa levar por aquela experiência, sem questionar nada, nem a narrativa unilateral e faciosa. Concebido por uma empresa privada para o público mais religioso que visita Fátima, ignora outras fontes e fatos da história das Aparições. O seu intuito é reforçar a experiência religiosa e a satisfação do peregrino consumidor de Fátima, papel que cumpre. A Casa do Administrador, núcleo do Museu Municipal de Ourém e de gestão municipal interpreta e apresenta os patrimónios e a cultura local, cumprindo as suas funções municipais, voltado para a comunidade local. Mais pequeno e sem a espetacularidade do audiovisual, analisa e mostra os fatos históricos da época de uma maneira simples e fácil. A sua preocupação parece ser a de mostrar o valor patrimonial do lugar e da envolvente, educar e contribuir para a produção de conhecimento, acrescentar valor a fatos tidos como certos e assumidos. Aberto a outras fontes embora com um objetivo bem direcionado, o visitante aqui não se sente tão alvo de condicionalismos. Dois museus, duas realidades tão distintas, que mostram que existem muitas maneiras de tratar uma mesma história e de a apresentar ao vistantes.

15

Bibliografia BRUNO, Maria Cristina Oliveira (2007). Museological action`s main fields. Sociomuseology. Edições Universidade Lusófona. Lisboa; CERAVOLO, (2004). Da Palavra ao Termo. Um caminho para compreender Museologia. Tese. ECA/USP; CINTRA, Anna Maria Marques; TÁLAMO, Maria de Fátima Gonçalves; LARA, Marilda Lopes Ginez; KOBASHI, Nair Yumiko (1994). Para entender as linguagens documentárias. Edições Polis. São Paulo; CURY, Marília Xavier (2004). Os usos que o público faz dos museus: a (re)significação da cultura material e do museu. Musas-Revista Brasileira de Museus e Museologia. Rio de Janeiro; MENDES, Amado (2009). Estudos do Património: museus e educação. Universidade de Coimbra; SCHEINER, Tereza. Apolo (1998). Dioniso no Templo das Musas. Museu: génese, ideia e representações nos sistemas de pensamento da sociedade ocidental. Dissertação de Mestrado; VALENTE, Maria (2009). Educação e Museus: A dimensão educativa do museu. Museu de Astronomia e Ciências Afins. MAST Colloquia – Vol.11. Rio de Janeiro;

16

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.