A Narrativa Rizomática d\'O Evangelho Segundo Satanás de Luís Eustáquio Soares, em tradução

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ZAIDAN, Junia C. S. Mattos.A Narrativa Rizomática d ’O Evangelho Segundo Satanás, deLuís Eustáquio Soares, emtradução. In: Junia C. S. Mattos Zaidan, Luís Eustáquio Soares e Sérgio Fonseca Amaral: Marxismo e Modernismo emÉpoca de Literatura Pós-Autônoma. (no prelo) 2015

A Narrativa Rizomática d`O Evangelho Segundo Satanás, de Luís Eustáquio Soares, em tradução Junia Mattos Zaidan (UFES)

Neste trabalho, discutimos o processo de tradução para o inglês do romance O Evangelho Segundo Satanás, de Luís Eustáquio Soares (2010), como experiência de formação para tradutoras(es) do curso de Letras Inglês da UFES. Os conceitos de literariedade, de tradução (literária ou não) e, como é inevitável, de língua são tensionados diante dos impasses vivenciados pelas(os) tradutoras(es) frente às descontinuidades sintáticas, à nãolinearidade da prosa e à riqueza intertextual da obra, elementos que elencamos e cotejamos com as alternativas apresentadas pelas(os) tradutoras(es). Recorremos à taxonomia de técnicas e procedimentos em tradução de Barbosa (1990) para indicar os pontos de estranheza entre as línguas, que solicitam o acolhimento do provisório, do centrífugo, da opacidade dos sentidos – “tarefa” de todas nós, tradutoras, segundo Walter Benjamin. Se a imagem surreal dos cabelos da personagem Joana, que, ora lisos, ora crespos, crescem, descontroladamente, para fora e para dentro, consolida rupturas com concepções tradicionais de forma/conteúdo, espaço/tempo, a tradução da obra, de igual modo, convoca a constante reafirmação de rupturas com visões representacionistas da linguagem e da tradução literária, sublinhando a potência criativa e transgressora da tradução. O projeto tradutório está inserido no programa de extensão universitária Observatório de Tradução: arte, mídia e ensino (UFES).

1- Introdução Desde os anos 80 do século passado, a atenção cada vez maior à possibilidade de agência de tradutoras e intérpretes em suas investidas micropolíticas, (ANGELELLI, 2012) bem como ao papel das instituições na produção e naturalização de representações deflagrou o que ficou conhecido como a virada sociológica nos Estudos de Tradução. Se, ao longo desse tempo, a resistência e ativismo de tradutoras e intérpretes e a crítica à tradição tradutológica deram o tom que se desejava para orquestrar uma crítica social desse campo, mais recentemente, a intensificação do desenvolvimento tecnológico e da mobilidade geográfica têm solicitado atenção ao deslocamento dos textos e das pessoas,bem como aos seus consequentes

desdobramentos

para

a

teorização

sobre

a

tradução.Tradicionalmente, a despeito das viradas pragmática (anos 60) e cultural (anos 90) nos estudos da linguagem e sob a influência pós-estruturalista, a tradução sempre foi definida, praticada e, por muito tempo, teorizada como processo mediador entre-culturas, o que não raro envolveu sempre dois países, duas nações,

duas comunidades, bem como procedimentos tradutórios que ora se dedicavam a trazer o texto ao leitor do texto-alvo, ora a trazer o leitor do texto-alvo ao texto-fonte. Atenção às condições de produção do texto-fonte (original), ao contexto de recepção e circulação do texto-alvo, às características e expectativas do público receptor sempre nortearam e ainda norteiam o ofício das tradutoras. Contudo, a mobilidade geográfica e a circulação virtual dos textos pelas mídias eletrônicas reconfiguram e centrifugam cada vez mais a representação – ou o conjunto de representações – que a tradutora controi tanto sobre o texto, o eixo receptor, o processo tradutório quanto sobre si mesmo na contemporaneidade. Quem é o público leitor de um texto que traduzirei, se a circulação escapa aos processos comumente esperados ao final do processo de editoração? Qual contexto de recepção levo em conta se o texto traduzido vai ser lido em lugares que poderão apresentar radical diferença cultural, socioecnômica, histórica, política? Importa que eu me preocupe com o local em que será publicado? A versão online desse texto tem qual alcance? Mantém-se a importância da versão impressa? Como o suporte (quando previsto) altera o modo de produção e circulação do texto que traduzi(rei)? A partir de Angelleli (2012, p.1) afirmamos, assim, que embora a possível agência intra e inter-social e a construção identitária de tradutoras e intérpretes componham o pano de fundo dos Estudos de Tradução neste momento, deixaram de ser centrais, abrindo espaço para questões relativas à acessibilidade do texto traduzido e ao linguicismo (do inglês, “linguicism”, termo cunhado por Skutnabb-Kangas em 1980 para a discriminação linguística). Considerado um conjunto de “ideologias e estruturas utilizadas para legitimar, efetivar e reproduzir divisões assimétricas de poder e de recursos entre os grupos que são definidas com base na língua” (PHILLIPSON e SKUTNABB-KANGAS, 1986, p. 53, tradução nossa), o linguicismo se inscreve na contemporaneidade de diversas formas, seja pelo discurso do progresso atrelado ao inglês, por exemplo, seja, pela consequente estigmatização e desvalorização de outras línguas, consideradas “inaptas” para o processo de globalização. Embora muito da discussão sobre o linguicismo destaque os movimentos sociais, as lutas étnicas e raciais, nossa insistência é sempre sublinhar os efeitos materiais desse regime metadiscursivo naquilo que ele tem de vocação para obliterar a relação capital e trabalho e a luta de classes. A política de tradução (do que se traduz e para quais línguas, de como se traduz, quem traduz, o que conta

como “boa” tradução), a formação para a docência em língua adicional (estrangeira), o ensino de inglês como língua adicional, o mercado de trabalho para professores não nativos das línguas hegemônicas, sem o capital simbólico da prosódia angloamericana (ou de ter vivido em países anglófonos), entre outros, são temas que não cessam de gestar, no tecido social, a constante produção de mais valias e de violências simbólicas (ZAIDAN, 2013). Partindo da tradução do romance rizomático de Luís Eustáquio Soares, o argumento deste trabalho é, portanto, o de que a circulação dos textos traduzidos envolve leitoras(es) imprevistas, de perfis imprevistos, em contextos inesperados, através de suportes e modos de circulação que escapam ao controle da tradutora, das editoras e das instituições. Poder-se-ia ainda arriscar que essas leitoras compõem o que Canagarajah nomeia “comunidades de prática” (2007), grupos sociais que não se constituem em decorrência de suas afinidades e semelhanças, mas que são sempre provisórios, orientadas para o aqui-e-agora da interação (com o autor e/ou com o texto). Partindo desse argumento, podemos nos entregar à empreitada tradutória como modo de experimentação, o que descreveremos adiante.

Além disso, a

formação da tradutora pode levar em conta o hibridismo cultural da pósmodernidade – entendido não como processo de equalização de forças, mas de mistura e contato -

como mote para o fortalecimento de uma perspectiva

sociológica, que desbanca visões monolíticas de cultura quando se tomam decisões sobre o que/como traduzir. Com isso, cremos ser possível afirmar a possibilidade de ruptura com concepções fossilizadas de “contexto”, “equivalência”, “fidelidade” “original” para citar apenas alguns dos construtos que permeiam o campo dos Estudos de Tradução, através da tradução do romance O Evangelho Segundo Satanás de Luís Eustáquio Soares. Assim, indicamos nesta discussão: a- a escolha do texto como uma investida política; b- a diversidade de estratégias e procedimentos para a tradução do romance. c- a desobrigação com transparências e linearidades, pelo privilégio da opacidade e não linearidade; d- o constante diálogo com o autor

como possibilidade de negociaçãoem

situações de impasse na tradução; e- o processo de formação das tradutoras do curso de Letras Inglês da UFES.

2- “Praticando” o Evangelho Recebemos o convite para traduzir o Evangelho em 2008, ano de sua publicação em espanhol em Caracas, na Venezuela. Tendo lido parte do manuscrito em português, em 2007, já nos interessávamos pelo texto rizomático, cheio de camadas e dobras que nos instigam a fazer justamente o que parecia tão desafiador para uma tradutora acostumada à linearidade da prosa direta e às constrições da forma, norte para quem, como nós, concebíamos a tradução com certa crença, ainda que não mais confessa, na possibilidade de uma transparência de sentidos, bem como na transferência de sentidos afiançada por uma objetividade supostamente atingível. Ideais que caem por terra, felizmente, quando o fogo do inferno (que do Evangelho Segundo Satanás se alastrou) se nos sapeca o lombo, colocando-nos em movimento, em fuga, tão logo as solidificações de conceitos nos enclausuram em obediências epistêmicas e imobilizadoras. O desafio se agigantou quando nos demos conta de que a empreitada era grande demais sobretudo por se tratar de um texto literário. E tivemos que nos reorganizar para pensar a tradução fora da caixinha, pensar o texto fora do suposto entrelugar cultura A/cultura B, em que comumente situam o processo tradutório. Tivemos, sobretudo, que desconstruir a reificação do texto literário há tanto tempo impregnada em nós, acolhendo a máxima de Bordieu, que concebe a literatura como um campo e, portanto, como um espaço politizável. Se, inicialmente, junto das alunas do projeto de extensão em tradução, quando diante de impasses tradutórios, tivemos o alívio ao saber que era possível manipular, violar, subverter o texto, demo-nos conta ao longo do processo que tais procedimentos eram menos uma opção do que uma inevitabilidade, uma solicitação da obra em tradução. Um convite à desobediência. Assim, tanto nos interessa pontuar neste trabalho algumas experiências deflagradas pela leitura e traduçãodo texto e as saídas que vislumbramos ao traduzi-lo, como ressaltar a importância da afirmação dos textos que escolhemos.Uma breve contextualização do romance será apresentada a seguir. 2.1- Contextualização da obra Em entrevista ao blog Outros300, o autor, Luís Eustáquio Soares se refere ao romance como “desevangelho”. Segundo ele, ser “segundo Satanás” remete ao demos, aos povos e às vozes que de seu seio ressoam. Vozes polifônicas do

dissenso de um Evangelho do povo que, por ser a “arte como potência do falso”, seria capaz de destronar as naturalizações. É no incessante devir – movimento constante de tornar-se outro, que a personagem principal, os cabelos de Joana, desvirtuam-se, desalinham-se e não cessam de se apresentar como linhas de fuga de uma narrativa-rizoma, sendo ora lisos, ora crespos, ora para dentro, ora para fora, descontroladamente rompendo com a estrutura naturalizada da prosa direta, apresentando-se como estética fragmentária no estilo e na forma.

O romance

também produz rupturas com concepções tradicionais de forma/conteúdo, espaço/tempo, na medida em que agrega e desagrega personagens dotadas de elementos irreais e inverossímeis e, ao mesmo tempo, historicizáveis e verossímeis . Como afirma o autor, “O romance O Evangelho segundo Satanás é livro que tenta ou

atenta

encapetar as naturalizadas evangelizações literárias,

históricas,

biográficas, epistemológicas, políticas que pesam milenarmente nas costas de todos os artifícios desdivinizados.” 2.2- Organização do trabalho Como atividade do programa de extensão universitária “Observatório de Tradução: Arte, Mídia e Ensino”, a tradução do evangelho agregou diversas alunas do curso de Letras Inglês da UFES. Embora bastante engajada na empreitada, a equipe foi se reconfigurando desde o início da tradução, devido à saída de alguns e à entrada de outros. Ao fazer a tradução a muitas mãos, o objetivo foi proporcionar o refinamento da competência e habilidade tradutória, bem como ensejar a vivência dos conflitos relacionados à complexidade do fenômeno linguístico que a tradução literária exibe de modo mais flagrante, se comparada à tradução de textos referenciais. As estratégias para a organização do trabalho são descritas abaixo: a- As participantes foram selecionadas com base em seu interesse pela literatura e tradução. Em sua maioria oriundas das disciplinas Estudos de Tradução do quinto e sexto períodos do curso de Letras Inglês, as extensionistas tinham uma base teórico-prática sobre tradução.

A

heterogeneidade do grupo no que diz respeito à proficiência linguística foi, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade de enriquecimento através da troca, interação e trabalho em duplas e grupos pequenos;

b- Fizemos a leitura e discussão da obra e de textos teóricos em reuniões a duas das quais o autor compareceu para uma conversa com as tradutoras; c- Definiram-se alguns norteadores gerais para o trabalho de versão, tais como, convenções para grafar o discurso direto, tradução e/ou manutenção de nomes

próprios,

antecipação

de

problemas

tradutórios

relativos

à

intertextualidade, etc.; d- Os setenta e quatro capítulos do romance foram alocados para as cinco duplas, de modo intercalado, em rodízio,

a fim de que todos pudessem

traduzir trechos bem distantes na narrativa e que não se criasse um bloco com capítulos consecutivos traduzidos por uma mesma dupla. e- As duplas interagiam, traduziam e revisavam o trabalho antes de submeter ao grupo. f- Em uma rede social, uma página foi criada para possibilitar a interação da equipe e a postagem de perguntas, sugestões, textos teóricos, vídeos, além de proporcionar contato contínuo com o autor; g- Compôs-se um glossário visando à padronização de expressões repetidas ao longo do texto e dos neologismos; h- Através da colaboração entre os membros da equipe, as tradutoras se familiarizaram com o uso de tecnologia de armazenamento em nuvem e edição coletiva de texto; i- Os capítulos foram enviados às tradutoras sênior para a revisão final. 3- Modulações e Reescrita A taxonomia de técnicas e procedimentos em tradução de Barbosa (1990) tornou-se bastante difundida no Brasil desde sua publicação.

O recurso a este tipo de

sistematização na teorização sobre a tradução não se pretende generalizador nem tampouco fornecedor de “conclusões” sobre a atividade tradutória. Nota-se, contudo, que a tentativa de sistematizar e de detectar padrões de ocorrência no texto envolve a aluna em formação de modo bastante produtivo, solicitando sua atenção não só para os componentes formais (estruturas, léxico), mas também para as instâncias transfrásticas do discurso. Abaixo, descrevemos as classificações em questão: Tabela 1: Técnicas e Procedimentos de Tradução (Baseado em Barbosa, 1990)

Palavra-por-palavra Literal Transposição Modulação

É quando determinado segmento textual segue a mesma ordem sintática na língua de origem e na língua alvo. Mantém-se uma fidelidade semântica junto a uma adequação morfossintática às normas da língua alvo (língua de chegada). Consiste na mudança de categoria gramatical dos elementos que serão traduzidos Reproduz uma mensagem da língua de partida na língua alvo sob um ponto de vista diverso, ou seja, mantém o sentido em uma expressão semelhante na língua alvo: like the back of my hand = como a palma da minhamão Keyhole = buraco da fechadura

Equivalência

A equivalência consiste em substituir um segmento de texto da língua original por um outro segmento da língua da tradução que não o traduz literalmente, mas que lhe é funcionalmente equivalente.

Omissão e Explicitação

A omissão consiste em omitir elementos da língua original que, do ponto de vista da língua da tradução, são desnecessários ou excessivamente repetitivos. A explicitação é acrescentar tais elementos.

Compensação Reconstrução de Períodos Melhorias

Transferência 1 (Estrangeirismo)

Transferência 2 (Transliteração)

Aclimatação

Explicação

Decalque

Adaptação

compensação consiste em deslocar um recurso estilístico, ou seja, quando não é possível reproduzir no mesmo ponto, no texto traduzido, um recurso estilístico usando no texto original, a tradutora pode usar um outro, de efeito equivalente, em outro ponto do texto A reconstrução consiste em redividir ou reagrupar os períodos e orações do original ao passá-los para a língua da tradução. As melhorias consistem em não se repetirem na tradução os erros de fato ou outros tipos de erro cometidos na língua original O estrangeirismo consiste em transferir (transcrever ou copiar) para o texto traduzido vocábulos ou expressões da língua original que se refiram a um conceito, técnica ou objeto mencionado na língua original que seja desconhecido para os falantes da língua traduzida. A transliteração consiste em substituir uma convenção gráfica por outra (cf, Dubois et ai., 1978:601; Pei, 1966:282), como no caso de glasnost, uma transliteração do alfabeto cirílico para o romano, e que não deve ser confundida com a transcrição fonética (cf. Dubois et al, 1978; Pei, 1966). A aclimatação é o processo através do qual os empréstimos são adaptados à língua que os toma (cf. Pei, 1966:3-4). Este processo pode também ser denominado "decalque'' (cf. Pei, 1966:34; Crystal, 1980:51). Através desse processo, um radical estrangeiro se adapta à fonologia e à estrutura morfológica da língua que o importa (cf. Câmara Júnior, 1977:105). O fornecimento de informações ao leitor através de apostos, notas de rodapé, notas de final de capítulo ou glossário quando a transferência entre as línguas é impossível. O decalque consiste em traduzir literalmente sintagmas ou tipos frasais da LO no TLT, abandonando a confusão que se criou em torno do termo empregado por Vinay e Darbelnet (1977, q.v. 2.1.1, p. 27), já que, como foi visto, muitos autores interpretam o decalque como sendo uma aclimatação do empréstimo lingüístico. A adaptação é o limite extremo da tradução: aplica-se em casos onde a situação toda a que se refere a TLO não existe na realidade extralingüística dos falantes da LT. Esta

situação pode ser recriada por uma outra equivalente na realidade extralingüística da LT.

Para o propósito desta discussão, dividimos as categorias acima em dois grupos: No Grupo 1, alocamosas técnicas mais lineares e reprodutivas da língua de partida e, no Grupo 2, as técnicas mais interventoras e modulares, que envolvem certa produção textual no momento da tradução (Cf. Tabela 2). Embora esta divisão em dois grandes grupos possa ser, de certo modo, redutora, ela nos atende para analisar, de modo geral, como o trabalho com O Evangelho foi realizado, servindo de parâmetro para compreender como as tradutoras interagem com o texto, como (re)formulam suas concepções de língua e de tradução. Tabela 2: Linearidade e Modulação Grupo 1: Procedimentos mais lineares Grupo

2:

Procedimentos

mais

modulares Palavra por palavra, Literal, Transposição, Omissão e Explicitação,Reconstrução de períodos, Aclimatação, Estrangeirismo Explicação, Decalque

Modulação, Equivalência, Compensação, Adaptação

As categorias de tradução Transliteração e Melhoriasnão foram incluídas na divisão acima. Selecionamos quarenta (40) dos setenta e oito (78) capítulos da obra e, de cada um, escolhemos, aleatoriamente, dez (10) orações, a fim de analisá-las, de acordo com a divisão dos grupos 1 e 2 acima. Como há capítulos bem curtos no romance, quando não era possível retirar dez orações, compensávamos no capítulo seguinte, o que tornou possível a compilação de 400 orações para esta análise parcial da tradução do romance. Feita a análise, o resultado indica o uso bastante equilibrado de estratégias tradutórias dos dois grupos, a saber, 55% de estratégias do Grupo 1 e 45% de estratégias do grupo 2. Dentre as estratégias mais recorrentes do Grupo 1 estão, na ordem de incidência, Tradução Literal, Tradução Palavra por Palavra, Omissão, Explicitação, Aclimatação, Reconstrução de Períodos e Decalque. Não se detectou ocorrência de Estrangeirismo no recorte feito. Quanto ao Grupo 2, as

estratégias

modulares

ocorreram

com

a

seguinte

incidência:

Modulação,

Equivalência, Adaptação e Compensação. Apresentamos

abaixo

alguns

excertos

e

suas

traduções,

indicando

os

procedimentos técnicos utilizados. Tabela 3: Excertos das Traduções O Evangelho Segundo Satanás

The Gospel According to Satan

Técnicas/Procedimentos

Excerto 1: JC e Vésper, O mundo é real, e denso e escuro. (p.269)

JC and Vesper, The world is real, and dense, and dark.

Tradução palavra-por-palavra

Excerto 2: O leitor há de ficar chateado comigo, porque interrompo a trama (...) (p.51) Excerto 3: Acho que todo extremo acaba se repetindo em seu oposto. Assim, o suposto – e que é verdade, e eu mesmo dou minha cara a tapa – o suposto deslumbramento coma retórica, com a escrita intrincada e difícil, cheia de citações verborrágicas encontra sua outra cara metade na chamada escrita fácil, e pedagógica, feita conforme a ocasião (p. 51) Excerto 4: Depois de se espalharem por todo o estado, os cabelo de Joana já invadiam as fronteiras dos outros. Os americanos, com a CIA e o Pentágono, vinham averiguar de perto este estranho fenômeno cabeludo. (p.55)

The reader will be upset with me because I interrupt the plot (…)

Tradução literal

Having spread all over the state, Joana’s hair would also trespass the borders, drawing the attention of the Americans, who came with the CIA and the Pentagon representatives to closely examine the weird hairy phenomenon.

Reconstrução de períodos (uso de vírgula, estendendo o período) / Explicitação

Excerto 5: Quero confessar uma verdade que não pode ficar calada e que tem sido omitida pela farsa satânica das grandes redes de televisão do Ocidente, inclusive a Rede Globo (...) (p.217)

I want to confess a truth that must not be silenced and that has been omitted by the satanic farse of western TV networks, including Rede Globo, the biggest one in Brazil (…)

Transferência com explicação

Excerto 6: Nossa intenção é a de mudar os perfis que aparecem. Mudar não, multiplicá-los. Do jeito que está, vendo Malhação, Agora Que São Elas, Cubanacan, e qualquer outra novela, ou seriado, ou qualquer outro programa, praticamente, do jeito que está, a coisa é pornográfica. (p. 245)

Our purpose is to change the profiles that are broadcast. As a matter of fact, not change, but multiply them. The way things are with all the mainstream soap operas, and sitcoms and TV series is pornographic

Equivalência / Explicação

Excerto 7: Mas ai de vós, ó ricos! Porque tendes a vossa consolação neste outro mesmo mundo bestial, de muitos pobres e de poucos ricos, ai de vós porque terão de suportar um novo mundo em que todos serão ricos. (p. 236)

But woe unto you, rich, whose consolation lies in this bestial world with so many poor and few rich! Woe unto you, for you will have to face a new world where everyone will be rich.

Any extreme ends up repeating itself in its opposite. Thus, the supposed state of dazzle with rhetoric – which is true, and I eat my own hat -, with intricate difficult writing, filled with verbose quotes finds its other half in the so-called easy pedagogical writing, done to suit the occasion

Modulação / Transposição

Equivalência / Compensação (deslocamento da exclamação)

Excerto 8: Morando também nesses insuportáveis vazios, escrevo também vazios como o de dar/desagradar-me perante os meus ímpares, pra me ajudar no currículo(...) (p. 26)

Living in these unbearable empty spaces, I also write the emptinesses such as the one of giving in/displeasing myself beforemy peers, just to improve my CV(…)

Adaptação / Adaptação

O equilíbrio entre estatégias tradutórias mais lineares/reprodutivas (Grupo 1) e mais modulares/produtivas(Grupo 2) indica considerável liberdade das tradutoras para intervir no texto, sobretudo se atentarmos para o fato de que mesmo entre os procedimentos pertencentes ao Grupo 1 há bastante espaço para uma tradução interventora. Além disso, estratégias de tradução mais modulares e produtivas também parecem

ser uma “solicitação” da obra em si. É quase como se a

intraduzibilidade de grande parte do texto fosse um modo de afirmação da prosa poética de Soares. Sendo assim, o desfasamento da voz autoral constitui uma inevitabilidade que, em nossa experiência com a equipe de extensionistas, tem nos instigado a atentar para as formações discursivas que produzem prestígio e mais valia para um reduzido grupo de literatas que não apenas se beneficiariam concretamente dessa posição, como arbitrariam sobre o que os textos “significam”, o que “podem significar”, (in)validando, por consequência, as traduções desses textos. Essa discussão feita por Barthes e já há muito difundida no mundo das Letras tem sido constantemente retomada em nossos encontros no projeto de extensão. Os excertos onde se detectam elementos intertextuais(Cf. Excertos 4, 5, 6, 7 e 8) foram traduzidos levando em conta a possibilidade de difusão do texto traduzido entre leitoras do inglês como língua estrangeira, ou seja, não se tem em mente uma leitora nativa do inglês, oriunda de países como a Inglaterra ou os Estados Unidos, mas uma leitora de língua diversa, que se apropria do inglês para ter acesso à literatura produzido mundo afora. Para a aluna de Letras Inglês em formação, estabelecer um público-alvo multilíngue e multicultural não é pouca coisa. Trata-se de um campo discursivo historicamente eivado de referências, expectativas, desejos e políticas inscritos no angloamericanismo, ainda que a Linguística Aplicada Crítica (PENNYCOOK, 2001; MOITA-LOPES 2006) venha afirmando o periferismo tanto no ensino do inglês, quanto na pesquisa ao longo das duas últimas década. Ainda assim, problematizar, via tradução, a suposta naturalidade de se ter como

expectativa um eixo receptor norteamericano ou inglês deflagra posicionamentos político-pedagógicos importantes para uma crítica social desse campo. No tocante à questão linguística em si, em diversos capítulos do texto traduzido poder-se-á, sob esquadrinhamento, detectar um inglês “canhestro”, que não “sôa natural” para um falante nativo, mas que, na proposta deste projeto tradutório, constitui uma afirmação da sintaxe e do léxico fora do eixo angloamericano, que se desalinham do padrão, inscritos que estão na menoridade. Se a sujeição a toda forma de imposição linguística (um exemplo sendo, sem dúvida, o culto à língua, o cultivo da bela letra)

tem produzido no mundo falante de inglês valorações

preconceituosas de desempenho linguístico, segregação de profissionais que não exibem a prosódia do centro, políticas de publicação restritivas e excludentes, a afirmação de um inglês menor (ZAIDAN, 2013) via tradução estabelece uma política de descentramento que nos interessa. Como temos dito por aí, o inglês menor, ao invés de apontar para um quantitativo reduzido de usuários, indica um uso não amparado pelo poder das instituições, um uso que se detecta como potência de variação e não como poder das constantes; um uso que não opera como raiz de árvore, mas por rizoma, a desterritorializar-se em seu devir, escapando à palavra de ordem ratificadora de fundacionismos e universais. Como micropolítica linguística, propõem-se os seguintes princípios para uma pedagogia menor do inglês: privilegiar o híbrido, o repertório de línguas – incluída a língua mãe – e de estratégias; rejeitar toda sorte de prescrição metodológica; fomentar a consciência metalinguística, a noção de opacidade do texto e de gramática como epifenômeno, o pertencimento provisório a comunidades de prática, o uso da língua como ação política e a negociação interacional.(ZAIDAN, 2013, x)

O trabalho com o texto e o posicionamento entre línguas que a tradução convoca têm sido uma experiência constante de letramento crítico para nós nesse projeto. O fato de termos escolhido O Evangelho tem tanta relevância quanto as estratégias e procedimentos utilizados para vertê-lo para o inglês. De igual modo, as reflexões sobre “literariedade”, representação, essencialismo, semiose, política de tradução, tradução como política e sobre os temas presentes no romance promovem a tradução como práxis, abrindo a possibilidade de

fuga da clausura disciplinar.

Consequentemente, assumir a literatura e a tradução como artifícios coloca em xeque os argumentos que tabuízam a dimensão política do uso – qualquer uso – da linguagem. Agradeço às alunas de Letras Inglês da UFES, participantes da tradução deste romance, Wendell Máximo(coordenador da tradução), Guilherme Silva, Marina Latorre, Alécio Gaigher, Romero Alves,

Laís Galeano, Arthur Caliman, Wellington Bonança, Luiza Simonetti, Aisha Jureski, João Afonso Diniz, Raisa Garcia, Mariana Cordeiro, Ana Paula Spalenza e Luiz Perim Chiesa.

Referências: ANGELELLI, Claudia V. “The Sociological Turn in Translation and Interpreting Studies” (Org).Amsterdã, Jonh Benjamins Publishing Company, 2014. BARBOSA, Heloisa Gonçalves.“Procedimentos técnicos da tradução: uma nova proposta”. Campinas: Pontes, 1990. CANAGARAJAH, Suresh. “After Disinvention: Possibilities for Communication, Community and Competence”. In: SinfreeMakoni& Alastair Pennycook (org) Disinventing and Reconstituting Languages. UK: Multilingual Matters, pp.233-239, 2007. MOITA-LOPES, Luiz Paulo da. “Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar”. São Paulo: Parábola, 2006. PENNYCOOK, Alastair. “Critical Applied Linguistics: a critical introduction”. Londres: Routledge, 2001. Phillipson, Robert &Skutnabb-Kangas, Tove. “Linguicism Rules in Education”, Parts 1-3. Roskilde: Roskilde University Centre, Institute VI, 687p., 1986 SOARES, Luís Eustáquio. “O Evangelho Segundo Satanás”.2010. ZAIDAN, Junia C. S. Mattos (2013) “Por um Inglês Menor: a desterritorialização da grande língua”. Unicamp, 2013.

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