A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola

June 24, 2017 | Autor: Ricardo Sousa | Categoria: Africa, Angola, Estudios sobre Violencia y Conflicto, Mpla, Unita, Partilha de poder
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Título: A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola

Nome: Ricardo Real Pedrosa de Sousa – [email protected] Centro de Estudos Africanos – CEA – ISCTE – IUL – www.cea.iscte.pt Resumo

Este artigo analisa o uso de dimensões de partilha de poder nas negociações para a paz realizadas durante a guerra civil de Angola e conclui que uma série de dinâmicas ocorreram impedindo o seu sucesso propondo um factor adicional à actual literatura. Especificamente, a natureza monolítica de cada partido em competição fez com que fosse praticamente impossível para o MPLA e a UNITA cooperarem numa estrutura de estado partilhada. Isto é ilustrado através de uma revisão histórica das dimensões de partilha de poder utilizadas e das características de cada partido.

Palavras chave: Partilha de poder; Conflito; Angola; África; MPLA; UNITA

Referência: Sousa, Ricardo de (2009) "A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola", em Cristina Udelsmann Rodrigues e Ana Bérnard da Costa (ed.) “Pobreza e paz nos PALOP”, pp. 41-61, Lisboa: Sextante editora ISBN 978-989-676-007-6

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa

Introdução1

Acordos de partilha de poder tornaram-se um aspecto relevante em relações internacionais nas últimas décadas e uma componente frequente em soluções negociadas para conflitos. Das 38 guerras civis resolvidas através de um processo negocial entre 1945 e 1998 (um sub-conjunto do universo total, que também inclui acordos impostos pela parte vitoriosa num conflito), somente um acordo não teve qualquer forma de partilha de poder, o breve acordo de Gbadolite em 1989 para Angola (Hartzell e Hoddie, 2003).

A guerra civil em Angola começou em 1975 e acabou em 2002. Ao longo deste período uma série de alterações significativas ocorreram no conflito e vários processos de paz foram realizados. Este artigo analisa as cláusulas e dimensões de partilha de poder utilizadas nesses processos e identifica os principais factores que impediram que os processos condizussem à paz e democracia.

O artigo começa com uma apresentação do conceito de partilha de poder prosseguindo com uma descrição histórica do conflito e dos acordos realizados. Na secção seguinte é descrita a natureza de cada partido, MPLA e UNITA, ao longo do conflito. Segue-se a identificação, com base na literatura, dos principais factores limitativos das soluções de partilha de poder tentadas. Na secção seguinte um factor adicional é proposto que permite melhor explicar os sucessivos fracassos das soluções patilhadas negociadas para a paz: a natureza monolítica2 de cada partido.

Partilha de poder, resolução de conflitos e democracia

De uma forma geral os acordos de partilha de poder são arquitecturas políticas como o objectivo de garantir às partes em confronto um papel no governo do país e assim diminuir o que está em causa no concurso político, normalmente realizado através de um processo eleitoral. 1 Este artigo foi preparado como parte do projecto “Pobreza e Paz nos Paises Africanos de Língua Oficial

Portuguesa” financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT) do Ministério Português da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior – projecto: PTDC/AFR/64207/2006. Gostaria de agradecer a Inge Ruigrok e Gerhard Seibert por valiosos comentários a uma versão anterior deste artigo assim como a participantes em dois seminários onde o mesmo foi apresentado. Quaisquer erros e omissões são da responsabilidade do autor. 2 Monolítico, algo que é uno, massivo e inalterável (Dicionário Oxford, 1989). 2 / 22

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Gates e Strom (2007) defendem que os acordos de partilha de poder e a promoção da paz dependem da capacidade militar relativa de cada uma das partes em conflito assim como do papel atribuído aos potenciais “sabotadores”. Neste caso a paz poderá ser atingida com sucesso quando a capacidade de ambas as partes estiverem equiparadas e os custos da guerra forem relativamente elevados. Adicionalmente uma das principais ameaças à paz são os “sabotadores” - líderes e partidos que têm a capacidade e a motivação para recorrer à violência e subverter o processo de paz através do uso da força.

Hartzell e Hoddie (2003) categorizam a partilha de poder em quatro tipos dependendo se esta pretende dividir o poder em dimensões políticas, territoriais, militares ou económicas. A sua conclusão é que quando a resolução de uma guerra civil é feita por um processo negocial quanto maior o número de dimensões de partilha de poder, maiores as probabilidades de uma paz sustentável.

Binningsbo (2005) e Reynal-Querol (2002) identificam que o modelo de Lijphart (1977) de partilha de poder denominado de “consociational democracy” (democracia negociada) é, de uma forma geral, adequado a sociedades em pós-conflito.

No entanto várias limitações têm sido identificadas nos acordos de partilha de poder. Por um lado existe os clássicos custos de transação, selecção adversa e risco moral (Gates e Storm, 2007). Custos de transação - “transaction costs”- são os custos relacionados com a dificuldade em chegar a decisões com uma base de apoio alargada no contexto em que mais actores estão envolvidos no processo. Selecção adversa - “adverse selection” - são problemas que resultam de os políticos defenderem propostas para responder a interesses sectários tornando-se assim mais credíveis para alguns eleitores e simultaneamente possíveis sabotadores do processo o que torna a sua inclusão em acordos de partilha de poder mais provável em contraste com políticos que defendem propostas que respondem a interesses gerais inter-grupais. O risco moral - “moral hazard” - ocorre quando o poder é delegado nos políticos e devido à falta de responsabilização resultantes de coligações alargadas de poder os eleitores não são capazes de monitorizar as acções dos políticos, o que pode ser conducente aos políticos actuarem contrariamente aos interesses dos eleitores.

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A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa Por outro lado Spears (2000) identifica uma série de desafios à partilha de poder 3, especificamente que: esta interfere com a opção de poder total possibilitada em eleições competitivas; é normalmente integrada numa estratégia para aumentar o poder militar e político das partes; requer cooperação entre indivíduos e grupos que em outras circunstâncias seriam incompatíveis; um dos grupos necessita ceder algum do poder, ou o mais forte para equilibrar a balança de poder (concedendo mais poder do que o que seria adquirido através de uma eleição directa ou vitória militar) ou o mais fraco ser integrado no jogo político (por exemplo abandonando reivindicações de autonomia regional pela integração no governo); grupos temem pôr em causa o seu poder no futuro; existem diferentes graus de compromisso para com uma estratégia.

Tal como apresentado na secção seguinte, quase todos estes desafios estiveram presentes ao longo do conflito Angolano quando se tentaram atingir soluções de partilha de poder.

O conflito em Angola e as soluções de partilha de poder

O conflito em Angola decorreu durante um longo período de tempo onde as soluções de partilha de poder foram inexistentes ou fracassaram, tanto com formulações circunscritas como alargadas. Somente uma vitória militar em 2002, juntamente com negociações e a implementação de cláusulas de partilha de poder viriam a estabelecer a paz no país.

O processo de independência foi estabelecido pelos acordos de Alvor assinados a 15 de Janeiro de 1975. O acordo comprometia os três movimentos de libertação: Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA); Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) a formarem um governo de coligação de transição, uma Comissão de Defesa Nacional que deveria integrar tropas de cada movimento e o desenvolvimento de uma constituição ao que se seguiriam eleições em Outubro de 1975, com uma data para a independência estabelecida para 11 de Novembro de 1975.

No entanto, durante esse ano, o processo de transição falhou e no dia da independência formaliza-se

3 Adicionalmente, Jarstad (2006) identifica que em sociedades dilaceradas pela guerra podem existir

consequências a longo prazo dos acordos de partilha de poder, tanto para as possibilidade de se atingir a paz como a democracia. 4 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa simbolicamente como o início de uma longa guerra civil opondo os três movimentos (apesar de a FNLA vir a deixar de ser uma parte activa no conflito pouco tempo depois). O conflito opunha o MPLA apoiado principalmente pela União Soviética e Cuba e a UNITA apoiada principalmente pelos Estados Unidos da América (EUA) e a África do Sul.

O período que se iniciava, e particularmente a partir dos anos oitenta, iria ver o território dividido entre uma área controlada pelo MPLA, onde um sistema de partido único foi desenvolvido, e uma área controlada pela UNITA, caracterizada por um sistema de poder militar autocrático suportandose nas estruturas de poder tradicional para a gestão das populações nos seus territórios. De acordo com Rothchild e Hartzell (1995), o fim do envolvimento directo estrangeiro só viria a ocorrer quando, entre outras alterações, se atinge um impasse militar por volta de 1987 e 1988 e a África do Sul toma consciência que o equilíbrio de forças tinha sido alterado e os custos da guerra tinham-se tornado superiores aos seus possíveis benefícios.

Os acordos de Nova Iorque que se seguiram, assinados a 22 de Dezembro de 1988, marcam o final do estatuto de conflito internacional e de Guerra Fria para o conflito em Angola, na medida em que estes acordos previam a retirada das tropas Cubanas de Angola e a independência da Namibia. No entanto os acordos não previam o fim do conflito interno em Angola ou compromissos adicionais dos intervenientes estrangeiros no sentido de terminarem a sua assistência às partes no conflito (Hartzell e Hoddie, 2007).

Estes acordos culminaram um processo negocial demorado que Chester Crocker (Assistente do Secretário de Estado para Assuntos Africanos dos EUA) havia iniciado sete anos antes baseado num documento político inicialmente aprovado por Ronald Reagan em Março de 1981 que também previa como objectivo político assegurar a reconciliação entre a UNITA e o MPLA. O facto de este objectivo ter sido deixado de fora das negociações posteriores deve-se supostamente à falta de uma predisposição das partes Angolanas para tal, combinado com o facto de que o conflito interno em Angola era secundário ao problema da Namíbia e não impedia uma solução regional, tal como veio a acontecer.

Com os acordos fechou-se o primeiro sub-período da Guerra Fria do conflito Angolano que começou em 1975 e inaugurou-se um segundo sub-período caracterizado por não ter um estatuto internacionalizado que viria a terminar com o fim da Guerra Fria e o processo de paz de Bicesse de 1991. 5 / 22

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Assim, apesar de o conflito em Angola continuar, negociações entre o MPLA e a UNITA em 1989 permitiram a assinatura dos acordos de Gbadolite em Junho desse ano. Estes acordos não conseguiram materializar a paz no país, mas o processo que o envolveu foi importante na medida em que: identificou a reconciliação nacional em Angola como um objectivo; reconheceu o presidente do Zaire, Mobutu Sese Seko, como o mediador para o conflito; criou alguma pressão regional para se atingir um acordo; e, acima de tudo, deu à UNITA e ao seu líder, uma acrescida legitimidade e respeitabilidade (Rothchild e Hartzell, 1995).

Novamente um impasse militar viria a contextualizar o acordo das partes para um processo de paz. Em Maio de 1991, os acordos de Bicesse foram assinados no contexto do fim do período da Guerra Fria4. Estes acordos estipulavam um cessar fogo imediato, a criação de um exército nacional e eleições (James, 2004) de acordo com um sistema democrático semipresidencial.

Os acordos tinham significativas dimensões de partilha de poder militar, incluindo o estabelecimento de um exército nacional em paridade assim como algumas provisões de partilha de poder político através de comissões de verificação. O principal constrangimento relacionava-se com o poder executivo, que se encontrava definido numa estrutura presidencial em que o “perdedor-ficacom-nada” (Gates e Storm, 2007). Esta situação era agravada pela falta de um modelo de descentralização, considerando estruturas regionais e de governo local, que se previa vir a ser definido após a realização das eleições (Rothchild e Hartzell, 1995).

A implementação dos acordos em grande medida fracassaram apesar de o cessar-fogo ter sido atingido. Por um lado a desmobilização e aquartelamento das tropas foi atrasado, especialmente para as tropas da UNITA, ao mesmo tempo que existiam sinais que Jonas Savimbi poderia estar a contemplar um cenário de regresso ao conflito (Hartzell e Hoddie, 2007). Por outro lado a implementação do acordo foi suportada pela UNAVEM II (Missão de Verificação da ONU para Angola), uma missão considerada insuficiente em dimensão e capacidade para o desafio (Hodges, 2001).

No entanto e apesar destes sinais, as eleições nacionais foram realizadas a 29 e 30 de Setembro de 1992. A UNITA perdeu as eleições, tanto legislativas (34 por cento contra 54 por cento para o 4 Bicesse é uma pequena vila no concelho de Cascais em Portugal onde os acordos foram assinados. 6 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa MPLA) como presidenciais, com José Eduardo dos Santos conseguindo 49,7 por cento dos votos e Jonas Savimbi 40 por cento. Apesar de uma segunda volta ser necessária para as eleições presidenciais por nenhum candidato ter conseguido a maioria, esta nunca viria a ser realizada. As eleições foram consideradas “livres e justas” pela comunidade internacional mas a UNITA reivindicou fraude eleitoral e reiniciou o conflito (Wright, 2001). A UNITA é considerada por Stedman (1997) uma “sabotadora participante” (pois foi uma participante de livre vontade no processo) do processo de paz de 1991/1992 em Angola. O argumento é que um factor importante na decisão de reiniciar o conflito por parte de Jonas Savimbi e dos seus generais foi a convicção de que poderiam atingir uma vitória militar nessa altura. De facto, num breve espaço de tempo a UNITA foi capaz de retomar cerca de 70 por cento do território. No entanto, quando passado um ano, em Novembro de 1993, Jonas Savimbi regressa à mesa de negociações foi após “o rearmado exército Angolano ter conseguido anular os ganhos da UNITA, os Estados Unidos terem reconhecido diplomaticamente o governo [do MPLA] Angolano, as Nações Unidas terem imposto sanções [contra a UNITA] e 300.000 Angolanos terem morrido” (Stedman, 1997: 39 – tradução minha).

Um processo negocial com a intenção de alargar as dimensões de partilha de poder foi iniciado em 1993 culminando no relativamente bem sucedido Protocolo de Lusaka de 1994. Este protocolo aumentava as dimensões de partilha de poder dos Acordos de Bicesse incluindo partilha de poder: governativo com o Governo de Unidade Nacional e Reconciliação (GURN) (alegadamente também incluindo um acordo não escrito de uma posição vice-presidencial para Jonas Savimbi); das forças policiais; e territoriais relativas aos governos locais e municipalidades.

Nos anos seguintes de 1996 e 1997, a paz foi quase totalmente atingida com o apoio da comunidade internacional através da UNAVEM III, mas a implementação do protocolo por parte da UNITA foi insuficiente. Por exemplo, a constituição do GURN só ocorre em Abril de 1997, ao mesmo tempo que elementos dissidentes, na forma de UNITA-Renovada, assumem os lugares no parlamento (Hodges, 2008). Neste contexto, em Setembro de 1998, o governo suspende a coligação acusando Jonas Savimbi de continuadamente renegar os seus compromissos (em particular de manter sob seu controle as suas zonas de poder, especialmente Andulo e Bailundo) e de secretamente rearmar o seu exército (Vidal, 2006). Pouco tempo depois o Presidente José Eduardo dos Santos declara o processo de paz cancelado e que o único caminho para a paz é a guerra (Hodges, 2001).

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A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa O conflito só viria a terminar com a vitória do MPLA sobre a UNITA em 2002, após a morte em combate de Jonas Savimbi e da assinatura em Abril de 2002 do Memorando de Entendimento de Luena, que representava uma extensão ao Protocolo de Lusaka. O memorando incluía cláusulas para a integração de parte dos oficiais e soldados da UNITA no exército nacional e a desmobilização dos restantes. O sucesso deste acordo em atingir a paz confirma o estudo de Licklider (1995) que conclui que entre as guerras civis que terminaram, os acordos impostos por uma parte vitoriosa provaram-se mais duradouros que os acordos negociados (em Hartzell e Hoddie, 2003). No entanto importa salientar que nesta fase o processo negocial que decorreu assim como as dimensões de partilha de poder acordadas também foram importantes para se conseguir a paz.

A natureza dos partidos

Os principais intervenientes nacionais do processo descrito anteriormente são o partido do MPLA e da UNITA, pelo que as suas características definitivamente determinaram os eventos e opções realizadas em diferentes fases. Por esta razão, é importante analisar o percurso de ambos os partidos (a FNLA não é aqui analisada pois não constituía uma parte militar significantemente activa desde o início dos anos oitenta) e identificar as suas principais características.

MPLA

O MPLA foi formado nos anos cinquenta na zona costeira e áreas urbanas do centro norte, tendo o apoio principalmente dos Mbundus de Luanda e Malanje e dos intelectuais mestiços (Hodges, 2001). O papel de cada grupo étnico e do socialismo no partido é contestado desde a sua fundação, mas a força principal aglutinadora deste grupo nesta altura era a oposição ao governo colonial Português (Spikes, 1993).

A partir de 1975 o percurso do MPLA fica interligado continuamente também com as estruturas de estado. Por altura da independência o partido fragmentou-se em três grupos. Um dirigido pelo presidente Agostinho Neto e duas linhas contestatárias que viriam a perder o desafio: Daniel Chipenda com a “Revolta de Leste” e os irmãos Andrade com a “Revolta Activa” (Spikes, 1993). Pouco depois um novo desafio a Agostinho Neto viria do interior do partido com uma tentativa de golpe de estado por Nito Alves em 1977 (George, 2005). Novamente Agostinho Neto mantém a sua 8 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa liderança mas desta vez inicia um processo de rectificação que se estendeu para além do partido, Luanda ou desse ano (Hodges, 2001).

Como resultado da tentativa de golpe de estado, o MPLA iria: aumentar os poderes presidenciais, criar um sistema de segurança, purgar o partido de 110.000 membros para 31.000; estabelecer um criterioso sistema da selecção de quadros e membros do partido; e estabelecer o controlo políticomilitar do sistema judicial (Vidal, 2006). Integrado neste processo estava a transformação do MPLA num Partido dos Trabalhadores realizado em Dezembro de 1977, estabelecendo a visão de um sistema de partido único inspirado no modelo Marxista-Leninista (Ferreira, 2006).

De acordo com Hodges (2001) estas iniciativas criaram as condições para um sucessão incontestada de José Eduardo dos Santos a Agostinho Neto após a sua morte em 1979 (que ocorre quando se encontra a receber tratamento a uma doença em Moscovo) mas que acima de tudo o processo de rectificação deu início a uma cultura generalizada de medo, conformismo, falta de iniciativa e submissão na sociedade.

As características de autoritarismo, rectificação, interpenetração do estado pelas estruturas do partido e o controle político do sistema judicial continuam com a nova liderança após 1979. Paralelamente um processo é iniciado de concentração dos poderes no presidente retirando-os do partido, justificado pelas necessidades da guerra civil que decorria. No início dos anos oitenta, o gabinete do presidente é criado para tratar dos negócios com o estrangeiro, acima de tudo com vista a controlar as receitas do petróleo (Vidal, 2006). Em Dezembro de 1982, o Comité Central dá poderes especiais ao presidente que lhe permitem reorganizar o Politburo e as Forças Armadas para a Libertação de Angola (FAPLA) do MPLA (George, 2005). Em 1983 e 1984 é criado um tipo de governo paralelo marcial que responde directamente ao Comandante em Chefe das Forças Armadas, que era o presidente em exercício (Vidal, 2006).

Apesar de progressivamente concentrar os poderes em si, o presidente precisa de cuidadosamente negociar as mudanças políticas e consolidar o seu grupo de apoio. Em 1984, Crocker (1993) relacionava algumas das posições do MPLA nas negociações essencialmente a alguma vulnerabilidade de José Eduardo dos Santos. Também no início dos anos noventa, durante as negociações para os acordos de Bicesse, o MPLA realiza uma reorganização militar e do gabinete, muito provavelmente com vista a retirar de posições de influência potenciais críticos de uma aproximação com a UNITA (Hartzell e Hoddie, 2007). É referenciado que no início de Setembro de 9 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa 1991, nas vésperas das eleições, José Eduardos dos Santos “exprimia em privado um interesse [num acordo de partilha de poder com a UNITA] mas que não se poderia comprometer com tal acordo publicamente” (Stedman, 1997: 38 – tradução minha).

Simultaneamente, durante os anos oitenta, um novo e seleccionado grupo de jovens políticos e técnicos são promovidos pela hierarquia do sistema ficando a dever a sua ascensão ao poder essencialmente ao presidente (tal como aconteceu nas FAPLA e no partido) (Vidal, 2006). Adicionalemnte a década e meia de inconsistentes planos económicos, onde reformas foram seguidas por contra-reformas (Hodges, 2001), assim como a incapacidade de conseguir um acordo com o Banco Mundial e com o Fundo Monetário Internacional (FMI) podem igualmente ser explicadas pela resistência do sistema estabelecido a mudanças no regime neo-patrimonialista5 e às necessidades do presidente de acomodar as exigências das suas bases de poder.

No contexto do fim da Guerra Fria, na segunda metade dos anos oitenta e início dos anos noventa, ocorrem alterações significativas na estrutura e funcionamento do estado. O sistema de partido único é eliminado e introduzido o sistema multipartidário, e algumas leis chave de um sistema democrático são aprovadas incluindo reformas económicas para parcialmente abrir o sistema. O próprio partido do MPLA é revitalizado na preparação das eleições de 1992 com a reorganização da sua estrutura, expansão e distribuição de benefícios, recuperação política das autoridades tradicionais e um incremento no número de membros de 65,362 em 1990 para 544,639 no final de 1992 (Vidal, 2006).

Apesar destas transformações o regime manteve, na sua essência, o poder centralizado no presidente (por exemplo, não se realizou a descentralização) suportado por dois pilares: o partido do MPLA, que constituía um instrumento extraordinário ao serviço do presidente, e o exército, militarmente eficiente e políticamente leal (Chabal, 2006). 5 Existe algum entendimento de que neo-patrimonialismo compreende duas formas de dominação, uma

patrimonial e outra burocrática (Erdmann e Engel, 2003 em Nielsen, 2007). Com o patrimonialismo todas as relações de poder são personalizadas sem distinção entre a esfera pública e privada. Enquanto que no neo-patrimonialismo existe alguma forma de divisão entre ambas as esferas e assim algumas referências a uma racionalidade legal burocrática pode ser realizada (Nielsen, 2007). Adicionalmente, um estado neopatrimonial é um regime híbrido, onde as burocracias coexitem conjuntamente com “autoridades políticas [que]...se baseiam em concederem favores políticos .. que podem ir desde o nível da vila até aos mais altos níveis do estado central” (van de Walle 2001, 51, em Cromwell e Chintedza (2005)). 10 / 22

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Os resultados eleitorais de 1992 deram a José Eduardo dos Santos e a Angola prestígio internacional, que teve o seu marco histórico com o reconhecimento do governo do MPLA em 1993 pelos EUA. Ao mesmo tempo a vitória eleitoral diminuiu o risco de um desafio interno à liderança do MPLA (Hartzell e Hoddie, 2007) e assim certamente permitiu uma maior flexibilidade no período negocial que precedeu o protocolo de Lusaka onde é previsto o governo de coligação – GURN.

Na segunda metade dos anos noventa existe um intensificação da estratégia de co-optação do MPLA. Esta é não só realizada ao nível da sociedade civil como também de partidos da oposição, num fenómeno caracterizado como as “Renovadas”. O mais simbólico foi o caso da UNITA onde se verifica uma desintegração da sua liderança e a criação da UNITA-Renovada.

Resumindo, o MPLA é um partido marcado pelo processo de rectificação do final dos anos setenta. Esta rectificação aconteceu em paralelo com um processo de partidarização do estado o que reforçou o seu poder. Mas o centro de poder rapidamente deixou de ser o partido para passar a ser o presidente. Até que ponto este sistema neo-patrimonial penetrava na sociedade dependia da situação económica providenciada pelas receitas do petróleo e das necessidades de se manter. Apesar de forçado a formalmente alterar o sistema devido à guerra, ao colapso económico e fim da Guerra Fria e a aceitar um processo eleitoral, as principais estruturas operacionais do regime (nomeadamente a relação do partido e estado, exército ou funcionamento do executivo) nunca foram desmanteladas (Messiant, 2006). Isto deve-se sobretudo ao facto de o MPLA ter ganho as eleições e logo as mudanças ou não serem implementadas ou serem-no de forma limitada. Este organismo, com raízes anteriores à independência, cuidadosamente seleccionou a nova geração de líderes, co-optando oponentes, e tem sido dirigido pelo mesmo presidente por mais de duas décadas. Existe pouca predisposição para efectivamente libertar poder para o outro partido no conflito ou estender as receitas do petróleo a novos potenciais rivais. Esta tendência reforça-se após 1992-1993, quando o regime foi reconhecido internacionalmente e a UNITA começou a ser considerada pela comunidade internacional como a sabotadora do processo de paz em Angola.

UNITA

A UNITA foi fundada nos anos sessenta por Jonas Savimbi no Sul de Angola e é principalmente apoiada pelos Ovimbundu do planalto central. Durante a luta pela independência, a UNITA 11 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa colaborou com os Portugueses providenciando informação. A sua organização era essencialmente baseada na estrutura da igreja protestante e líderes tradicionais populares.

Após a vitória militar do MPLA em 1975, a UNITA ficou debilitada. Por um lado não conseguiu atingir o seu objectivo estratégico de controlar a linha de caminho de ferro de Benguela, o que poderia ter garantido o seu reconhecimento pelo presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda. Por outro lado perdeu temporariamente uma parte significativa do apoio da África do Sul. No início de 1976 adoptou a estratégia de guerra de guerrilha, reagrupando na selva para somente mais tarde nessa década estabelecer o seu quartel general na Jambo, na região do Moxico, no Sudeste de Angola. Durante os anos oitenta, Jonas Savimbi consegue desenvolver a UNITA para um estatuto de “quaseestado”, com capacidade de exercer o monopólio da força nas suas zonas de influência. Uma economia de diamantes é desenvolvida e estabelecido um controle centralizado do território com uma estrutura governativa que incluía um presidente, governo e serviços públicos. O sistema de autoridade era institucionalizado de acordo com uma lógica patrimonial (ver nota anterior), de acordo com a qual recursos económicos e posições de poder são distribuídos de acordo com relações clientelistas. O sistema era estabilizado através do uso brutal da força, aplicado especificamente com o propósito de eliminar quem desafiasse a liderança de Jonas Savimbi (Bakonyi e Stuvoy, 2005).

No final dos anos oitenta a UNITA supostamente governa uma região na Jamba com uma população entre 8.000 e 10.000 pessoas, 80.000 a 100.000 pessoas nas regiões limítrofes e possui cerca de 30.000 tropas em 1984 (George, 2005).

Os anos noventa são marcados pela tentativa da UNITA se transformar de uma força de guerrilha em um partido político com responsabilidades legislativas e governativas, processo que provocou bastante instabilidade dentro do partido. O primeiro sinal significativo foi a deserção de um alto membro do partido antes das eleições com acusações de planos de assassinato a serem atribuídos a Jonas Savimbi (Stuvoy, 2002).

A incapacidade de se transformar num partido político e a derrota eleitoral levou a que uma série de desafios à liderança de Jonas Savimbi surgissem. A primeira e mais significativa facção deu-se com a UNITA-Renovada que assumiu os lugares no parlamento e GURN em 1997. No ano seguinte, 1998, uma nova facção da UNITA liderada por Chivukuyuku surge, mas não consegue recrutar 12 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa membros influentes. Em 2001 podem-se identificar cinco facções, no entanto a facção militarista de Jonas Savimbi continuou a ser dominante (Stuvoy, 2002).

A estrutura da UNITA não se podia adaptar e a desintegração da autoridade na segunda metade dos anos noventa conduziu a uma situação em que em 1998 as estruturas administrativas da UNITA haviam praticamente desaparecido (Bakonyi e Stuvoy, 2005) e com elas também o sistema patrimonial associado. Adicionalmente, a atitude militar agressiva do MPLA após 1998 conduziu a derrotas recorrentes da UNITA.

A paz só é atingida após a morte em combate do líder da UNITA, Jonas Savimbi. A sua liderança foi capaz de criar um grupo de rebeldes e partido com uma dimensão capaz de ser uma ameaça efectiva ao governo do MPLA adquirindo igualmente um estatuto internacional nos anos oitenta6.

O contexto da Guerra Fria foi conducente ao desenvolvimento de um grupo rebelde sem considerações sobre se as suas estruturas organizativas seriam propícias a modelos governativos de partilha de poder, mas antes com preocupações relativamente à sua capacidade de progressivamente desafiar o estado de orientação socialista. O sistema organizacional autocrático e monolítico foi mantido e incapaz de se adaptar a uma cultura pós-eleitoral começou a desintegrar-se sobre a pressão política, militar e económica.

Adicionalmente, o partido da UNITA mostrou poucos sinais de ser capaz de acomodar dissidências internas em 1992 e da mesma forma parece pouco provável que existissem possibilidades de se integrar numa estrutura com vozes da oposição. Por exemplo, a partir do final dos anos 1990, era provavelmente mais lucrativo para a liderança da UNITA adquirir uma posição no sistema neopatrimonial do MPLA e negociar o acesso aos recursos que controlava do que continuar a lutar. Alguns dos líderes da UNITA tomaram esta opção ao tentarem estabelecer-se como facções dissidentes. No entanto a facção militarista de Jonas Savimbi não tomou esta opção. Eventualmente

6 Jonas Savimbi viaja pela primeira vez aos EUA em 1981 e nesse ano regressa para se encontrar com

membros da administração de Ronald Reagan (Wright, 2001). Em 1986 Jonas Savimbi é oficialmente recebido em Washington pelo presidente Ronald Reagan e encontra-se com os Secretários da Defesa e do Estado e em 1988 encontra-se com o candidato presidencial (e vice-presidente) George Bush (James, 2004). Em 1991 Jonas Savimbi iria regressar aos EUA e encontrar-se com o Presidente George Bush (Wright, 2001). 13 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa esta facção que continuou a desafiar as eleições pode ser considerada um caso de “risco moral”, tratando-se de uma representação ilegitima dos seus constituintes – pois por esta altura o valor da paz havia aumentado significativamente.

Limitações dos modelos de partilha de poder em Angola

Vários factores podem ser identificados para o fracasso em se assinarem ou implementarem acordos de partilha de poder conducentes à paz na história do conflito em Angola. Estes factores podem ser agrupados em termos de: pressões externas desadequadas, falta de uma solução de partilha de poder estrutural, características das lideranças e suas ambições, falta de confiança após uma guerra prolongada e o papel dos recursos na determinação dos incentivos para as partes. A comunidade internacional7 influenciou o conflito de diferentes formas. Indirectamente mas fundamentalmente o colapso político e económico da União Soviética foi determinante aos ajustamentos protagonizados pelo MPLA. Superficialmente, quando actores regionais, tais como Mobutu Sese Seko, pressionaram a UNITA e o MPLA a assinarem os acordos de Gbadolite que não reflectiam as verdadeiras intenções dos partidos (Hartzell e Hoddie, 2007) mas tornaram-nos parte activa num processo negocial. Na incapacidade em significativamente influenciar o conflito quando: existiu uma falta de consenso internacional quando a UNITA reinicia a guerra em 1992, não se enviando sinais claros para os partidos de como eram inaceitáveis algumas soluções para os desafios do país (Spears, 2000); e ocorreu uma falta de efectiva capacidade para desempenhar o papel que lhe foi atribuído, onde “as incapacidades das terceiras partes, principalmente as Nações Unidas, em providenciar os recursos necessários à implementação dos acordos de paz de 1991 os condenaram ao fracasso na presença de generalizada batota e falta de cumprimento do estabelecido” (Hampson, 1996: 88 – tradução minha).

Adicionalmente a utilização de mais dimensões de partilha de poder foi identificado relevante como forma de aumentar a probabilidade de uma bem sucedida negociação para a paz (Hartzell e Hoddie,

7 Um comentário é necessário neste factor. Tal como Chester Crocker (1993) salienta que os poderes

regionais (como os partidos no poder em Cuba ou África do Sul) não ficam à espera de instruções das superpotências para executarem as suas políticas, da mesma forma poderes nacionais, como os partidos em Angola, têm uma vontade própria e actuam tanto como resultado de constrangimentos e pressões externas impostas como em resposta a necessidades próprias, requisitos orgânicos e pressões locais. 14 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa 2007). Stedman (1997) conclui que foi a falta de mais dimensões de partilha de poder nos acordos de Bicesse de 1991 a principal razão para a reiniciação do conflito, apesar de este autor descrever momentos antes e depois das eleições onde propostas para uma partilha de poder terem sido apresentadas sem sucesso tanto ao MPLA como à UNITA por um conjunto de terceiras partes, nomeadamente os Estados Unidos e a África do Sul.

De acordo com o argumento de Jarstad (2006), o factor anterior relaciona-se com o seguinte, o da liderança. Esse argumento sugere que as dimensões de partilha de poder consideradas nos acordos de Lusaka de 1994 foram boas na medida em que foram capazes de atrair algumas fracções da UNITA, isolando a facção militarista de Jonas Savimbi, o que eventualmente contribuiu para a derrota deste grupo e a morte do seu líder em combate. Quando tal aconteceu, a implementação do acordo pode continuar sem que novas facções militares surgissem, o que fez das cláusulas de partilha de poder dos acordos de Lusaka uma positiva e importante contribuição para a paz. No entanto este argumento é baseado no pressuposto que a facção de Savimbi nunca iria aceitar a paz. No entanto, mesmo se a estratégia de persuasão seguida somente tivesse aberto o apetite de poder de Jonas Savimbi em 1992, tal como Stedman (2007) argumenta, o comportamento de Jonas Savimbi pode ser considerado a de um “sabotador ganancioso” onde uma dose significativa de coerção em conjunto com altos custos em caso de desobediência, poderiam ter sido melhores alternativas para atingir a paz. O aspecto da liderança surge assim proeminente em que, de acordo com Stedman (2007), o embaixador Edmund De Jarnette identifica a personalidade de Jonas Savimbi e as suas ambições hegemónicas como o problema ou para Anstee (1996, 147) a incompatibilidade da personalidade dos dois líderes.

A desconfiança e o resultado de décadas de guerra conduziu a uma relação de profundo antagonismo entre os grupos. Messiant (2006) identifica a falta de confiança entre as partes como limitativas da implementação dos acordos de Lusaka de 1994. Neste caso a UNITA não desmilitarizava até conseguir ter mais poder e o MPLA estava determinado a limitar a eficácia do GURN. Nestas situações é sempre necessário equacionar que após mais de duas décadas de conflito, os apoiantes tanto do MPLA como da UNITA, assim como a população em geral, não conheciam outro sistema de vida que não fosse o conflito (com breves períodos de relativa paz e diferentes intensidades de conflito dependendo da localização). Adicionalmente, preocupações relativamente aos frágeis processos de paz conduziram a seis sucessivas amnistias entre 1981 e o final dos anos noventa, que levou ao desenvolvimento de um ambiente de impunidade na sociedade conducente a violações de direitos humanos, o que aumentou ainda mais a falta de confiança entre 15 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa os grupos (Hodges, 2001).

Finalmente o papel que os recursos naturais tiveram na definição dos incentivos das partes é quase unanimemente identificado na literatura como um factor que contribuiu para a continuação do conflito8. Apesar de este factor não ser capaz de totalmente explicar o conflito tem um papel singular no seu financiamento, enquanto durante a Guerra Fria o apoio também foi assegurado externamente. A existência destas fontes de financiamento gerou a falta de pressão para conceder mais e procurar e atingir soluções conjuntas.

Um factor adicional para o fracasso – a natureza monolítica dos partidos

No entanto estes factores não conseguem responder totalmente às questões subjacentes relativas à falta de predisposição das partes em entrar em soluções de partilha de poder, que pudessem conduzir tanto à paz como eventualmente à democracia. Um factor adicional contribui para perceber melhor os fracassos dos processos de paz. Este factor é a natureza das duas partes no conflito. As suas semelhanças no que respeita às suas estruturas monolíticas determinam a pouca flexibilidade orgânica para fundir ou partilhar estruturas com outro partido semelhante9.

Esta caracterísctica está presente durante todo o conflito. Nas negociações de 1989 uma das principais concretizações foi o reconhecimento pelo MPLA da UNITA como um partido com quem negociar, apesar de nessa altura ainda pretender manter o sistema de partido-único. Nas eleições de 1992, existiam dois sistemas mono-partidários em competição (Mabeko-Tali's, 2006): um o partidoestado do MPLA e o outro um movimento rebelde dominado pela sua estrutura militar. Nas soluções alargadas de partilha de poder de 1994, que provaram ser insuficientes para convencer a liderança da UNITA a integrar o sistema do estado.

8 Ver por exemplo Billon (2001a e 2001b) sobre o papel do petróleo e diamantes no conflito e em Angola e

Ferreira (2006) para uma perspectiva sobre as condições económicas desde 1961 até 2002. Para uma descrição das políticas dos EUA ver Wright (2001) e George (2005) para o envolvimento Cubano. 9 Naturalmente, internamente, ambos os partidos tinham os seus diferentes grupos, mas aqui pretende-se

realçar que de entre essa diversidade as linhas de estruturação de cada um dos partidos era caracterízada por uma natureza rígida, homogénea e impenetrável, em especial nas suas relações com outros partidos. 16 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa Em certa medida a solução de 1992 em que o “vencedor-fica-com-tudo” estava em sintonia com as lógicas internas de ambos os monólitos: MPLA e UNITA. Existiam poucas perspectivas de sucesso, mesmo se o plano tivesse sido adequadamente implementado, devido às suas lógicas internas – a prevista falta de aceitação de cada movimento em ser integrado na estrutura do concorrente. Mesmo mais tarde quando o GURN é estabelecido e os lugares no parlamento da UNITA ocupados, por um lado aos membros do governo da UNITA não lhes era permitido tomar decisões independentes e por outro lado a maioria parlamentar do MPLA bloqueava qualquer possibilidade de acção alternativa. Neste curto período de partilha de poder, naturalmente, a cultura vigente não era uma de atingir consensos mas mais importante a visão do que o futuro deveria ser também não assim o previa.

Tal como sugerido por Messiant (2006), a natureza das mudanças constitucionais de 1991 e 1992, que parecem significativas, foram mais de forma que de conteúdo pois o modelo neo-patrimonial foi mantido intacto se bem que a funcionar numa arquitectura ligeiramente distinta. O facto de a solução prevista para Bicesse em Maio de 1991 não prever suficientes dimensões de partilha de poder é também o resultado da incapacidade de mover o MPLA para um posição mais flexível e permeável, que de facto alterasse a sua estrutura de poder. Tal como viria mais tarde a ser confirmado, a abertura do sistema político foi realizada somente na medida em que não colocasse em causa o controlo do presidente do partido no poder e permitisse voltar a controlar o sistema caso a situação assim o requeresse, tal como veio a acontecer quando o conflito se intensificou em 1992 e 1998. Desta forma, é também a incapacidade do MPLA em aceitar essas exigências que esta em causa no contexto de um desafiador violento que estava, de acordo com a maioria dos analistas, determinado a atingir o poder total ou fazer o seu preço pela paz muito elevado.

Uma conclusão é que o processo de mudança que foi iniciado a meio da década de oitenta deveria ter incluído dimensões não só de reforma constitucional e económica mas também reformas com vista a implementar práticas democráticas em ambos os partidos. É aqui considerado que a natureza monolítica do MPLA produziu somente ligeiras, limitadas, e por vezes só superficiais mudanças no “de facto” sistema do partido-estado e que devido à natureza monolítica da UNITA esta se desintegrou quando confrontada com a necessidade de se integrar nesse sistema como parte derrotada nas eleições.

Conclusão

Em Angola, somente quando estavam decorridos 27 anos desde a independência, 14 anos desde os 17 / 22

A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa acordos de Nova Iorque, mais de 50.000 mortos, dezenas de milhares de mutilados por minas antipessoais e a migração forçada de aproximadamente 4,1 milhões de pessoas, foi a paz assegurada.

Em retrospectiva, um pode identificar que no caso de Angola ambos os partidos estavam ligados ao poder. A UNITA estava ligada ao planalto central e aos Ovimbundu eventualmente na mesma medida que o MPLA estava ligado a Luanda. A falta de abertura do MPLA parece também directamente ligada aos sentimentos de insegurança em relação à UNITA e, em particular, a Jonas Savimbi. A ligação de um sistema neo-patrimonial e da sua liderança ao sistema do outro partido concorrente foi eventualmente uma “bênção” para a paz após 2002 com a integração da UNITA na estrutura do MPLA e a “maldição” para a democracia, com o virtual desaparecimento da UNITA em eleições subsequentes e como uma força da oposição. Esses sistemas compreendiam ainda a ligação de cada partido às suas fontes de financiamento, onde se destaca o papel do petróleo e diamantes.

Ao procurar uma solução para o conflito, as dimensões de partilha de poder foram progressivamente aumentadas. Começando na sua total ausência em 1989, para as principalmente militares mas também políticas de 1991 e as acordadas em 1994 estendidas ao plano executivo. Vários factores referenciados na literatura e identificados neste artigo ou impossibilitaram que uma partilha de poder fosse atingida mais cedo e de forma mais alargada ou impossibilitaram o seu sucesso durante a implementação.

Este artigo sugere um factor adicional, não referenciado na literatura sobre partilha de poder em Angola, que é a natureza monolítica dos partidos. Este factor explica em grande medida a incapacidade dos partidos em se visualizarem ou executarem partilhas de poder entre si. Isto é demonstrado tanto pela análise da história do conflito e das dimensões de partilha de poder acordadas em diferentes fases como pela análise da natureza de ambas as organizações – MPLA e UNITA.

Um dos partidos teria inevitavelmente de ser integrado no outro de forma a sobreviver. De facto, foi a natureza neo-patrimonial dos partidos que permitiu ao MPLA acomodar as facções da UNITA na sua rede neo-patrimonial e finalmente atingir em 2002 a paz através de uma vitória sobre a restante, única e isolada facção militarista liderada por Jonas Savimbi. Nesta altura foram necessárias igualmente negociações e a implementação das cláusulas de partilha de poder de 1994 para a paz ser efectivamente atingida.

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A natureza dos partidos nas perspectivas de partilha de poder nos processos de paz em Angola Ricardo Sousa É proposto que entre as várias iniciativas de engenharia social em situações de pós-conflito, uma que poderia contribuir positivamente para resultados teria sido a reforma das estruturas dos partidos para alterar as suas características monolíticas.

A análise apresenta os partidos praticamente numa perspectiva unidimensional, sem explorar diversos outros eixos de análise. Futura investigação poderá incorporar na análise dimensões de etnicidade, ocupação, classe, religião, cultura, língua, região, urbano/rural entre outras e identificar até que ponto influenciam os resultados dos processos ocorridos.

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