A natureza e o método usado na qualificação do Homicídio - ARTº132 CP

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A natureza e o método usado na qualificação do Homicídio ARTº132 CP

Unidade curricular: Direito Penal

Tânia Santos | Mestrado em Ciências Jurídico Criminais | Coimbra, 2015

“Todos temos por onde sermos desprezíveis, cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer” Bernardo Soares, Livro do Desassossego

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Índice: 1. Introdução………………………………………………………………………………….p. 3 2. Parte Geral e Parte Especial do Código Penal…………………………… p. 4 3. O crime de Homicídio: 3.1 A Vida como bem jurídico protegido………………………………..p. 5 a 6 3.2 Tipos de Homicídio…………………………………………………………..p. 6 a 9 4. O crime de homicídio qualificado 4.1 Breve contextualização………………………………………………………p. 9 a 11 5. Método da qualificação 5.1 O critério adotado no art.º 131/1 CP…………………………………….p. 11 a 13 5.2 Técnica dos exemplos-padrão do art.º131/2 CP……………………p. 13 a 16 5.3 Art.º 132 e o fundamento da agravação. Tipo de Culpa? Tipo de ilícito?........................................................................................p. 16 a 20 6. Efeito dos exemplos-padrão 6.1 Homicídio simples atípico…………………………………………………p. 21 a 23 6.2 Homicídio qualificado atípico……………………………………………p. 24 a 28 7. Análise

de

Jurisprudência

sobre

a

qualificação

do

homicídio…………………………………………………………………………………p. 28 a 34 8. Conclusão………………………………………………………………………………..p. 35 a 37 9. Bibliografia

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1. Introdução O presente estudo tem como objetivo analisar os contornos muito precisos da qualificação do homicídio. De valor incalculável, a vida humana é o bem jurídico mais fortemente tutelado pelo Código Penal, que abre a sua Parte Especial com a tutela dos crimes contra a vida. Segue-se a análise, ainda que breve, de vários tipos de homicídio, com atenção dedicada ao homicídio qualificado, posto isto procede-se a uma curta contextualização do seu surgimento tal e qual como se apresenta nos dias de hoje. De seguida, entra-se na essência da qualificação do homicídio, surgindo várias questões às quais pretendo dar uma resposta, baseada sobretudo na nossa doutrina mas também na jurisprudência. Erguem-se questões que contendem, designadamente, com qual é o método utilizado na qualificação? Que critério é seguido? O que significam os exemplospadrão? Reporta-se, também, várias opiniões à volta da discutida questão de saber se o fundamento da agravação do art.º132CP se dirige ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa, e se os exemplos-padrão são, por sua vez, elementos do tipo de ilícito, do tipo de culpa ou uns do tipo de culpa e outros do tipo de ilícito ou ainda se são apenas circunstâncias determinantes da medida da pena. Para tal, são referidos vários autores, cuja opinião as mais das vezes é controversa e discutida no seio da doutrina. Do estudo dos conceitos e da interpretação inerente ao art.º132CP surge ainda a questão de saber se se demonstra viável a existência de casos em que é possível descortinar aquilo a que se pode denominar de homicídio simples atípico e de homicídio qualificado atípico e qual a correlação (se é que existe) que se pode retirar destes efeitos e de princípios como o da legalidade e da proibição da analogia.

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2. Parte Geral e parte Especial do Código Penal

Há relevância na disposição sistemática do nosso Código Penal. Este encontra-se dividido em duas partes: a parte geral (do art.º1 ao art.º130) e a parte especial (a partir d art.º131). Na parte geral estão os princípios que dão harmonia ao sistema penal e que se aplicam à parte especial. Quanto à parte especial, esta encontra-se dividida em cinco títulos correspondentes aos diferentes bens jurídicos a proteger pela lei penal. Todavia, a parte especial está ainda plasmada em legislação extravagante. De índole dinâmica, a parte especial representa a evolução da sociedade e os objetivos prosseguidos pela política criminal.1 O nosso Código Penal reflete também uma ordenação de acordo com a importância dos bens jurídicos a proteger, note-se que não é por acaso que é o bem jurídico da Vida Humana que abre a parte especial do código. Deste modo, segundo Elisabete Monteiro “esta diferente valoração dos vários bens jurídicos protegidos pelo nosso sistema penal indicia a natureza fragmentária do direito penal, o que implica uma diferente valoração dos vários bens jurídicos fundamentais”2 Aqui será dada atenção ao bem jurídico considerado o mais importante de todos e, na minha opinião, aquele que fundamenta a existência de qualquer outro, pois é certo que muitos dos outros bens jurídicos protegidos seriam reduzidos à sua inexistência sem a Vida Humana, o bem jurídico superior.

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Monteiro, Elisabete Amarelo, Crime de Homicídio qualificado e imputabilidade diminuída, 2012, Coimbra Editora, P.18 2 Ibidem P.19. A este propósito refere a autora que a doutrina fala até de “uma dupla fragmentação axiológica do direito penal”. Veja-se ainda: Silva, Fernando, Direito Penal Especial – Crimes contra as pessoas, p.8 apud Monteiro, 2012 “o direito penal só deve intervir para proteger bens jurídicos fundamentais e para punir as lesões mais graves provocadas pelo comportamento do agente”; Cf. Costa, José de Faria, Direito penal especial, 2004, Coimbra Editora, p.19, para este autor há a fragmentariedade de 1º e de 2º grau.

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3. O crime de Homicídio: 3.1 A Vida humana como bem jurídico protegido A vida humana é o bem jurídico tutelado no crime de homicídio (art.º131CP), no topo da hierarquia dos bens jurídicos a proteger, trata-se de um bem jurídico inviolável e pilar crucial na identidade de um Estado de Direito, assim se manifesta na Constituição da República Portuguesa no seu art.º 24. Para efeitos da determinação do crime de homicídio a proteção da vida começa com o início do ato do nascimento, “ (…) podendo de um modo geral dizer-se que o processo de nascimento do ser humano, coincide normalmente com as “dores” do parto.” 3 Apesar da formulação do Código Civil no art.º66CC encarar o início da personalidade jurídica como “o momento do nascimento completo e com vida”, os penalistas portugueses vão mais além e antecipam a proteção da vida para o “início dos trabalhos de parto”.4 A capacidade de vida autónoma do feto não é pressuposto da qualidade de pessoa para efeito de integração do tipo objetivo de ilícito. Suficiente é que a criança, no referido momento inicial do nascimento, esteja viva. Por isso o crime de homicídio é possível relativamente a crianças que, pelos mais diversos motivos não tenham nenhuma possibilidade de continuar a viver fora do ventre materno. Esta “antecipação” tem um mérito que reside no seu fundamento, isto é, se a tutela da vida começasse apenas no momento do nascimento completo e com vida, surgia desse modo como que um “anglo morto” da tutela da vida. Ou seja, num momento em que o ser humano se encontra mais indefeso, dependente da intervenção de terceiros, e numa situação de fragilidade estaria sujeito aos riscos daí inerentes sem qualquer proteção, pois enquanto não estivesse completo o seu nascimento estaria totalmente desprotegido, situação esta que se pretende acautelar no âmbito desta antecipação da tutela da vida.

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Rocha, Patrícia Micaela Marques, Homicídio qualificado – análise do a) e b) do nº 2 do art.º 132CP, Dissertação do 2º Ciclo de estudos em Direito, 2010, Coimbra Editora, P.16 4 Monteiro, Ibidem, P.23.

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A proteção deste precioso bem jurídico termina com a morte. Refere Elisabete Monteiro “ (…) a qualidade de pessoa para efeitos do tipo de ilícito objetivo do homicídio termina com a morte. Porém, a determinação do momento em que ocorre a morte levanta polémica, nomeadamente por força do avanço das técnicas de reanimação, aliado à necessidade de obter órgãos para efeito de transplantes.”5 Sem qualquer indicação no nosso Código Penal sobre a determinação do momento da morte, é na Lei 141/99 de 28-08 no seu art.º2 onde se pode ler que “a morte corresponde à cessação irreversível das funções do tronco cerebral”, sendo então decisivo o critério da morte cerebral, sendo certo que até então matar outra pessoa configura a violação do tipo de ilícito do art.º131CP, o homicídio. 3.2 Tipos de Homicídio O homicídio é um crime de resultado, de execução livre, cujo tipo objetivo de ilícito se considera preenchido com a morte de pessoa diferente do agente do crime, “tal implica, necessariamente, estabelecer o nexo de imputação objetiva do resultado à conduta”6 e o dolo é o elemento subjetivo do crime que manifesta a vontade de matar outra pessoa. No crime de homicídio o dolo (art.º14CP) pode revestir três formas: o dolo direto, o dolo necessário e o dolo eventual.7 Apesar de constar do nosso Código Penal os artigos com a epígrafe: Homicídio – art.º131CP, Homicídio Qualificado – art.º132CP, Homicídio Privilegiado – art.º133CP, ressalve-se que estas normas não representam um tipo legal fundamental diferente em cada artigo. Ou seja, estamos perante o mesmo tipo fundamental, a vida, sendo certo que o homicídio simples (art,º131CP) 5

Ibidem, P.23 Monteiro, Ibidem P.22 7 A este respeito V.g. Ibidem P.25; E ainda Rocha, Patrícia Micaela Marques, Ibidem, P.37 e seguintes. E ainda, v.g. a distinção fornecida por João Matos Viana “A imputação dolosa e as emoções” in Emoções e Crime, 2013, Almedina, P.227 e seguintes. 6

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representa o tipo base, não sendo os tipos de homicídio supra descritos autónomos deste. O tipo só se considera preenchido quando, além de estar configurada (de qualquer forma) a conduta proscrita e verificado o resultado, o agente tenha pretendido a verificação da situação incriminadora.8 Posto isto, o homicídio qualificado (objetivo central do estudo em análise) é uma forma agravada do homicídio simples. Figueiredo Dias adverte, deste modo, que deve ser recusada a ideia de que o homicídio qualificado constitui o tipo legal básico dos crimes dolosos contra a vida, e o homicídio simples uma forma atenuada. 9 Em suma, funcionando como base o art.º 131 CP, descreve: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.” Posto isto, o homicídio simples constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida. O homicídio privilegiado está exposto no art.º 133CP: “Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos”, desta forma, estamos perante uma variante do homicídio simples que pune menos gravemente os agentes que tenham levado a cabo a prática deste crime, tendo como fundamento de atenuação, uma diminuição sensível de culpa.10 Alvo de maior atenção neste estudo será o homicídio qualificado descrito no Código Penal Português no seu art.º 132:

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Veiga, Raul Soares, RJ n.º 4, P.35 apud Monteiro, Elisabete Amarelo, P.26 Dias, Figueiredo, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P.48 10 A este respeito mostra-se interessante o texto escrito por João Curado Neves sob título “As emoções no sistema exculpatório do Código Penal Português” in Emoções e Crime, 2013, Almedina, P. 169 e seguintes. Vid. “A maioria da doutrina portuguesa entende, de uma forma ou outra, que as emoções podem, em maior ou menor grau, influenciar de tal modo a capacidade do individuo que este pode ser considerado privado da sua liberdade de decisão, do seu livre arbítrio.” E ainda o texto de Carlota Pizarro de Almeida “Acumulação e catástrofe”, ibidem, p.203 e seguintes. Não serão, todavia, estas as questões que prosseguem o objetivo deste estudo. 9

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“1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2. É suscetível de revelar censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) Ser descendente ou ascendente, adotado ou adotante, da vítima; b) Praticar o facto contra o conjugue, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos conjugues, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau; c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; d) Empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima; e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil; f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual da vítima; g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime; h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum; i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso; j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas; l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão de governo próprio das Regiões Autónomas, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ou ministro de

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culto religioso, juiz ou árbitro desportivo sob jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas; m) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso da autoridade.”

4. O crime de Homicídio Qualificado 4.1 Breve contextualização Antes do Código Penal de 1982 a figura do homicídio aparecia consagrada no Título IV, Capítulo III, Secção 1.ª, sob a epígrafe de Homicídio Voluntário, Simples e Agravado e Envenenamento, sendo a base da tipificação o Homicídio Voluntário (p.p art.º349), e o art.º351 do CP de 1886 continha uma descrição taxativa das circunstâncias que justificavam a agravação do homicídio.11 Ou seja, havia uma cláusula geral (Homicídio Voluntário) que funcionava como base de onde se partia para “de forma mais ou menos generalizada, se qualificar o ato praticado, em

função

das

circunstâncias

(premeditação,

tortura),

do

objeto

(envenenamento) ou da qualidade das pessoas (progenitores).”12 Todavia, é certo que a evolução da sociedade representa uma influência essencial na normatividade vigente. O direito não é um mundo autónomo da evolução social e política, antes representando os pensamentos predominantes à época em que (re) nasce, mostrando uma dinâmica que acompanha a sociedade e os seus valores a cada altura. Atualmente, a dignidade humana é o pilar dos bens jurídicos protegidos, a Constituição da República Portuguesa acolhe este especial e fundamental valor logo no seu art.º 1 referindo expressamente: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Deste modo, não é de estranhar a primazia dada à dignidade humana no art.º 132 CP de 1982 que,

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Monteiro, Ibidem, P.29 Ibidem, P.29

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segundo Elisabete Monteiro13 adota “uma técnica legislativa inovadora e substancialmente diferente”. Surge a partir de 1982 o homicídio qualificado propriamente dito no art.º132CP (agora um único tipo legal de crime), homicídio este que ocorre em situações de especial censurabilidade ou perversidade do agente, de tal maneira que o legislador pune com uma moldura penal mais agravada, considerando haver um maior desvalor relativamente ao tipo simples (art.º131CP). O homicídio qualificado constitui um caso especial de homicídio doloso onde mostra, atualmente, uma técnica de qualificação completamente diferente da anterior onde, conforme se esclarece supra, havia uma descrição taxativa de tipos de homicídio qualificado, a par dos tipos autónomos do envenenamento, parricídio e do infanticídio.14 De modo diferente se percebe a qualificação do homicídio no presente. Desta forma, o n.º 1 do art.º 132 concebe uma cláusula geral onde se exige ao agente que tenha atuado com uma culpa agravada decorrente de uma especial censurabilidade ou perversidade, estes representam conceitos indeterminados que, dão uma flexibilidade ao julgador, todavia, este deve orientar-se pelos indícios15 que são os exemplos-padrão elencados, de forma não taxativa, no n.º 2 do art.º132CP. Portanto, e nas palavras de Figueiredo Dias “a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos relativamente indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplificativamente elencados no n.º2.”16 Figueiredo Dias recorda que o método da qualificação do homicídio foi “integralmente respeitado” pelas revisões sofridas pelo preceito em 1997 e 2007,

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Ibidem, P.30 A este respeito v.g. Serra, Teresa, Homicídio Qualificado – Tipo de culpa e medida da pena, 1997, Almedina, P. 49 e seguintes. 15 Expressão de Teresa Serra, op cit. 16 In Dias, Figueiredo, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P. 49. 14

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deixando intocados o n.º1 e o nr.º2 do art.º132CP aditando o catálogo dos exemplos-padrão que “de oito alíneas que o preceito continha em 1982 passou-se a 11 em 1998 e a 12 em 2007.”17 5. Método da qualificação 5.1 O critério adotado no art.º 132/1 CP Como é dito supra, o critério do art.º 132/1 CP reside na indagação da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Consistindo, deste modo, num critério generalizador que se consubstancia num tipo de culpa que caracteriza de forma autónoma “uma atitude do agente atualizada no facto como especialmente censurável ou perversa”.18 Com este critério “o legislador propõe-se determinar com maior nitidez o facto punível e, consequentemente, a moldura penal aplicável ao caso concreto através da consideração da personalidade do agente com auxílio de conceitos ético-valorativos”19 Em relação aos conceitos relativamente indeterminados de especial censurabilidade ou perversidade do agente, inspirados tanto no Código Penal Suíço como no Alemão, Raul Veiga refere que parecem deixar concluir desde logo que ambos se referem a uma especial culpa do agente, uma culpa especialmente agravada, este entendimento baseia-se na tese de que tanto a perversidade como a censurabilidade que qualificam o homicídio se reportarem ao agente e não ao facto.20 Diferentemente considera Teresa Serra, mencionando que a especial censurabilidade diz respeito às componentes da culpa relativas ao facto21, enquanto a especial perversidade se reporta às componentes da culpa relativas ao agente22.

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Op. Cit. P. 53. Serra, Teresa, Homicídio qualificado – Tipo de culpa e medida da pena, 1997, Almedina, P.59 19 Op. Cit. P.12 20 Para Veiga, Raul Soares, RJ n.º 4, P.37 apud Monteiro, Elisabete Amarelo, in Crime de homicídio qualificado e imputabilidade diminuída, 2012, Coimbra Editora, P.35 21 “(…)funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.” In Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena, Teresa Serra, 1997, Almedina, P.64. 22 Serra, Teresa apud Monteiro, Elisabete Op.Cit. P.36 18

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Conforme Elisabete Monteiro23, há autores que, o facto de o legislador ter adotado duas expressões distintas na cláusula do n.º1 do art.º132 separadas por “ou” faz suscitar uma divergência doutrinária acerca da hipótese do legislador querer abarcar duas realidades diferentes24 ou se, pelo contrário, se se trata da mesma realidade25. Figueiredo Dias considera que a especial censurabilidade se reporta às situações em que o especial juízo de culpa se consubstancia em formas de realização do facto especialmente desvaliosas, ao passo que a especial perversidade se revela pela atualização no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. 26 Na mesma linha está o pensamento de Fernando Silva que refere “as circunstâncias que rodeiam o agente e o motivam para matar representam maior refração, sendo razões que deviam acarretar maior contra-motivação para que o agente não tivesse agido daquele modo. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de fatores que, em princípio, deveriam orientá-lo ainda mais para se abster de atuar”, e a especial perversidade afere-se dos sentimentos especialmente desvaliosos manifestados pelo agente no facto.27 Em suma, antes de mais, para estarmos perante um homicídio qualificado é necessário que o homicídio se enquadre na base do homicídio simples doloso

“(…) tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos completamente rejeitados pela sociedade.” Podendo segundo a autora caracterizar uma atitude especialmente perversa a “atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente.” Acrescenta que, “uma distinção que vá mais além não nos parece, de momento, nem necessária nem sequer possível”. Serra, Ibidem, P.63, 64. 23 Op. Cit. P.36 24 É o caso de autores como: Figueiredo Dias, Teresa Serra, Maria Fernanda Palma, Fernando Silva e Raul Soares da Veiga. Neste sentido também, V.g. Acórdão do Tribunal da Relação de 07-11-2012, proferido no âmbito do processo n.º: 33/11.1JACBR.C1, relatado pelo Juiz Calvário Antunes onde podemos observar a seguinte distinção: “A qualificação do crime de homicídio (…) espelhado na especial censurabilidade – atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas – ou perversidade – condutas que refletem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade – do agente(…)” 25 V.g. João Curado Neves. 26 Monteiro, Op. Cit. P.37 27 Monteiro, Op. Cit. P37, 38

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do art.º131CP, seguidamente, é necessário averiguar se a conduta proscrita se integra num dos exemplos-padrão exemplificativamente elencados no n.º 2 do art.º 132 que, por sua vez, fornecem um índice de especial censurabilidade ou perversidade do agente do crime (objeto de análise infra). Segue-se a submissão àquele que funcionará como “filtro” à aplicação de qualquer exemplos-padrão, o nº 1 do art.º132, é necessário averiguar se o crime que o agente praticou revela especial censurabilidade ou perversidade. Isto é, o critério generalizador do nº1 do artigo é como que o limite a observar para a qualificação do homicídio. Certo é que, independentemente, da posição que se tomo sobre os conceitos relativamente indeterminados de especial censurabilidade ou perversidade, eles são fundamento imperioso para a qualificação do homicídio, agravando a moldura penal do tipo legal fundamental dada a maior gravidade que se entende pela conduta do agente, mostrando assim o Direito Penal um método de qualificação que é, segundo Figueiredo Dias, “de um ponto de vista político-criminal, aceitável.”28 5.2 Técnica dos exemplos-padrão do art.º132/2 No n.º 2 do art.º 132 CP verificamos circunstâncias que se podem retirar de três tipos de situações, designadamente, as relações entre o agente e a vítima, as motivações do agente e o modo de execução do facto.29 O critério de qualificação do homicídio reside na combinação do critério do n.º1 com os exemplos-padrão do n.º2 do art.º132 CP. Vimos que o n.º 1 mostra que são suscetíveis de qualificação as situações em que o agente atue com especial censurabilidade ou perversidade. O n.º 2 elenca de forma meramente exemplificativa situações que constituem indícios de revelar essa especial censurabilidade ou perversidade.

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In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P.50 Silva, Fernando, Direito penal especial: os crimes contra as pessoas, 2008, Quid Juris, P. 59 apud Rocha, Patrícia Micaela, Homicídio qualificado – análise do a) e b) do nº 2 do art.º 132CP, Dissertação do 2º Ciclo de estudos em Direito, 2010, Coimbra Editora, P.70 29

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Antes de mais é importante sublinhar que os exemplos-padrão constantes do n.º 2, suscetíveis de revelar essa culpa agravada30, são exemplos não taxativos, de outra forma não poderia ser, uma vez que é da própria letra da lei que se retira a expressão “entre outros”.31 Outro aspeto importante a ressalvar é que os exemplos-padrão não são de funcionamento automático, daí a existência da cláusula geral do n.º1 que filtra os casos do n.º 2 ao n.º1, isto é, ainda que se verifiquem situações circunscritas aos exemplos-padrão, estes observam um “filtro”, um limite de aplicação na existência de especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente que praticou o crime, subsumindo-se desta forma a uma culpa de tal maneira mais grave que possibilitará a qualificação do homicídio. Aliás a própria letra da lei é expressa em relação a esta conclusão, uma vez que se pode ler “é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade…” Como se sabe, ser suscetível implica uma possibilidade, uma predisposição que em nada se confunde com uma certeza inequívoca. Apesar de inegável a inspiração da qualificação do homicídio do Código Penal Português no Código Penal Alemão, esta é, sem dúvida, um fator que os difere, isto é, ao contrário do que sucede no Código Penal Português, o Código Penal Alemão parece conter um tipo estruturado sobre uma enumeração taxativa e de funcionamento automático. A técnica utilizada nos exemplos-padrão funciona, deste modo, como um indício na existência de uma culpa agravada, mas nunca numa automática aplicação da qualificação do homicídio, representando antes um critério

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Questão discutida na doutrina, alvo de maior atenção nas páginas infra. A este propósito Vid. Figueiredo Dias v.g. comentário conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P.53, realça que não é ao intérprete que cabe a “competência para afirmar que o preceito em causa quer significar precisamente o contrário daquilo que diz.”, V.g. contra esta ideia está Curado Neves. 31

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orientador para o julgador.32 Contudo, Figueiredo Dias33 critica abertamente aquilo que ele próprio refere como “mal, sem remédio” para os casos decididos, que consiste na errada interpretação do método de qualificação por largos sectores da magistratura34 “os quais não só se revelam frequentemente laxistas na aferição de situações concretas como integrantes do extensíssimo rol de exemplos-padrão, como ainda tomam o critério fundamental constante do n.º1 em algo que tem de ser afirmado mas não provado; o que conduz a só muito raramente negar, in casu, a “exemplaridade” do exemplo-padrão em causa. Com o que parece estar-se prestes a alcançar no ordenamento jurídico-penal Português (…) um resultado verdadeiramente espantoso (…) o de fazer do homicídio “qualificado” (…) o caso normal da perpetração do homicídio, e do homicídio “simples” uma forma (quase) excecional de realização deste crime.”35 Porém, “o legislador abandonou a técnica de qualificação que consiste numa modificação casuística dos tipos, como existia no Código Penal anterior nesta matéria, e como existe no atual quanto ao furto qualificado. Traduz-se esta técnica no facto de a moldura penal mais gravosa ser sempre (…) aplicável quando as circunstâncias qualificantes do tipo qualificado estão preenchidas. As desvantagens deste método legislativo (…) estão à vista (…),” refere Teresa Serra.36 Ainda de acordo com a mesma autora é certo que existe uma relação de complementaridade em relação ao n.º 1 e ao n.º 2 do art.º 132 CP, sendo certo que “o n.º2 fornece ao juiz os critérios de especial culpa, concretizando e

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V.g. contrário a este entendimento está Frederico Isasca, “o juízo de suscetibilidade (…) não é um juízo de probabilidade ou de contingência, mas sim um juízo de aptidão. Significando, que cada uma das circunstâncias enumeradas no n.º2 é só por si reveladora de especial desvalor da ação” , Isasca, Frederico, Peças forenses: Sentença do 3º Juízo Criminal – Homicídio (Comentário) in Revista Jurídica, n.º 6, Abril – Junho 1986, P.265 apud Rocha, Patrícia Micaela, ibidem, P.71 33 Dias, Figueiredo, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P.54 34 Figueiredo Dias não incluí nesta crítica o STJ, reconhecendo antes que este tem procurado “refrear a tendência”, op. Cit., P.54 35 Dias, Figueredo, 2012, ibidem, P.54 36 Serra, Teresa, Homicídio Qualificado – tipo de culpa e medida da pena, 1997, Almedina, P.59

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determinando a cláusula geral do n.º1. Mas, por sua vez, o n.º1 delimita a enumeração exemplificativa do n.º2”37 5.3 Art.º132 e o fundamento da agravação: Tipo de culpa? Tipo de ilícito? Há uma enorme divergência na doutrina acerca de saber se o art.º132CP é considerado como um tipo de ilícito ou como um tipo de culpa e se os exemplos-padrão são, por sua vez, elementos do tipo de ilícito, do tipo de culpa ou uns do tipo de culpa e outros do tipo de ilícito ou ainda se são apenas circunstâncias determinantes da medida da pena. Cumpre distinguir o conceito de tipo de ilícito do de tipo de culpa. Ora, uma conduta é qualificada como ilícita sempre que contrária ao ordenamento jurídico, havendo assim um juízo de desvalor em relação ao comportamento, o tipo de ilícito tem como função definir o que é penalmente proibido e dá-lo a conhecer aos membros da comunidade através de regras jurídicas. 38 E, para que a ação ilícita típica seja punida é necessário que o facto seja “pessoalmente censurado ao agente”, revelando uma atitude interna do agente tida como censurável, estando deste modo presente o tipo de culpa que tem como função limitar o poder punitivo do estado. Nesta via, o tipo de ilícito surge como concretização central do conceito material de crime, e o tipo de culpa prendese com a censurabilidade do agente referida ao tipo de ilícito, porém ambos são considerados como “pressupostos categoriais sistemáticos mínimos enquanto expressões de dignidade penal tipicizada”.39

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Serra, ibidem, P.122; Ainda neste sentido v.g. Brito, Teresa Quintela de, Direito Penal – Parte especial: lições, estudos e casos, P.177. Maria Fernanda Palma considera, porém, que o art.º132/2 CP cumpre uma função de “correção descritiva do conteúdo normativo do n.º1” in Palma, Maria Fernanda, Direito Penal, Parte Especial, P.49 e seguintes 38 Monteiro, Elisabete Amarelo, Crime de Homicídio qualificado e imputabilidade diminuída, 2012, Coimbra Editora, P.56. 39 Monteiro, Ibidem, P.56;

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Perante a divergência doutrinária que a questão do art.º132CP suscita a este respeito, segue-se a explanação da posição de alguns autores que cumpre realçar: Elisabete Monteiro destaca, oportunamente, a respeito do art.º132CP que a posição dos pais do nosso Código Penal é a de que é um tipo de culpa que está inerente ao art.º132CP e, por conseguinte, medida da pena.40 Ou seja, não obstante o tipo de ilícito preenchido pelo agente ser o do art.º131CP, a prova da maior censurabilidade ou perversidade terá sempre de ser feita de acordo com o princípio da culpa, fazendo o art.º132CP a especificação de circunstâncias agravadoras.41 Já Maria Fernanda Palma42 é da opinião de que o fundamento da agravação que altera a moldura penal se baseia na ilicitude, para a autora esta posição encontra justificação no facto de “a existência de uma moldura penal implicar uma limitação da intervenção autónoma do princípio da culpa aos limites daquela.”43 Refere ainda que o art.º132CP ao fazer depender o seu conteúdo da maior censurabilidade ou perversidade deduz isso das circunstâncias do facto que o revelam, ora, o facto e as qualidades que fundamentam a ilicitude estão sujeitas ao princípio da legalidade e por isso não pode haver factos ilícitos que não sejam os descritos nas normas incriminadoras, sendo que só estes permitem fundamentar as penas. 44 Elisabete Monteiro argumenta que se fosse como Maria Fernanda Palma concebe, infalivelmente chegaríamos à conclusão “de que a descrição típica do homicídio não indica um conteúdo preciso para a agravação da ilicitude que

40

Actas, Parte Especial, 1966, P.21 a 27 apud Monteiro, Op. Cit., P.58. Pereira, Maria Margarida Silva, Direito Penal II - Os homicídios, P. 53, 59, apud Monteiro, Ibidem. 42 Para quem a ilicitude é primeiramente uma qualidade do facto e, em segundo lugar, é a contrariedade do facto à ordem jurídica na sua totalidade. Palma, Maria Fernanda, Sub Judice – Justiça e Sociedade, n.º11, P.61 e seguintes apud Monteiro, Ibidem, P.58. 43 Monteiro, Ibidem, P.59. 44 Monteiro, P.58 e 59. 41

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prevê45 e desse modo estaríamos perante a violação do princípio da legalidade, “por deixar nas mãos do julgador a construção do tipo”. Mais adianta que o facto de as circunstâncias funcionarem ao nível da ilicitude, “não exclui que seja sempre questionável a correspondência na “culpa” do agente da maior ilicitude do seu facto.”46 Figueiredo Dias alude que o legislador de 1982 seguiu, na matéria de qualificação do homicídio “um método muito particular (…): a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão (…) deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador (…) que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art.º132/2CP”.47 Sobre a questão de saber se os exemplos-padrão constituem elementos do tipo de ilícito, elementos do tipo de culpa, elementos uns do tipo de ilícito e outros do tipo de culpa ou simples circunstâncias determinantes da medida da pena, Figueiredo Dias vê no art.º 132 elementos constitutivos do tipo de culpa. Explica48 que, apesar de muitos dos exemplos-padrão por si só não dizerem respeito a uma “atitude mais desvaliosa do agente mas sim a um acentuado desvalor da ação e da conduta”, mesmo nesses casos, o determinante da agravação “é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente”, ou seja o especial tipo de culpa. Argumenta o autor que só desta maneira pode ser compreendido que, não obstante a existência de situações em que os exemplos-padrão estão presentes, e apesar disso possa não existir a qualificação do homicídio. (Sobre esta hipótese v.g. infra 6.1 Homicídio simples atípico). Todavia, “a agravação da 45

A agravação da ilicitude é baseada num conceito normativo vago, isto é, a especial censurabilidade ou perversidade do agente. Ibidem, P.59. 46 Ibidem, P.59 e 60. 47 Dias, Figueiredo, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P.49. 48 Dias, Ibidem, P.51

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culpa é em todos os casos suportada por uma correspondente agravação do conteúdo do ilícito.”49 Ainda a este propósito menciona Cristina Líbano Monteiro que “a pena é mais forte por ser maior o juízo de culpa”.50 Figueiredo Dias e Teresa Serra, alegam que os motivos e sentimentos que o agente revela no cometimento do crime dizem respeito à culpa, com o desvalor da atitude interna do agente.51 Porém, Teresa Serra, relativamente aos exemplos-padrão, recusa a tese de que estamos perante elementos constitutivos do tipo de culpa, considerando que alguns dizem respeito ao maior conteúdo de ilícito do facto. A autora acredita que estamos perante regras de determinação da pena, posto isto, o aumento da culpa só se pode expressar no âmbito da medida concreta da pena, sendo certo que nunca determinará uma moldura penal correspondente a um grupo valorativo mais grave. A autora concebe os exemplos-padrão constantes do art.º132/2CP como regras de determinação de uma moldura penal agravada. De opinião diferente é João Curado Neves para quem o art.º132CP contém um conjunto de tipos incriminadores que qualificam o tipo base.52 Desta forma, o 49

Dias, Op. Cit. P.51. Monteiro, Cristina Libano, RPCC 6 (1996), P.124 e ss. Apud Monteiro, Elisabete Amarelo, Op. Cit. P. 60. Contrariamente esta a postura de Raul Soares da Veiga que acredita não ser possível que um diferente grau de culpa seja o fundamento de uma diferente moldura penal. O autor questiona a razão de ser da pena prevista na qualificação do homicídio, uma vez que para ele “se o fundamento da agravação é a maior culpa, só pode funcionar como critério de medida da pena e não como fundamento de certa medida da pena” sugerindo deste modo que se faça uma interpretação corretiva do n.º1 do art.º132CP restringindo o máximo da pena de 25 anos de prisão para o máximo da pena prevista no art.º131CP, isto é, 16 anos. Exceto se o fundamento do art.º132CP fosse não só a maior culpa mas também um tipo de ilícito visível em cada circunstância. Nesta hipótese teria de se interpretar corretivamente a expressão “entre outras” do art.º 132/2CP. Veiga, Raul Soares apud Rocha, op. Cit., P.61 . Cf. Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P.53, “(…) sem que ao interprete caiba competência para afirmar que o preceito em causa quer significar precisamente o contrário daquilo que claramente diz (…)”. O autor refere como sendo um “procedimento contra legem”, “desnecessário e inconveniente” a interpretação restritiva ou corretiva do art.132CP, op. Cit. P.52. 51 Monteiro, Elisabete Amarelo, Ibidem, P.61 . 52 Neves, João Curado, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, P.265 apud Monteiro, Elisabete Amarelo, Ibidem, P.62 50

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fundamento reside na ilicitude agravada, cujo tipo se encontra no n.º2 do art.º132CP.53 Teresa Beleza é da mesma opinião, considerando o nr.º2 do art.º132CP tipos de ilícito agravados, argumentando que a culpa por si só não pode elevar a pena para além dos limites dados pelo grau de ilicitude.54 Há ainda autores que adotam soluções mistas, tal como Margarida Pereira e Teresa Brito. Margarida Pereira observa que “as variações da culpa para cima” são de indeferir, contendo o prejuízo de acabar num Direito Penal de personalidade isto é, um Direito Penal do agente e não do facto, deste modo a autora compreende o art.º132CP não como uma valoração da culpa independente de uma ilicitude mas sim como uma ilicitude que é um pressuposto da culpa, tendo a maior culpa suporte na maior ilicitude. 55 Teresa Quintela de Brito equaciona o homicídio qualificado no fundamento de um “superior grau de ilicitude do facto e só depois num especial grau de culpa”, não obstando a que o art.º132CP contenha uma regra de determinação judicial de uma pena agravada, em função de uma culpa especialmente grave.56

53

Cf. Figueiredo Dias, Ibidem, P.53. Beleza, Teresa, Direito Penal, Textos de Atualização, 2.º vol., P.35, 36, 60 e 61 apud Monteiro, Ibidem, P.62. 55 Pereira, Maria Margarida Silva, “Direito Penal II. Os Homicídios, 2007, P.74 apud Rocha, Patrícia Micaela Marques, Homicídio qualificado – análise do a) e b) do nº 2 do art.º 132CP, Dissertação do 2º Ciclo de estudos em Direito, 2010, Coimbra Editora, P.64. Cf. Serra, Ibidem, P.48. 56 Brito, Teresa Quintela, Direito. Parte Especial: lições, estudos e casos. 2007, Coimbra Editora, P.203 apud Rocha, ibidem, P.64. 54

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6. Efeito dos exemplos-padrão 6.1 Homicídio simples atípico A existência de um dos exemplos elencados significa um indício de que possa existir um homicídio qualificado, indicio este que terá de passar pelo “filtro” de existência de especial censurabilidade ou perversidade do n.º 1 do mesmo artigo, sendo decisivo, pois a não se encontrar verificada tal situação, a mesma não poderá ser submetida à qualificação. Todavia, pode igualmente suceder o inverso. Vamos ver como. Ora, deixa-se bem claro no estudo supra referido que os exemplos-padrão elencados no n.º 2 do art.º 132 constituem um indício da qualificação do homicídio. Expressão esta referida e sublinhada por Teresa Serra que mostra o efeito de indício dos exemplos-padrão “tratados a partir de um duplo ponto de vista: por um lado, a afirmação da presença de uma das circunstâncias do n.º 2 do art.º132 indicia a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente que fundamenta a aplicação da moldura penal agravada; por outro lado, a negação da presença de qualquer das referidas circunstâncias indicia a inexistência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, que fundamenta, caso não existam outras circunstâncias especiais a ponderar, a aplicação da moldura penal do art.º 131.”57 Nesta linha de pensamento, Teresa Serra refere que o efeito dos exemplos-padrão “fundamenta como que uma presunção ilidível”58, afirmando que pode ser contraprovado o efeito de indicio dos exemplospadrão. A doutrina dominante tem entendido, segundo Teresa Serra59, que o método em que se baseia a técnica dos exemplos padrão reside no “princípio da ponderação global do facto e do autor” em que o juiz antes de averiguar a existência do conteúdo do art.132/1 CP (existência de especial censurabilidade 57

Serra, Ibidem, P.66, 67. Vid. Revista do Ministério Público, depósito legal n.º 11997/86, ano 14º, Julho-Setembro 1993, n.º 55 P. 115 58 Serra, Ibidem, P.67 59 Serra, Ibidem, P.67 e seguintes.

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ou perversidade), tem de ver se existem ou não circunstâncias especiais tanto no facto como na pessoa do agente que possam atenuar “o conteúdo da ilicitude ou da culpa do facto, de tal modo que se imponha a revogação do efeito de indício”. Se assim for, facilmente se depreende que uma vez ilidida a presunção estaríamos perante aquilo que se tem denominado de homicídio simples atípico, subsumindo-se ao art.º131 CP. Mas quais são as situações capazes de contraprovarem “o efeito de indício dos exemplos-padrão”? Ora, segundo a mesma autora, nem as circunstâncias atenuantes gerais60, nem as circunstâncias atenuantes especiais61 são “por si só suscetíveis de contraprovarem o efeito de indício dos exemplos-padrão” e só devem ser tidos em conta “no momento da fixação da medida concreta da pena”. Teresa Serra, concluí que as situações capazes de contraprovarem o efeito de indício vão ter de “basear-se numa acentuada diminuição da ilicitude…”.62 Levando, deste modo, a que “só circunstâncias extraordinárias (….) possa anular o efeito de indício.” Ilidida a presunção de indício dos exemplos-padrão estaríamos, deste modo, perante um homicídio simples atípico, aplicando-se ao agente o art.º131 CP, e nesse caso será imperativo que a decisão judicial deva fundamentar de forma pormenorizada as razões que levara à revogação do efeito da regra.63

60

Como, por exemplo, “o bom comportamento anterior, mérito profissional ou cívico, confissão, arrependimento…”, Serra, op. Cit., P. 68. Na sua linha de pensamento, é “no mínimo contestável”, deste modo, o Acórdão do STJ de 4 de Novembro de 1987. 61 Do qual constituem exemplo quer as circunstâncias atenuantes especiais facultativas (v.g. art.º 17/2CP) quer as obrigatórias (v.g. art.º23/2 CP), Serra, Ibidem, P.69 62 Serra, Ibidem, P.69 e seguintes, “…. designadamente em consequência de uma diminuição do desvalor da conduta, a que pode associar-se uma diminuição do desvalor do resultado, como principalmente na diminuição do desvalor da atitude.” A autora refere ainda que “para além disso, o que importa é que (…) as referidas circunstâncias consigam atribuir ao facto uma imagem global insuscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente” Vid., para Teresa Serra, a presunção dos exemplos-padrão será considerada ilidida e, deste modo, aplicado o art.º131 CP, sendo considerado que estamos perante um homicídio simples atípico, por exemplo, no caso do “filho que mata o pai, dominado pelo desespero de o ver sofrer de forma atroz no estádio terminal de uma doença incurável e dolorosa”, situações como esta, que diminuem sensivelmente a culpa do agente “parece constituir contra-prova bastante do efeito de indicio ligado à afirmação de uma das circunstâncias do n.º2 do art.º132”, Ibidem, P.69 e 70. Nesta linha, ainda v.g. Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P. 57 63 Serra, Ibidem, P.70

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De opinião diferente, é Figueiredo Dias. A compreensão descrita até aqui acerca da presunção que se estabelece sobre os exemplos-padrão mencionada por Teresa Serra, é considerada para Figueiredo Dias “redutora da relação entre a cláusula geral do n.º 1 e os exemplos padrão do n.º2, impondo uma direção unívoca de relacionamento entre ambos (…) que não deixa apreender a interdependência de fluxos recíprocos que os deve unir ”64 O que nos leva ao encontro do que já foi criticado supra65, pelo mesmo autor, que concebe uma forte reprovação à aplicação banal da qualificação do homicídio, refere que a tese exposta por Teresa Serra, neste contexto, pode “conduzir, sobretudo num quadro num quadro de enorme profusão de exemplos-padrão como é atualmente o nosso, a uma banalização da aplicação do homicídio qualificado, inconciliável com a natureza que este deve assumir.”66 Por isso, a meu ver, deve existir um equilíbrio de análise complementar em duas linhas: Primeiramente, analisado que esteja o preenchimento de algum exemplo-padrão do art.º132/2 CP e uma vez aprovado pelo “filtro” do critério generalizador do art.º132/1 e desse modo revelar uma conduta onde haja especial censurabilidade ou perversidade não me parece haver qualquer dúvida na qualificação do homicídio. Todavia, se o critério generalizador não conceber o seu preenchimento (fundamental), seria contra o sentido teleológico de unidade e complementaridade que representa o art.º 132 CP deixar que um dos seus números fosse além do limite que precede a existência do próprio artigo. Posto isto, será considerado homicídio simples atípico e consequentemente subsumido à aplicação do art.º 131 CP. 6.2 Homicídio qualificado atípico Também o caso do homicídio qualificado atípico não é ele alvo de menos divergências. Neste caso, ao invés do que foi exposto até aqui, a pergunta será:

64

Dias, Figueiredo, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P.56 65 Dias, Ibidem, P.54 66 Dias, Ibidem, P.56

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quando é que podemos concluir que estamos perante uma culpa agravada (especial censurabilidade ou perversidade), não obstante, não se encontrar verificado qualquer um dos exemplos-padrão? Ou seja, quando é que podemos afirmar estar perante um homicídio qualificado atípico? Para Teresa Serra, a resposta a esta questão tem um fundamente semelhante àquele que foi dado na consideração do homicídio simples atípico. Isto é, também aqui se deve retirar o efeito de indício de inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente no caso de não se verificar nenhum dos exemplos-padrão elencados no n.º 2 do art.º132 CP, subsumindo-se assim ao art.º 131 CP. Deste modo, para a autora “só circunstâncias extraordinárias ou um conjunto de circunstâncias especiais que assentem num aumento essencial da ilicitude e/ou culpa e que sejam expressivas do Leitbild dos exemplos-padrão podem levar à afirmação da existência de especial censurabilidade ou perversidade do agente.”67 A autora concluí que a eventualidade de aceitar outras circunstâncias agravantes depende da possibilidade de descortinar o grau de desvalor e a estrutura valorativa de algum dos exemplos-padrão naquela que é a nova situação. Com opinião diferente encontramos Fernanda Palma para quem o respeito pelo princípio da legalidade deve impedir que se abarque no art.º 132/2 CP situações aí não tipificadas, isto acontece porque, segundo a autora, o legislador não conseguiu proporcionar o verdadeiro conceito do tipo de culpa, conceito esse com “contornos precisos, dada a grande dificuldade de apreensão do aspeto da realidade de que se trata” vem substituí-lo por “uma definição abstrato-concreta, em que o conceito que não se consegue atingir é

67

Serra, Ibidem, P.71, há que indagar se “ao lado do aumento quantitativo da ilicitude e da culpa, se pode afirmar a idoneidade qualitativa das circunstâncias agravantes para a formação de grupos valorativos concordantes com o Leitbild dos exemplos-padrão” Wessels apud Serra, Teresa, op. Cit. P. 71.

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substituído por uma imagem dos casos mais representativos que se incluiriam no conceito ausente.” 68 Importa concluir que não se pode recorrer diretamente à cláusula geral do art.º132/1CP para qualificar o homicídio, nem acrescentar novas circunstâncias ao art.º132/2CP que não respeitem a “imagem global” de uma delas.69 Sinteticamente e nas palavras de Teresa Serra70 a enumeração exemplificativa concretiza a cláusula geral e a cláusula geral delimita a enumeração exemplificativa. É de concluir que há uma clara interdependência de análise entre os dois números do preceito do art.º132CP, sendo certo considerar que a admissão de outras circunstâncias deve estar delimitada aos casos em que “exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão”, podendo nesse caso, considerar-se a existência de um homicídio qualificado atípico. A questão do uso da cláusula geral e de conceitos indeterminados poderia fazer questionar a sua legitimidade tendo em conta a compreensão do princípio da legalidade e do princípio da proibição da analogia. Como sabemos, são princípios orientadores do programa político-criminal de emanação jurídico-constitucional. O princípio da legalidade (art.º 29/3/4, art.º165/1/c) CRP, art.º1CP) dispõe que não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior, nem sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos de que depende.71 A segurança, a confiança jurídica e o princípio

68

Serra, Ibidem, P.71; Ainda nesta linha de pensamento v.g. Maria Silva Pereira que considera ousado criar homicídios qualificados atípicos. “Sobretudo na base da pirâmide normativa, onde atua o juiz, confrontado com o caso concreto e sem legitimação democrática, parlamentar em última instância, que tem o legislador penal.” Rocha, Patrícia Micaela Marques in Homicídio qualificado – análise do a) e b) do nº 2 do art.º 132CP, Dissertação do 2º Ciclo de estudos em Direito, 2010, Coimbra Editora, P.74 e seguintes. 69 Monteiro, Ibidem, P.51 70 Ibidem, P.122, 123. 71 Antunes, Maria João, Consequências Jurídicas do Crime, 2013, Coimbra Editora, P.16

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da separação de poderes depende em boa medida deste princípio. Portanto, parece que a utilização de conceitos imprecisos e um tanto vagos pelo legislador poderia colocar em causa este princípio. Porém, essa ideia não vai ao encontro da realidade, dada a importância e até a inevitabilidade de uso de conceitos indeterminados e cláusulas gerais.

Não é possível exigir-se ao

legislador que redija textos que permitam uma única compreensão, o texto pode comportar múltiplos sentidos72 Atualmente tem havido uma tendência de “abertura” normativa da legislação penal,73 o que permite acompanhar a sociedade nos demais campos da sua evolução e tornar o Direito Penal atualizado em função das necessidades que se (re) definem com a evolução da sociedade. Ora, a técnica dos exemplos-padrão busca a sua essência numa cláusula geral (art.º132/1CP) que se concretiza através do elenco exemplificativo que são os exemplos-padrão. Teresa Serra reafirma que se compreende muito bem que as circunstâncias do nr.º2 devem ser exemplificativas, pois se assim não fosse a razão de ser da cláusula do nr.º1 sairia frustrada, todavia, o facto de essa cláusula recorrer a conceitos indeterminados 74 “não obsta a que possa afirmarse que a regra do art.º132CP é suficiente expressiva de um grupo valorativo de casos especialmente graves de homicídio. É a própria técnica dos exemplospadrão que possibilita esta conclusão.” A autora refere ainda que já seria duvidoso chegar à mesma conclusão caso o art.º132 se resumisse ao seu n.º1.75 Posto isto, não estamos perante a violação do princípio da legalidade, este “farol” continua a iluminar o Direito Penal, porém, para tanto não significa que se descuide uma aproximação à realidade de cada caso concreto e se force o

72

Nesta linha, Serra, Ibidem, P.116 e seguintes. Castanheira Neves apud Teresa Serra, Ibidem, P.117 74 Note-se que o preceito do art.º132 não contém apenas conceitos indeterminados no seu n.º1, contém também, por exemplo, nas alíneas c) e f) do n.º2 do art.º132CP, segundo a autora. Op.cit. P.120. 75 Serra, Ibidem, P.120. Neste sentido também v.g., Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense, Tomo I, 2012, Coimbra Editora, P51 e 52 73

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sistema penal àquilo que representaria uma tirania de definidas previsões que não

permitissem

lograr

conceitos

relativamente

indeterminados

importantíssimos como se vem a demonstrar ser, designadamente, o conceito de especial censurabilidade ou perversidade. No entanto, as cláusulas gerais e conceitos indeterminados devem ter uma utilização conforme ao princípio da legalidade. O problema do princípio da proibição da analogia é também relevante na análise de um homicídio qualificado atípico, isto é, se é possível existirem circunstâncias que, não obstante não constarem da lista dos exemplos-padrão elencados no n.º2 do art.º132CP, podem, todavia, revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente,76 isto sem estarmos perante uma violação do princípio da proibição da analogia. A resposta a esta questão é muito bem esclarecida por Teresa Serra que nos alerta para a análise do preceito do art.º132CP no seu conjunto, ou seja, “sozinha a cláusula geral do n.º1 é passível de críticas, em sede da função da garantia da lei penal, em virtude da sua grande indeterminação. Por seu turno, a enumeração exemplificativa do n.º2, tomada isoladamente, é suscetível de reparo, por constituir uma violação à proibição da analogia em direito penal.” Com a combinação do n.º1 e do n.º2 visa-se “atingir uma unidade nova e superior” e por isso mesmo, já não pode ser objeto das mesmas críticas, uma vez que “cada uma das duas partes do art.º132 exerce uma influência decisiva na outra, conduzindo a um resultado qualitativamente novo.”77

76 77

Neste sentido, Serra, Ibidem, P.121. Serra, Ibidem, P.122.

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7. Análise de Jurisprudência sobre a qualificação do homicídio Segue-se uma breve análise de alguma jurisprudência sobre a qualificação do homicídio, com intuito de observar como tem sido interpretado, na prática, a aplicação do preceito do art.º132CP. O exemplo-padrão da alínea a) do n.º2 do art.º132CP parece ser aquele que de forma mais firme mostra a objetividade do desprezo que o agente do crime tem não só com a vítima (note-se a – suposta – profunda ligação que será de esperar entre ambos) mas também com aqueles que deviam ser os valores mais básicos da humanidade, e que deveria sobreviver a todos os adversos impulsos (?) humanos contrários à natureza da dignidade da relação inerente à alínea a) do art.º em apreço. Porém, sublinha-se que o grau de parentesco não é o fator decisivo na qualificação do homicídio, pois não se pode esquecer que continuamos perante a exigência da verificação da especial censurabilidade ou perversidade.78 O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-12-1998, proferido no âmbito do processo n.º: 99P072, relatado pelo Juiz Flores Ribeiro exemplifica a este respeito: “Provado que o arguido, tendo representado a morte do filho como resultado possível da sua conduta e conformando-se com a sua produção, disparou sobre aquele um tiro de pistola que, efetivamente, lhe causou a morte, deve concluir-se que cometeu um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131 e 132, ns. 1 e 2, alíneas a), e f), do CP/95, se não se provou qualquer outra circunstância que afaste a especial censurabilidade e perversidade indiciada por aquelas duas alíneas a) e f), do n. 2, do citado artigo 132.”

78

Neste Sentido V.g. Figueiredo Dias, Op. Cit., P. 56, 57, 58.

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Fora destes casos ficariam situações em que, por exemplo, segundo Teresa Serra79, o pai mata o filho dominado pelo desespero de o ver sofrer de forma atroz no estádio terminal de uma doença incurável e dolorosa. Estruturado com apelo a elementos estritamente subjetivos, relacionados com a especial motivação do agente80 encontramos o exemplo-padrão da alínea e) do n.º2 do art.º132CP, “Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento para excitação ou satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil”. Nas palavras de Figueiredo Dias por “qualquer motivo torpe ou fútil” entende-se que o motivo da atuação deve ser considerado pesadamente “repugnante, baixo ou gratuito” de tal modo que o facto só pode mostrar um marcado menosprezo pela vida humana.81 Neste sentido encontramos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-041999, proferido no âmbito do processo n.º: 98P897, relatado pelo Juiz Dias Girão, no âmbito deste acórdão podemos observar a aplicação da alínea e) do n.º2 do art.º132CP, com base na especial censurabilidade ou perversidade indicada pelo cometimento de um crime cuja atitude do agente e a sua motivação demonstra aquilo que tem sido entendido como “motivo fútil e frieza de ânimo”, de onde podemos sintetizar o seguinte, ora: “Estando provado que: a) - O arguido e a vítima, sua mulher, tinham uma relação conflituosa, com discussões e agressões frequentes; b) - Regressado de Lisboa, onde estivera 15 dias, o arguido pretendeu que a sua mulher lhe entregasse dinheiro para as despesas pessoais; c) - Perante a recusa, e no seguimento de discussão, o arguido envolveu com o seu braço direito o pescoço de sua mulher, mantendo-a imobilizada,

79

Teresa Serra, Ibidem, P.69. Figueiredo Dias, Ibidem, P.62. 81 Figueiredo Dias, Ibidem, P.62 e 63. 80

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apertando-lhe a referida parte do corpo por forma a obstruir-lhe as vias respiratórias, atuação de que resultou a morte daquela; d) - O arguido manteve o pescoço da vítima apertado durante cerca de cinco minutos até sentir que deixara de respirar e de reagir, apercebendo-se, assim, da morte do seu cônjuge, sem mostrar compaixão ou respeito pela vida humana; desses factos resulta que a recusa da entrega do dinheiro, associada a antecedente discussão, funciona como motivo de importância mínima ou quase como ausência total de motivo, donde se conclui que o arguido se determinou por motivo fútil. Os factos constantes da alínea d) do número antecedente demonstram que o arguido agiu de forma insensível, com indiferença manifesta pela vida humana, com uma calma imperturbada reflexão no assumir da resolução de matar, denotando, assim, a sua conduta frieza de ânimo.” A “frieza de ânimo” é definida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-1999, proferido no âmbito do processo n.º: 99P151, relatado pelo Juiz Guimarães Dias como “uma calma ou imperturbada reflexão no assumir-se a resolução de matar, havendo pois "frieza de ânimo" quando o agente atua a sangue frio, de forma intencional e com indiferença pela vida humana.” Concretiza, neste sentido, também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

de

03-08-2011

proferido

no

âmbito

do

processo

n.º

830/09.8PBCTB.C1 relatado pelo Juiz Alberto Mira que “atua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; (…) devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.”

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O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-01-2015 proferido no âmbito do processo n.º 320/13.4GCBNV.E1 relatado pelo Juiz Felisberto Proença da Costa descreve como motivo fútil “assenta numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça, com os padrões éticos geralmente aceites na comunidade.” Porém, acrescenta o acórdão que já “não será motivo fútil a ausência (ou o desconhecimento) da motivação do agente.” Como podemos evidenciar este exemplo-padrão é alvo de inúmeras aplicações e definições pela nossa jurisprudência, quiçá por ser um exemplo-padrão que é altamente subjetivo. Não se mostram quaisquer dificuldades em encontrar jurisprudência a respeito desta alínea e), aliás é bastante frequente. A este respeito, Figueiredo Dias alude oportunamente que apesar do carácter estritamente subjetivo das situações referenciadas, não é exato concluir que elas valem imediatamente como censurabilidade ou perversidade do agente e por isso a sua natureza de exemplo-padrão esteja esbatida, porque segundo o autor, aqui podem existir “motivações não expressamente descritas que, pela sua estrutura valorativa correspondente a uma das descritas, permitam a qualificação”, como também poderá acontecer o contrário, isto é, “a situação ser uma tal motivação, se bem que expressa, não possa (…) valer como especial censurabilidade ou perversidade, máxime, por se ligar a um estado de afeto particularmente intenso (v.g. ciúme ligado à paixão).”82 Conclui-se, portanto, que não perdem a natureza de indicadores mesmo este exemplo-padrão, ainda que alvo de tanta subjetividade.

82

Ibidem, P.63

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Introduzido no CP em 1998 temos o exemplo-padrão que referencia a suscetibilidade de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente aquele que “praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez” na alínea c) do n.º2 do artigo que qualifica o homicídio. A este respeito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-1999, proferido no âmbito do processo n.º: 99P1022, relatado pelo Juiz Pires Salpico descreve que “comete o crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nsº 1 e 2, alíneas c) e g), do Código Penal, o arguido que, sem qualquer justificação ou perturbação de ânimo, aproveitando-se da circunstância de a vítima estar diminuída fisicamente, em resultado de um acidente que sofrera, a ataca pela retaguarda, de surpresa, arremessando-lhe às costas uma pedra com o peso de 5 kg., e que, após derrubar a mesma, desfere-lhe múltiplas pancadas na cabeça, no pescoço e na face, com o referido objeto, só parando depois de se certificar da sua morte.” Note-se a ligação da estrutura valorativa deste exemplo-padrão com a situação de desamparo da vítima, independentemente do meio utilizado para matar.83 Todavia, há que salientar que a situação de desproteção, desamparo, vulnerabilidade, fragilidade não é um fundamento automático (como nenhum é!) para a qualificação do homicídio, note-se como exemplo a situação da “morte infligida por razões de misericórdia a uma criança ou a um ancião moribundos e em sofrimento” mencionado por Figueiredo Dias. Não podemos nunca delegar para o esquecimento a natureza dos exemplospadrão, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-1999, proferido no âmbito do processo n.º: 99P288, relatado pelo Juiz Martins é evidenciada a importância da cláusula geral como fundamento e limite da qualificação do homicídio, sublinhando a natureza meramente indicadora de especial censurabilidade ou perversidade dos exemplos-padrão, não sendo

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Neste sentido, Figueiredo Dias, Ibidem, P.60

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estes aplicados de forma automática sem passar por aquilo que representa o “filtro” do artigo. Neste sentido, pode ler-se no acórdão: “ O legislador utilizou no artigo 132 do CP a chamada técnica dos exemplos padrão, sendo as circunstâncias elencadas nas diversas alíneas do n. 2 do preceito, meros indícios não taxativos e meramente enunciativos da existência ou inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente aludida no n. 1. É, pois, esta especial censurabilidade ou perversidade do agente o fundamento da aplicação da moldura penal agravada do homicídio qualificado e não as circunstâncias indicadas nos exemplos-padrão que não são de funcionamento automático.” De data mais recente e no mesmo sentido, encontra-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03-07-2013 proferido no âmbito do processo n.º 37/12.7JACBR.C1, relatado pela Juíza Olga Maurício de onde se pode extrair a referência de que é a especial censurabilidade e perversidade a “matriz da agravação”, sendo certo que “ao lado deste critério assente na culpa, o nº 2 contém uma enumeração aberta, meramente exemplificativa, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, (…) indicadores que não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador "entre outras". Neste acórdão, ficou provado que havia uma relação de confiança dado tanto a vítima como a arguida viverem juntos há bastante tempo, posto isto, a arguida terá agredido a vítima que se encontrava bastante alcoolizada e por isso incapaz de se defender das pancadas que foram sendo desferidas sucessivamente, começando a sangrar sem parar, a arguida ainda assim foi incapaz de pedir ajuda e auxiliar a vitima da sua brutalidade, ainda que sabendo da perigosidade do sangramento inerente à sobrevivência da vítima, o acórdão concluí por isso “que o crime cometido pela arguida se

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reveste da especial censurabilidade e perversidade a que alude o nº 1 do artº 132º do Código Penal.”

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8. Conclusão A qualificação do homicídio representa uma forte via de proteção da vida humana - bem jurídico fortemente tutelado pelo Direito Penal – aliado a uma dinâmica de proteção de valores inerentes à vivência em comunidade, protegendo relações e situações em que o ser humano se encontra mais vulnerável, quer seja pela confiança depositada e natureza das relações (extremamente) próximas, quer seja pela censura de motivações desprezíveis (de várias maneiras) e contrárias aos valores que cabem no âmbito da proteção do Direito Penal, quer seja ainda pelo modo de execução que é suscetível de demonstrar trilhos adversos aos valores intrínsecos à vida humana e à sua dignidade. O art.º132 CP é a via pela qual o legislador qualifica o homicídio, adotando neste sentido a combinação de um critério geral que consta do seu n.º1 com a chamada técnica dos exemplos-padrão. O critério geral é o fundamento e o limite da qualificação do homicídio, reportando-se à especial censurabilidade ou perversidade do agente. Todavia, este critério geral é constituído por preceitos relativamente indeterminados, sendo certo que a técnica dos exemplos-padrão veio como que auxiliar na concretização destes preceitos indeterminados. Posto isto, é legítimo concluir que os exemplos-padrão concretizam a cláusula geral e a cláusula geral limita e fundamenta a aplicação dos exemplos-padrão84. Os exemplos-padrão relevam como indicadores de especial censurabilidade ou perversidade do agente que cometeu o crime, porém, não são de aplicação automática, pois como se refere são meros indicadores que para serem preenchidos na qualificação de um homicídio têm de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente, deste modo se compreende a existência de duas conclusões: - O fundamento da agravação é o tipo de culpa, mostrando em todos os casos aquilo que Figueiredo Dias expõe como um “acentuado desvalor de atitude”, 84

Neste sentido, concordando-se com Teresa Serra, Ibidem, P.127

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seguindo-se por inteiro a tese por ele defendida sobre a natureza da agravação do homicídio. - O critério geral permite uma qualificação que vai para além dos (eventuais) indícios revelados pelos exemplos-padrão, sendo certo que pode existir aquilo que se tem vindo a chamar de homicídio qualificado atípico sendo que o determinante é a existência da especial censurabilidade ou perversidade do agente, e o mesmo justifica que possa encontrar-se uma conduta preenchida por um dos exemplos-padrão e não obstante não se encontrar verificada a especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do homicídio, e nesta hipótese será o crime punido nos termos do art.º131CP, que constitui o tipo base, tido como o “caso normal” da punição dos homicídios. Importante será sublinhar que a qualificação do homicídio não deve ser a regra da punição do homicídio, sendo que só deverá ser aplicado na presença de circunstâncias muito particulares e precisas descritas neste estudo, nunca perdendo de vista a agravação que lhe está inerente. Poderia ainda colocar-se a questão de a técnica utilizada no art.º132CP de alguma forma colocar em causa os princípios da legalidade e da proibição da analogia. Neste âmbito, creio ser completamente acertado o raciocínio que analisamos supra de Teresa Serra ao referir que da equação do n.º 1 e do n.º 2 do art.º132CP decorre um resultado qualitativamente novo, e por isso se afirma a compatibilidade dos exemplos-padrão com estes princípios. Nas palavras de Figueiredo Dias, concluo e termino esta análise aludindo que o método de qualificação do homicídio seguido entre nós, atribui ao aplicador uma “maior flexibilidade na valoração do caso concreto do que que aquela que lhe seria permitida se os elementos qualificadores tivessem sido considerados como puros elementos do tipo de ilícito, vem este método permitir à

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jurisprudência um uso moderado e criterioso da qualificação, impeditivo da multiplicação ad nauseam das hipóteses respetivas.”85

85

Ibidem, P.50

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Bibliografia - Antunes, Maria João, “Consequências Jurídicas do Crime”, 2013, Coimbra Editora. - Dias, Jorge de Figueiredo, “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I”, 2012, Coimbra Editora. - Monteiro, Elisabete Amarelo, “Crime de Homicídio qualificado e Imputabilidade Diminuída”, 2012, Coimbra Editora. -Palma, Maria Fernanda; Dias, Augusto Silva; Mendes, Paulo de Sousa; “Emoção e crime – Filosofia, ciência, arte e Direito Penal”, 2013, Almedina. - Rocha, Patrícia Micaela Marques, “Homicídio Qualificado – análise do a) e b) do n.º2 do art.º132CP”, Dissertação do 2º Ciclo de Estudos em Direito, Área de Especialização: Ciências Jurídico Criminais, Orientador: Sr. Prof. Dr. José de Faria Costa, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2010, Coimbra. - Revista do Ministério Público, depósito legal n.º11997/86, ano 14º, JulhoSetembro, n.º55, 1993. - Serra, Teresa, “Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena”, 1997, Almedina. Jurisprudência -Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-12-1998, proferido no âmbito do processo n.º: 99P072, relatado pelo Juiz Flores Ribeiro; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-04-1999, proferido no âmbito do processo n.º: 98P897, relatado pelo Juiz Dias Girão; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-1999, proferido no âmbito do processo n.º: 99P151, relatado pelo Juiz Guimarães Dias;

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- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-1999, proferido no âmbito do processo n.º: 99P1022, relatado pelo Juiz Pires Salpico; -Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-1999, proferido no âmbito do processo n.º: 99P288, relatado pelo Juiz Martins Ramires; - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03-07-2013 proferido no âmbito do processo n.º 37/12.7JACBR.C1, relatado pela Juíza Olga Maurício; - Tribunal da Relação de Coimbra 07-11-2012, proferido no âmbito do processo n.º: 33/11.1JACBR.C1, relatado pelo Juiz Calvário Antunes; -Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-08-2011 proferido no âmbito do processo n.º 830/09.8PBCTB.C1 relatado pelo Juiz Alberto Mira; - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-01-2015 proferido no âmbito do processo n.º 320/13.4GCBNV.E1 relatado pelo Juiz Felisberto Proença da Costa;

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