A noção de intelecto na doutrina dos transcendentais de Tomás de Aquino

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A noção de intelecto na doutrina dos transcendentais de Tomás de Aquino

Matheus B. Pazos de Oliveira [Doutorando – Unicamp/FAPESP] GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga [Comunicação apresentada no XVI Encontro Nacional da ANPOF, Campos do Jordão, 27 a 31 de outubro de 2014]

No conjunto da obra de Tomás de Aquino não é possível identificar o que se denominaria como uma espécie de tratado dos transcendentais. No entanto, a ausência de um tratado sistemático, no qual se pode identificar imediatamente a opinião tomásica sobre os transcendentais, não impede que a importância desse tema em sua obra seja identificada. É possível reconstruir, mediante alguns textos1, a concepção tomásica dos transcendentais e, a partir disso, justificar o modo pelo qual Tomás compreende as noções gerais do ente ou primeiras concepções do intelecto, as quais são de grande valia para responder uma série de problemas filosóficos que lhe preocupavam.2 O intuito do presente trabalho, contudo, é mais modesto. Pretendo analisar, sucintamente, o emprego da noção de intelecto em De veritate, q. 1, a. 1. Com isso, tenho por intento examinar o modo pelo qual o intelecto humano apreende aquilo que Tomás designa por “concepções primeiras”, bem como a necessidade de se afirmar que, em se tratando de duas noções gerais, a saber, ‘bem’ e ‘verdade’, o intelecto as concebe a partir da relação estabelecida com duas faculdades da alma, a saber, apetitiva e cognoscitiva. Para tanto, minha análise encontra-se dividida em três partes. A primeira trata do método da resolução [resolutio], empregado por Tomás no início do argumento sobre os transcendentais em De veritate, q. 1, a. 1. A segunda parte, por sua vez, apresenta o modo pelo qual Tomás justifica a apreensão intelectual de noções primeiras ao comparar duas maneiras a partir das quais o conhecimento intelectual se efetiva, isto é, no domínio da demonstração, bem como no âmbito da constituição de definições. A terceira parte, enfim, tem por objetivo esclarecer a fundamentação das noções gerais 1

Basicamente, a literatura secundária privilegia os seguintes textos: In I Sent., d. 8, q. 1 a. 3, De veritate, q. 1, a. 1 e De veritate, q. 21, a. 1. 2 O trabalho pioneiro de Aertsen [1996] tem por objetivo específico comprovar a importância da doutrina dos transcendentais para responder uma série de problemas filosóficos em Tomás de Aquino.

‘bem’ e ‘verdade’, utilizando-se, para isso, de uma expressão retirada do De anima aristotélico que se encontra citada em De veritate, q. 1, a. 1. O objetivo central do texto tomásico que passo a considerar consiste na definição da noção de verdade. Com efeito, a primeira questão do De veritate tem por título “o que é a verdade?” [“Et primo quaeritur quid est veritas?”]3. Com isso, esperase uma reflexão que explicite o que é (quid est) a verdade, ao invés de estabelecer, como sói ocorrer em questões disputadas4, se algo pode ser afirmado ou negado. Trata-se, a partir do título dessa questão, de uma investigação concernente à quididade de algo, resultando em sua definição.5 No entanto, a resposta dessa questão parece ampliar o escopo investigativo e, a partir disso, Tomás insere a reflexão sobre a definição da verdade numa consideração sobre as noções gerais do ente ou sobre os transcendentais. No início da resposta da referida questão de De veritate, Tomás escreve: Respondo dizendo que assim como nas demonstrações é preciso reduzir a algum princípio evidente por si mesmo para o intelecto, da mesma maneira deve ser investigando o que é cada uma. Caso contrário, procederíamos ao infinito em ambos e, desse modo, pereceria toda a ciência e o conhecimento das coisas. Aquilo que o intelecto por primeiro concebe como a mais evidente de todas, e na qual todas as concepções se reduzem, é o ente, como diz Avicena, no início de sua Metaphysica [I, 5]. Donde é preciso que todas as outras concepções do intelecto sejam adquiridas por acréscimo ao ente.6

A partir da passagem supracitada, Tomás explicita que o processo intelectual obedece a uma ordem, sem a qual não é possível obter conhecimento e, com isso, constituir um discurso científico sobre aquilo que se procura investigar. Trata-se, neste caso, de uma investigação sobre o fundamento de todo conhecimento adquirido pelo intelecto humano, quando este se dispõe a examinar em que consiste a primeira 3

Utilizo-me do texto latino preparado pela Comissão Leonina [1972]. Todas as traduções no presente texto, salvo alusão contrária, são de minha responsabilidade. 4 À guisa de exemplo do estilo de investigação das Questões disputadas, menciono os títulos dos artigos seguintes que compõem o conjunto da primeira questão de De veritate: a. 1: o que é a verdade; a. 2: se a verdade está principalmente no intelecto do que nas coisas; a. 3: se a verdade existe apenas no intelecto compondo e dividindo; a. 4: se só há uma verdade a partir da qual todas as coisas são verdadeiras; a. 5: se há outra verdade que seja eterna além da verdade primeira; a. 6: se a verdade criada é imutável; a. 7: se a verdade nas pessoas divinas se diz essencialmente ou pessoalmente; a. 8: se toda verdade é da primeira verdade; a. 9: se há verdade nos sentidos; a. 10: se alguma coisa é falsa; a. 11: se há falsidade nos sentidos; a. 12: se há falsidade no intelecto. 5 In II Post. Anal. lect. 2, n. 419: “definição é a proposição que significa aquilo que é [quid est]”. 6 De veritate, q. 1, a. 1, resp: “Respondeo. Dicendum, quod sicut in demonstrabilibus oportet fieri reductionem in aliqua principia per se intellectui nota, ita investigando quid est unumquodque; alias utrobique in infinitum iretur, et sic periret omnino scientia et cognitio rerum. Illud autem quod primo intellectus concipit quasi notissimum, et in quod conceptiones omnes resolvit, est ens, ut Avicenna dicit in principio suae metaphysicae. Unde oportet quod omnes aliae conceptiones intellectus accipiantur ex additione ad ens.”

concepção ou o princípio cognitivo imprescindível ao discurso científico e, em se tratando do texto citado, à constituição do princípio mais geral que fundamenta todo e qualquer discurso. A necessidade da exposição deste princípio, que é denominado de primeira concepção do intelecto, encontra sua justificativa no fato de que não é possível proceder ao infinito na investigação em busca de um fundamento para o conhecimento. Como primeiro passo nessa investigação, Tomás afirma que se deve “reduzir a algum princípio evidente por si mesmo para o intelecto”. I. O método resolutivo Tomás menciona a utilização do método de redução ou resolução [via resolutionis] no proêmio de seu comentário à Metafísica de Aristóteles. Nesse texto, afirma ser próprio da investigação metafísica proceder daquilo que é menos comum para aquilo que é mais comum.7 Esse modo de procedimento explicita, por um lado, a especificidade do discurso metafísico, em se tratando de uma investigação que tem por escopo tratar do ente e daquilo que lhe segue e, por outro lado, favorece a classificação da filosofia primeira como a ciência mais nobre, uma vez que ocupa, no rol das ciências especulativas, o lugar mais proeminente por ser aquela que investiga as causas primeiras, bem como o ente considerado em geral. Para além do emprego do método resolutivo numa investigação sobre o lugar do discurso metafísico na ordem das ciências, Tomás apresenta, no Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio, uma distinção entre o método de conhecimento próprio aos seres humanos e a maneira pela qual as substâncias separadas inteligem: [...] é patente que a consideração racional termina na intelectual de acordo com a via de resolução, na medida em que a razão recolhe a verdade una e simples a partir de muitos; reciprocamente, a consideração intelectual é o princípio da racional de acordo com a via de composição ou de invenção, na medida em que o intelecto abarca a multidão em um. Portanto, a consideração que é o término de todo o raciocínio humano é por excelência consideração intelectual.8

De acordo com Tomás, os seres humanos operam, no conhecimento de certas noções, a partir da via de resolução. Isso se justifica devido à limitação inerente ao

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In Met. proem: “A metafísica, pois, considera o ente e aquilo que lhe segue. Porque aquilo que transcende ao físico se encontra na via de resolução [via resolutionis], como o que é mais comum após o menos comum. É denominada filosofia primeira, pois considera as causas primeiras das coisas”. 8 In Boeth. Trin. q. 6, a. 1, resp. [Utilizo-me, para este texto, da tradução de Carlos Arthur R. do Nascimento].

aparato cognitivo humano9, uma vez que esta necessita, sempre, partir da multiplicidade para deduzir a unidade. Contrariamente, as substâncias separadas, a saber, os anjos e a divindade, inteligem de modo simples10, prescindindo de qualquer espécie de multiplicidade ou composição. Apesar da distinção entre a razão humana e o intelecto das substâncias separadas, Tomás não nega a possibilidade de se adquirir, mediante a resolução, o conhecimento de princípios ou noções universais, semelhante ao modo de conhecimento simples, sem as quais não se poderia garantir ao discurso nenhuma fundamentação. A redução assinalada como ponto de partida para a investigação das primeiras concepções do intelecto humano, tal qual aludida em De veritate, q. 1, a. 1, encontra-se também explicitada no referido comentário ao tratado boeciano. Na resposta ao artigo quarto da sexta questão, Tomás afirma: É preciso dizer que nas ciências especulativas procede-se sempre a partir de algo previamente conhecido, tanto nas demonstrações das proposições quanto também nas descobertas das definições; de fato, assim como alguém chega ao conhecimento da conclusão a partir das proposições já conhecidas, assim também alguém chega ao conhecimento da espécie a partir da concepção do gênero e da diferença e das causas da coisa. Ora, aqui não é possível proceder ao infinito, quer no que concerne às demonstrações, quer no que concerne às definições, pois, assim toda ciência pereceria, visto que não acontece atravessar os que são infinitos; donde, toda consideração das ciências especulativas reduzir-se a algo primeiro que, de fato, o ente humano não tem necessariamente de aprender ou descobrir, de modo que não seja preciso proceder ao infinito, mas tem naturalmente o conhecimento disto. Tais são os princípios indemonstráveis das demonstrações, como “todo todo é maior que sua parte” e similares aos quais todas as demonstrações das ciências se reduzem, e também as primeiras concepções do intelecto como a de ente, de uno e similares, às quais é preciso reduzir todas as definições das supracitadas ciências.11

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ST, I, q. 84, a. 7, resp.: “Cumpre dizer que é impossível ao nosso intelecto, conforme o atual estado de vida, no qual encontra-se unido ao corpo passível, inteligir algo em ato, a não ser voltando-se para as imagens sensíveis”. 10 ST, I, q. 58, a. 4, resp.: “Assim como no intelecto que raciocina a conclusão se liga ao princípio; assim, no que compõe e divide, o predicado se liga ao sujeito. Caso nosso intelecto visse, imediatamente, no próprio princípio, a verdade da conclusão, nunca inteligiria discorrendo ou raciocinando. De modo similar, se o nosso intelecto tivesse conhecimento imediato, pela apreensão da qüididade do sujeito, de tudo o que lhe pode ser atribuído ou deste removido, nunca inteligiria compondo e dividindo, mas somente inteligindo a qüididade. Disso é claro que da mesma causa provém o inteligir do intelecto que discorre e do que compõe e divide; e essa causa está em que o intelecto não pode ver imediatamente, na primeira apreensão de qualquer coisa, primariamente apreendida, tudo o que nesta, pela sua virtude, está contido; o que se dá pela debilidade da nossa luz intelectual, como já foi dito. Possuindo o anjo luz intelectual perfeita, por ser espelho puro e claríssimo, como diz Dionísio, resulta que ele, que não intelige raciocinando, também não intelige compondo e dividindo. Porém, intelige a composição e a divisão dos enunciados, como também o raciocínio dos silogismos; uma vez que intelige as coisas compostas simplesmente, as móveis, de modo imóvel, e as materiais, imaterialmente” 11 In Boet. Trin., q. 6, a. 4, resp.

O texto citado guarda certa similaridade com o início da resposta do De veritate, q. 1, a. 1. A preocupação de Tomás diz respeito ao modo como o intelecto humano constitui princípios sem os quais não é possível obter conhecimento científico. Nesse sentido, a explicação do modo como é possível extrair novos conhecimentos mediante a conclusão de silogismos, bem como a maneira pela qual se reconhece a definição de algo pela explicitação da diferença específica e a classificação em gêneros e espécies ainda necessita da apresentação de princípios que pressupõem este duplo modo de aquisição do conhecimento. Para além, portanto, da conclusão silogística e da definição de noções, faz-se necessário explicitar “princípios indemonstráveis” e, de acordo com Tomás, a redução a estes princípios ocorre tanto no domínio das demonstrações, quanto no domínio da constituição de definições. No que concerne à redução empregada em De veritate, q. 1, a. 1, Tomás procura expor as primeiras concepções do intelecto humano, sem as quais o desenvolvimento de definições das ciências, consideradas de modo geral, tornar-se-ia impossível. Como o conhecimento dessas primeiras concepções não segue o mesmo esquema da construção de silogismos e, consequentemente, da aquisição de novos conhecimentos mediante aquilo que se apresenta na conclusão dos mesmos e, também, como o quadro de definições não pode seguir um processo ad infinitum, Tomás afirma que tais concepções são obtidas de modo natural. Em De veritate, q. 1, a. 1, ainda se utiliza de uma referência aviceniana para fundamentar que o ente é a primeira concepção do intelecto humano. Entretanto, qual o papel desta citação e mesmo do peso que Tomás confere à noção de ‘primeira concepção’? Seria mesmo o ente algo naturalmente apreendido pelo intelecto humano? A noção de primeira concepção não pressupõe alguma atividade intelectual que toma como pressuposto outras noções e, por isso, colocaria em xeque a tentativa de fundamentação de Tomás, em De veritate, q. 1, a. 1, da noção de verdade? II. Conceber o ente: Tomás, leitor de Avicena Em De veritate, q. 1, a. 1, Tomás menciona Avicena no início da resposta, tendo em vista confirmar a necessidade da explicitação do princípio de todo conhecimento humano: “Aquilo que o intelecto por primeiro concebe como a mais evidente de todas, e na qual todas as concepções se reduzem, é o ente, como diz Avicena, no início de sua

Metaphysica [I, 5]”12. Com efeito, é possível identificar no texto aviceniano citado por Tomás a defesa da tese de que três noções são impressas primeiro na alma, a saber, coisa [res], ente [ens] e necessário [necesse].13 Entretanto, no texto tomásico, as outras duas noções não são mencionadas como primeiras concepções. Ademais, tais noções se encontram subordinadas à noção de ente, na medida em que são reduzidas ao princípio que, para Tomás, constitui o fundamento das demais. Somado a isso, o texto latino de Avicena apresenta mais uma diferença com relação ao De veritate, q. 1, a. 1: as noções primeiras não são caracterizadas como “primeiras concepções”, mas sim como “primeiras impressões” [prima impressione]. De acordo com o texto latino de Avicena, há um duplo modo de conhecimento de noções que necessita de fundamentação para escapar do retorno ad infinitum em busca de princípios. Os termos utilizados por Avicena para este duplo modo de conhecimento são “imaginação” [imaginatio], no sentido de uma ideia vaga sobre algo, e “crença” [credulitas], no sentido de assentir sobre algo.14 Trata-se, e o próprio Tomás reconhece alhures, das operações (i) de apreensão simples ao afirmar ou negar um conceito em isolado e (ii) da apreensão de conceitos complexos ou mesmo de axiomas, a partir dos quais o intelecto humano compreende sobre “aquilo que é”, bem como sobre “algo que é dito sobre outro algo” 15. Nesse contexto, o texto aviceniano sustenta haver uma impressão na alma das noções mais fundamentais que são imaginadas e que constituem o fundamento do conhecimento. Entretanto, Tomás não admite um ponto importante da tese aviceniana. Para Avicena, a impressão de tais noções se dá a partir de algo extrínseco ao intelecto humano, pois tem origem na operação do intelecto agente separado. Contudo, para Tomás, a produção do conhecimento humano tem como referência primeira as afecções sensíveis, negando, assim, a existência de um intelecto agente separado que imprima algo, de modo natural, no intelecto humano.16 Nesse sentido, os autores do século XIII optam por denominar a expressão “primeiras impressões” do texto aviceniano como “primae intentiones”, “primae conceptiones” ou

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De veritate, q. 1, a. 1, resp. Cf. AVICENNA LATINUS. Liber de philosophia prima sive scientia divina I, c. 5. 14 Estes termos latinos são, respectivamente, a tradução de tasdiq e tasawwur. Sobre a utilização desses termos na filosofia árabe medieval, ver WOLFSON [1973], pp. 478-492. Sobre essas noções em Avicena, ver KOUTZAROVA [2009], pp. 59-63. 15 Cf. De spirit. creat., a. 9, ad 6. 16 Cf. De veritate, q. 10, a. 6, resp. 13

“prima intelligibilia”17. Trata-se, neste caso, de uma adaptação terminológica que se adequa ao propósito de concentrar a dedução dos princípios mediante a produção imanente do intelecto humano. Ao adotar a expressão “concepção”, Tomás visa justamente se contrapor, neste contexto, ao emanacionismo de Avicena, apesar de admitir que o ente, uma das noções apresentadas no texto aviceniano, pode ser considerado como o primeiro princípio assumido pelo intelecto humano para dar início a qualquer investigação com pretensões científicas. Com efeito, Tomás desenvolve, no decorrer da resposta do De veritate, q. 1, a. 1, em que consiste a redução das demais concepções ou noções gerais ao ente, na medida em que nada precede ao ente e uma atribuição anterior corresponderia a reduzir a investigação sobre o constituinte mais geral de todas as coisas a algo que, realmente, inexiste, isto é, o nada. Nesse sentido, Tomás sustenta que as demais noções gerais são modos de se dizer do ente em geral. Para tanto, justifica que o acréscimo ao ente seria a maneira pela qual o intelecto humano compreende noções gerais que não se encontram subsumidas à classificação categorial do ente. A partir dessa exposição dos modos do ente em geral, Tomás especifica dois grupos, quais sejam, (i) modo geral aplicado a todo o ente [modus generalis consequens omne ens] e (ii) modo especial do ente [specialis modus entis]. Neste último grupo encontra-se a classificação do ente a partir das categorias de substância e seus acidentes. Interessa, no entanto, a Tomás assinalar o lugar de noções gerais que se encontram no grupo (i), na medida em que estas transcendem, no sentido de perpassar ou ultrapassar, a classificação categorial e possuem, com o ente, uma identidade na realidade, a despeito de serem distintas do ponto de vista da significação. Estas noções expressam algo que não se encontra explícito no termo “ente”, mas que lhe é própria a partir da análise do significado destas outras noções. A rigor, a classificação de noções gerais serve para expressar modos do ente e, nesse sentido, De veritate, q. 1, a. 1, procura desenvolver uma ordem de noções que são subsumidas à primeira concepção apreendida pelo intelecto humano. A lista de noções gerais em De veritate, q. 1, a. 1 é a seguinte: ‘ente’, ‘coisa’, ‘uno’, ‘algo’, ‘verdade’ e ‘bem’. Não cabe aqui analisar cada uma dessas noções em separado e o modo pelo qual Tomás desenvolve a dedução destas com o ente. Interessame examinar brevemente um subgrupo de noções que são, no esquema desse texto 17

Cf. AERTSEN [2012], p. 84. Para as referências pontuais das ocorrências dessas expressões nas obras de autores do séc. XIII, ver nota 126 na referida página.

tomásico, considerados como transcendentais relacionais, isto é, noções gerais que denotam o modo do ente quando este se refere a outro. III. O intelecto como fundamento dos transcendentais relacionais Na apresentação do grupo de transcendentais relacionais, Tomás escreve: O outro modo é segundo a conveniência de um ente a outro: e isto é o caso, a não ser que seja indicado algo que por sua natureza seja apta a convir com todo ente: isto, no entanto, é a alma, que, de certo modo, é todas as coisas, como é dito em De anima, III. Na alma há as potências cognoscitiva e apetitiva. Nessa medida, a conveniência do ente ao apetite expressa este nome ‘bem’, como se diz no princípio da Ética: bem é o que todos apetecem. A conveniência do ente ao intelecto é expressa pelo nome ‘verdadeiro’.18

Para justificar o estatuto das noções de ‘bem’ e ‘verdade’, Tomás mobiliza uma citação extraída do livro III do De anima, de Aristóteles. De acordo com a interpretação tomásica dessa citação, a alma pode ser dita, de certo modo, todas as coisas devido a seus modos de operação e aos objetos que lhe são correspondentes.19 Nessa medida, à potência ou faculdade cognoscitiva da alma, isto é, o intelecto encontra-se em relação com seu objeto próprio mediante apreensão intelectual das coisas. O mesmo ocorre com a potência ou faculdade apetitiva da alma ao encontrar-se em relação com seu objeto próprio e, por isso, direcionada a um fim, qual seja, a perfeição. A identificação da alma com a própria constituição das coisas, seja no que diz respeito ao seu aperfeiçoamento, seja no que concerne à sua inteligibilidade em ato, formam para Tomás a justificativa de que as noções gerais ‘bem’ e ‘verdade’ expressam algo que não se encontra explicitado no termo ‘ente’. A noção de ‘bem’ expressa o aspecto de finalidade do ente e a noção de verdade expressa a conveniência, ou seja, a inteligibilidade ou o reconhecimento intelectual do ente. Segundo a interpretação de Aertsen, é importante ressaltar a novidade dos autores latinos do séc. XIII quando estes introduziram as noções de ‘bem’ e ‘verdade’ no conjunto da análise dos modos gerais do ente.20Ademais, o subgrupo de

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De veritate, q. 1, a. 1, resp.: “Alio modo secundum convenientiam unius entis ad aliud; et hoc quidem non potest esse nisi accipiatur aliquid quod natum sit convenire cum omni ente: hoc autem est anima, quae quodammodo est omnia, ut dicitur in III de anima. In anima autem est vis cognitiva et appetitiva. Convenientiam ergo entis ad appetitum exprimit hoc nomen bonum, ut in principio Ethic. dicitur quod bonum est quod omnia appetunt. Convenientiam vero entis ad intellectum exprimit hoc nomen verum”. 19 Sobre isso, ver também In De Anima, III, lect. 13, 787-788. As demais ocorrências dessa citação na obra de Tomás são: ST, Ia, q. 14, a. 1; ST, Ia, q. 16, a. 3; ST, Ia, q. 84, a. 2; De veritate, q. 4, a. 8; De veritate, q. 24, a. 10; In De Caelo, II, lect. 14. 20 AERTSEN [1996], p. 243.

transcendentais relacionais em De veritate, q. 1, a.1, por ser constituído a partir da noção de alma, denota o “motivo antropológico”21 da doutrina dos transcendentais em Tomás. Além disso, a introdução da alma no conjunto da justificativa sobre os transcendentais leva Aertsen a defender que, para Tomás, o motivo antropológico consiste na explicitação do aspecto ilimitado do homem ou uma espécie de “abertura transcendental” pela qual o intelecto humano encontra-se apto a compreender todas as coisas e, em se tratando do aspecto volitivo, o homem busca, plenamente, seu fim último. Contudo, uma ressalva é necessária sobre a dita motivação antropológica de Tomás nessa passagem do De veritate, q. 1, a. 1. Artsen interpreta esse trecho influenciado por certa leitura heideggeriana do texto tomásico e isso, segundo penso, acaba por obliterar o sentido da derivação das noções gerais do ente em torno de uma classificação no mínimo anacrônica.22 A citação que fundamenta esta passagem não expressa certa ‘abertura’ ontológica ou mesmo antropológica. O intuito de Tomás ao recorrer à noção de alma consiste em deduzir a partir de faculdades próprias do homem o modo pelo qual as primeiras concepções do intelecto humano podem ser derivadas, de modo ordenado, e sob diversos aspectos. Nesse sentido, a conveniência do intelecto e do ente, muito mais que expressar, tão somente, uma definição de verdade, acaba por denotar as condições formais23 sem as quais nenhum discurso torna-se verdadeiro.24 Além disso, acaba por mostrar ao leitor que todas essas noções gerais encontram-se subsumidas à noção de ente. Isso, no entanto, não significa que devamos atribuir a Tomás uma abertura transcendental para o ser. Significa, em suma, que a derivação das primeiras concepções do intelecto em De veritate, q. 1, a. 1, estabelece os limites do

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AERTSEN [1998], p. 371: “O aspecto original da derivação dos transcendentais em De veritate consiste na introdução dos transcendentais relacionais. Tomás compreende a transcendentalidade de verum e de bonum em relação com as faculdades da alma humana. O ser humano é marcado por uma abertura ‘transcendental’; o motivo antropológico é uma inovação na doutrina”. 22 À guisa de confronto com a interpretação heideggeriana e sua proximidade com a interpretação de Aertsen, ver HEIDEGGER [2006], pp. 48-64, 100-103; [1967], pp. 14-15 e AERTSEN [1996], p. 105108. 23 De veritate, q. 1, a. 1, resp: “A primeira comparação do ente ao intelecto é enquanto o ente concorde com o intelecto: e esta concordância se diz a adequação do intelecto e da coisa; e nela se efetiva formalmente a noção de verdadeiro”. 24 Mutatis mutandis, pois ele se refere à noção de verdade em Aristóteles, penso que é correto afirmar o mesmo no caso de Tomás: “[...] Em termos estritos, não se trata de uma definição nem de uma teoria, mas, antes, de um critério de adequação material que qualquer definição ou teoria deve satisfazer como condição inicial de plausibilidade” (BARBOSA FILHO, 2013, p. 51).

conhecimento humano sobre os princípios, bem como fornece a fundamentação metafísica25 que Tomás pretende adquirir para um discurso filosófico sobre o mundo.26

Referências bibliográficas Fonte primária Tomás de Aquino:

Quaestiones disputatae De veritate, [ed. A. Dondaine]. Ed. Leon., t. XXII.1-3. Roma: Editori di san Tommaso, 1972-1976. Summa Theologiae: Pars Prima et Prima Secundae. Turim-Roma: Marietti, 1952. Comentario a las Sentencias de Pedro Lombardo . Vol. I/1: El misterio de la Trinidad. Intr. y tr. de J. Cruz Cruz. Pensamiento medieval y renacentista, 35. Pamplona: Universidad de Navarra, 2002. Quaestio disputata De spiritualibus creaturis. ed. J. COS. Ed. Leon., t.XXIV-2. Roma Paris: Commissio Leonina - Les Éditions du Cerf, 2000.

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Sobre essa dupla tarefa, é interessante notar a relação estabelecida por Tomás entre lógica e metafísica: “Em relação à primeira pergunta, que algum procedimento, pelo qual se procede nas ciências, é dito raciocinativo de três modos. De um primeiro modo, por parte dos princípios, a partir dos quais se procede, como quando alguém procede à prova de algo a partir das obras da razão, tais como o gênero, a espécie, o oposto e intenções semelhantes que os lógicos consideram; assim, algum procedimento será chamado de raciocinativo, quando alguém se serve em alguma ciência das proposições ensinadas na lógica, isto é, na medida que nos servimos da lógica nas outras ciências, na medida em que esta é uma doutrina. Ora, este modo de proceder não pode caber como próprio a alguma ciência particular, nas quais ocorre erro, a não ser que se argumente a partir do que lhes é próprio. Acontece, porém, que isto se faça de modo próprio e adequado na lógica e na metafísica, pelo fato de que ambas são ciências gerais e se ocupam, de um certo modo, do mesmo sujeito”. (In Boet. Trin., q. 6, a. 1, resp.). A relação e o limite tênue entre lógica e metafísica seria, segundo penso, o pomo da discórdia entre as leituras de Dewan e Aertsen no que diz respeito à noção de verdade em Tomás. Sobre o debate entre ambos, ver DEWAN [2004] e AERTSEN [2007]. 26 Analisando um aspecto posterior a este aqui investigado, ou seja, examinando a consequência da verdade que, para Tomás, consiste no conhecimento obtido pelo ato de julgar, Landim Filho é preciso ao afirmar: “O ato de julgar tem o intelecto como seu princípio. Em razão disso, a consciência do ato de julgar envolve a consciência desse princípio, isto é, a consciência da presença do intelecto no ato de julgar. Mas, a consciência da presença desse princípio é a consciência da função do intelecto. Tomás exprime a consciência dessa ‘função’ como sendo a consciência da ‘natureza’ do intelecto. Não se trata, no entanto, da consciência qüididativa da essência do intelecto na medida em que o intelecto é uma faculdade imaterial, independente do corpo, que tem a alma humana como seu sujeito, pois, caso contrário, só os filósofos metafísicos poderiam julgar. Trata-se, nesse caso, da consciência de que a natureza do intelecto é a de visar às coisas ou ‘a de se conformar às coisas’. O intelecto seria, então, uma faculdade que se caracterizaria por um dinamismo imanente: o de visar às coisas.” (LANDIM FILHO, 2009, pp. 390-391). Nessa medida, Tomás analisa, em De veritate, q. 1, a. 1, o que antecede esse processo imanente do intelecto ou, dito de outra maneira, os pressupostos que fundamentam do ponto de vista metafísico a tese do dinamismo intelectual.

Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio: Questões 5 e 6. Tradução de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. São Paulo: Editora da Unesp, 1998. Sentencia libri De anima. ed. R.-A. Gauthier. Ed. Leon., t.XLV-1. Roma - Paris: Commissio Leonina - Librairie Philosophique J. Vrin, 1984. Expositio libri Posteriorum. ed. R.-A. Gauthier. Ed. Leon., t.I*-2. Roma - Paris: Commissio Leonina - Librairie Philosophique J. Vrin, 1989.

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