A necessidade de manutenção das tropas da ONU no Haiti

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A necessidade de manutenção das tropas da ONU no Haiti

Amanda Matos Valente1 Marília Garcia Pereira Castro

Resumo

Em 2016, foi anunciada a possibilidade de se estender o prazo para a saída das tropas da ONU do Haiti, que estão no território desde 2004 através da missão de paz denominada Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Essa saída estava prevista para outubro de 2016, e o possível adiamento, para abril de 2017, está relacionado ao cenário de instabilidade política em que o país se encontra atualmente. O presente artigo busca analisar a conjuntura atual do Haiti, bem como o contexto histórico de instabilidade em que o país se insere, para se compreender a necessidade da permanência das tropas da ONU no território.

Palavras-chave: Haiti. MINUSTAH. ONU. Operações de Manutenção da Paz.

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Alunas do curso de Relações Internacionais da PUC Minas

Contexto histórico da instabilidade no Haiti

O Haiti, pequeno país localizado no Golfo do México, é um Estado que nos últimos anos tem sido palco de vários conflitos. O país foi a primeira nação da América Latina a conquistar sua independência, em 1804, tendo em vista que até então a França era sua metrópole, e deu origem à primeira revolta de escravos bem-sucedida. Sua história é marcada por uma constante instabilidade de poder, alternada entre períodos de democracias e ditaduras (CHOMSKY; FARMER; GOODMAN, 2004). Organizações internacionais passaram a atuar no território a partir do golpe militar encabeçado pelo general Raoul Cedras, em 1991. Tanto a Organização das Nações Unidas (ONU) quanto a Organização dos Estados Americanos (OEA) outorgaram sanções econômicas ao Estado como forma de pressionar a volta do presidente eleito democraticamente, o padre Jean-Bertrand Aristide. Entretanto, somente em 1993 Cedras cedeu às reivindicações das organizações e os dois líderes assinaram um acordo para promover a volta do presidente Aristide ao poder (CHOMSKY; FARMER; GOODMAN, 2004). Desde então o Haiti continuou vivendo momentos intensos de crises, apesar da relativa estabilidade que se fez por meio das intervenções indiretas dos EUA – privatizações e instauração de um governo conservador – entre os anos de 1994 e 2000. Em 2000, o presidente Aristide se candidatou novamente e venceu recebendo 92% dos votos. Contudo, por mais esperançosas que fossem suas promessas, Aristide acabou desagradando o povo haitiano no que diz respeito à situação econômica do país, à falta de diálogo político e à repressão a opositores, gerando violentos protestos (A CRISE NO…, 2004). Sua impopularidade foi tamanha que a população requisitou sua saída em 2004, recebendo apoio dos Estados Unidos e do Brasil para tirar o presidente do cargo, que acabou renunciando (PRESTES; WINKLER, 2016). Em 2004, os militares estadunidenses fizeram a retirada do presidente Aristide do país. Os Estados Unidos declararam que tinham como intenção ajudar o povo haitiano a se reerguer. Entretanto, é inegável a existência de outros interesses, que podem ser muito bem delineados. Em 1994, houve uma crise política no Haiti que resultou na fuga de 50 mil pessoas em direção aos Estados Unidos. Desta forma, em 2004 o então presidente Bush identificou

Aristide como grande ameaça a uma crise política doméstica no Haiti, desencadeando grande animosidade contra o país. Para remediar essa situação, o governo de Bush contribuiu para a saída do presidente com o objetivo evitar qualquer tipo de incômodo nesse sentido (SILVA, 2004). Como instrumento para pressionar a saída do presidente haitiano, os republicanos (partido de Bush) se juntaram a instituições financeiras americanas e europeias e diminuíram o auxílio econômico submetido ao país. Em outras palavras, os Estados Unidos estavam criando uma situação de constrangimento para o presidente haitiano e de instabilidade no país, de modo que incitava a desaprovação do governo por parte da população (SILVA, 2004). Além disso, percebe-se claramente a tentativa de estabelecer uma certa hegemonia geopolítica na região, através de uma demonstração do poder estadunidense (EUA SE TORNAM…, 2010).

Missão para estabilização, o papel do Brasil e o terremoto

Logo após a saída do presidente Aristide, houve uma grande instabilidade social no país e uma crescente violência por parte da população, com a emergência de diversos protestos e confrontos armados. O país passava por uma série de problemas sociais e econômicos, intimamente relacionados à crise política, como a pobreza extrema e a debilidade em sistemas de educação, saúde, infraestrutura, etc. (GOMEZ, 2004). O presidente interino Bonifácio Alexandre, logo no início de seu mandato, pediu ajuda à ONU para promover uma transição governamental pacífica. O momento foi caracterizado como o início da missão da ONU que existe no país até os dias atuais, a MINUSTAH (SALVADOR, s/d). Contudo, operações anteriores da ONU já haviam sido estabelecidas, como a UNMIH em 1993, a UNSMIH em 1996, a UNTMIH em 1997 e a MIPONUH, também em 1997 (UNITED NATIONS, 2013). As chamadas operações de manutenção da paz da ONU visam contribuir para a paz e a segurança em regiões de conflito. Essas operações começaram a ser mais empregadas com o fim da Guerra Fria e, de modo geral, podem ser caracterizadas como operações estabelecidas pela organização e financiadas por seus membros, que têm como objetivo promover a estabilidade em

determinado território, agindo com respeito a princípios de imparcialidade, consentimento e mínimo uso da força (FAGANELLO, 2013). Neste sentido, é importante também pensar o princípio denominado “Responsibility to Protect” (R2P), que diz respeito ao comprometimento dos Estados em proteger a população dos diversos crimes contra a humanidade2. Em 2011, o Brasil apresentou um relatório à ONU em que defende uma nova forma de pensar o princípio, o “Responsibility While Protecting” (RWP), que inclui uma maior consideração de alguns aspectos antes da intervenção militar 3 (GLOBAL CENTRE FOR THE RESPONSIBILITY TO PROTECT, 2012). A MINUSTAH – Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti – foi criada pela ONU em 2004 para promover uma transição de governo segura e a proteção do próprio ambiente e da sociedade haitiana. Entre algumas de suas tarefas estão o monitoramento, reconstrução e reforma da Polícia Nacional Haitiana, a promoção de programas para o desarmamento, desmobilização e reintegração da população, auxílio no cumprimento das leis, segurança e ordem pública no país e fortalecimento das instituições governamentais (MINUSTAH, 2016). A missão conta com a participação do Brasil, que lidera a missão, bem como dos EUA, Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Equador, França, Guatemala, Jordânia, Nepal, Paraguai, Peru, Filipinas, Coreia do Sul, Sri Lanka e Uruguai (EUA SE TORNAM…, 2010).4 O Brasil se prontificou a liderar os capacetes azuis5 na missão visando maior projeção do poder das Forças Armadas Brasileiras. A participação do Brasil e suas reais intenções foram questionadas. Uma das controvérsias existentes é a de que o país contribuiu somente para conseguir prestígio internacional sem se importar com as reais necessidades do Haiti e para tanto

Para mais informações sobre o “Responsibility to Protect”, acessar: http://www.globalr2p.org/about_r2p. 3 Para mais informações sobre o “Responsibility While Protecting”, acessar: http://globalpolicy.columbia.edu/sites/default/files/responsibility_while_protecting_cgpi_report_2 015.pdf. 4 Para mais informações sobre a MINUSTAH, e a participação do Brasil, acessar: https://pucminasconjuntura.wordpress.com/2014/04/29/o-background-de-intervencoesmilitares-20-anos-apos-o-genocidio-em-ruanda-o-papel-do-brasil-no-desenvolvimento-de-umnovo-conceito/. 5 Os chamados “capacetes azuis” são forças enviadas pelo Conselho de Segurança a fim de ajudar a aplicar os acordos de paz, vigiar o cessar-fogo, patrulhar zonas desmilitarizadas, criar zonas-tampão entre as forças adversárias, e suspender os combates, enquanto os negociadores procuram encontrar soluções pacíficas para os diferendos (UNRIC, s/d). 2

tornou-se chefe militar da MINUSTAH (SALVADOR, s/d). A vontade brasileira de ampliar sua participação no Conselho de Segurança da ONU visando a reforma e um possível assento permanente justifica sua maior disposição a participar de questões relacionadas a conflitos internacionais (ARTIAGA, 2012). A participação do Brasil na missão no Haiti insere-se justamente nesse contexto. O governo brasileiro, por outro lado, afirma que sua participação visa a melhoria na situação do país e na vida da população haitiana. Segundo o Ministério da Defesa, “a participação dos militares brasileiros é reconhecida pelo povo haitiano e por autoridades internacionais pela desenvoltura com que combinam funções militares, como o patrulhamento, com atividades sociais e de cunho humanitário” (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2014). De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, o Brasil contribui atualmente com 1.406 militares no território haitiano, e a participação brasileira na missão está baseada no tripé “presença militar”, “reconciliação política” e “soerguimento econômico” (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2016). É inegável que a presença da MINUSTAH e do contingente brasileiro contribuiu em certo sentido de maneira positiva para a realidade do país, inclusive após o catastrófico terremoto de 2010. Em 12 de janeiro de 2010, o Haiti foi atingido por um terremoto de 7.3 na escala Ritcher, que deixou 200 mil mortos, 3 milhões de desabrigados e 40 mil amputados. O terremoto atingiu todo o país, afetando a infraestrutura, o funcionamento do Estado, a educação, o sistema de prisões, o sistema de hospitais, entre outros. Imediatamente diversos países se prontificaram para ajudar. Em virtude da falta de estrutura do Estado, as mobilizações em portos e aeroportos para receber suprimentos e a presença de pessoas para ajudar os feridos foram prejudicadas de forma que afetasse a agilidade da operação (STEINMAN et al., 2011). Como consequência do terremoto, os seis anos de avanços da operação no território sofreram muitas perdas, a sociedade precisou de uma maior ajuda internacional e os objetivos da MINUSTAH tiveram que sofrer algumas alterações, abrangendo também questões de cunho humanitário e o resgate das vítimas (SALVADOR, s/d; BRASIL E OS…, 2014). Para autoridades haitianas, e até para universitários, “o terremoto pode ser uma oportunidade” (para o Haiti sair do esquecimento); para o imperialismo, o Haiti nunca foi “esquecido”, e a “oportunidade” para submetê-lo ainda mais está

sendo aproveitada a fundo. O terremoto criou a oportunidade para que a última fase da operação pudesse se aprofundar no país, dando brecha para uma nova e maior submissão do país às organizações internacionais e aos países que o ajudavam em sua estabilização (COGGIOLA, 2010) Os Estados Unidos aproveitaram a situação para a criação de vínculos comerciais de cooperação. Os dois países aboliram tarifas alfandegarias e qualquer tipo de taxação que o governo poderia estabelecer. O Haiti, como forma de fomentar o carisma com os EUA, se comprometeu a avançar com a privatização de serviços públicos no país. A inflação dos alimentos no país recém destruído desencadeou o recrudescimento dos ânimos da população, e a sociedade começou a protestar contra a alta do preço dos alimentos e a quantidade de pessoas que passavam fome. A ONU, por sua vez, declarou que o aumento do preço dos alimentos era uma ameaça à “segurança no país” (SALVADOR, s/d). Seis anos depois do terremoto, algumas situações de risco ainda permanecem no país. De acordo com o Escritório de Sismologia, o risco de mais um terremoto em proporções maiores do que o de 2010 permanecem. Novos prédios e moradias foram construídos em lugares considerados arriscados. Aqueles que vão ao Haiti seis anos após a tragédia ainda se deparam com situações de calamidade. Alguns edifícios e casas ainda não foram reconstruídos, as pessoas estão vivendo em péssimas condições de vida, algumas viviam em centros de refugiados e foram despejadas, sendo realocadas para subúrbios das cidades sem ao menos ter condições mínimas para manter uma casa. Em suma, para o povo do Haiti, a passagem de seis anos parece não fazer diferença (HAITI EARTHQUAKE: FIVE…, 2016). De alguns anos atrás para hoje, não foi possível observar grandes diferenças na situação política e econômica do país. Porém, é perceptível, ainda que pequena, uma mudança positiva no país. Com o apoio dos militares enviados pela MINUSTAH, a formação da Polícia Nacional Haitiana vem sendo fomentada, passando de 5 mil policiais para 11 mil em 2014, em um país no qual as Forças Armadas ainda não existem (BRASIL E OS…, 2014). Entretanto, como afirma o Comandante do Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil, Coronel Vendramin, “os objetivos conjuntamente traçados pelo governo haitiano não foram atingidos. A saída precoce de uma missão de paz pode ocasionar o

recrudescimento do conflito e a volta da insegurança social. A Polícia Nacional do Haiti, por exemplo, ainda não foi suficientemente treinada pela MINUSTAH e não atingiu os efetivos numéricos necessários para prover a segurança para todo o país (…) A presença da força militar ainda se faz imprescindível” (GOMBATA, 2014).

Conjuntura política atual do Haiti e permanência das tropas

O comandante das forças de paz da ONU no Haiti, Ajax Porto Pinheiro, anunciou em agosto de 2016 a possibilidade de se adiar a retirada das tropas da MINUSTAH, que estava prevista para outubro deste ano, para abril de 2017, ainda que não tenha havido uma decisão oficial por parte do Conselho de Segurança. Isso se deve ao cenário de crise política em que o país se encontra atualmente (KAWAGUTI, 2016). Não é a primeira vez em que há o adiamento da retirada das tropas no Haiti, o que evidencia a instabilidade enfrentada pelo país ao longo dos anos.6 As eleições presidenciais de 2015 no país passaram por uma série de escândalos de fraudes e por um cenário de violência, o que fez com que um governo interino assumisse em fevereiro de 2016, ficando responsável por organizar novas eleições (MIROFF, 2016). A ONU demonstrou grande preocupação com as suspensões do pleito eleitoral, sendo que representantes da organização e da MINUSTAH apontaram para o fato de que a crise política enfrentada pelo Haiti pode dificultar qualquer perspectiva positiva para o futuro do país. A Representante Especial e Chefe da missão, Sandra Honoré, afirmou, em março desse ano, que “não há possibilidade de se retornar, o mais rápido possível, ao caminho da estabilidade institucional e política, com eleições pendentes” (SECURITY COUNCIL CALLS…, 2016). Após não conseguir realizar as eleições em abril, conforme previsto inicialmente, o governo atual de Jocelerme Privert estabeleceu como novo prazo o mês de outubro de 2016. Mesmo que o prazo inicial fosse visto por muitos como utópico, o cancelamento das eleições gerou uma onda de protestos, o que 6

A retirada das tropas, que após a morte e a prisão dos rebeldes em 2007 estava prevista para 2011, foi adiada devido ao terremoto que ocorreu no país em 2010.

aumentou o clima de instabilidade política no país (UN EXPRESSES ‘CONCERN’…, 2016). Com o primeiro turno marcado para o dia 9 de outubro e o segundo turno para o dia 8 de janeiro do próximo ano, diversas incertezas permanecem. Além da crise política que assola o país, há indícios do ressurgimento de grupos paramilitares semelhantes àqueles cuja existência motivou a criação da missão em 2004. O país enfrenta uma onda de violência e graves problemas econômicos e sociais relacionados a um cenário de pobreza e desigualdade na população, o que indubitavelmente agrava ainda mais a situação política (KAWAGUTI, 2016). Neste contexto, a permanência das tropas da ONU no Haiti torna-se quase que essencial para a manutenção de certa estabilidade durante o período das eleições. Entretanto, uma decisão oficial ainda requer uma reflexão acerca de alguns fatores, como por exemplo os planos da organização de alocar seus recursos em outras operações. O chefe do departamento de missões da ONU, Hervè Ladsous, também enfatizou a impaciência dos países envolvidos na missão com a falta de resultados no Haiti após tantos anos de ajuda (KAWAGUTI, 2016). Isso poderia acarretar a retirada de auxílio econômico e de recursos da operação, comprometendo fortemente o futuro do país.

Considerações finais

A conjuntura atual do Haiti deve-se ao histórico de instabilidade política que o país enfrenta há muito tempo. É inegável que os interesses geopolíticos e particulares de alguns Estados podem contribuir ainda mais para a insatisfação da população, aumentando o clima de instabilidade. Neste sentido, é importante levar em conta os avanços e retrocessos pelos quais o país passou nos últimos anos para se pensar de forma mais ampla sobre a própria efetividade da MINUSTAH. Faz-se necessário, assim, uma reflexão mais profunda acerca da própria atuação da missão ao longo dos anos para se compreender a possibilidade de uma maior permanência desta no território. Como foi observado, muitos objetivos propostos pela operação não foram atendidos, o que explica a presença desta até os dias atuais e a preocupação dos países e organizações internacionais.

A necessidade de se estender o prazo da manutenção das tropas para abril de 2017 é justificada pela crise política enfrentada pelo país atualmente, bem como pela ameaça de uma maior violência na região. Esse prolongamento, apesar de não oficial, parece muito provável devido à situação enfrentada atualmente pelo Haiti. Resta à sociedade haitiana e aos países que contribuem com a missão a esperança de que as eleições no país ocorram de forma segura e democrática e de que o país consiga alcançar um futuro com maior estabilidade política que possa contribuir para a melhora no quadro social e econômico do Haiti, o que possibilitaria finalmente a retirada das tropas do território.

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