A NOÇÃO DE INTERDISCIPLINARIDADE E SUA ADEQUAÇÃO [2014]

May 24, 2017 | Autor: J. Diello Huffermann | Categoria: Educação, Ensino Médio, Interdisciplinaridade, Didática
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A NOÇÃO DE INTERDISCIPLINARIDADE E SUA ADEQUAÇÃO* Resumo Neste trabalho abordaremos as relações entre o referencial estudado no subprojeto PIBID InterVale/UFRGS e as experiências em sala de aula no Colégio de Aplicação (CAp/UFRGS), analisando alguns problemas teóricos que surgem ao se planejar ações interdisciplinares, bem como suas implicações práticas. As dificuldades de se pensar em ações interdisciplinares tratadas aqui dizem respeito à ausência de um vocabulário comum estabelecido sobre o assunto e sobre a função de ações interdisciplinares na escola. É esclarecedor atentarmos para os diferentes usos, em seus diferentes contextos, dos termos “disciplina” e “interdisciplinar”, sendo que podemos diferenciar ao menos os contextos epistemológico, pedagógico, midiático e tecnológicoempresarial de enunciação (POMBO, 2008). Quanto à função da interdisciplinaridade, somos contrários a uma crítica negativa às disciplinas de acordo com a qual ações interdisciplinares são necessárias porque o conhecimento se encontra fragmentado ou esfarelado pelas disciplinas escolares. Nos parece mais adequada uma interdisciplinaridade em favor do aumento do que se tem chamado narratividade escolar (ROCHA, 2013). Esta noção pode, assim nos parece, auxiliar o planejamento ações que enfrentem o conhecido problema da desconexão entre as disciplinas escolares. Visamos mostrar a articulação conceitual entre essa perspectiva teórica e as inserções didáticas interdisciplinares realizadas por meio da leitura da obra Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, na disciplina eletiva de nome “Ciência em Macondo: leituras interdisciplinares”. Considera-se que a experiência relatada e os referencias mencionados podem servir como ponto de partida para um debate proveitoso entre professores do Ensino Médio, formados e em formação, acerca da construção de currículos e estratégias didáticas interdisciplinares – através das quais se possa resgatar a narratividade da experiência escolar. Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Currículo; Narratividade escolar. 1. Introdução: o subprojeto A partir do ano de 2014 a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foi agraciada no seu projeto do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (aprovado em 2013) com dois subprojetos de caráter interdisciplinar, o PIBID Interdisciplinar UFRGS – Campus do Vale (InterVale) e o PIBID Interdisciplinar UFRGS – Campus do Centro. O primeiro inclui bolsistas de Biologia, Filosofia, Física, Letras, Química (e recentemente Matemática), e o segundo inclui bolsistas de Pedagogia e Artes. O PIBID InterVale atualmente atua em duas escolas, na disciplina de Seminário Integrado na Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles, localizada no centro histórico de Porto Alegre/RS, e no Colégio de Aplicação da UFRGS (CAp/UFGRS) *

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Texto publicado nos anais do V Encontro Nacional das licenciaturas e IV Seminário Nacional do PIBID.

interdisciplinares”. No início do ano, como preparação para as intervenções nas escolas, e posteriormente de modo contínuo visando a complementação do bolsista-docente, foi proposto aos bolsista do PIBID InterVale a leitura de textos paradidáticos e de cunho mais teórico, visando a superação de certo desafios, problemas e ambiguidades envolvendo o tema interdisciplinaridade, especialmente aqueles relacionados à prática interdisciplinar. Na próxima seção serão expostos alguns dos desafios teóricos relacionados à interdisciplinaridade, como podemos superá-los fazendo uso de parte do referencial teórico estudado pelos bolsistas do subprojeto, e consequentemente, sua contribuição como inspiração para os experimentos didáticos realizados, expondo assim a noção de interdisciplinaridade adequada. Em seguida apresentamos atividades realizadas no Colégio de Aplicação que ilustram o suporte dado pela teoria à prática. 2. Desafios teóricos Na elaboração de experimentações didáticas, por assim dizer, pé no chão, os bolsistas inicialmente estavam confusos com os termos “interdisciplinar” e “transdisciplinar”, muitas vezes usados sem uma diferenciação clara, inclusive em documentos oficiais, como os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais). Outra dificuldade encontrada é referente a um discurso no mínimo problemático, de que a interdisciplinaridade serviria para unir o conhecimento que fora esquartejado pelas disciplinas individuais. Os textos tratados a seguir foram elucidativos. Tais referenciais seriam “Epistemologia da Interdisciplinaridade” de Olga Pombo, relativamente recente (2008), e as ideias do professor Ronai Pires da Rocha, expostas primeiramente no livro Ensino de Filosofia e currículo (Vozes, 2008), que, apesar de se tratar de uma obra de didática da Filosofia – devido a sua análise da natureza interdisciplinar da mesma, sua reflexão acerca do que caracterizaria disciplinas escolares e sua abordagem da noção de currículo – pode auxiliar professores de diferentes áreas a pensar a interdisciplinaridade. O professor vem se dedicado mais diretamente ao tema interdisciplinaridade em escritos mais recentes. De uma perspectiva teórica, esses referenciais lidam com certas dificuldades de se pensar em ações interdisciplinares: a ausência de um vocabulário comum estabelecido sobre o assunto; quais práticas seriam mais pertinentes ao ambiente escolar; e sobre a função de ações interdisciplinares na escola. É esclarecedor atentarmos para os diferentes usos, em seus diferentes contextos, dos termos como “disciplina” e “interdisciplinar”, sendo que podemos diferenciar ao

menos os contextos epistemológico, pedagógico, midiático e tecnológico-empresarial de enunciação (POMBO, 2008). Quanto às práticas, listaremos algumas, mas o que deve ser frisado é que sua efetivação depende do contexto. Quanto à função da interdisciplinaridade, apresentaremos uma concepção contrária a uma crítica negativa às disciplinas de acordo com a qual ações interdisciplinares são necessárias porque o conhecimento se encontraria fragmentado ou esfarelado pelas disciplinas escolares. Nos parece mais adequada uma interdisciplinaridade em favor do aumento do que se tem chamado narratividade escolar ou experiência de sentido (ROCHA, 2013). Antes de continuar, vale ressaltar que se há algum valor no que está sendo apresentado, ele se dá de dois modos: proporciona esclarecimento conceitual sobre a questão, e pode servir de inspiração para o planejamento de estratégias didáticas interdisciplinares viáveis para o Ensino Médio. Portanto, devemos tomar com cautela a opinião dos autores e de modo algum considerá-los a posição definitiva sobre esse assunto. O diálogo qualificado continua aberto. 2.1. Terminologia Temos ao menos quatro palavras que são geralmente usadas ao se falar das colaborações entre mais de uma disciplina – pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdicisplinaridade – alguma digressão etimológica nesse cenário é útil. Como pode-se notar, todas têm a mesma raiz: disciplina. Contudo, longe de oferecer um ponto de contato comum, mantém a variedade de sentido, pois “disciplina” pode ser empregado tanto como campo de estudos específico (Genética, Criminologia, Neurobiologia, Cartografia), quanto como componente curricular (Física, Matemática, História, Química). Essa ambiguidade será tratada mais adiante. Recorramos aos prefixos, que apesar de não determinar algo como “o significado real” das palavras (como se tal coisa existisse), dá fortes indicações do alguém poderia querer dizer ao usar tais termos. Os prefixos pluri e multi são, de um ponto de vista etimológico, indistinguíveis, sendo então três os prefixos relevantes (inter, trans e pluri/muti). Além disso, o prefixo pluri/multi é pouco informativo, parece indicar somente que o que for que fosse, trataria de um conjunto de disciplinas, mais de uma. Já com os prefixos inter e trans podemos alcançar resultados mais produtivos. O inter disciplinas indicaria uma relação média ou intermediária entre as disciplinas, algum tipo de convergência, de análise a partir perspectivas distintas. Dentro de um

contínuo dessa relação entre disciplinas, estaria um estágio onde atravessamos os limites pré-estabelecidos dos saberes particulares, estabelecendo uma espécie de “fusão” entre eles, e teríamos algo que poderia ser apropriadamente nomeado transdisciplinar. (POMBO, 2008) Ao menos é assim que Pombo sugere que fixemos nosso vocabulário. Para entender o que seriam práticas que estabelecem relações entre disciplinas e/ou as atravessam, olhemos com mais detalhe dois contextos onde podem ocorrer: a escola e o ambiente de pesquisa acadêmica. 2.2. Contextos e práticas. Há ao menos quatro contextos em que o interdisciplinar é evocado (como mencionado anteriormente); porém, para os propósitos aqui estabelecidos, precisamos olhar com mais atenção para a distinção importante, e muitas vezes ignorada, que é entre o contexto epistemológico ou de pesquisa e o contexto pedagógico ou escolar; e, ao listar práticas interdisciplinares correntes, determinar como são adequadas a cada um. As práticas tratadas aqui são também devidas ao rastreio de Olga Pombo. Comecemos pelo uso de interdisciplinar no contexto de pesquisa. Ele pode ser brevemente caracterizado como “relativo a práticas de transferência de conhecimentos entre disciplinas e seus pares.” (POMBO, 2008, p.10) Diante de um fenômeno extremamente complexo, estudá-lo recorrendo a diferentes áreas; tratar de um problema que surge no interior de uma disciplina especializada através de métodos oriundas de outras. Pense em exemplos como: um projeto de pesquisa a respeito do funcionamento do sistema nervoso central, ou um estudo detalhado sobre o ecossistema da floresta amazônica. O que deve-se notar é o esforço conjunto de especialistas de mais de uma área em produzir novos conhecimentos, resolver problemas de alto nível de complexidade, fazer descobertas que não seriam possíveis sem esse esforço conjunto. O uso de “interdisciplinar” no contexto escolar pode de maneira sucinta ser caracterizado como relativo “às transferências de conhecimento entre professores e alunos que tem lugar no interior dos curricula escolares” (Idem, p.10) Nesse contexto o foco deve ser a transposição didática. Não é razoável esperar de nossos alunos a produção de conhecimentos inéditos, o que pode-se esperar é um aumento de organicidade nas relações de ensino-aprendizagem. Seria até mesmo desastroso para a formação dos alunos uma investigação que usa métodos, linguagens e procedimentos de diversas disciplinas para produção de novos conhecimentos, pois na condição de

aprendizes, não sendo capaz de diferenciá-los, confundiriam o que é característico de, por exemplo, Filosofia, do que faz parte da Física, do que é essencialmente Matemática. No momento de se planejar ações interdisciplinares escolares, devemos buscar aqueles temas, conceitos, problemas que são comuns a mais de uma disciplina (como o conceito de luz, a fotografia, etc) e usar dos diferentes métodos, linguagens e procedimentos para tratá-los de maneira dinâmica. Cabe perguntar que tipo de abordagens poderíamos utilizar. Finalmente, na práxis interdisciplinar podemos listar as seguintes práticas: práticas de importação – uma disciplina adota metodologias, linguagens e aparelhagens já devidamente provadas de outras disciplinas (ex. O importe de métodos desenvolvidos em Matemática pura para ciências empíricas) – práticas de cruzamento – onde não há uma disciplina central, onde dado que não é possível uma análise exaustiva do fenômeno por nenhuma das disciplinas particulares, há uma abertura de cada disciplina a toda as outras (ex. estudos sobre o clima; uma leitura interdisciplinar do livro Cem Anos de Solidão) – práticas de convergência – uma análise de um terreno comum, que envolve uma convergência de perspectivas, sendo possível quando os objetos apresentam certa unidade (ex. uma província da Nicarágua; uma obra literária como o Cem Anos de Solidão) – práticas de descentração – relativo a problemas que não podem ser reduzidos as disciplinas tradicionais, como o caso do meio ambiente – e práticas de comprometimento – relativas a problemas que perduram durante os séculos, de alto grau de generalidade, como, por exemplo, questões acerca da natureza humana. Essa classificação da práticas é fluída, podendo ações efetivas (tanto no âmbito da escola como da pesquisa) serem classificadas em mais de uma categoria. É interessante atentar para o fato de que, em princípio, todas essas práticas são adequadas para os contexto de pesquisa e de escola, com a exceção de práticas de importação, visto que os alunos poderiam confundir o que é particular de cada disciplina. O fundamental em qualquer planejamento, a ciência do contexto em que nos encontramos. Responde-se, com algumas considerações sobre a etimologia dos termos e sobre os contextos onde essa tal de “interdisciplinaridade” ocorre, o que é isso que poderíamos nos empenhar a fazer: realizar procedimentos de transposição didática envolvendo mais de uma disciplina, se valendo das conexões entre elas, e talvez atravessando suas demarcações. Resta saber porque nos engajar em empreendimentos como, por exemplo, discutir acerca da natureza humana com os alunos do Ensino Médio com o auxílio de clássicos da literatura universal e conhecimentos de Biologia e de

Filosofia. Uma resposta poderia ser que o conhecimento (com ênfase no singular) se encontra fragmentado, esfarelado entre as disciplinas escolares. Que devido aos recortes feitos nos saberes particulares, os alunos não têm um acesso ao “todo”, e a interdisciplinaridade teria a função de possibilitar tal acesso. Não foi essa a concepção adotada pelo PIBID InterVale. A interdisciplinaridade pode servir para enriquecer de sentido as aprendizagens dos alunos, e esse, julgamos deve ser o horizonte das experimentações didática com ela. Para defender essa posição, é preciso refletir, ao menos brevemente, acerca das disciplinas escolares, o que inevitavelmente envolve discussões sobre currículos. 2.3. Currículos orgânicos Adotando uma perspectiva holista, que privilegia o todo em função de suas partes, pensemos a noção de “disciplina escolar” dentro do contexto de um currículo. Esse currículo, devemos pensá-lo a partir do princípio do presépio? de acordo com o qual (como os reis magos do mito cristão) cada professor traria o que julga ter de melhor a oferecer, sem contato com os demais professores. Reza-se pelo melhor. Um modelo em que o currículo cresce por justaposição, como os minerais. Não poderíamos entender o currículo com metáforas que apelassem aos organismos vivos, complexos, dos quais se diz que o todo é mais que a mera soma das partes? Se escolhemos o segundo modelo de currículo temos que pensar nas articulações entre as disciplinas. Entendemos por currículo não uma lista de conteúdos a serem transmitidos, mas como conjunto de critérios, processos e atividades em torno dos quais se desenvolvem práticas formacionais, o que envolve principalmente pensar ações a serem realizadas pelo professor, tendo em vista objetivos didáticos específicos. Deste ponto podemos examinar a própria noção de “disciplina escolar”. Rocha o faz em seu livro usando como referencial inicial as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, que representavam em 2006 (o livro foi publicado em 2008) o estado da arte no que diz respeito às recomendações do Ministério da Educação (MEC) sobre o Ensino Médio. Contrasta-se a classificação do MEC entre Ciências das Natureza, Matemática e suas tecnologias, Ciências Humanas e suas tecnologias e Linguagens, códigos e suas tecnologias (no presente estado da arte, a classificação por áreas Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Linguagens e Matemática) com o que nomeia curiosidades humanas fundamentais (ROCHA, 2008). Disciplinas reportariam-se as

nossas diferentes curiosidades: curiosidades sobre a natureza (“mundo” sem as gentes); Física Química e Biologia. Curiosidades sobre o mundo enquanto habitado e construído (Geografia, Sociologia, História). Curiosidades sobre nossas capacidades compreensivas e expressivas: Linguagens, Artes, Educação Física. Curiosidades sobre os aspectos formais da realidade – a Matemática como ciência sui generis. E por fim uma curiosidade sobre todas as curiosidades, a Filosofia. Pode-se objetar a classificação em termos de curiosidades humanas fundamentais, especialmente a caracterização da Filosofia como curiosidade sobre curiosidades devido a sua aparente similaridade com uma noção ultrapassada de Filosofia como “ciência mãe”. Trata-se na verdade de atestar algo que é em certo sentido uma trivialidade: a Filosofia se ocupa com questões gerais que podem surgir no cerne das outras disciplinas escolares (“O que é o número?”, questionamentos sobre a natureza do tempo: se o “tempo” da História é o mesmo que o “tempo” da Física?, “Existe diferença entre linguagem e pensamento? Qual?” etc). Não é a toa que se use a expressão “filosofia da ...” como demarcação de área (ex: filosofia da mente, filosofia da matemática, filosofia das ciências naturais etc). É essa capacidade da Filosofia de atravessar as demarcações dos saberes, no contexto escolar servindo de “costura” entre as disciplinas, que Rocha denomina transversalidade pedestre. É importante esclarecer que não é o caso de somente a Filosofia ser capaz de articular os diferentes saberes, mas que essa seria sua função central no Ensino Médio. Na verdade todas as disciplinas escolares apresentam pontos de contato umas com as outras que criam a necessidade de ações interdisciplinares. Agora é relevante desfazer a ambiguidade anteriormente encontrada no termo “disciplina” (seção 2.1). Disciplinas, enquanto componente curricular, podem ser caracterizadas como conquistas intelectuais da humanidade que são disponibilizadas para a aquisição dos alunos, reflexo das curiosidades humanas fundamentais. Já no caso as disciplinas, enquanto campos de estudo, são territórios legítimos do saber, que resultam do desenvolvimento das curiosidades humanas ao longo da história da humanidade. O que está sendo pressuposto é que o intelecto humano é limitado, sendo incapaz de uma apreensão de todo o conhecimento, enquanto unidade. Temos de fato conexões, pontos de contato entre as disciplinas, que ao serem ligadas tornam mais rica e prazerosa qualquer experiência de aprendizado. Na falta dessas “costuras” que peca a escola atual. É comum nos depararmos na escola com a chamada “presença branca”, em que os alunos somente vão à escola devido a obrigação questionável imposta pelos pais

e pela sociedade, obrigação carece de sentido. Com atividades interdisciplinares pode-se dar algum sentido a essa experiência, aumentando a chamada narratividade escolar, entendida como a “a capacidade da escola fazer sentido no quotidiano do estudante, como um lugar para onde esse ocorre com o sentimento de compromisso com o prazer de aprender.” (ROCHA, 2013, p.4) Ao primar pelos pontos de contato entre as disciplinas, costurando-as num tecido coeso, o ambiente escolar do aluno passa a fazer sentido. Essa articulação, nunca deixando de ter em vista que se trata de um contexto escolar, nos parece ser a noção de interdisciplinaridade adequada. Algo que deveria estar no horizonte dos currículos, sejam pluri, inter, trans ou de qualquer outro gênero. 3. Estudo de caso: José Arcadio Buendía, objetos ópticos e a luz Vejamos a articulação entre teoria e prática, começando por breve relato. Como já mencionado, o PIBID InterVale atua em duas escolas da cidade de Porto Alegre/RS, sendo uma delas o Colégio de Aplicação (CAp/UFRGS). Nessa escola nos inserimos através de uma disciplina eletiva chamada “A ciência em Macondo: leituras interdisciplinares”, onde durante a leitura de capítulos da obra Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, questões referentes as mais distintas ciências e áreas do saber surgiam motivadas principalmente pela engenhosidade da personagem José Arcadio Buéndia, que ao menos nos capítulos iniciais é a personagem de maior destaque. Nessa disciplina se teve a oportunidade de realizar atividades com um grupo muito diversificado de alunos, que cursavam diferentes anos do Ensino Médio. O livro Cem anos de solidão narra a estória da família Buendía, se passando majoritariamente no vilarejo de Macondo, fundado pelo patriarca da família, José Arcadio Buendía (daí a origem do nome da disciplina eletiva). O vilarejo é visitado diversas vezes por ciganos, que trazem inovações tecnológicas que despertam a imaginação do jovem patriarca, que se envolve em empreendimentos que desafiam os limites de um único saber. Contudo, antes do início da leitura da obra do escritor carinhosamente apelidado Gabo, foi exibido aos alunos o primeiro episódio da série “Sherlock”, da BBC inglesa, de título “A Study in Pink” (“Um Estudo em Rosa”, tradução livre). O objetivo da atividade era refletir acerca dos tipos de raciocínios realizados pela personagem principal e posteriormente comparar sua atitude com a de José Arcadio Buendía (JAB). Foi debatido com os alunos as diferenças entre os raciocínios dedutivos, indutivos e abdutivos (tema tipicamente tratado nas aulas de Filosofia, no conteúdo de Lógica). A

distinção entre os raciocínios se mostrou útil para entender os empreendimentos do patriarca da obra de Gabo. Um dos empreendimentos fracassados de JAB foi o de construir uma arma de guerra solar. A personagem entra em contato com lentes de aumento quado numa de suas viagens, os ciganos chegam a aldeia portando tais objetos e um telescópio. Os alunos foram questionados se tal arma de guerra seria possível, e para a surpresa do professor supervisor e dos bolsistas um número considerável de alunos respondeu afirmativamente. O próximo passo da disciplina foi a realização de uma oficina teórico-prática de objetos óticos. Os bolsistas InterVale do curso de Física falaram dos diferentes tipos de lentes, dos microscópios ao telescópios, lentes convergentes e divergentes, incluindo alguns dos gráficos envolvidos. Como atividade prática, foi solicitado que os alunos se dirigissem ao pátio da escola, cada um com uma lupa, para que tentassem acender um palito de fósforo usando somente aquele instrumento. O dia em que a oficina foi realizada estava levemente nublado, o que fez com que poucos alunos tivessem sucesso na empreitada. A inviabilidade de uma arma solar de guerra, que funcionaria somente em condições muito limitadas (com luz solar intensa e em ângulos apropriados), ficou claramente estabelecida. Atual à produção desse artigo está sendo elaborada uma oficina acerca do gelo (outro elemento importante na obra), relacionando-se com o tema dos objetos ópticos ao mostrar aos alunos a possibilidade de se criar uma lente de tal material, explorando as incríveis propriedades da água. Além disso, uma outra atividade foi realizada envolvendo o conceito de luz, dessa vez em parceira com os PIBIDs UFRGS de Física e Química, uma oficina de fotografia. Nessa oficina, os alunos tiraram fotos utilizando as câmeras pinhole e experienciaram o processo de revelação. Outra vez, essa atividade foi realizada devido ao fato de que no terceiro capítulo da obra os Buendía entram em contato com um daguerreótipo, uma máquina que apresenta algum grau de parentesco com as máquina fotográficas analógicas, fazendo sentido a problematização da captação e fixação de imagens e a realização da oficina. Neste breve relato de algumas das atividades realizadas pelo PIBID InterVale esperamos que o leitor tenha conseguido notar influências dos referenciais teóricos. Optou-se por uma abordagem que não ignora as diferenças entre o contexto escolar e o contexto de pesquisa, em que o foco estava em buscar aquilo em que cada disciplina tinha a contribuir para a aprendizagem dos alunos. A maior parte de nossas ações pode ser caracterizada como “interdisciplinar” no uso que Pombo sugere que façamos do termo, de relação intermediária entre disciplinas (nesse caso escolares), de convergência

de perspectivas, todas elas contribuindo para compreensão robusta de um clássico da literatura latino-americana. O que não significa que ações transdisciplinares em sentido pombiano não pudessem ser pensadas. Quanto às práticas, nossas ações poderiam ser caracterizadas como exemplificando práticas de cruzamento (no caso do trabalho entre física e química com a fotografia e o gelo) e de convergência (tomando o livro Cem anos de solidão como o “terreno comum”, os tipos de raciocínios, a atividade com as lentes, assim como todas as nossas outras ações). Em relação ao que é proposto por Rocha, a obra de Gabo é aquilo que possibilita a articulação ou “costura” entre disciplinas escolares, valorizadas enquanto capazes de sanarem curiosidades que lhe são próprias, resultando num enriquecendo de sentido na experiência de leitura de uma obra literária. 4. Considerações finais É desafiador realizar ações interdisciplinares na educação básica, pois por mais que a discussão sobre o assunto aconteçam a algum tempo e existam recomendações oriundas de documentos do Ministério da Educação (MEC), poucas são as propostas postas em prática. Outra problema além da falta de um registro (uma tradição de experiências bem sucedidas) é a confusão conceitual envolta no tema, que dificulta muito o planejamento. Com relação ao primeiro problema, é preciso que cada vez mais tentativas de fazer a interdisciplinaridade ocorram, é necessário mais testes e experimentos (sendo o estágio, nesse sentido, um experimento didático). Nesse caso, somente o tempo e a ousadia nos aproximarão de uma situação satisfatória. Já com relação à confusão conceitual acreditamos ser possível alcançar um avanço real e uma qualificação do diálogo a partir da perspectiva teórica adotada. Além disso, essa perspectiva estimula a imaginação didática e curricular, como fonte inspiradora de experimentações didáticas das mais variadas.

REFERÊNCIAS POMBO, O. “Epistemologia da Interdisciplinaridade” Em: Ideação: Revista do Centro de Educação e Letras da Unioeste. Foz do Iguaçu, v.10, n.1 p. 9-40. jan/jun de 2008. ROCHA, R. P. da. Ensino de filosofia e currículo. Petrópolis: Vozes, 2008. 208 p.

ROCHA, R. P. da. “Primavera da filosofia no currículo do Ensino Médio”. Disponível em: Acessado dia 30/10/2014 às 14:25.

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