A Neutralidade Kelseniana e a Norma Fundamental como pressupostos de validade mitológica do Direito: O Problema do Esvaziamento Pragmático Do Positivismo

July 1, 2017 | Autor: Rafael Faria Basile | Categoria: Hans Kelsen, Positivismo Jurídico, Norma Fundamental
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A NEUTRALIDADE KELSENIANA E A NORMA FUNDAMENTAL COMO PRESSUPOSTOS DE VALIDADE MITOLÓGICA DO DIREITO: O PROBLEMA DO ESVAZIAMENTO PRAGMÁTICO DO POSITIVISMO JURÍDICO* KELSEN’S NEUTRALITY STANDARD AND BASIC ASSUMPTIONS AS DATE MYTHOLOGY LAW: THE PRAGMATIC EMPTHYING PROBLEM OF LEGAL POSITIVISM

Rafael Faria Basile RESUMO A tese central deste trabalho é um resgate da chamada “pureza metodológica” pensada por Hans Kelsen em seu trabalho enquanto justificativa de uma epistemologia jurídica própria desenvolvida em sua principal obra, Teoria Pura do Direito. A preocupação em estabelecer uma análise estrita dos conceitos jurídicos a partir de uma validade estrita que se inicia com a separação entre o direito e a natureza, bem como com a identificação de que os sentidos subjetivo e objetivo dos atos são separados pela estrita legalidade. A proposta conceitual de Kelsen carrega consigo uma estrita fidelidade de sua metodologia de uma epistemologia jurídica não legatária de elementos meta jurídicos, para pensar a neutralidade do sistema e verificar as condições de possibilidade de um método transcedental para investigação das condições apriorísticas da ciência do Direito, é instituidora de um referencial de validade estritamente mitológico. Isto porque, sendo um pressuposto de neutralidade e validade que não encontram correspondência de conexão no plano fático da moral ou das ciências sociais, a concepção normativa kelseniana é deferidora de um sistema que gravita em uma justificativa estritamente mitológica, que não encontra correspondência de validade na experiência normativa histórica de um povo. Ademais, vemos que a perspectiva de um sistema referenciado tão somente pela validade permite uma leitura do positivismo jurídico como medida justificadora não de um ilusionismo ou de um referencial apofântico da linguagem, mas o deferimento de um espaço lógico-temporal no qual não se trabalha uma concepção pragmática dos valores jurídicos. O que se pretende é identificar o esvaziamento ético e axiológico aberto pela proposta do positivismo jurídico enquanto tentantiva de separação do jurídico e do justo, quando talvez a acepção kelseniana de que no “sentido jurídico-positivo, fonte do direito só pode ser o direito” (KELSEN, 2006, p. 239), que cria um referencial mitológico de validade e possibilidade de aplicação do direito. PALAVRAS-CHAVES: POSITIVISMO NEUTRALIDADE; MITOLOGIA.

JURÍDICO;

VALIDADE;

ABSTRACT *

Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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The central thesis of this paper is a rescue call "methodological purity" designed by Hans Kelsen in his work as a justification for its own legal epistemology developed in his major work, Pure Theory of Law. The concern to establish a strict analysis of legal concepts from a strict life that begins with the separation between law and nature, as well as the identification of the subjective and objective meanings of acts are separated by the strict legality. A conceptual proposal for Kelsen carries a strict fidelity to its method of legal epistemology not legality of legal meta elements, to think the neutrality of the system and check the conditions of the possibility of a transcendental method to investigate the conditions of a priori knowledge of the law, not operate in a referential validity strictly mythological. This is because, being an assumption of neutrality and validity as no corresponding connection in terms of factual moral or social science, the normative conception deferidora Kelsen is a system that revolves strictly mythological justification, which does not have its validity in normative historical experience of a people. Furthermore, we see that the prospect of a system referred to as the only valid to a reading of legal positivism as a means of justifying not an illusion or a reference apophantic language, but the acceptance of a logical space-time in which no one works pragmatic conception of legal values. What is intended is to identify the ethical and axiological emptying open by the proposal of legal positivism while trying to separate the legal and fair, when perhaps the meaning Kelsen that the "positive-legal sense, a source of law can only be the right "(Kelsen, 2006, p. 239), which creates a mythological reference to validity and the applicability of the law. KEYWORDS: LEGAL POSITIVISM; VALIDITY; NEUTRALITY; MYTHOLOGY.

1. Introdução O significado essencial do mito é "a transposição de planos, de processo que obriga uma realidade a cumprir um vistoso salto de níuveis transformando-se em uma metarealidade" (GROSSI, 2006, p.58). As palavras acima citadas revelam-nos que talvez a proposta de neutralidade metodológica para a validade normativa no Direito inaugurada pela Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen em verdade tenha cumprido a função de instaurar uma instância de validade mitológica na epistemologia jurídica da contemporaneidade. E a principal questão que se coloca é que a concepção do Direito como sistema dotado da prerrogativa de uma produção semântica deixa de ser, a partir de Kelsen, uma questão de conteúdo para se tornar uma prerrogativa de autoridade, de competência jurídica do exercício de um poder discricionário, assim como a mitologia fez para justificar seus preceitos de ordem e comando na antiguidade.

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2. Desenvolvimento Efetivamente, a pureza e neutralidade metodológica de Kelsen tornam vazios os fundamentos axiológicos que explicam o sentido do texto normativo, não em sua essência, mas enquanto experiência concreta das formas de vida na sociedade. Assim, o Direito se realiza como instrumento normativo pela sanção, mas os motivos justificadores do texto estão na construção de seus pressupostos narrativos. A grande justificativa do positivismo jurídico está em que "Recusada a justiça e a eficácia como critérios de juridicidade, o positivismo vai ter de elaborar o seu próprio critério. Este será a "validade". Norma jurídica não é norma justa ou norma eficaz, mas norma válida. E, de acordo com Bobbio, para o positivismo a validade de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma, pela qual essa existe na esfera do direito ou, em outros termos, existe como norma jurídica: dizer que uma norma jurídica é válida significa dizer que essa faz parte de um ordenamento jurídico." (BARZOTTO, 2004, p. 20) A partir daí vemos que a estrita validade é a marca do positivismo jurídico para pensar a possiblidade de um sistema epistemologicamente estruturado para explicação dos conceitos jurídicos. Contudo, um sistema jurídico também gravita em torno do problema da justiça das normas jurídicas e da justiça das decisões. Tal perspectiva leva em conta o que Manuel Atienza chama de construção de argumentos não apenas para justificação, mas também para aplicação do direito. Porém, a análise que Kelsen tem por objetivo fazer da norma jurídica anula a possibilidade de compreensão da justiça e da eficácia, inserindo tão somente uma preocupação que remonta à idéia de origem normativa para a compreensão do que o direito é. Como referncial mitológico havemos que considerar que não estamos anulando sua capacidade de estabelecer um referncial, mas tão somente comparando ou estabelecendo um paralelo de tal proposta epistemológica com uma narrativa tal qual é construída pelos mitos. Mitologia é o estudo de quaisquer lendas religiosas ou heróicas que sejam tão estranhas à experiência de um estudante que ele não consegue acreditar em sua veracidade. Aqui, chama-nos atenção que a proposta normativa da ciência do Direito lançada por Kelsen efetivamente não nos foge à possibilidade de crença ou verificação quanto a sua possibilidade, mas uma dificuldade conceitual de apreensão da neutralidade rígida que o autor pretende instituir para a ciência do Direito. Efetivamente, para o positivismo jurídico o "verdadeiro fundamento de validade de uma norma não é o poder, mas outra norma" (BARZOTTO, 1999, p. 22), quando então efetivamente a discussão sobre a validade do direito é diretamente transposta para um referencial de fundamentação inexistente quanto aos seu conteúdo, 265

abandonado em um locus de validade estanque e referenciadora de uma autoridade culturalmente pressuposta. Também, todo edifício kelseniano é construído para validar um positivismo jurídico da idéia de "autoprodução" do direito no sentido de que uma norma seja considerada válida se, e somente se, foi posta por uma autoridade que recebeu o poder de emanar normas obrigatórias por uma autoridade superior, à qual por sua vez foi autorizada por uma autoridade ainda superior. Acrescente-se que para o positivismo jurídico, a validade, que diz respeito ao conceito de coerência da norma jurídica dentro da estrutura de um sistema, é uma qualidade puramente jurídica. Contudo, a essencialidade da qualidade jurídica talvez tenha por fito isolar a norma jurídica e, via de conseqüência, coloca o edifício positivista em xeque quando Além disso, Outro artifício do positivismo para estampar um isolamento da moral está na norma fundamental, que institui o critério de validade para o direito em um raciocínio de circularidade fundante na ciência do Direito. De fato, a concepção positivista do direito pressupõe o direito como uma estrutura escalonada de normas, necessário para evitar que o direito fundamente-se na moral (um consenso valorativo originário) ou na política (um ato de poder), que uma norma jurídica constitua um fundamento do ordenamento. (BARZOTTO, 1999). Contudo, haveremos de delimitar o sentido de um positivismo jurídico enquanto referencial de validade mitológico. De acordo com Galuppo (2002a, p.7) O Positivismo Jurídico, apesar de contido em germe na gênese da própria Modernidade, é muito mais radical que a positivação, consistindo numa epistemologia e numa ideologia de leitura do direito positivo, essencialmente metafísica, que crê, de uma forma um tanto quanto contraditória com a idéia de mudança inerente ao fenômeno da positivação, na auto-existência do objeto criado pelo homem, notadamente da lei, razão pela qual o Positivismo pretende converter o conhecimento jurídico em ciência. (GALUPPO: 2002ª, p. 7) Em especial, chama-nos atenção o que Galuppo (2002a) destaca como a primeira e principal característica do positivismo jurídico: a ficção. Tal elemento, criador de um referencial de validade absolutamente ficcional e da lei como objeto "auto existente", retira a possibilidade de conhecimento quanto a essência normativa ou valorativa, enquanto a inteligência humana adquire tão somente uma perspectiva de seu conhecimento enquanto "objeto" estudado, e não de suas razões. Tal vertente ou compreensão do positivismo jurídico referencia-se na aceitação de certa falibilidade e insuficiência da inteligência humana para o conhecimento do sistema jurídico, sob o qual seria apenas formular um convencimento de uma estrutura ficcional legatária de uma forma representativa de validade e verdade, ou seja, um referencial eminentemente mitológico para a verificação da validade do direito. Também, temos que considerar quais seriam as efetivas ou verdadeiras propostas do positivismo jurídico enquanto epistemologia jurídica da validade e do conhecimento sobre a norma jurídica, segundo Norbert Hoerster 266

A chamada atribuição de sentido objetivo a um ato de vontade subjetivo empenhada por Kelsen é semelhante à validação que os mitos fazem, na história, para deferir sentido a atos e fenômenos da natureza. A aproximação que pretendemos fazer é de que tal referencial de validade transpõe a esfera estrutural da justiça para o Direito, opondo uma fabula do discurso jurídico pela via da validade. Quanto à natureza mitológica de tal operação de pressuposição de conceitos pela via da validade normativa no direito, haveremos por destacar qual sentido da palavra mitologia estamos empregando. Do ponto de vista de qualquer ortodoxia, mito pode ser definido simplesmente como a religição de outro povo, para o qual uma definição equivalente de religião seria mitologia mal compreendida, a má compreensão consistindo na interpretação de metáforas míticas como referências ao fato real. Assim como os sonhos, os mitos são produtos da imaginação humana. Em consequência, suas imagens, embora derivadas do mundo material e de sua suposta história, são, a exemplo dos sonhos, revelações das esperanças, desejos e temores mais profundos, de potencialidades e conflitos, da vontade humana - que, por sua vez, é movida pelas energias dos órgãos do corpo operando de formas diversas uns contra os soutros e em conjunto. Isso quer dizer que todo mito, intencionalmente ou não, é psicologicamente simbólico. Portanto, suas narrativas e imagens devem ser lidos, não literalmente, mas como metáforas. (CAMPBELL: 1988, p. 55) No mesmo sentido encontramos uma simbologia e uma explicação do relacionamento do mito com a realidade no conceito de Ferrater Mora Chama-se mito a um relato de algo fabuloso que se supõe que aconteceu num passado remoto e quase sempre impreciso. Os mitos podem referir-se a grandes feitos heróicos que, com frequência são considerados como fundamento e o começo da história de uma comunidade ou do género humano em geral. Podem ter como conteúdo fenómenos naturais, e nesse caso costumam ser apresentados alegoricamente. Muitas vezes, os mitos comportam a personificação de coisas ou acontecimentos. Quando o mito é tomado alegoricamente, converte-se num relato com dois aspectos, ambos igualmente necessários: o fictício e o real. O fictício consiste em que, de facto, não aconteceu o que o relato mítico diz. O real consiste em que, de certo modo, o que diz o relato mítico corresponde à realidade. O mito é como um relato daquilo que poderia ter acontecido se a realidade coincidisse com o paradigma da realidade. Na antiguidade, alguns, como os sofistas, separaram o mito da razão, mas nem sempre para sacrificar inteiramente o primeiro, pois com frequência admitiram a narração mitológica como envoltura da verdade filosófica. Esta concepção foi retomada por Platão, especialmente quando considerou o mito como modo de expressar certas verdades que escapam ao raciocínio. Neste sentido, o mito não pode ser eliminado da filosofia platónica, pois desapareceriam então dela a doutrina do mundo, da alma e de Deus, bem como parte da teoria das ideias. O mito é para Platão, muitas vezes, algo mais que uma opinião provável. Mas, ao mesmo tempo, o mito aparece nele como o modo de expressar o reino do devir. (FERRATER MORA: 1978, p. 187)

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O modelo de referência que a norma fundamental cria pode ser compreendido, via de regra, como uma referência de validade de um ponto cuja essência é inatingível, inalcançável. Assim, a fundamentação mitológica do referencial de validade estaria presente na característica proposta por Kelsen no sentido de verificar-se uma teoria capaz de instituir um controle sobre a validade do direito não se pautando em discussões ou debates referenciados pelo justo/injusto, mas efetivamente por critérios de validade tipicamente sistemática (GALUPPO, 2002a) Este conceito de ciência, que pressupõe neutralidade do próprio conhecimento jurídico, concebido em si mesmo como uma empreitada sistematizadora da realidade jurídica, produz no final do século XX uma série de paradoxos insuperáveis pelo próprio paradigma. De um lado, encontramos na Ciência do Direito um rigorismo jurídico, que só encontra precedentes no rigorismo moral kantiano, e que desconhece completamente a ética da responsabilidade inerente não ao conhecimento (descritivo) da realidade (natural), mas à ação política e jurídica, que articularia, em uma sociedade plural, o direito com a moral e com a ética, evidenciando seus compromissos com a ação prática. Assim, o Positivismo Jurídico, por sua metodologia, opera um reducionismo no próprio fenômeno. A terceira e quarta características da epistemologia do Positivismo Jurídico são, portanto, a adoção do critério de verdade para aferição do conhecimento e a adoção do pensamento sistemático, que pretende encontrar na Ciência do Direito um processo de redução da complexidade do ordenamento jurídico positivado, recorrendo-se à construção de um sistema baseado em classificações, divisões, etc. (GALUPPO: 2002a, p. 4) Além dos problemas destacados por Galuppo (2002a), havemos por destacar o ponto fundamental que pretendemos enfrentar: Não seria, tal proposta de neutralidade e validade do positivismo jurídico, determinante de um referencial estritamente mitológico para a ciência do Direito? Os problemas de um referencial de validade para a ciência do Direito posto em uma estrutura mitológica encontrariam a intangibilidade e impossibilidade de conhecimento do objeto estudado, tal qual os mitos pretendiam com a verdade e a realidade. Efetivamente, contribui o esclarecimento empenhado por Hoerster quanto à tese da neutralidade defendida por Kelsen no sentido de que Portanto, do ponto de vista do conceito de Direito, o direito vigente pode ter qualquer conteúdo. Normas tanto extremamente imorais ou injustas como as leis racistas na Alemanha de Hitler ou no atual Sul da África se submetem ao conceito de direito se respondem aos princípios constitucionais internos do respectivo ordenamento jurídico. (HOERSTER: 1992, p. 12)[1] As narrativas mitológicas, na história da humanidade, cumpriam um objetivo de justificação do objeto (vida e realidade), que colocavam seus destinatários em uma posição tão somente conformista e de aceitabilidade dos seus preceitos, sem jamais ser possível uma verificação do sentido de verdade semântica subjacente a tal discurso. Portanto, chegamos a uma possibilidade de compreensão do referncial mítico validado na Teoria Pura do Direito de Kelsen, ao determinar o conceito de norma jurídica referenciada por uma neutralidade metodológica, ao possibilitar-se vislumbrar que, assim como os mitos, a proposta kelseniana se torna efetivamente um pressuposto 268

cultural da ciência jurídica moderna, uma tentativa de justificação do caráter coativo e imperativo das normas jurídicas furtando-se à discussão de problemas conceituais e estruturais para a ciência do Direito, como, por exemplo, o problema da justiça. Na época contemporânea, prevaleceu o estudo do mito como elemento possível, e em todo o caso ilustrativo, da história humana e de certas formas de comunidade humana. O mito não é mero objecto de pura investigação empírico-descritiva, nem tão pouco é manifestação histórica de nenhum Absoluto: é modo de ser ou forma de uma consciência: a "consciência mítica". Esta consciência tem um princípio que se pode investigar mediante um tipo de análise que não é nem empírica nem metafísica, mas em sentido muito lato - epistemológico. Mas como, ao mesmo tempo, a consciência mítica é uma das formas da consciência humana, o exame dos mitos ilumina a estrutura dessa consciência. O que se investiga deste modo é a função dos mitos na consciência e na cultura. A formação de mitos obedece a uma espécie de necessidade: a necessidade da consciência cultural. Os mitos podem ser considerados como supostos culturais. (FERRATER MORA: 1978, p. 189) Nesse sentido, vemos que o discurso pretendido pelo positivismo jurídico defere as características fundamentais de um referencial mitológico, produto de uma consciência das formas humanas que estrutura e justifica o sistema do direito. Além disso, vemos que remanesce o problema de que, a justificação ou plano de justificativa dos valores subjacentes às normas jurídicas e ao Direito em uma estrutura rígida e essencialmente normativa tal qual a pretendida pelo positivismo jurídico e da forma como acima demonstrada, retira a possibilidade de formação de qualquer convencimento ou conhecimento humano quanto aos preceitos que ensejam a formação destes mesmos valores. Também, cumpre-nos destacar que a essencialidade do discurso mitológico cria uma esfera de distanciamento e uma convicção sem qualquer questionamento dos pressupostos de formação dos conteúdos subjacentes à norma fundamental, seus elementos e sua aplicabilidade. Uma forma de linguagem instituída pela mitologia, que aqui muito se aproxima da proposta da neutralidade do positivismo jurídico está na estrutura da linguagem criada pelo positivismo jurídico de uma literatura especificamente encarregada de perpetuar esta linguagem. Segundo Junito de Souza Brandão (2005: p. 238) Desejamos, tão somente, mais ma vez, e à guisa de 'memento', observar, com se frisou no vol. I, cap. 1, p. 26, que sempre houve um liame muito forte, na Grécia, entre mito e literatura, já que esta, por motivos que não interessa repisar aqui, tinha por matéria prima, não raro obrigatória, o mitologema." Assim também, na literatura jurídica contemporânea, o positivismo jurídico e a tese da neutralidade aparecem como centros de justificação de um referencial de validade que não encontra sustentáculo em uma possibilidade da passagem do referencial semântico para o pragmático, no sentido de que não se propõe, com a validade instituída pelo positivismo jurídico, uma perspectiva de justificação dos valores jurídicos subjacentes à norma.

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Isto cria o problema do esvaziamento tanto semântico[2] quanto pragmático[3] do referencial de validade da norma jurídica a partir da norma fundamental, criando para o Direito uma perspectiva de convencimento que não permite a verificação, no âmbito da Teoria do Direito, da propriedade dos conceitos fundamentais da justiça, igualdade e verdade dos valores jurídicos. Enquanto mitologia narrativa de um produto cultural, a norma jurídica dotada de validade pela perspectiva kelseniana somente cumpriria o esforço de uma metalinguagem jurídica, criando conceitos não jurídicos em sua essencialidade, somente em sua forma, para explicar conceitos jurídicos que se deferem tanto na construção de argumentos legislativos (ATIENZA, 2003) quanto na perspectiva de aplicação do direito. Contra tal perspectiva essencialmente convencionalista, conformada em um positivismo jurídico que tem legado uma tradição essencialmente conformadora de um discurso mitológico da validade, havemos que destacar que a linguagem tem uma função precípua e que não foi corretamente considerada por Kelsen, adstringindo-se tão somente a uma distinção do sentido subjetivo e do sentido objetivo do ato de vontade, esquecendo-se da centralidade da linguagem. Pode haver algumas visões do mundo e de como nele se deveria viver - visões que, especialmente, enfatizam a sua surpreendente diversidade, sua complexidade e mistério, sua defeituosa e imperfeita beleza e que não podem ser completa e adequadamente colocadas na linguagem da prosa filosófica convencional, um estilo marcadamente monótono e carente em imaginação, mas somente em linguagem e formas mais complexas, mais alusivas e mais atentas ao específico. (NUSSBAUM, 1990: p.03) É aqui, portanto, que a estrutura ficta da validade normativa merece um cuidado e ser efetivamente revisitada pela Teoria do Direito, uma vez que a norma fundamental estruturada no projeto de Kelsen da Teoria Pura do Direito e da Teoria Geral das Normas elabora tão somente uma ficção jurídica mitológica, quando não podemos concordar com Bobbio no sentido de que "se não postulássemos uma norma fundamental, não acharíamos o ubi consistam, ou seja, o ponto de apoio do sistema. E essa norma última não pode ser senão aquela de onde deriva o poder primeiro" (BOBBIO: 1995, p. 54-55). Ao contrário, o chamado ubi consistam (ponto de apoio) já é pressuposto em uma estrutura normativa de validade que se referencia na tese da neutralidade que pressupõe a norma fundamental, e este ponto de apoio nada mais cumpre que uma função cultural de conformação de um discurso mitológico de verdade e validade previamente existente, impossibilitando a construção de argumentos jurídicos sob a perspectiva de justificação e aplicação do Direito.

REFERÊNCIAS

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[1] Tradução nossa. [2] Por semântica pretendemos dizer da ciência que se ocupa do significado das palavras. [3] O pragmatismo é uma corrente de pensamento ou movimento filosófico que em linhas gerais defende que toda função do pensamento está em produzir hábitos de ação. 272

Podemos afirmar que predominaram duas tendências no pragmatismo: a primeira afirma que o significado de uma proposição está relacionado com as conseqüências futuras de experiência que direta ou indiretamente é capaz de prever que irão acontecer, não importando que isso seja ou não crível; a segunda defende que o significado de uma proposição consiste nas conseqüências futuras de ser possível crer que aconteça. (FERRATER MORA: 1978, p. 227)

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