A NARRATIVA LITERÁRIA NAS CRÔNICAS DE GUERRA DE MARTHA GELLHORN

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Descrição do Produto

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
CURSO DE JORNALISMO
Disciplina: Geopolítica e Jornalismo
Professor: Luiz Antônio Araújo
Turma 369
















A NARRATIVA LITERÁRIA NAS CRÔNICAS DE GUERRA DE MARTHA GELLHORN


















Mirian Eliete Sodré
7 de novembro de 2016
A NARRATIVA LITERÁRIA NAS CRÔNICAS DE GUERRA DE MARTHA GELLHORN

Mirian Eliete Sodré

RESUMO

Este artigo pretende abordar a narração literária das guerras que a correspondente estadunidense Martha Gellhorn relatou em seu livro A Face da Guerra. A partir da leitura das crônicas presentes no livro, se pretende analisar a forma como a narrativa literária, desprovida da objetividade presente no jornalismo tradicional, contribui para os relatos de guerra e aproxima leitores dos acontecimentos vivenciados pela correspondente.

Palavras-chave: Jornalismo Internacional; Jornalismo Literário; Correspondente de Guerra; Crônicas.

INTRODUÇÃO

Quando se pensa em jornalismo literário o nome de Truman Capote é um dos primeiros que vêm à mente. O que não é injusto, já que ele escreveu o livro-reportagem A sangue frio (1966). No entanto, ao contrário do que muitas pessoas pensam, ele não foi o grande pioneiro do gênero. Já existia jornalismo literário antes de Capote e antes mesmo do termo jornalismo literário ser cunhado entre os profissionais da informação. Uma de suas representantes foi a correspondente de guerra norte-americana Martha Gellhorn.
O intuito deste artigo é analisar trechos de crônicas de guerra da correspondente internacional Martha Gellhorn de acordo com os critérios do jornalismo literário. Averiguaremos se Gellhorn realmente se enquadra nos requisitos do gênero, pois este dialoga melhor com o leitor, não dando apenas a visão estatística da guerra, mas sim a visão humana, o que, preliminarmente, se enquadra em seus escritos. Martha Gellhorn não criou o gênero, mas foi uma das mais expressivas cronistas de guerra de que se tem conhecimento, portanto algumas de suas crônicas, presentes no livro A Face da Guerra (2009), serão analisadas conforme os aspectos do que se chama por jornalismo literário.
1 CORRESPONDENTE POR ACASO

Martha Gellhorn, que cobriu guerras da década de 1930 até meados de 1990, foi uma das mais longevas correspondentes de que se tem registro. Seu trabalho conhecido começou quando, em 1937, ela foi para Madri cobrir a Guerra Civil Espanhola. De fato, sua ideia original não era ser uma correspondente de guerra, mas sim ir para lá como pacifista. Contudo, seu passe livre de entrada na Espanha foi através da revista Collier's.
Em Nova York, um homem simpático e espirituoso, que na época era editor da Collier's, havia me dado uma carta. O texto dizia, a quem pudesse interessar, que a portadora, Martha Gellhorn, era correspondente especial da Collier's na Espanha. A carta foi escrita com a intenção de me ajudar, caso as autoridades estranhassem minha presença na Espanha ou a razão pela qual eu estava tentando chegar lá. Afora isso, não tinha valor algum. Eu não estava ligada a nenhum jornal ou revista. Acreditava que tudo o que se podia fazer numa situação de guerra era ir até lá numa demonstração de solidariedade e ser morto, ou ter a sorte de sobreviver até a guerra terminar. [...] Não sabia que era possível ser o que me tornei, uma turista de guerras que saía ilesa. Uma mochila e cerca de 50 dólares eram o meu equipamento para ir à Espanha. Qualquer coisa mais do que isto me parecia desnecessária. (GELLHORN, 2009, p. 24)
Pode-se dizer que Gellhorn se tornou correspondente quase por acaso e também podemos afirmar que sua forma narrativa claramente intimista é resultado de uma sensibilidade que o jornalista acostumado a escrever hard news não possui. Isso talvez se dê pelo fato de que ela não possuía formação jornalística, mas era apenas uma pacifista que decidiu escrever sobre a guerra como forma de servir à Causa (nome dado pelos espanhóis à Guerra Civil).
Meu amigo jornalista sugeriu que eu escrevesse sobre Madri. E que interesse teria isso para alguém? - perguntei. Era apenas vida cotidiana. Ele ressaltou que não era o cotidiano de todo mundo.
Enviei meu primeiro artigo sobre Madri para a Collier's pelo correio sem a expectativa de que fosse publicado; mas como eu tinha aquela carta, sabia o endereço da Collier's. Eles aprovaram o texto e, depois da minha segunda matéria, colocaram meu nome no expediente. Eu soube disso por acaso. Uma
vez constando do expediente, ficou claro que eu me tinha tornado uma correspondente de guerra. Foi assim que começou. (GELLHORN, 2009, p. 24)
Não era comum em sua época existir uma correspondente mulher, contudo Gellhorn obteve sucesso em sua carreira como cronista de guerra, adentrando trincheiras e descrevendo o que via da forma mais palpável possível, indo contra a obrigatoriedade da escrita objetiva dos jornalistas em geral.

2 A CRÔNICA DE GUERRA COMO JORNALISMO LITERÁRIO

O jornalismo literário está fortemente atrelado a um jornalismo cultural, voltado para informar aos leitores acerca dos eventos culturais do local ou mesmo resenhar livros. Também pode ser facilmente associado à coluna de opinião de um jornal, que geralmente flerta com uma escrita romanceada em sua composição.
No entanto, nem só de cultura como forma de entretenimento vive o gênero literário dentro de um escrito jornalístico. Também se pode encontrar tal estilo em artigos tanto de correspondentes de guerra quanto de jornalistas expostos à violência (de quaisquer tipos) que pretendem, com seus relatos, aproximar o leitor do forte sentimento que eles experienciaram ao estarem em contato com a realidade então descrita.
Exemplos disso são o tão famoso Truman Capote, com seu livro-reportagem A Sangue Frio (1966), Honra Teu Pai (2011), de Gay Talese, A Vida Secreta da Guerra (2010), de Peter Beaumont e Hiroshima (2002), de John Hersey. Todos eles passaram por situações de violência e narraram tais eventos com uma escrita claramente literária e não objetiva e imparcial, como manda o jornalismo das grandes redações. Todos esses livros são referências para um tipo de prática jornalística chamada de Novo Jornalismo (ou New Journalism).
O New Journalism pretendeu revolucionar a narração da notícia através de uma escrita mais intimista, despretensiosa e que foge um pouco às regras do lead. Seus criadores - entre eles Tom Wolfe, que escreveu o manifesto do gênero - acreditavam estar criando algo totalmente novo. No entanto, tal forma narrativa já era praticada entre alguns correspondentes de guerra anos antes da descoberta de Wolfe de que se pode escrever notícia sem usar um lead tão "duro" e de que a objetividade nem sempre é a melhor escolha.
Vale lembrar que alguns historiadores consideram Daniel Defoe o primeiro jornalista literário moderno. [...] mas foi em 1725, por uma série de reportagens policiais em que misturou Literatura e Jornalismo, utilizando as técnicas narrativas de seus romances para tratar de fatos reais, que começou a atuar na imprensa. [...] No século XX, antes do manifesto de Wolfe, já há escritores que antecipam o gênero. O mais significativo deles talvez seja John Hersey, autor do célebre Hiroshima (1946), que utilizou uma narrativa romanceada para escrever um livro jornalístico, cujo objetivo era descrever a tragédia atômica por intermédio dos pontos de vista de seis personagens reais, sobreviventes da bomba. (PENA, 2008, p. 52 – 53)
As crônicas de Gellhorn não podem ser consideradas como parte do New Journalism, pois elas começaram a ser produzidas em meados da década de 1930, enquanto que o chamado Novo Jornalismo foi surgir, formalmente, por volta da década de 1970. Porém, pode ser dito que seus relatos sobre as guerras de que foi correspondente possuem características afins com o gênero literário, no qual se baseia o New Journalism.
Diferente da cobertura jornalística da guerra responsável pela produção de reportagens, a cobertura realizada por meio de crônicas não tratava apenas das estratégias do exército de forma quantitativa e fria, mas relatavam o dia a dia dos pracinhas, mandavam recados para as famílias, descreviam as comidas e os locais percorridos pelos nossos soldados, estabelecendo uma crônica, na maior parte das vezes, que permitia o acesso à visão individual e singular daquele que a escreve. (VOLCEAN, Tamiris; REBECHI, Arlindo, 2016)
Este acesso à visão individual que é feito através da crônica só é permitido porque ela é o gênero jornalístico que mais se aproxima da literatura, portanto se enquadrando em um jornalismo literário. De acordo com Meuret (2015), a escrita de Gellhorn é literária enquanto possui descrições ricas, diálogos, reconstruções históricas e comentários perspicazes.
Segundo Vilas Boas (2001, apud CZARNOBAI, 2003), os autores de Jornalismo Literário inserem diálogos, fazem descrições minuciosas, alternam o foco narrativo e penetram na mente de seus personagens reais, reconstituindo seus pensamentos e emoções com base em pesquisas e entrevistas.
Partindo de tais critérios, analisaremos algumas crônicas de guerra de Martha Gellhorn para averiguarmos se ela se enquadra ao estilo.

3 CRÔNICAS ANALISADAS

Foram selecionados três trechos de crônicas do livro A Face da Guerra (2009) para serem verificados se elas de fato atendem aos critérios de jornalismo literário de acordo com as definições de Vilas Boas (2001), citadas por Czarnobai (2003).

3.1 TRÊS POLONESES

Nesta crônica, escrita em março de 1944, Gellhorn descreve o encontro que teve com três poloneses, na Inglaterra, e seus relatos acerca da Segunda Guerra Mundial e das torturas a que foram submetidos. "— Na minha aldeia — o homem disse — as pessoas ficaram paradas na frente da igreja e clamaram: 'Deus existe? Se existisse, Ele não permitiria que essas coisas acontecessem.'" (GELLHORN, 2009, p. 113).
Claramente podemos observar, no trecho citado acima, que a crônica em questão
se enquadra em um dos requisitos que Vilas Boas (2001, apud CZARNOBAI, 2003) acordou ser pertencente ao gênero literário no jornalismo: a existência de diálogos. No trecho um homem judeu conta, em primeira pessoa, a reação das pessoas em sua aldeia mediante a ação dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Há o uso de travessão e ainda a citação, dentro da própria fala, do clamor dessas pessoas a que ele se refere ao encararem os horrores da guerra.
Gellhorn poderia, sem sombra de dúvida, ter escrito tal relato de outra maneira, de uma forma impessoal, contando somente que um homem polonês havia conversado com ela e descrito os horrores da guerra e o sofrimento das pessoas de sua aldeia. No entanto, o uso de diálogos, com travessão, faz com que o leitor se coloque no lugar de ouvinte passivo daquela conversa e, portanto, possui muito mais apelo emocional que um relato objetivo e imparcial possuiria.

3.2 BOMBAS SOBRE HELSINQUE

A correspondente de guerra também esteve presente numa guerra que não nos é muito conhecida nos dias de hoje: a Guerra de Inverno, que ocorreu na Finlândia entre 1939 e 1940 como parte dos conflitos da Segunda Guerra Mundial. Uma de suas crônicas, cujo título é Bombas sobre Helsinque, escrita em dezembro de 1939, relata em detalhes o início dessa guerra e a resistência do povo finlandês.
Um menino de 9 anos estava parado do lado de fora de sua casa em Helsinque observando os bombardeiros russos. Ele era lourinho e gordinho e estava parado com as mãos nos quadris, com os pés separados, e olhava para o céu com uma expressão teimosa e séria. Para que não se encolhesse com o barulho, sua postura era bastante dura e rígida. Quando o ar ficou silencioso novamente, ele falou:
— Aos poucos, estou ficando realmente muito zangado com isso. (GELLHORN, 2009, p. 72)
Nesse trecho, Gellhorn mostra a perspectiva de um menino de 9 anos ao ver a guerra atingir sua cidade. Geralmente, quando um jornalista escreve sobre um conflito, se dá voz a grandes autoridades, a soldados, a pessoas adultas participantes daquela guerra, e não à uma criança. Contudo, como correspondente, a escolha de Martha foi a de contar o que estava acontecendo na Finlândia da forma mais detalhista e tocante possível e, para tal, ela usou de elementos narrativos que se enquadram com o gênero literário.
O trecho se enquadra num dos critérios do jornalismo literário ao fazer uma descrição minuciosa de uma cena do conflito e também ao fazer uso de diálogo, numa citação direta da percepção do menino, incluindo o travessão para sinalizar que aquela é a posição da criança finlandesa perante a situação.

3.3 O TERCEIRO INVERNO

Em 1936 foi iniciada a Guerra Civil Espanhola, onde Gellhorn iniciou sua carreira como correspondente de guerra. Ela ficou lá até o fim do conflito, em 1939, e escreveu várias crônicas sobre a realidade do povo para a revista Collier's. Uma dessas crônicas, cujo título é O terceiro inverno, foi escrita em novembro de 1938 e é uma descrição dos longos dias de espera por uma resolução, que poderia tanto ser o fim da guerra quanto a morte.
— Você não vai para a escola? — perguntei.
— Agora não.
— Ele estava indo bem na escola — disse sua avó.
— Eu quero ser mecânico — disse a criança com uma voz quase chorosa. — Quero ser mecânico.
— A gente não deixa ele ir para o colégio — disse a Sra. Hernández, passando a mão nos cabelos negros da criança. — Por causa das bombas. Não podemos deixar ele andar por aí sozinho.
— As bombas — eu disse, e sorri para o menino. — O que você faz a respeito das bombas?
— Eu me escondo — ele respondeu, e ficou tímido com isso, como quem conta um segredo. — Eu me escondo, assim elas não vão me matar.
— Onde você se esconde?
— Debaixo da cama — ele disse.
A nora, que é muito jovem, riu disso, mas os velhos levaram a criança a sério. Eles sabem que é preciso ter segurança em alguma coisa; se a criança acredita que está segura debaixo da cama, melhor para ela. (GELLHORN, 2009, p. 50 – 51)
Novamente, a correspondente preferiu relatar ao leitor o diálogo entre uma criança de uma família comum do que entrevistar soldados ou chefes de Estado e encher páginas com estatísticas sobre a guerra.
Nisto, podemos perceber que além dela ter se utilizado de diálogos e descrito detalhes da cena e das personagens, também atendeu a outro requisito do jornalismo literário: trocou o foco narrativo e entrou na mente das personagens entrevistadas ao explicar o porquê de terem ficado sérios quando a criança contou que se esconde das bombas debaixo da cama. Tendo feito isso, ela deu aos seus leitores uma visão da guerra que somente as pessoas que viviam aquilo tinham, fazendo uso de recursos literários para tal.

CONCLUSÃO

Com as análises de trechos das crônicas de Martha Gellhorn presentes neste artigo podemos concluir que, de fato, ela foi uma pioneira no uso da escrita literária nos relatos de guerra de correspondentes internacionais.
Sua escrita não informava apenas acerca de estatísticas de guerra, nomes de generais, operações ou alvos, mas sim sobre as pessoas que realmente eram afetadas pelos conflitos presentes nos diversos países onde ela esteve. Seu objetivo não era ser uma jornalista de hard news, mas sim fazer com que todos vissem o que ela via, sentissem o que ela sentia ao ver crianças morrendo numa guerra que não era delas, mães aguardando eternamente por filhos que já poderiam estar mortos e velhos tendo de assumir funções de supridor de necessidades da casa que não mais existia, já que os homens adultos estavam todos servindo a governos que nada tinham a ver com eles, exceto a nacionalidade.
Para tal, Gellhorn fez uso do jornalismo literário, que se faz atemporal por sua função de nos sensibilizar acima de informar. Contudo, ela também informava o que estava acontecendo, mas narrando de forma que suas crônicas fossem representações reais do horror que ela presenciava ao invés de relatos objetivos e imparciais a respeito de guerras injustas.


REFERÊNCIAS

CZARNOBAI, André Felipe Pontes. Gonzo: O filho bastardo do New Journalism. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. Disponível em: http://www.petcom.ufba.br/arquivos/gonzojornalismo.pdf. (Último acesso em: 05 nov. 2016)

GELLHORN, Martha. A face da guerra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 415 p.

MEURET, Isabelle. Rebels with a Cause: Women Reporting the Spanish Civil War. Literary Journalism Studies, Bruxelas, v. 7, n. 1, p.76-98, abr. 2015.

PENA, Felipe. Jornalismo Literário. São Paulo: Contexto, 2008. 144 p.

VOLCEAN, Tamiris; REBECHI, Arlindo. As crônicas de guerra dos correspondentes Rubem Braga e Joel Silveira: análise dos elementos constitutivos da narrativa. In: CONGRESSO DE CIêNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUDESTE, 21., 2016, São Paulo. Disponível em: http://www.portalintercom.org.br/anais/sudeste2016/resumos/R53-0990-1.pdf. (Último acesso em: 04 nov. 2016)

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