“A neutralidade liberal segundo Ronald Dworkin: ética do desafio e neutralidade das intenções”, Revista de direito Themis, ano XVI, n.°s 28/29, 2015: 49-69, 2016.

May 27, 2017 | Autor: Roberto Merrill | Categoria: Ronald Dworkin, Neutrality, Paternalismo, Neutralidade Ética
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A Neutralidade Liberal Segundo Ronald Dworkin: Ética do desafio e neutralidade das intenções Roberto Merrill* Sumário:  Introdução. I. Três versões da neutralidade. 1. Neutralidade das consequências. 2. Neutralidade das intenções. 3. Neutralidade das justificações. II. Perfecionismo liberal. III. Neutralidade e perfeição: ideais convergentes? 1. Existe um acordo sobre uma conceção perfecionista do bem, como base para a ação política legítima. 2. Neutralidade das intenções sem neutralidade das justificações. 3. A neutralidade é limitada à estrutura de base da sociedade. 4. A neutralidade é compatível com um perfecionismo não coercivo. IV. Quatro maneiras de justificar a neutralidade. 1. Uma justificação ecuménica. 2. Justificação dedutiva a partir de valores partilhadas. 3. Uma justificação dedutiva a partir duma conceção do bem. 4. Justificação dedutiva e ecuménica a partir de valores partilhados. V. Entre ética et política. VI. A ética do desafio: une ética perfecionista? VII. O argumento da adesão (endorsement) e a neutralidade das intenções. Conclusão Resumo:  Neste artigo começo por (1) distinguir três versões do ideal de neutralidade. Em (2), defino o perfecionismo político e distingo uma versão coerciva duma versão não coerciva de perfecionismo. Exponho em (3) as quatro maneiras segundo as quais a neutralidade e o perfecionismo podem ser convergentes, pondo em relevo qual delas é defendida por Dworkin. Em (4), exponho as quatro maneiras de justificar a neutralidade, sendo uma dessas maneiras a justificação dedutiva a partir duma conceção do bem, formulada por Dworkin. Em (5) explico por que razão Dworkin defende uma estratégia da continuidade entre ética e política. Na seção (6) exponho a base ética da sua conceção do liberalismo, ou seja, a sua teoria ética que ele chama de “ética do desafio”. Em (7) mostro de que maneira o argumento da adesão de Dworkin e, mais geralmente, a ética de Dworkin, é compatível com o ideal de neutralidade, se especificarmos o tipo de neutralidade que ele defende, i.e. a neutralidade das intenções, e se admitirmos também que esta é compatível com o perfecionismo. Palavras-chave: Ética do desafio, Ronald Dworkin, Liberalismo, Neutralidade, Perfecionismo. Abstract:  In this article, in (1) I distinguish three versions of neutrality. In (2), I define political perfectionism and distinguish a coercive version from a non-coercive version of perfectionism. I expose in (3) the four ways in which neutrality and perfectionism can be convergent, developing the one defended by Dworkin. In (4), I expose the four ways of justifying neutrality, and explain how Dworkin defends deductive justification of neutrality. In (5) I explain *

Universidade do Minho. Themis, ano XVI, n.°s 28/29, 2015: 49-69

Roberto Merrill why Dworkin advocates a strategy of continuity between ethics and politics. In (6) I expose the ethical basis of his conception of liberalism, his “challenge model of ethics”. In (7) show how Dworkin’s ethics is compatible with the ideal of neutrality, and specify the type of neutrality he defends, that is neutrality of intentions, and also show how this is compatible with perfectionism. Key-words: Challenge Model of Ethics, Ronald Dworkin, Liberalism, Neutrality, Perfectionism.

Introdução O ideal da neutralidade do Estado é considerado por alguns dos mais significativos filósofos liberais como o conceito central do liberalismo. De acordo com Ronald Dworkin, uma teoria política que não defende o ideal de neutralidade deve ser considerada como oposta ao liberalismo1. E segundo Charles Larmore, o conceito central do liberalismo é o da neutralidade2. O jurista e filósofo Bruce Ackerman, que desenvolveu a sua própria versão da neutralidade, também afirma que este conceito é o princípio organizador do pensamento liberal3. Na sua forma mais comum, o ideal de neutralidade política exige que os princípios e as leis políticas, para serem legítimos, possam ser fundamentados em valores do justo independentemente dos valores do bem. Segundo o ideal de neutralidade, o justo e o bem devem ser pois separados e são os valores do justo que têm prioridade sobre os valores do bem. O debate sobre a neutralidade do Estado é um prolongamento do debate histórico sobre o secularismo, sobre a relação entre a teologia e a política e sobre a necessidade moderna de tolerância religiosa. Mas o ideal de neutralidade é um ideal mais exigente do que a tolerância (cuja origem pode ser identificada na Carta Sobre a Tolerância, de John Locke), pois implica não só a separação entre o Estado e as convicões religiosas mas também a separação entre o Estado e as convições morais, metafísicas, estéticas, i.e. seja o que for como convição que pertença ao domínio da vida boa. Oposto ao ideal de neutralidade, o ideal de perfecionismo político exige que os princípios e as leis políticas se fundamentem em valores do bem. Na literatura especializada, estes dois ideais de neutralidade e de perfecionismo são frequentemente considerados claramente opostos. De fato, na 1   Ronald D workin, “Liberalism”, in Hampshire, S. (Ed.), Public and Private Morality, Cambridge University Press, 1978, pp. 113-143. 2   Charles L armore , Patterns of Moral Complexity, Cambridge University Press, 1987, pp. 42-43. 3   Bruce Ackerman, Social Justice in the Liberal State, Yale University Press, 1981, p. 10.

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teoria sobre os fundamentos normativos do liberalismo, existe um debate dinâmico entre os liberais que defendem a neutralidade do Estado4 e os liberais que defendem o perfecionismo político5, como se fossem dois ideais claramente em oposição. Existem no entanto alguns liberais que defendem a convergência da neutralidade e do perfecionismo e na verdade, uma vez bem analisado o problema, verificamos que a oposição entre neutralidade e perfecionismo não é evidente6. Neste artigo, vou tentar mostrar que essa oposição entre neutralidade e perfecionismo, além de não ser evidente, é igualmente posta em causa por Ronald Dworkin, um dos filósofos que melhor defendeu o ideal da neutralidade do Estado. Vou começar por (1) distinguir três versões do ideal de neutralidade (das consequências, das intenções e das justificações). Em (2), defino o perfecionismo político e distingo uma versão coerciva duma versão não coerciva de perfecionismo. Com estas definições em mente, tanto da neutralidade como do perfecionismo, exponho em (3) as quatro maneiras segundo as quais a neutralidade e o perfecionismo podem ser convergentes, pondo em relevo qual delas é defendida por Dworkin. Em (4), exponho as quatro maneiras de justificar a neutralidade, sendo uma dessa maneiras, a justificação dedutiva a partir duma conceção do bem, formulada por Dworkin. A partir da seção (5), examino de maneira mais detalhada a posição de Dworkin, expondo as bases de um dos argumentos centrais formulados por Ronald Dworkin para justificar a neutralidade. Este argumento é por vezes chamado o argumento da adesão (endorsement constraint), o qual na verdade é uma variante do argumento da autonomia. De fato, ao contrário de Rawls e da maioria dos princi4  Cf. Brian Barry, Justice as Impartiality, Oxford: Clarendon Press, 1995; Thomas Nagel, “Moral Conflict and Political Legitimacy”, Philosophy & Public Affairs, 16(3), 1987, pp. 215-40; John R awls, Political Liberalism, Columbia University Press, 1993. 5   R ichard A rneson, “Neutrality and Political Liberalism”, in Merrill, R. & Weinstock, D. (Eds.) Political Neutrality: a Re-evaluation, Palgrave MacMillan, 2014, pp. 25-43; Peter de M arneffe , “The Possibility and Desirability of Neutrality”, in Merrill, R. & Weinstock, D. (Eds.) Political Neutrality: a Re-evaluation, Palgrave MacMillan, 2014, pp. 44-56; William Galston, Liberal Purposes: Goods, Virtues, and Diversity in the Liberal State, Cambridge University Press, 1991; Stephen M acedo, Liberal Virtues: Citizenship, Virtue, and Community in Liberal Constitutionalism, Clarendon Press, 1990; Joseph R az , The Morality of Freedom, Oxford University Press, 1986; George Sher, Beyond Neutrality: Perfectionism and Politics, Cambridge University Press, 1997; Steven Wall , Liberalism, Perfectionism and Restraint, Cambridge University Press, 1998. 6  Cf. George K losko & Stephen Wall (Eds.), Perfectionism and Neutrality: Essays in Liberal Theory, Rowman & Littlefield, 2003; Roberto Merrill, “Comment un État libéral peut-il être à la fois neutre et paternaliste?”, Raisons politiques, 44(4), 2011, pp. 15-40; Roberto Merrill & Daniel Weinstock, (Eds.) Political Neutrality: a Re-evaluation, Palgrave MacMillan, 2014.

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pais defensores da neutralidade, Dworkin baseia a sua defesa da neutralidade numa conceção do bem, que ele chama o challenge model of ethics, o modelo da ética do desafio. Segundo Dworkin, se aceitarmos que a melhor conceção do bem consiste numa ética do desafio tal como ele a concebe, então devemos aceitar que a autonomia é um elemento essencial de qualquer vida boa. Ora, se a autonomia é um elemento essencial da vida boa, então devemos também aceitar a neutralidade política como um princípio fundamental do liberalismo. Em (5) explico por que razão Dworkin, ao contrário dos filósofos que defendem uma conceção política do liberalismo, defende uma estratégia da continuidade entre ética e política. Na seção (6) exponho a base ética da sua conceção do liberalismo, ou seja, a sua “ ética do desafio”. Em (7) mostro de que maneira o seu argumento da adesão (endorsement) é compatível com a neutralidade. O meu ponto de vista sobre a teoria de Dworkin consiste em aceitar que o argumento da adesão e, mais geralmente, a ética de Dworkin, é compatível com o ideal de neutralidade, se especificarmos o tipo de neutralidade que ele defende, i.e. a neutralidade das intenções, e se admitirmos também que esta é compatível com o perfecionismo.

I. Três versões da neutralidade A neutralidade política é uma restrição normativa imposta sobre as consequências, ou as intenções, ou as justificações, dos princípios políticos e das políticas do Estado liberal democrático. De acordo com essa restrição, o Estado, para ser justo nas suas políticas, tem de ser neutro em relação a qualquer conceção da vida boa, ou seja, o Estado não deve promover de forma alguma uma conceção da vida boa em detrimento das outras. Na sua definição mais comum, uma conceção da vida boa consiste num conjunto de crenças normativas mais ou menos articuladas sobre como um indivíduo deve viver bem a sua vida pessoal. Do ponto de vista dos liberais que defendem a princípio de neutralidade, a melhor maneira para o Estado ajudar as pessoas a levar uma vida boa consiste em não favorecer qualquer conceção específica do bem, garantindo apenas a proteção dos interesses fundamentais comuns a todos os indivíduos, independentemente das suas conceções do bem. Embora os liberais neutralistas e os liberais perfecionistas possam concordar com o fato de que alguns bens primários são comuns a todas as conceções do bem e, neste sentido podem serem considerados neutros mesmo para os perfecionistas liberais, no entanto para estes últimos o Estado deve promover outros bens além dos bens primários, pois segundo o liberalismo perfecionista o simples fato duma 52

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conceção do bem ser controversa e não neutra não constitui uma razão suficiente para abandonar a sua promoção pelo Estado. Mas o que significa a neutralidade do Estado? Existem fundamentalmente três definições de neutralidade em competição, que vou de seguida expor e examinar. 1. Neutralidade das consequências De acordo com a neutralidade das consequências, as políticas seguidas pelo Estado não devem ter como consequência a promoção de qualquer conceção da vida boa que lhe dê uma vantagem sobre as outras conceções. Assim, uma política do Estado de tolerância religiosa que seja neutra nas suas consequências tem de ter consequências iguais em todas as conceções do bem das pessoas: por exemplo, naqueles que acham que existe uma só verdadeira religião e que apenas essa deveria existir, e naqueles que acham que é melhor que existam várias religiões que competem entre si, assim como naqueles que gostariam que não existisse nenhuma porque acham que a religião é o ópio do povo. A objeção mais comum contra a neutralidade das consequências é que parece ser impossível de realizar. A neutralidade das consequências, se for definida como neutralidade de resultados, ou como neutralidade de impacto, parece ser impossível de realizar, porque as pessoas não só têm diferentes conceções do bem como reagem diferentemente mesmo quando partilham a mesma conceção do bem. Ora isso faz com que as consequências das políticas do Estado sejam necessariamente não neutras, no sentido da neutralidade de impacto. Ou seja, as pessoas reagem diferentemente, segundo as suas convicões e as suas capacidades, às políticas do Estado. É pois impossível que as políticas neutras do Estado tenham consequências iguais na capacidade que as pessoas possam ter de seguir e realizar as suas próprias conceções do bem. Assim, uma política neutra de defesa da tolerância religiosa terá necessariamente um efeito diferente sobre aqueles que consideram que existe uma só verdadeira religião e que apenas essa deveria ser praticada do efeito sobre aqueles que gostariam que não existisse nenhuma porque acham que a religião é o ópio do povo. Para cada um destes grupos de pessoas, certamente que uma política que pretende ser neutra terá consequências não neutras. Logo, a neutralidade das consequências como neutralidade dos resultados ou de impacto não é plausível. E mesmo que fosse plausível, também não é um ideal desejável, já que seria muito caro e sobretudo demasiado intrusivo na vida das pessoas tentar determinar de que maneira as leis e as políticas públi53

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cas afetam as pessoas e as suas conceções do bem de maneira não neutra, e tentar retificar ex post esses efeitos não neutros para poder satisfazer a neutralidade das consequências como neutralidade dos resultados. Examinemos agora as alternativas à neutralidade das consequências, expondo agora uma segunda conceção da neutralidade, a neutralidade das intenções. 2. Neutralidade das intenções De acordo com a neutralidade das intenções (ou de objetivos), nenhuma política prosseguida pelo Estado deve ter a intenção (ou o objetivo) de promover um estilo de vida em detrimento dos outros. Para perceber esta conceção da neutralidade, comecemos por formular um exemplo: suponhamos que o Estado tem a intenção neutra de promover uma comunicação mais eficaz do Estado, e para realizar este objetivo, escolhe uma só língua oficial, entre várias línguas possíveis. Este objetivo pode ser considerado neutro, se não há intenção de promover uma conceção do bem em detrimento das outras conceções do bem. No entanto, esta política não será neutra nas suas consequências, uma vez que necessariamente promoverá uma língua (e, portanto, uma conceção do bem) em detrimento das outras. A neutralidade das intenções parece assim ser um ideal plausível. No entanto, devemos formular a seguinte objeção à neutralidade das intenções: como podemos ter a certeza de que existe realmente uma neutralidade de intenção no exemplo dado acima? Talvez a verdadeira intenção do Estado seja mesmo a de promover uma língua específica em detrimento das outras, mas para não ser revelada essa intenção que poderia parecer sectária, é formulada uma intenção neutra como a “ necessidade duma comunicação eficaz ” (vamos aceitar, para não complicar demasiado o argumento, que esta intenção é neutra), para promover, de forma perfecionista, uma conceção do bem (uma língua específica) em detrimento das outras. Assim, podemos observar que a neutralidade das intenções, embora pareça à primeira vista mais plausível do que a neutralidade das consequências, no entanto é compatível com a promoção de uma conceção do bem (ou seja, com o perfecionismo). Como é difícil saber quais são as verdadeiras intenções do Estado, e como a neutralidade das intenções parece ser compatível com a promoção de uma conceção do bem, devemos então tentar recorrer à neutralidade das justificações como uma versão mais plausível da neutralidade.

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3. Neutralidade das justificações De acordo com a neutralidade das justificações, as políticas do Estado devem ser justificadas sem referência a qualquer conceção do bem. A neutralidade das justificações parece mais plausível do que a neutralidade das intenções por causa da razão que acabámos de mencionar (ou seja, a dificuldade de saber qual é a intenção real do Estado). Assim, se as justificações das políticas do Estado são neutras, então talvez seja uma maneira de tornar menos relevante a questão de saber se as intenções do Estado são neutras ou não. Continuando a examinar o exemplo sobre a língua oficial: o Estado pode ter como intenção não neutra de promover uma língua específica, mas se a justificação dada é neutra (neste caso: “comunicação eficaz”), então a política pode ser considerada legítima. No entanto, podemos formular a seguinte objeção à neutralidade das justificações: é curioso observar que o Estado pode dar uma justificação de uma política neutra quando em realidade a sua intenção não é neutra. Isto sugere que a neutralidade das justificações também não é suficiente para evitar a promoção de políticas perfecionistas. Para ilustrar com o mesmo exemplo: mesmo formulando uma justificação neutra como “comunicação eficaz”, o Estado pode ter a intenção não neutra de promover uma língua em detrimento de outras. E de fato a justificação neutra não parece ser suficiente para impedir que tal promoção de um estilo de vida em relação a outros aconteça. Para esclarecer este ponto, consideremos um exemplo claro de um Estado não neutro: uma Estado dedicado à defesa de uma religião em particular. Isto poderia ser um Estado cristão que promove as organizações cristãs, onde os membros do governo devem ser cristãos praticantes. A maioria dos Estados teocráticos como estes violam explicitamente a neutralidade das justificações nas suas leis e políticas, pois estas justificações têm de se fundamentar na “verdadeira” religião para serem justas. No entanto, não é necessariamente o caso que um Estado religioso viole a neutralidade das justificações. Vejamos por que razão. Imaginemos que o Estado favorece uma determinada religião cristã, não porque acredita que tal religião é a verdadeira, mas por motivos de estabilidade social. Talvez os representantes do Estado acreditem, e com razão, que como a maioria da população adere à religião cristã, os distúrbios sociais seriam demasiado elevados se o Estado não apoiasse essa religião. Por essa razão, a religião em questão recebe o apoio do Estado. Embora este seja um Estado não neutro, no entanto aparenta satisfazer a exigência de neutralidade justificativa, já que a justificação para um Estado cristão é a “paz social”, um valor neutro. 55

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Vemos assim que é possível formular justificações neutras que não parecem impedir que o Estado seja não neutro, já que, como no exemplo do Estado cristão, está concretamente a favorecer um estilo de vida cristão nas suas políticas. Para evitar esta objeção, podemos formular então duas alternativas: 1. A primeira alternativa consiste em considerar que as políticas de Estado devem ser neutras nas suas intenções, bem como nas suas justificações, para serem legítimas. Mas como já vimos, é difícil senão impossível de saber quais são as intenções reais do Estado, o que torna esta alternativa impossível de satisfazer. E mesmo se fosse possível, também não resolveria o problema, já que como acabamos de ver, o Estado pode ser neutro nas intenções e nas justificações e no entanto promover de maneira perfecionista uma conceção do bem. No entanto, se isto for verdade, então torna-se plausível que a neutralidade e o perfecionismo sejam ideais convergentes. 2. A segunda alternativa consiste em considerar que as políticas de Estado devem ser neutras não só nas suas intenções e nas suas justificações, mas também nas suas consequências, para serem legítimas. Esta seria obviamente a versão mais exigente da neutralidade. Mas já vimos que a neutralidade das consequências não parece ser uma versão plausível da neutralidade. Neste caso, devemos examinar com mais atenção a neutralidade das consequências. A versão mais plausível da neutralidade das consequências não pode ser a neutralidade de resultados, já que a neutralidade de resultados é impossível de satisfazer, pois a pessoas reagem diferentemente às leis segundo as suas motivações e conceções do bem. Mas revendo a nossa definição da neutralidade das consequências, podemos por exemplo considerar que uma versão plausível da neutralidade das consequências seria a neutralidade de oportunidades7. A neutralidade de consequências como igualdade de oportunidades implicaria que o Estado seja neutro nas consequências das suas políticas se procurar que estas não tenham o efeito de dar mais oportunidades a alguns estilos de vida em detrimento de outros. Esta neutralidade de consequências como igualdade de oportunidades não exige a neutralidade de resultados. Ronald não defende a explicitamente a neutralidade das consequências, mas sim uma variante da neutralidade das   Simon Clarke, “Consequential Neutrality Revivified”, in Merrill, R. & Weinstock, D. (Eds.), Political Neutrality: a Re-evaluation, Palgrave MacMillan, 2014, pp. 109-121; Steven Wall, “Neutrality and responsibility”, The Journal of Philosophy, 98(8), 2001, pp. 389-410. 7

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intenções compatível com o perfecionismo. Veremos em breve como. Mas comecemos por explicitar o que significa o perfecionismo.

II.  Perfecionismo liberal Como existem pelo menos três versões de neutralidade, é possível que alguma versão da neutralidade possa ser convergente com o perfecionismo. E esta possibilidade de convergência pode parecer ainda mais plausível se distinguirmos diferentes versões do perfecionismo. De acordo com o perfecionismo político, o Estado, para agir de maneira justa, tem de promover uma conceção perfecionista do bem nas suas políticas. Mas é importante notar que o perfecionismo pode ser não liberal. Por exemplo, nos regimes totalitários a conceção do bem promovida pelo estado não é liberal: o nazismo era um regime que queria promover o arianismo, a “excelência humana”, em detrimento de outros estilos de vida, ao ponto de massacrar os outros estilos de vida. De acordo com o perfecionismo liberal, o Estado, para agir de maneira justa, tem de promover uma conceção do bem liberal nas suas políticas, como por exemplo a promoção do estilo de vida que faz da autonomia individual o valor principal de toda vida humana: o respeito pela liberdade de cada um e a promoção da liberdade de experimentar vários estilos de vida de maneira autónoma. Esta tese central do perfecionismo liberal parece claramente oposto à neutralidade, uma vez que de acordo com a neutralidade das intenções, é moralmente errado usar o poder do Estado com o objetivo de promover uma conceção controversa do bem humano. E de acordo com a neutralidade de justificações, é moralmente errado impor leis e políticas públicas que sejam justificadas com referências a conceções do bem. E de acordo com a neutralidade das consequências, é moralmente errado impor leis que tenham como consequência a promoção de uma conceção do bem em detrimento de outras. No entanto, a neutralidade das intenções e a neutralidade das justificações, assim como a neutralidade das consequências, não parecem incompatíveis com algum tipo de promoção perfecionista do bem pelo Estado. E por outro lado, o perfecionismo político pode ser coercivo e não coercivo (ou seja, apenas incitativo). Por fim, tanto o perfecionismo coercitivo e não coercivo podem ser aplicados a questões políticas essenciais ou não essenciais, ou seja podem aplicar-se a direitos fundamentais ou a direitos secundários. Examinemos agora mais em detalhe estas possibilidades, procurando situar a teoria de Dworkin dentro destas.

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III.  Neutralidade e perfeição: ideais convergentes? Tendo em mente por um lado as três versões da neutralidade e por outro lado, a distinção entre perfecionismo coercivo e não coercivo, assim como o campo de aplicação do perfecionismo, podemos agora ver mais claramente quais são todas as maneiras possíveis em que a neutralidade e perfecionismo podem ser ideais convergentes. 1. Existe um acordo sobre uma conceção perfecionista do bem, como base para a ação política legítima. Alguns defensores da neutralidade não se opõem à promoção de conceções perfecionistas da vida boa pelo Estado, desde que esta promoção não seja controversa, ou seja, desde que com base num acordo entre os cidadãos8. Mas dado o fato do pluralismo (razoável), é empiricamente irrealista esperar que haja um acordo sobre o bem, como base da ação política legítima. Ora esta improbabilidade empírica torna trivial esta forma de convergência entra a neutralidade e o perfecionismo, mesmo se conceptualmente plausível. 2. Neutralidade das intenções sem neutralidade das justificações Uma segunda maneira é a seguinte: podemos, como vimos, distinguir pelo menos duas variantes mais plausíveis da neutralidade: a neutralidade das intenções, por vezes chamada neutralidade legislativa9 e a neutralidade das justificações. De acordo com o princípio da neutralidade das intenções, o governo não deve restringir a liberdade (ou, mais geralmente, não deve limitar as oportunidades nem os recursos) dos indivíduos com a intenção de desencorajar estilos de vida considerados inúteis ou degradantes. E de acordo com a neutralidade das justificações, o governo deve agir de acordo com um sistema de princípios que pode ser justificado sem referência a qualquer conceção controversa da vida boa. A neutralidade das intenções pode ser considerada como um princípio importante para a ação governamental per  Charles Larmore, “Pluralism and reasonable disagreement”, Social Philosophy and Policy, 11(01), 1994, pp. 61-79. J. R awls, Political cit.; John R awls, Justice As Fairness: A Restatement, Harvard University Press, 2001. 9   Peter de M arneffe, “Liberalism and Perfectionism”, American Journal of Jurisprudence, 43, 1998, pp. 99-116; Peter de M arneffe, “Liberalism, Liberty, and Neutrality”, Philosophy & Public Affairs, 19(3), 1990, pp. 253-74. 8

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missível, enquanto a neutralidade das justificações é um princípio abstrato justificando os princípios substantivos das ações permissíveis do governo. No entanto, alguns autores que defendem o ideal de neutralidade defendem apenas a neutralidade de intenções, mas rejeitam a neutralidade das justificações. É o caso precisamente de Ronald Dworkin, que apesar de ter começado por defender no seu famoso artigo de 1978 a neutralidade das justificações, acabou por defender, nos seus escritos posteriores10 a neutralidade das intenções, rejeitando a neutralidade das justificações. De fato Dworkin justifica a sua teoria liberal com uma conceção do bem que ele nomeia “ the challenge model of ethics ”11. Na sua forma mais geral, o argumento de Dworkin a favor da neutralidade das intenções é que as condições sociais que permitem a todos viver melhor, pelo menos de acordo com o seu modelo da ética do desafio, serão mais facilmente realizadas se o governo age de acordo com o princípio da neutralidade das intenções. Ora, a neutralidade das intenções de Dworkin não se justifica apelando ao princípio mais abstrato da neutralidade das justificações, mas sim com base numa conceção do bem: a ética do desafio. Para resumir, o liberalismo perfecionista pode assumir a neutralidade liberal se certas políticas constituem meios adequados para realizar uma conceção liberal do bem. Neste sentido, podemos dizer que pelo menos alguma forma de neutralidade (ou seja, a neutralidade das intenções) não parece inconsistente com a promoção do perfecionismo político, quando essa neutralidade não implica uma neutralidade das justificações mais abstracta. Por outro lado, devemos também recordar que a neutralidade das justificações não implica uma neutralidade das intenções, porque um sistema de princípios justificados sem fazer referência a qualquer conceção particular do bem pode ser compatível com ações controversas do governo que reduzem de maneira perfecionista a liberdade dos indivíduos. Mas também podemos interpretar Dworkin duma maneira complementar, segundo a qual Dworkin rejeita a neutralidade das justificações quando aplicada aos princípios liberais, mas apoia a neutralidade das justificações aplicada às políticas do governo. Para Dworkin, o governo não deve adotar políticas por razões não-neutras pois esta é a melhor maneira para melhor promover vidas boas, de acordo com o seu “ modelo de desafio ”. Podemos fazer aqui uma analogia com o argumento de Stuart Mill a favor do princípio do dano (harm principle): o governo deve observar o princípio do dano (que é semelhante 10   Ronald D workin, Religion Without God, Harvard University Press, 2014; Ronald Dworkin, Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality, Harvard University Press, 2000; Ronald Dworkin, “Foundations of Liberal Equality”, in Darwall, S. (Ed.) Equal Freedom, Ann Arbor, MI: University of Michigan Press, 1995, 190-306. 11  R. Dworkin, Sovereign cit.

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em conteúdo à neutralidade das justificações aplicada a legislação) porque isso permite promover o desenvolvimento e o exercício da nossa individualidade e das outras capacidades humanas superiores. Vejamos agora a terceira maneira de fazer converger a neutralidade e o perfecionismo. 3.  A neutralidade é limitada à estrutura de base da sociedade Alguns defensores da neutralidade não se opõem à promoção pelo Estado de concepções do bem, se esta promoção for limitada aos direitos e liberdades que não pertencem ao que foi denominado por Rawls a “ estrutura de base ” da sociedade. Assim, graças a um processo justo, como por exemplo a votação por maioria, o Estado pode, legitimamente, promover uma conceção controversa do bem em assuntos políticos não essenciais, i.e. fora da esfera da estrutura de base da sociedade12. Por exemplo, se o parlamento votar uma lei que obriga as pessoas a por o capacete quando andam de mota e se justificar essa lei recorrendo a uma razão não neutra (não é bom andar sem capacete porque o risco de acidente grave é demasiado elevado e não é bom viver dessa forma tão arriscada) em vez de recorrer a uma justificação neutra (os custos de saúde seriam demasiado elevados para a segurança social se todos pudessem andar sem capacete), os amantes do risco são desfavorecidos em relação aos amantes da segurança. Mas como esta lei não é uma violação de um direito mais fundamental (a liberdade de circulação) então mesmo se a justificação não é neutra, pode mesmo assim ser legítima. Esta forma de conciliar a neutralidade e o perfecionismo parece plausível, mas talvez seja pouco desejável, porque é coerciva, mesmo que esta coerção do Estado se limite a direitos e liberdades não fundamentais. 4.  A neutralidade é compatível com um perfecionismo não coercivo Uma quarta forma de propor uma convergência entre a neutralidade e o perfecionismo consiste em promover conceções do bem de uma forma não coerciva. Esta versão da convergência parece ser a defendida por alguns autores liberais perfecionistas como por exemplo Joseph Raz. É um fato que muitas decisões do governo (não só nas questões políticas não-essenciais, mas também nas questões relacionadas com a estrutura de base da sociedade) podem não ser coercivas mas são no entanto perfecionistas incentivando 12

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 J. R awls, Justice cit.

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alguns tipos de comportamentos, como por exemplo dar honras e prémios a pessoas exemplares e criativas e desencorajar outros tipos de comportamento por exemplo com campanhas de incentivo em relação a um estilo saudável de viver, com muito desporto e uma alimentação saudável, sem forçar ninguém a fazer isso. Esta forma de conciliar a neutralidade e perfecionismo parece plausível, mas também parece não captar um ponto principal de controversa entre liberais neutralistas e liberais perfecionistas: este ponto tem a ver com a legitimidade ou não de promover coercivamente conceções do bem. Penso pois que esta maneira de conciliar a neutralidade e perfecionismo não é muito interessante, porque na verdade, devemos supor que uma tese perfecionista central é a legitimidade da promoção do bem através da coerção política. Mas se mantivermos uma versão coerciva do perfecionismo, haverá ainda uma maneira não trivial, plausível e eventualmente desejável, de conciliar o perfecionismo com a neutralidade? 5.  Conclusão sobre a convergência entre neutralidade e perfecionismo Julgo que a única forma não trivial aceitável de perfecionismo coercivo, compatível com a neutralidade das intenções ou a neutralidade das justificações, tem que ser um perfecionismo coercivo limitado a questões políticas não-essenciais, ou seja fora do campo de aplicação da “ estrutura de base ” da sociedade. Um perfecionismo coercivo que implique uma violação dos direitos políticos básicos já não seria de todo um perfecionismo liberal, mas um perfecionismo antiliberal. Assim, a neutralidade e o perfecionismo, mesmo coercivo, parecem ser ideais convergentes. Mas isto parece um pouco estranho, se formos liberais puristas. Talvez o que mostra esta convergência entre a neutralidade e o perfecionismo é que a neutralidade das justificações e a neutralidade das intenções não são as conceções mais exigentes da neutralidade. Logo não são as conceções mais liberais da neutralidade.

IV. Quatro maneiras de justificar a neutralidade Vou agora expor rapidamente os quatro métodos principais para justificar o ideal de neutralidade, pois Dworkin defende um deles: uma abordagem ecuménica, duas variantes dedutivas e um quarto que é uma mistura do método ecuménico e o dedutivo.

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1.  Uma justificação ecuménica O primeiro método utiliza o maior número possível de tipos de razões: epistemológicas, morais ou pragmáticas, sem favorecer um tipo em particular. Esta abordagem ecuménica parece ser a de Bruce Ackerman, que justifica a neutralidade com um argumento prudencial de acordo com a qual os governos autoritários não neutros não são eficazes13; um argumento de epistemologia moral segundo a qual o experimentalismo moral é mais fácil se o Estado for neutro; um argumento moral, segundo a qual a autonomia moral só é possível se o Estado for neutro e, finalmente, um outro argumento epistemológico, de natureza cética, segundo o qual é difícil ou impossível saber o que é bom. 2.  Justificação dedutiva a partir de valores partilhadas Uma segunda maneira de justificar a neutralidade é de o fazer dedutivamente a partir de valores partilhados, a fim de manter a coerência do conceito de neutralidade. Charles Larmore por exemplo, utiliza este método dedutivo, a partir de uma moral minimalista comum a todos, para estabelecer uma justificação neutra da neutralidade. É difícil ver exactamente como esta justificação pode ter sucesso sem apelar a valores não neutros, como a igualdade democrática, a amizade cívica, a reciprocidade e o respeito mútuo. 3.  Uma justificação dedutiva a partir duma conceção do bem O terceiro método para justificar a neutralidade consiste em deduzi-la a partir de uma conceção particular de vida boa. Esta neutralidade é justificada invocando um valor moral, como a autonomia ou a utilidade. É, por conseguinte, uma justificação explicitamente não neutra da neutralidade. Ronald Dworkin é um dos defensores mais representativos de tal método. Dworkin rejeita a justificação contratualista hipotética do ideal de neutralidade, e deriva a neutralidade a partir de uma conceção de vida boa, certamente controversa, mas de acordo com Dworkin suficientemente abstrata para ser neutra. A crítica mais forte a este método consiste em afirmar que não parece ser uma resposta adequada ao fato do pluralismo.

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 B. Ackerman, Social cit., pp. 363-4.

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4. Justificação dedutiva e ecuménica a partir de valores partilhados O quarto método usado para justificar a neutralidade consiste em combinar elementos do método dedutivo dos valores morais partilhados, com elementos do método ecuménico. Este é, por exemplo, o método usado por Rawls, segundo o qual a neutralidade deve ser entendida como uma variação do princípio da aceitação (acceptability) com base em valores morais partilhados na cultura pública das democracias liberais (abordagem dedutiva), como requisito de um certo tipo de ideal moral de tratar os outros com respeito. Mas Rawls também justifica a neutralidade com a ideia de um overlapping consensus (justificação ecuménica), e defende a ideia de razão pública como meio necessário para garantir a estabilidade da sociedade bem-ordenada ao longo do tempo. É um método que é vulnerável a críticas aos métodos dedutivo e ecuménico.

V. Entre ética e política Agora que temos as ideias mais claras sobre as diferentes definições da neutralidade e as principais formas de perfecionismo, assim como as quatro maneiras de tornar estes dois ideais convergentes e as quatro maneiras de justificar a neutralidade, podemos avançar com mais segurança na compreensão do ideal de neutralidade nos escritos de Dworkin. Alguns críticos do liberalismo consideram que o liberalismo dá demasiada importância aos princípios de justiça, e não dá suficiente atenção ao tema da vida boa, ou seja, à qualidade intrínseca da vida das pessoas. Dworkin distingue três variantes desta oposição ao liberalismo, que são: (1) o liberalismo impede as pessoas de viver vidas autenticamente boas, (2) o liberalismo subordina o ideal da vida boa ao ideal de justiça, e (3) o liberalismo ao defender a neutralidade, apenas pode ser defendido ignorando todas as concepções do bem14. Dworkin rejeita a validade destas objeções, mas admite que o liberalismo enfrenta um problema que deve ser resolvido, sob pena de ser uma teoria inconsistente: o da aparente contradição entre os dois ideais seguintes, o da parcialidade ética e o da neutralidade política. O problema é o seguinte: nas nossas vidas privadas, a parcialidade moral parece justificar-se (por exemplo, atribuir uma igual importância aos estrangeiros e aos membros da nossa família não parece justificado, pelo menos seguindo o senso comum).  R. Dworkin, Sovereign cit., p. 238.

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No entanto, na nossa vida política, devemos agir com igual consideração de todos, o que implicaria a neutralidade política15. A questão que devemos colocar é pois a seguinte: de que maneira podem as pessoas conciliar a parcialidade ética com a neutralidade política? Segundo Dworkin, existem duas respostas possivéis dentro do liberalismo que permitem conciliar estas duas exigências opostas: a estratégia de descontinuidade entre ética e política, e a da continuidade. De acordo com a estratégia de descontinuidade, adotada por liberais como Rawls, Nagel, ou Larmore, a neutralidade política deve ser considerada como um artifício para separar as nossas convições éticas das nossas crenças políticas. Esta estratégia reflete o que Nagel considerou como uma divisão moral do trabalho ou seja, uma divisão entre os argumentos apropriados na esfera pública e os adequados à esfera privada16. Mas essa perspectiva é eticamente insensível pois exige que as pessoas deixem de lado as suas crenças éticas ao apoiar o liberalismo político17. Assim, embora a estratégia de descontinuidade permita explicar adequadamente de que maneira os princípios da política de neutralidade decorrem da política e são eticamente insensíveis, no entanto, não explica por que razões as pessoas com crenças éticas distintas poderiam ser motivadas a apoiar a política da neutralidade. Ora a estratégia da descontinuidade entre a ética e a vida política é vulnerável às objeções ao liberalismo formuladas por Dworkin. É por isso que Dworkin rejeita justamente esta estratégia da descontinuidade entre ética e política, e defende uma teoria liberal que está em continuidade com a melhor ética pessoal, com a conceção filosófica da vida boa mais justa. A continuidade entre ética e política que defende Dworkin baseia-se na intuição seguinte: a parcialidade exigida na vida privada das pessoas, isto é, na sua vida ética, na verdade exige a neutralidade na vida pública das pessoas. No entanto, três condições são necessárias para que a neutralidade política possa decorrer da perspectiva ética de cada um: (1) Em primeiro lugar, a neutralidade deve derivar de uma parcialidade ética, caso contrário não seria uma estratégia da continuidade; (2) Em segundo lugar, essa ética parcial deve ser suficientemente substancial para conduzir à neutralidade liberal e não a princípios políticos não liberais;

 R. Dworkin, Sovereign cit., p. 235.   Thomas Nagel, Equality and Partiality, Oxford University Press, 1991. 17  R. Dworkin, Sovereign cit., p. 234. 15 16

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(3) Finalmente, esta ética deve também ser suficientemente abstrata para que todos, a partir da sua ética pessoal, possam convergir na neutralidade. Uma dificuldade em observar a estratégia de continuidade é a seguinte: os requisitos teóricos (2) e (3) parecem puxar em direcções opostas. Mas, mesmo supondo que Dworkin consegue superar esta dificuldade, um segundo desafio refere-se ao conceito de neutralidade que Dworkin defende para justificar a sua estratégia. De fato, a estratégia de continuidade que serve de base à neutralidade repousa em Dworkin numa distinção entre dois níveis de investigação ética: um nível mais concreto, e um nível mais abstrato. Ora, segundo Dworkin a teoria liberal deve ser neutra apenas a um nível ético concreto. Mas a um nível mais abstrato, a neutralidade não é necessária nem desejável18. Por outras palavras, o fato do liberalismo de Dworkin ser explicitamente fundamentado numa ética, parece tornar a sua teoria incompatível com a versão mais abstrata da neutralidade das justificações. No entanto, o seu liberalismo ético parece compatível com a neutralidade na sua forma mais concreta, isto é, com a neutralidade das intenções ou objectivos do Estado. Mas antes de resolver esta dificuldade sobre a neutralidade em Dworkin, vejamos de que maneira Dworkin consegue desenvolver uma ética específica mas também suficientemente abstrata que permite justificar uma continuidade entre ética e política, mantendo plausível o ideal de neutralidade das intenções.

VI. A ética do desafio: une ética perfecionista? Dworkin defende uma continuidade entre uma ética parcial e a neutralidade política, através de uma teoria ética que ele desenvolve e que chama de “modelo da ética do desafio” (challenge model of ethics), que expõe no capítulo 6 do seu livro Sovereign Virtue. A ética do desafio é uma ética que está claramente em contraste com o que ele chama uma “ ética do impacto”, através de duas grandes oposições: entre interesses críticos e interesses volitivos (volitional), e entre desafio e impacto. Segundo o bem-estar volitivo, o bem-estar de um indivíduo é melhorado quando alcança o que quer. Por outro lado, segundo o bem-estar crítico, o  R. Dworkin, Sovereign cit., p. 239-240.

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bem-estar de um indivíduo é melhorado quando atinge o que ele deve querer, ou seja, quando atinge os objetivos que, se não fossem atingidos, tornariam objetivamente a sua vida pior. Dworkin examina a seguir duas conceções éticas distintas sobre o que são os interesses críticos: a conceção do desafio e a conceção do impacto. Segundo o modelo do impacto, a vida é boa em termos das consequências que a vida duma pessoa poder ter no mundo. No entanto, a perspetiva de julgar o valor das nossas vidas de acordo com o seu impacto sobre o mundo é um pouco deprimente, dado o lugar insignificante que cada um de nós ocupa no universo. No entanto, segundo o modelo do desafio, a vida é boa em termos de seu valor intrínseco. Para Dworkin, a ética do desafio é baseada, por um lado, no mérito da distinção entre interesses volitivos e interesses críticos, e, por outro lado, na rejeição de uma conceção da ética como impacto das ações de uma pessoa sobre o mundo. Mais especificamente, a qualidade de vida de uma pessoa não depende das consequências da sua vida no mundo, mas da maneira como a sua vida responde aos desafios impostos pelas circunstâncias da vida. O problema fundamental da ética do impacto é que ela é baseada numa visão aditiva segundo a qual podemos julgar o valor de uma vida sem ter de consultar as crenças da pessoa cuja vida estamos a avaliar19. Segundo o modelo do impacto, o fato da pessoa concordar ou não com os componentes da sua vida não importa em termos do valor objetivo da sua vida. Ora, de acordo com o modelo do impacto, se esta conceção aditiva do valor de uma vida é plausível, nesse caso, as políticas estatais perfecionistas ou paternalistas podem ser mais facilmente legitimadas, o que constitui uma razão importante segundo Dworkin, para rejeitar o modelo ético do impacto20. No entanto, é de salientar que Dworkin não considera o modelo do desafio incompatível com todas as formas de paternalismo, como demonstrou Martin Wilkinson21. Por estas razões, ao modelo aditivo de impacto Dworkin opõe o modelo constitutivo do desafio, um modelo cujo núcleo duro consiste no argumento da adesão (endorsement), argumento que vou expor e avaliar agora.

 R. Dworkin, Sovereign cit., p. 248.  R. Dworkin, Sovereign cit., p. 268-269. 21   M artin Wilkinson, “Dworkin on paternalism and well-being”, Oxford Journal of Legal Studies, 16, 1996, pp. 433-44; M artin Wilkinson, “Against Dworkin’s Endorsement Constraint”, Utilitas, 15(02), 2003, pp. 175-193. 19

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VII. O

argumento da adesão

(endorsement)

e a neutralidade das in-

tenções

De acordo com o modelo ético do desafio, mesmo se a minha vida não pode ser considerada boa só porque eu estou convencido de que ela o é (afinal, eu posso estar errado, como sugere a distinção formulada por Dworkin entre interesses volitivos e interesses críticos), no entanto, para que a minha vida seja boa, a minha convicão para que esta o seja é uma condição necessária duma vida boa. Mais especificamente, como, segundo Dworkin, uma vida boa implica responder adequadamente aos desafios impostos pelas circunstâncias da vida22, mas não é boa pelo impacto da minha vida no mundo independentemente das minhas intenções, é necessário que as minhas convições pessoais desempenhem um papel fundamental no que significa para mim uma vida boa. Desta forma, a ligação entre a crença e o valor da vida torna-se constituinte na ética de Dworkin, uma vez que de acordo com este modelo, o valor de uma vida depende da capacidade dos indivíduos em identificar criticamente o que é valioso, isto é, depende da sua capacidade em assumir e aderir às suas convicões éticas23. De acordo com o argumento da adesão (endorsement constraint), uma vida boa deve ser composta por dois elementos necessários: primeiro os componentes desta vida (experiências, projetos, compromissos, etc) devem ser intrinsicamente bons (e não apenas bons em termos de interesses volitivos). Em segundo lugar, o valor desses componentes deve ser reconhecido e aceite pela pessoa que os assume. A tese da adesão é, portanto, a seguinte: a vida de uma pessoa tem valor apenas se for orientada “de dentro”, de acordo com as suas próprias crenças sobre o que é valioso. É importante recordar que o ponto de ética de Dworkin é enfatizar a relação entre crenças e valores, relação constitutiva da ética do desafio. Ora, se essa relação é constitutiva, então isso implica que qualquer tentativa de restringir a liberdade de um indivíduo para o seu bem parece ir contra a sua integridade, reduzindo assim o valor da sua vida. De fato, se a adesão pelo indivíduo das suas próprias crenças éticas é uma condição necessária para garantir que a sua vida é bem sucedida, então isso implica que o indivíduo não pode melhorar a sua vida se ele o fizer de maneira não autónoma. Logo, o Estado não pode contribuir para melhorar as vidas das pessoas incentivando-as a participar em estilos de vida não-autónomos. Esta tolerância profunda das convicões éticas dos indivíduos justi R. Dworkin, Sovereign cit. p. 273.   R. Dworkin, Sovereign cit. p. 268.

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fica o anti-paternalismo coercivo de Dworkin. O argumento da adesão parece implicar que um Estado que leva a sério o modelo ético do desafio deve manter-se neutro sobre a questão da vida boa24. No entanto, devemos especificar em que sentido a ética do desafio que sustenta o liberalismo de Dworkin é compatível com a neutralidade das intenções do Estado, pois à primeira vista, a sua teoria contém elementos perfecionistas que estão em tensão com a neutralidade. Para esclarecer este ponto, é interessante notar que o princípio da neutralidade das intenções é menos exclusivo do que o príncipio que Joseph Raz chama de princípio anti-perfecionista, principio segundo o qual o governo não deve promover qualquer ideal da vida boa. Raz rejeita o anti-perfecionismo mas parece admitir, como Dworkin, a plausibilidade do princípio da neutralidade das intenções, uma vez que considera que o governo não deve ser coercivo com a intenção de desencorajar estilos de vida sem valor25. Da mesma forma, Dworkin nos seus últimos escritos adopta uma forma de perfecionismo no sentido em que rejeita a neutralidade das justificações na sua forma mais abstrata, mas aceita a neutralidade das intenções, ou neutralidade legislativa. Assim, podemos dizer que o desacordo entre Dworkin e Raz relativo à neutralidade, assumindo que existe, tem a ver com a questão de saber se o governo pode desencorajar, por outros meios do que a coerção, estilos de vida considerados sem valor, quando se trata de desencorajar modos de vida que não afetam os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos26.

Conclusão Para tentar esclarecer mais uma vez em que sentido o princípio da neutralidade das intenções é compatível com o perfecionismo subjacente à ética do desafio de Dworkin, temos de começar por recordar que Dworkin distingue duas maneiras segundo as quais uma teoria política pode ser neutra em relação às concepções do bem. Como escreve Dworkin: “We should distinguish two ways in which a political theory might be neutral or tolerant about different ethical convictions. First, it might be neutral in its appeal, that is to say, ecumenical. It might set out principles of political morality that can be accepted by people from a very great variety of ethical traditions. Second, it  R. Dworkin, Sovereign cit., p. 277.  J. R az, The Morality cit., p. 110. 26  Cf. Joseph R az, “Liberalism, Skepticism, and Democracy”, Iowa Law Review, 74, 1988, pp. 761-86. 24 25

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might be neutral in its operation, that is to say, tolerant. It might specify, as one principle of political morality, that government must not punish or discriminate against people because it disapproves of their ethical convictions”27. O Estado pode assim ser neutro de maneira mais abstrata, ou de maneira mais concreta. Dworkin parece rejeitar o primeiro tipo de neutralidade e aprovar o segundo. Parece-nos que o liberalismo ético baseado no perfecionismo defendido por Dworkin é compatível com a neutralidade já que ele defende a neutralidade das intenções. Comme recorda Dworkin: “Liberalism can and should be neutral at some, relatively concrete, levels of ethics. But it cannot and should not be neutral at the more abstract levels at which we puzzle, not about how to live in detail, but about the character, force, and standing of the very question of how to live”28. Por essa razão, julgo que seria correto considerar o liberalismo do último Dworkin como um liberalismo perfecionista não coercivo, compatível com a neutralidade das intenções mas não com a neutralidade mais abstrata das justificações, neutralidade abstrata que Dworkin no seu primeiro artigo sobre a neutralidade (em 1978) defendeu com muito talento e convição ao ponto de colocar o ideal da neutralidade no centro do debate sobre os fundamentos normativos do liberalismo.

  R. Dworkin, Sovereign cit., p. 281.  R. Dworkin, Sovereign cit., p. 293.

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