A noção de plano de vida, sua posição na Ética e sua relação com a sorte – Desafios a partir da formulação de John Rawls

July 24, 2017 | Autor: Fernando Cardoso | Categoria: Ethics, John Rawls, Moral Luck, Ética, Ética e Filosofia Moral, Charles Larmore
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A noção de plano de vida, sua posição na Ética e sua relação com a sorte – Desafios a partir da formulação de John Rawls Fernando C Cardoso (Posdoc CNPQ/UNL Lisboa) Comentários: [email protected] O objetivo aqui é o de investigar algo consequente às formulações em torno da Sorte e daquilo que, apesar de não realizar plenamente o que foi delineado na definição de Sorte, responde, pois adere às suas tópicas, ao que foi equivocadamente compreendido pela filosofia moral como seu ponto central que é o do controle. Nesse sentido, darei um passo aquém e tornando a definição de sorte, mesmo que nessa forma imperfeita e impura, aplicável à normatividade e a Ética (seres também impuros – “criaturas da noite” como já indicava Quine), investigar ainda outro aspecto daquela visão de nós mesmos que estou a rejeitar para aprofundar nossa visão acerca do relacionamento entre Sorte e Ética. Desse modo, gostaria de inserir sob o signo do que não está sob controle algo relacionado ao que pareceu ser, sempre do ponto de vista da filosofia moral, o mais claramente controlado de nossos aspectos: as noções em torno de plano de vida, história de vida e de narrativa. De fato, uma noção de Sorte menos formal será radicalizada para lidar com esses aspectos, porque acreditamos que a sua mera possibilidade, já garantida, estende a urgência daquilo que estamos lidando. Entretanto, concordamos que há desafios. Latus, por exemplo, afirma: “It is one thing to consider that luck plays a role in what we accomplish and quite another to consider its effect on who we are” (Latus:2003, p.461). Isso é verdade. No presente artigo, assumimos essa verdade de um modo muito importante e, para a consideração desses efeitos, já que acreditamos ter mostrado seu papel, devemos ter em mente que duas limitações correm em paralelo inviabilizando essa noção de narrativa, nosso tema aqui, e que é uma das faces que a defesa contra a Sorte assume e assume de

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modo relacionado à própria noção de caráter (que depende numa extensa medida dessa noção de narrativa e plano de vida1). A primeira dessas limitações é que a Sorte indica um limite das nossas capacidades cognitivas quando são superadas pela possibilidade de processamento. Esse limite não é uma falha, mas uma característica econômico-energética de eficiência da normatividade enquanto aspecto de nossa cognição. A segunda limitação diz respeito a como essa noção de plano de vida se dissocia desse aspecto de eficiência sublimando-se, como outros conceitos da filosofia moral, numa idealidade pouco crível e, seguindo uma sugestão de Williams, porque para esse ponto vou à questão do remorso, que os humanos de fato evitam. 1ª Seção – Rumo à noção de plano de vida

O que Gaugain poderia ter pensado ao voltar do Taiti? Os filósofos morais normalmente parecem possuir certa veia hemingwayniana. Ainda mais que essa veia é sempre fortalecida pela aparente honradez de seu arsenal conceitual. Assim, Don Levi trata dessa pergunta acerca dos pensamentos de Gaugain, usando algo que ele recupera da novelista e ensaísta Joan Didion, chamado de “nervo moral”. Obviamente a maquinação seria brincar com os sentidos dessas palavras (já que estou defendendo e testando um modelo baseado na cognição e mais ou menos precisamente em nervos) e talvez seja uma traquinagem também ir a uma versão tão hiperbólica (quase ‘divina, demasiado divina’). Mas gostaria de iniciar com essa sugestão. Diz Didion: “People with self-respect have the courage of their mistakes. They know the price of things. If they choose to commit adultery, they do not then go running, in an access of bad conscience, to receive absolution from the wronged parties; nor do they complain of the unfairness. The underserved embarrassment of being named co-respondent. In brief, people with self-respect exhibit a certain Se de mais argumento necessitamos para esse vínculo, poderíamos pensar naquela discussão, de outro modo exótica, de Aristóteles de se e do como mesmo o post-mortem pode afetar a valoração de uma vida como feliz ou não. Sua discussão supõe uma associação de nossas vidas com a de nossos filhos, por exemplo, e da graça ou desgraça que suas próprias vidas trariam ao nosso nome. 1

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toughness, a kind of moral nerve; they display what was once called character” (citado por Levi In Statman:1994, p. 119). Levi acredita poder rejeitar a associação da Sorte com a moral (rejeitar de fato a argumentação de Bernard Williams como um todo) justamente com essa ideia de um nervo moral. Gaugain, se fosse um ser (talvez devesse incluir um “verdadeiramente”) moral, diria algo como: Eu não rejeito o plano que formulei e segui. Reconheci os desafios, aqueles de deixar para traz o que deixei – mulher, filhos, cachorro, amante e seja lá o que for – sabendo-os valorosos (afinal não sou um amoralista) ao elaborar esse plano e ao iniciar sua execução e não me arrependo. Apenas não desejo aquilo que queria anteriormente2. Essa postura estilo “Edit Piaf” é verdadeira no sentido de uma boa descrição de nós mesmos? Vimos com a investigação sobre o assassinato do agente deliberativo uma rejeição de algo muito próximo dessa descrição, mas aquela argumentação poderia ser compreendida como sendo um ponto de vista, concedamos, algo externo ou extrínseco (até porque é aquele próprio da investigação da Psicologia empírica). Assim, o caráter foi negado porque, quando se faz uma investigação, vemos que a constância envolvida nele não se aplica aos sujeitos que investigamos etc. Mas pode ser que nos enganemos sobre a sua verdade e, num dilema para o intérprete davidsoniano, caridosamente cedemos aos outros o que cremos falsamente ser nós mesmos, esse ser de caráter que ‘ne regret pas’, jamais porque, de fato, está sob o encanto do imperativo categórico e especialmente sob a força dada a ele pela livre adesão do sujeito racional. Não é exatamente essa uma origem dessa coisa importante em nossas vidas morais que seria a noção de narrativa ou plano de vida? Infelizmente, não saberia estabelecer aqui se há uma universalidade desse elemento nas diversas culturas e o gênero narrativo “memória” é um “buraco negro” que nos leva para outra direção3.

Diz Levi sobre o que pensaria Gaugain, homem de nervo moral: “I chose to do something which would give meaning to my life, I knew that I risked a great deal in doing so, but I have no regrets about doing it just because it did not turn out successfully. What I wanted so badly I no longer want at all. But I regret nothing” (Levi in Statman:1994, p. 120). 3 Mas talvez saísse de lá com uma visão próxima àquela sugestão de Rorty, que me consterna às vezes quando demoro a dormir, de que a filosofia deveria ser deportada para o departamento de estudos literários. 2

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Assim, vou assumir essa ideia de narrativa de vida (genericamente de forma a incluir versões intelectuais como a que a analisarei detidamente, a de Rawls, mas também, porque não, de modo a incluir mesmo aquela versão que assume um tom de carreira no estilo “trabalhei na mesma empresa e me fiz homem”4) como exemplar do que seria para o moralista o trabalho de composição do caráter que, como sabemos, comporia, para tal filósofo, nós mesmos. É esse o presente alvo. E, para atacá-lo, precisamos de uma confissão (eu sempre me arrependo, sempre falho em continuar o que decidi fazer e nunca me motivo se o que é necessário o é apenas por ser, meramente, correto ou bom) e de voltar à formulação de Williams. E é deste modo, com uma confissão, que procuro preparar o terreno para outros seres que, como eu, sempre vão aos seus respectivos “Taitis” e lá e na volta ruminam porque o fizemos duvidando assim que exista esse plano de vida (ainda mais um sustentado pelos poderes derivados do encantamento da adesão livre do agente racional) que sirva de porta para o caráter ou que, cedamos, mesmo que exista, seja o caso comum a ser visado pelo estudioso da Ética como seu ideal e como explanatório do que nós somos ou explanatório de duas perguntas que Nussbaum coloca como centrais e que podemos também adotar: Quem pensamos que somos? Onde queremos viver? No Taiti, Gaugain até mesmo adicionou a pergunta extra de “para onde vamos” (penso no seu quadro “D'où venons-nous ? Que sommes-nous ? Où allons-nous ?”5). Minha formulação é que essas perguntas, ainda mais com o adendo dessa abertura sobre o futuro, somente são possíveis, como somente foram possíveis no caso de Gaugain, porque de fato vamos aos nossos Taitis. Mas qual o resultado que retiraremos daqui? Essa noção de que vamos aos nossos Taitis e lá e quando voltamos nos justificamos e elaboramos uma narrativa apontará o paradoxo da filosofia no seu tratamento da normatividade e nesse sentido, serve de melhor bússola para a normatividade que a noção de plano de vida. Mas estamos a nos adiantar na argumentação. Temos

Mulheres parecem não processar suas vidas do mesmo modo maratona. Nesse sentido, Virginia Woolf, por exemplo, afirma: “There’s never been a womans autobiography. Nothing to compare with Rousseau”. Mas não quero entrar nesse ínterim. 5 E é interessante a interpretação que Gaugain fornece para a última parte dessa pintura que deve ser vislumbrada da direita para a esquerda. Na esquerda, a figura da mulher velha ao lado de um pássaro branco representa, segundo Gaugain, a futilidade das palavras: "an old woman approaching death appears reconciled and resigned to her thoughts"; at her feet, "a strange white bird...represents the futility of words." 4

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primeiro que encontrar a mencionada confissão e a vejo naqueles que sempre foram problemas delicados para a filosofia moral tradicional. Reconhecendo a falta de nervo moral O objetivo com o reconhecimento da falta de algo como um nervo moral em nós é levar à percepção acerca da semelhança e da banalidade em nossas vidas que uma série de problemas que foram tomados como verdadeiros desafios para a filosofia moral e batizados com nomes grandiosos ou simplesmente transliterados de modo a marcar seu exoticismo apresentam. De modo a alcançar esse fim, a confissão da falta desse nervo moral ou caráter pode assumir a formas diversas: - uma compreensão do arrependimento (o caminho de Williams) e de que ele é realmente um fenômeno comum e não apenas algo relacionado a espíritos fracos e amoralistas; - ou pode assumir a forma de compreender que o arrependimento diz respeito a algo mais disseminado; que, dada sua banalidade, ocorre sob um sem número de figuras que os seres humanos – incluindo os filósofos – trataram de classificar e nomear com aquela riqueza comum às coisas que mais lhe interessam no sentido de que se são, usando coisas ao meu redor, vaqueiros criam nomes diversos para diversos tipos de membros dos seus rebanhos, se têm montanhas ao seu redor provêm um número quase infinito de estados “psíquicos” para dizer como está a cobertura de nuvens ou de neve nos seus cumes. Como seres que operam sob o domínio da dúvida, da Sorte e da sua própria finitude, uma série de nomes foi dada ao que tenho em mente. Nesse sentido, essa confissão, especialmente sob sua segunda forma, passa pela compreensão de que akrasia, a falta de motivação, fenômenos como o exemplificado por Bartleby e o arrependimento constituem algo que, unificarei sob o nome de válvulas de escape frente ao reino universal da moral, não são exotismos a serem investigados com pavor pelo moralista, mas a mais comum de nossas situações, ou diríamos até mesmo o mais comum de nossos hábitos. De fato, no seu clássico sobre o assunto (penso no “a plea for excuses”), Austin fornece o seguinte exemplo, compatível com o espírito de muitos como ele e como eu, e com a banalidade dessas nossas defesas: “I am very partial to ice cream, and a bomb is served divided into segments corresponding one to one with the persons at High Table: I am tempted to help 5

myself to two segments and do so, thus succumbing to temptation and even conceivably (but why necessarily?) going against my principles. But do I lose control of myself? Do I raven, do I snatch the morsels from the dish and wolf them down, impervious to the consternation of my colleagues? Not a bit of it. We often succumb to temptation with calm and even with finesse” (Austin 1979, p. 198). Assim, nesse espírito de confissão, devemos reconhecer o “caráter” comum dessa falta de nervo moral apenas acrescentando a Austin que sucumbimos sem irracionalidade ou amoralismo. E de fato é essa a noção que é sugerida por Arpaly no seu artigo “On Acting Rationally Against One's Better Judgment” (in Arpaly:2000). A ideia central ali é uma reavaliação da akrasia no sentido de que na verdade agir contra seu melhor julgamento pode vir a ser a opção mais racional. E esse paradoxo leva Arpaly a minimizar uma distinção importante para o moralista sem com isso fechar as portas dessas importantes partes de nossa vida ética à uma investigação: “I would like to admit that my findings imply that it is sometimes very hard to distinguish rationality from irrationality in practice, and that, in particular, it is sometimes very hard to distinguish rationality from irrationality in ourselves in practice, but this does not necessitate any conceptual or theoretical blurring of the boundaries of rationality” (Arpaly:2000, p. 60). Mas há uma série de importantes distinções feitas nesse artigo que gostaria de trazer para cá de modo a explicitar essa confissão e de modo a começar a apontar melhor o papel que vejo nessas válvulas de escape do reino universal da moralidade. A primeira dessas noções é a distinção entre duas formas em que pensamos a racionalidade. Na primeira vertente uma teoria ideal da racionalidade forneceria uma espécie de manual sobre como e como sempre tomar decisões racionais enquanto na segunda o objetivo não seria tanto essa indicação mas o alcance de um ponto de vista de terceira pessoa que dissesse quando alguém age ou não racionalmente. Segundo Arpaly essa diferença de objetivos encerra uma consequência: enquanto no primeiro caso uma falha em dizer como ser racional implicaria uma falha necessariamente da receita e do manual nessa segunda forma de postura, mais razoável a meu ver mas, como apontarei, não inteiramente correta ou pelo menos não a melhor disponível para o interessado em Ética, não há essa condenação cabal mas apenas o reconhecimento de duas dificuldades: - a dificuldade em distinguir o racional do irracional e; - o fato de sermos péssimos juízes de nossa própria racionalidade. 6

Abordarei esse segundo ponto detidamente com minha crítica a noção de plano de vida e com o que vejo como nossa terrível capacidade em formular nossa própria autobiografia mas continuarei a acompanhar o artigo de Arpaly pela provisão que faz desses pontos e de sua relação com a akrasia. Compreendendo a akrasia como sinônima de agir contra nosso melhor julgamento, ou seja, “to refer to the judgment that one reaches, having taken into account all the reasons one judges to be relevant, as to what would be best for one to do in a given situation” (Arpaly:2000, p.35). Mas o que aponta a akrasia? Que de fato há casos em que agir contra nosso melhor julgamento é de fato a opção mais racional e que há situações que o descompasso entre o que supomos ser e nossos desejos e crenças. Nesse sentido uma identificação da racionalidade como coerência entre esses deve dar lugar a uma analise mais contextual ou, no limite, mais contextualizável como no caso da pessoa que é coerente nos seus desejos e crenças de não comer um bolo mas que é irracional dado sua anorexia. Nesse sentido o teórico que propõe um manual da boa vida peca pela sua falta de reconhecimento de que há “a minimal significance of one’s own beliefs about one’s own rationality” (Arpaly:2000, p.43) e é justamente essa a importância da akrasia, e poderíamos generalizar para as outras válvulas de escape, como um totem mnemônico desse nosso traço a ser explicitado e não meramente apontado como imperfeição. Um modo de encaminhar o filosofo para esse sentido é se conseguirmos desvincular sua tendência entre o processo da normatividade e o da deliberação. Essa desvinculação é proposta por Arpaly do ponto de vista de uma analogia inicial com a epistemologia onde “one can know that P without knowing that one knows that P” e ele encontra exemplos promissores como os casos das ações que são muito rápidas e da formação de crenças que não obedecem essa vinculação que o filosofo moral supõe imediata. Como veremos minha sugestão acerca dos bens inesperados prove outro caso no mesmo sentido onde por exemplo a racionalidade ou irracionalidade de determinada coisa (abandonar ou não o doutorado) é implausivel uma vez que o proprio valor é sempre um valor em relação ao que relevo. Nesse sentido mais do que irracionalidade, no caso do abandono ou do não abandono, pode haver uma simples impossibilidade de apontarmos o correto. E essa compreensão, avançando na confissão da falta de nervo moral, não nos é exótica: o sofrimento de hoje pode ser a condição de possibilidade do que chamamos de realização amanha e dada essa possibilidade, e é o que sugerirei, o moralista melhor contribui para o campo se se

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fixar na explicação desses processos do que em sua legislação ou do que ao abraçar o que Aparly chama de modo manual de compreensão da racionalidade. E talvez esteja justo aqui a sugestão mais interessante desse artigo. Poderia ser que a própria deliberação, tal qual a ação que é rápida demais, sugere um automatismo, uma heurística, a ser desvendada mais do que legislada? Arpaly nos leva a imaginar isso a partir da constatação de que “deliberation is itself an action, and this action is rarely the result of deliberation” (Arpaly:2000, p.57). Sendo assim, o nervo moral suposto pelo moralista dificilmente se situa onde ele acreditava (no agente deliberativo) mas apenas em algum automatismo que é apenas explicitável se assumirmos outra perspectiva: de que a normatividade diz respeito a um favor da natureza e que o único nervo plausível de ser suposto aqui diz respeito aos envolvidos (supostamente envolvidos) em nossa cognição. Isso, por certo, impede uma visão de manual do que seria compreender a racionalidade mas, num certo sentido, impede até mesmo o segundo modo de tratar a racionalidade que Arpaly indicava. Ficamos então com a necessidade de um terceiro modo: que a contribuição que podemos dar na fixação da racionalidade diz respeito ao esclarecimento do jogo contextual e de seu aspecto intrincado. E é isso que vou perseguir agora não tanto almejando uma completude mas uma visão que possibilite enriquecer nossa concepção de nós mesmos ao permitir tratarmos da racionalidade e dos escapes a ela com uma mesma concepção. Voltando a questão da sorte intrínseca e a falha da moral: como rever as válvulas de escape frente ao reino universal da moral (a akrasia, a falta de motivação e o arrependimento) num mundo sem agentes deliberativos e sem planos de vida. O artigo de Williams contém uma importante argumentação em torno das questões do arrependimento (“como seria melhor se tivesse sido diferente” mesmo que não necessariamente minhas ações tenham que ser diferentes), com as idéias de culpa e reparo pelo que é acidental (essa quase animalidade, já fugindo de Williams, do consolo comunitário que não pode ser recebido de imediato – deve haver um momento de dor, especialmente se pública, que reflita a dor causada em algum nível – mas que ao cabo deve ser aceito de modo a prosseguir a vida) e a noção de reparação, sempre casuística (“is a function not only of his relations to it, but of what sort of case it is” Williams:1981, p.29). 8

Essas questões reafirmam o ataque à noção desse agente da tradição filosófica que, por outro caminho, também rejeito. Williams obviamente faz isso de modo mais belo: “One’s history as an agent is a web in which anything that is the product of the Will is surrounded and held up and partly formed by things that are not” (Williams:1981, p.29). Dado o ataque à visão do agente deliberativo que pelo jogo moral atingiria a transcendência necessária frente à sorte, a pergunta passa a ser sobre essa tradição, sobre essa peculiar instituição, que é a moralidade. Williams apresenta esse questionamento da seguinte maneira: “Many philosophical mistakes are woven into morality. It misunderstands obligations, not seeing how they form just one type of ethical consideration. It misunderstands practical necessity, thinking it peculiar to the ethical. It misunderstands ethical practical necessity, thinking it peculiar to obligations. Beyond all this, morality makes people think that, without its very special obligation, there is only inclination; without its utter voluntariness, there is only force; without its ultimately pure justice, there is no justice. Its philosophical errors are only the most abstract expressions of a deeply rooted and still powerful misconception of life” (Williams:1985, p.196). Justamente essa incompreensão da vida e, em especial, da vida interna dos agentes parece minar muito ou toda a força de seita que a moralidade se vindicou com seu plano arquitetônico de muralha contra a Sorte. É porque a barreira final foi construída no caráter dos agentes e no processo deliberativo que ela aparentava uma força, a força de uma premissa que já garantida há muito, na fundação da psicologia da moral anterior à própria moral e a qual, por se aparentar muito distante, não valeria a pena retornar, que na verdade não resiste a uma reavaliação de seu valor de verdade. Esse erro se relaciona com o fato de que a filosofia moral procurou se precaver da mutabilidade do próprio caráter, supondo que esse repousa num plano que se estenderia por toda a vida racional (o que pode ser reflexo mais geral na filosofia dessa dificuldade em explicar o que se é exótico ou o que ainda não se maturou sendo-lhe tortuoso cobrir com uma mesma teoria bebes, crianças, desviantes e animais) em vez de ter insistido na noção, que a proposta terceira perspectiva quanto a racionalidade exige, de que a psicologia do ato que lhe fornece sua finalidade deve ser construída a cada procedimento de justificação (seu automatismo não é misterioso como algum contato com o bem em si mas heurístico) mesmo que possa ser reconstruída (qual a função dessa reconstrução? A mesma das lendas na infância?) posteriormente como uma narrativa já sem valor para o ato ele mesmo – que é o que importa.

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O texto de Williams me sugere, no sentido de inspiração, já que ele não se preocupa com isso, uma opção para a origem da generalização da psicologia no caráter em vez de sua particularização pela investigação contextualizada que na minha concepção passa pela investigação acerca da relevância e dos aspectos relevantes em cada ato. Talvez isso ocorra porque, mais do que eliminada, a reformulação da moralidade pelos modernos fagocitou a casuística e a ideia de que podemos criar catálogos de casos que seriam, como num dicionário ou como o faz o direito atualmente com a jurisprudência, acessados posteriormente, eliminando-se o que não importa e com as devidas condições ceteribus paribus, ser acessado e reaplicado novamente. Ora, com o reconhecimento da inescapabilidade da Sorte e especialmente com a inescapabilidade da noção de Sorte intrínseca, essa ideia de que há em todo plano de ação uma suposição do agente de que ele conseguirá ser o que almeja e de que essa suposição nunca escapa da Sorte, cuja força gravitacional me parece ainda mais forte que aquela da Sorte frente aspectos do mundo, essa fagocitose se revela errônea também. Mas essa opção não precisa ser desenvolvida frente aos inúmeros elementos que tenho elencado como peças do inquérito sobre o assassinato do agente deliberativo e mesmo assim ainda haveria de se explicar os antigos. Há um capítulo final dessa investigação que é se devemos abandonar a noção de finalidade do processo como um todo e a formulação de Williams é também interessante ao reencontrar em outros termos que os meus (que passa pela noção de Rawls de que todos os momentos da vida de um agente devem ser considerados equanimente), um horror que ele havia mencionado no início do próprio artigo que venho seguindo: “While we are sometimes guided by the notion that it would be the Best of worlds in which morality were universally respected and all men were of a disposition to affirm it, we have in fact deep and persistent reasons to be grateful that that is not the world we have” (Williams:1981, p.23) É o reencontro desse horror que gostaria de pontuar e mostrar que, como no caminho até o quietismo que tracei alhures é melhor se amigar com os problemas que a moralidade e a teorização Ética colocaram de lado por apontarem um momento de negação do jogo moral (as válvulas de escape frente ao reino universal da moral como a akrasia, a falta de motivação e mesmo a má-fé) do que almejar numa tentativa de hiper determinação e nesse caso de extravagância de suas possibilidades energéticas se perder novamente não respeitando no primeiro caso a marca do 10

homem sábio que Aristóteles nos indicou e no segundo pecando enquanto peculiar instituição e ir a noção mesma de plano de vida e finalidade. Um bom resumo da argumentação é aquela citação que sempre me vem a mente ao contemplar ruínas dos mais diferentes impérios que tive oportunidade de visitar: “a felicidade raramente deixa marcas”! Na versão de Rawls o plano de vida assume a força de que seu preenchimento ordenado e harmônico exclui a possibilidade de reproche: “nothing can protect us from the ambiguities and limitations of our knowledge, or guarantee that we find the best alternative open to us. Acting with deliberative rationality can only ensure that our conduct is above reproach, and that we are responsible to ourselves as one person over time” (Rawls:1972, p. 422-3, citado por Williams6). Reproche dos outros e de nós mesmos que então passaríamos a desenhá-lo com cada vez mais detalhe e com a suposição de uma integridade de nós mesmos dada pelo principio de tratamento equânime de todas as partes da vida. Mas a suposição da deliberação de que sabemos o que seremos e de que há certeza de que conseguiremos ser o que planejamos ser já foi mostrada por Williams e sustentada por mim (com outras argumentações) como falsa. Sabemos que essa esperança está sempre condicionada a um controle impossível que os agentes não têm de si mesmo por outros tantos motivos, entre os quais, porque a Sorte intervém e porque a própria ideia desse centro nervoso “Eu” é inteiramente não falsa mas reconstrutiva e anacrônica. Nesse sentido, “there is no set of preferences both fixed and relevant, relative to which the various filings of my life-space can be compared” (Williams:1981, p.34) e, assim sendo essa imagem de vida quadrada com suas arestas e partes intercambiáveis, afora às limitações da ordenação temporal, é incorreta no que diz respeito ao próprio planejamento que não é capaz de tornar, no seu passe de mágica racionalizador, o irracional e incomensurável no seu oposto. Essa troca (mediada por alguma “currency of satisfactions”) é implausível pela falta de unidade entre os termos que constituem uma “vida” (daí a falha do utilitarismo em instaurar essa

Em outro artigo “Rawls and Pascal’s wager”, Williams aponta que as apostas de Rawls “compares unfavorably even with Pascal’s celebrately bad bet”. Também em Williams:1981. 6

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moeda no prazer) e os paradoxos decorrentes aproximam, em outros termos, daqueles que Parfit discute nos dilemas relativos às gerações futuras e à conclusão perturbadora (Parfit:1984). A conclusão de Williams é então precisamente o que eu estava a procurar: “If there is no such currency, then we can only to a limited extent abstract from the projects and preferences we actually have, and cannot in principle gain a standpoint from which the alternative fillings of our life-rectangle could be compared without prejudice. The perspective of deliberative choice on one’s life is constitutively from here. Correspondingly the perspective of assessment with greater knowledge is necessarily from there, and not only can I not guarantee how factually it will then be, but I cannot ultimately guarantee from what standpoint of assessment my major and most fundamental regrets will be” (Williams:1981, p.35). Proporia chamar esse fenômeno de o dito de Kieerkgaard: “a vida deve ser vivida em direção ao future mas apenas pode ser compreendida vislumbrando o passado”. Com esse descolamento entre dois momentos que a deliberação tomou como sincrônicos, pouco parece restar na investigação sobre o assassinato do agente moral deliberativo (sem agente deliberativo e sem plano de vida racionalizável). Mas algo resta fechar e fechar com Williams. Williams crê ver o reino universal da moralidade, cujos erros mencionei anteriormente, como fascista no sentido que esse reino universal tem por consequência minar em tal medida a vida das pessoas que torna o que as pessoas pensam ser (aqueles sentimentos e motivos que são não morais juntamente com aqueles que são num mix de traços livres da vida moral e presos a ela) uma “pequena área, higienicamente reservada, de privacidade sem sentido”. Tendo eliminado com ele o fascismo da moralidade não posso seguir com Williams pensando que há mera possibilidade de um primado da liberdade que venha com a liberação da possibilidade de admirarmos outros motivos tais como os associados com a Sorte. De fato, essa imagem mesma, de uma pequena área, higienicamente reservada, de privacidade sem sentido é exatamente o que a cognição ela mesma aponta. Essa área reservada ao “eu” é tão menor quanto maior forem os custos de sustentá-la e uma visita à miséria (e a expressão “a miséria da necessidade” e “passar necessidade” é de uma sabedoria e perfeição poucas vezes alcançadas em nossa língua) mostra como esse lugar é tão minúsculo quanto à natureza que há em nós exige. Se essa constatação não implica que demos valor a essa construção de uma segunda natureza é porque a investigação mesma nos alterou de tal modo que voltamos nossa admiração não ao fato de termos paixões não morais mas ao fato do intrincado mecanismo em nós mesmos 12

de operação daquilo que mais admiramos ser possível e que diz respeito ao instante de curvar essa heurística dentro da besta, dentro da maquina que somos, e com os poucos instantes de liberação de seu funcionamento cego apontarmos ela para essa parte higiênica que somos nós mesmos e exclamar: “funciona, e funciona deste modo!”. Um passo atrás pode nos ajudar a compreender melhor toda essa complexa argumentação e, nesse sentido, uma consideração desse último bastião da racionalização como gostaria talvez de ser chamada pelo filósofo moral e dessa última barreira contra a Sorte ainda em nosso caminho – a noção de plano de vida – talvez provenha exatamente esses esclarecimentos. Planos de vida e a noção rawlsiana de que consideramos todos os momentos da vida de maneira equânime “I suggested that a person’s good is determined by what is for him the most rational plan of life given reasonably favorable circumstances” Rawls, Theory of Justice OU "En échange de ce que l'imagination laisse attendre et que nous nous donnons inutilement tant de peine pour essayer de découvrir, la vie nous donne quelque chose que nous étions bien loin d'imaginer." Proust, Albertine Disparue A noção de plano de vida é realmente uma noção bastante comum e até mesmo um consenso próximo de ser unânime sobre o assunto parece existir no sentido de que uma vida bem vivida é aquela que segue um plano estabelecido racionalmente. Talvez possamos traçar a origem numa passagem bem confusa de Aristóteles acerca da definição de bem em que ele faz algumas afirmativas especialmente ao fim, parece apontar os princípios básicos de uma analogia que estabelece, como metáfora, os elementos que reencontraremos filosofados em conceitos posteriormente: “If, then, there is some end of the things we can do, an end which we wish for because of it itself, while we wish for the other things because of it and if we do not choose everything because of something else (for it goes on and on ad infinitum that way, so that desire is empty and vain) – then it is clear that this would be the good and the best. So surely as far as our lives are concerned with 13

knowledge of this has great influence and just like archers with a target we would be more likely to achieve what we ought”. EN 1094a 18-247. A primeira vez que li essa passagem tirei, se bem me lembro, minha pior nota na graduação em filosofia ao apontá-la como falaciosa (falta uma premissa que conecte os pontos) ao invés de responder a questão apresentada. De qualquer maneira, creio que ela é um local seguro para indicar tanto o fato de que essa noção de nós mesmos como arqueiros identificando um alvo e traçando a rota segundo a reta razão é a base da noção de plano de vida, como também para justificar nossa afirmação acerca de seu caráter comum. Mas comum apenas no sentido de que aparece em vários moralistas8 porque essa noção é, tal qual o esforço de defender a vida contra a sorte, algo exótico e a tortuosidade da formulação acima citada aponta a dificuldade de Aristóteles em explicitar essa ideia aos seus contemporâneos (que na poesia e no teatro ouviam outro tipo de história) que talvez, como eu, rejeitassem o argumento de que isso leva a argumentação ao infinito, como simplório, pois dado que de fato nossos desejos são realmente vãos e vazios e, mesmo assim, os perseguimos (ponto ao qual retomo). Dado o fato de ser tão “comum”, devo primeiro um esclarecimento: por que identificar essa noção de plano de vida e de que devemos viver de acordo com esse planejamento (o que daria a este sua racionalidade do mesmo modo que o imperativo categórico se completa com a adesão da vontade livre) relativamente fácil de ser encontrada na filosofia com a formulação de Rawls? Um primeiro motivo é um interesse e uma vontade de envolver o esforço numa questão política delicada, que encontra em Rawls um dos seus inspiradores (e a qual retorno ao cabo do presente capítulo) e que é implicada e atacada se rejeitamos as barreiras contra a Sorte como centrais para uma descrição de nós mesmos. O segundo motivo é obviamente porque a formulação de Rawls é impressionante. Charles Larmore (2009, p.9) cujos argumentos usarei na avaliação crítica da formulação de Rawls, até porque são da mesma verve contra esse tipo de formulação da filosofia moral que os comentários

Na ética a Eudemo, essa ideia de vida de acordo com um plano é mais nítida, mas a passagem é menos interessante. Ver EE 1.2. 7

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de Williams, chama essa formulação de Rawls de “the most detailed accounts there is of the idea of a life plan” , o que comprova que estamos discutindo com o que de melhor há. Assim, Rawls elabora essa formulação especialmente nas seções §§60-66 do seu Teoria da justiça, desenvolvendo os pontos mencionados anteriormente (nas seção §15) que é o texto ao qual me centrarei. Seu objetivo com o desenvolvimento dessa noção deve estar claro e gostaria de apontá-lo de antemão: a noção de plano de vida racional está a ser estabelecida nessas páginas da Teoria da Justiça9, porque ela fornece a base para a definição do que seriam os bens ‘thin’. Entendo essa ligação como afirmando o seguinte: é porque temos um plano de vida que podemos acionar a parte mais importante de nós do ponto de vista de uma Ética que são nossos valores. Mas comecemos a apresentação e análise da formulação de Rawls. Talvez a melhor forma de apresentar a concepção de Rawls seja com uma inversão. De fato, se a filosofia moral pareceu ver a resposta à pergunta como devemos viver indo da vida individual para a política e realizando-se aí (em Aristóteles, por exemplo, pela sociabilidade sendo uma de nossas características definidoras – o homo político – a felicidade apenas poderia ser alcançada pela vida na polis como estabelecido na transição da EN para a Política), em Rawls, dado seu interesse na justiça, esse percurso é invertido levando a afirmações como a seguinte: “…in a well-ordered society, being a good person (and in particular having an effective sense of justice) is indeed a good for that person; and second that this form of society is a good society (…) Thus a well-ordered society satisfies the principles of justice which are collectively rational from the perspective of the original position; and from the standpoint of the individual, the desire to affirm the public conception of justice as regulative of one’s plan of life accords with the principles of rational choice”. Rawls:1999, p. Assim, temos uma equivalência, nas observações finais sobre sua concepção de justiça como fairness, da boa vida com a vida de acordo com um plano e, numa notação quase estruturalista, poderíamos mesmo afirmar que: boa pessoa : vida de acordo com um plano :: boa vida : boa sociedade Mas, como essa ligação é tornada plausível?

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Agora, se há ligação entre racionalidade e justiça, é um tema que deixo aos humeanos.

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Trata-se de uma pergunta válida, porque sua implausibilidade é justamente o ponto de Henry Sidwick que, no Methods of Ethics10, aponta como a marca da existência do dualismo da razão prática. Nesse sentido, a resposta a essa pergunta é relacionada ao trabalho de expansão da racionalidade do sistema ético realizado por Rawls e esse trabalho é feito, sobretudo, pelo esforço de definição empregado na formulação do que é um bem tal como realizada nas seções §§60-66. Nessas seções, Rawls retoma a noção de Henry Sidgwick (na 7a edição dos Métodos, as passagens relevantes seriam aquelas nas p. 404, 506–9) mas aponta, ou entendo-o como fazendo, que a falta de neutralidade da definição de bem de Sidgwick, especialmente neutralidade quanto as capacidades do agente11, o levou a seu paradoxo. Nesse sentido, seu objetivo é esvaziá-la de modo a tornar possível que os agentes racionais, no momento do desenho institucional a ser adotado, possam racionalmente deliberar sobre a melhor sociedade, mesmo que não tenham concepção alguma de um bem relacionado com finalidade além daquelas da própria razão (que não é possível uma boa vida sem nenhum recurso, que muita concentração desses recursos implica injustiça). A discussão dos agentes racionais, ao deliberarem sobre a sociedade futura, é estabelecida com uma tendência à bondade mais do que com qualquer bem (“the parties suppose that their conceptions of the good have a certain structure, and this is sufficient to enable them to choose principles on a rational basis”) e assim não é plausível o conflito que Sidgwick previa, baseando-se em seres humanos que estão impossibilitados de resolver o conflito entre seus bens individuais e aqueles societários no interior da operação da Ética mas não no da coerção política, como ele aponta nos seus ensaios sobre o tema. Essa tendência à bondade é também importante na argumentação de Rawls contra formulações emotivistas às quais vejo uma antecessora da formulação ficcionalista no sentindo de que ambas, supondo uma mera projeção – diferentemente de formulações como a que defendo

Outro projeto empreendido por mim no doutorado é a tradução dessa obra de Sidgwick. A primeira parte se encontra realizada e publicada online. 11 Sidgwick polariza sua definição dizendo respeito a nós, o que o leva a afirmar, já na abertura de sua obra (no parágrafo 2 dos Métodos): “Pois o ‘Bem’ investigado na Ética é limitado pelo Bem alcançável de algum modo pelos esforços humanos e, assim, o conhecimento dos fins é procurado de modo a descobrir quais ações são os meios corretos para alcançá-lo”. Sendo o bem para nós há uma inescapabilidade da condição humana e de nosso sistema cognitivo que não permite a argumentação que interessa a Rawls e que estamos acompanhando: ao exigir racionalidade escapa dos limites de racionalidade nossos. 10

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que traçam em nós mesmos, no que somos, a normatividade –, partem para uma ou outra forma de eliminativismo ou de grande ocultamento. De qualquer maneira, com essa tendência à bondade, mais do que com uma definição de bondade Rawls está pronto para o que nos importa aqui que é a noção da importância em nossas vidas dos planos de ação. Retomando o que havia dito na §15 “We are to suppose, then, that each individual has a rational plan of life drawn up subject to the conditions that confront him. This plan is designed to permit the harmonious satisfaction of his interests. It schedules activities so that various desires can be fulfilled without interference. It is arrived at by rejecting other plans that are either less likely to succeed or do not provide for such an inclusive attainment of aims. Given the alternatives available, a rational plan is one which cannot be improved upon; there is no other plan which, taking everything into account, would be preferable” (Rawls:1999 §15). - esse plano é entendido como um império da racionalidade, uma vez que aquela formulação da bondade, que compreendo como uma mera tendência à bondade, dado que seus conteúdos ainda são vazios, era ainda alheia à dimensão que Rawls aponta12 como mais completa da racionalidade, que diz respeito aos fins que estabelecemos. Assim, ao retomar à noção de plano de vida na §63 da Teoria da Justiça, Rawls aponta algo como uma importante virtude guia na construção desse plano. Para Rawls ter um plano de vida permite a própria avaliação, porque como ele afirma é com o plano de vida que podemos estabelecer um ponto de vista “básico” que permite essa importante virtude que seria a consistência: “a rational plan of life establishes the basic point of view from which all judgments of value relating to a particular person are to be made and finally rendered consistent” (Rawls:1999, p.359). Dessa Forma, devemos reconhecer que ele permite um lugar à Sorte que ele chama de fortuna circunscrevendo-a, portanto, àquele tipo de sorte que chamamos de externa e que é relacionada apenas aos eventos no mundo (que, por exemplo, ocorram de maneira minimamente propícia) e a passagem que cito está no contexto de uma sociedade opressiva:

“To this point I have discussed only the first stages of the definition of good in which no questions are raised about the rationality of the ends taken as given” (Rawls:1999, p. 358). 12

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“The achievement of happiness in the larger sense of a happy life, or of a happy period of one’s life, always presumes a degree of good fortune” (Rawls:1999, p.360). Apenas a Sorte externa porque ao agente racional é dada a posição de avaliador e de juiz do tribunal da razão e a noção de plano de vida apenas ajuda ou apenas fortalece o estabelecimento dessa concepção. Mas essa concepção da relação entre racionalidade, eu e plano de vida é extremada: uma vez que parece estar claro que, compreendendo a bondade como essa tendência 13 a, ou disposição para, (e não propriamente como o conjunto de bens na maior parte desconexos que apontamos ser nossos bens) e o sujeito como esse agente racional que avalia a racionalidade, Rawls propõe uma noção de agente que é sobretudo tautológica porque o agente é apenas um plano de vida ou, vice-versa, “that a person may be regarded as a human life lived according to a plan”. Assim, fica vedada a possibilidade da Sorte influir no sermos o que supomos ser capazes de ser em prol de manter-se a racionalidade como única capaz de fazê-lo por ser ela a única capaz da escolha do melhor plano e dessa indicação sobre o que supomos ser capazer. Nesse sentido a Sorte interna parece implicar que deixamos de ser alguém, dado que ser alguém é ser racional no sentido de seguir um plano. Não creio que estejamos ridicularizando ou ironizando a formulação, que enquanto construção teórica apequena a minha infinitamente e a qual admiro, mas devemos reconhecer as implicações de sua formulação. O desconforto posterior de Rawls com essa apresentação e sua proposta de que devemos particularizar sua formulação como uma concepção pensada sob o ponto de vista político e com o interesse específico em apontar o que seria uma boa sociedade são obviamente aceitáveis metodologicamente mas o fato é que essa noção de plano de vida, formulada inclusive de um modo muito mais crasso, desempenha papel importante na defesa do moralista contra a Sorte. Rawls, outro motivo para admiração, apenas a levou a uma apoteose de complexidade e refinamento.

“I have assumed throughout that the persons in the original position are rational. But I have also assumed that they do not know their conception of the good. This means that while they know that they have some rational plan of life, they do not know the details of this plan, the particular ends and interests which it is calculated to promote” Rawls:1999 §25. 13

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Um desses refinamentos, que Dworkin especificará ainda mais, é a noção de dedicar no interior desses planos algumas provisões para o futuro. Essa forma de seguro contra a Sorte é apresentada por Rawls no contexto de seu reconhecimento de que existe uma tendência, relacionada à temporalidade, de obscuridade frente aos momentos mais distantes de nossa vida e nossa, previsível, morte que, no entanto, não devem ser deixadas ao léu. Menciono isso porque aqui vejo o maior império do agente racional. É seu controle das paixões, dos desejos14 e dos seus rumos que estabelece a necessidade de abertura do plano de vida para as contingências, porque essas contingencias dizem respeito não à Sorte externa e também não ao caráter contextual do que tomamos bem, mas sim à falta de informação do agente: “Indeed, one principle of rational choice is that of postponement: if in the future we may want to do one of several things but are unsure which, then, other things equal, we are to plan now so that these alternatives are both kept open. We must not imagine that a rational plan is a detailed blueprint for action stretching over the whole course of life. It consists of a hierarchy of plans, the more specific subplans being filled in at the appropriate time” (Rawls:1999, p.360). Mas falta um aspecto essencial a qualquer plano: dada a relação especial que nós, seres vivos, temos com o deslocamento e com o mover-se é quanto a ela que existe aquilo que talvez seja a maior racionalização que nós humanos criamos: mapas. E assim a noção de plano de vida apenas é completada com a indicação de um mapa para o viver que a passagem acima indica nos seus aspectos gerais mas que Rawls detalha ainda mais e com a qual gostaria de encerrar essa apresentação da noção de plano de vida de forma a permitir a passagem à sua avaliação e à noção acerca do grande problema da moral (a sequência da apresentação de Rawls diz respeito aos princípios da escolha racional que ele crê, num passo rumo a uma maior racionalidade do sistema, substituir a própria e confusa noção de racionalidade dos filósofos). Mas vejamos a cartografia proposta por Rawls: “Thus planning is in part scheduling. We try to organize our activities into a temporal sequence in which each is carried on for a certain length of time. In this way a family of interrelated desires can be satisfied in an effective and harmonious manner. The basic resources of time and energy are allotted to Rawls elabora esse ponto relativo aos desejos, mas gosto da metáfora que ele usa para esclarecer seu ponto: “Thus while we know that over any extended period of time we shall always have desires for food and drink, it is not until the moment comes that we decide to have a meal consisting of this or that course. These decisions depend on the choices available, on the menu that the situation allows”. (Rawls:1999, p.360). 14

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activities in accordance with the intensity of the wants that they answer to and the contribution that they are likely to make to the fulfillment of other ends, The aim of deliberation is to find that plan which best organizes our activities and influences the formation of our subsequent wants so that our aims and interests can be fruitfully combined into one scheme of conduct. Desires that tend to interfere with other ends, or which undermine the capacity for other activities, are weeded out; whereas those that are enjoyable in themselves and support other aims as well are encouraged. A plan, then, is made up of subplans suitably arranged in a hierarchy, the broad features of the plan allowing for the more permanent aims and interests that complement one another. Since only the outlines of these aims and interests can be foreseen, the operative parts of the subplans that provide for them are finally decided upon independently as we go along. Revisions and changes at the lower levels do not usually reverberate through the entire structure. If this conception of plans is sound, we should expect that the good things in life are, roughly speaking, those activities and relationships which have a major place in rational plans. And primary goods should turn out to be those things which are generally necessary for carrying out such plans successfully whatever the particular nature of the plan and of its final ends” (Rawls:1999, p. 360-1). Assim, temos um mapa circunscrito nessa dimensão que sempre escapou aos geógrafos que é a do tempo (a distinção entre ‘planning’ e ‘schedule’ é facilmente perdida em português). Nossa bussola, a deliberação, organiza as atividades e com suas rédeas controla os desejos colocando-os numa ordem apropriada (com sua família) e com uma duração apropriada. Quando nos perdemos, é como se fossemos essa bussola que, dispondo do grande mapa – nossas vidas – a sua mão nos reencaminha (quando caminhamos 1km na direção errada dado que o mapa estar completamente errado é um acaso muito raro excluído pela racionalidade e plausivelmente pela boa pessoa sendo aquela que bem planeja não pode falhar nesse aspecto básico que é o de trazer o mapa correto para sua jornada). Se há pedras no caminho essas não são as muralhas himalaias que vejo da minha janela porque um bom mapa sabe apontar essas deixando um nível de resolução eficiente na justa medida que apenas deixa de indicar os pequenos desvios necessários mas que não sugam a energia do agente de modo definitivo ("Revisions and changes at the lower levels do not usually reverberate through the entire structure”). Mas há um ponto essencial da formulação cartográfica envolvida na noção de plano de vida e que apenas agora, finalmente, posso explicitar que é a relacionada à própria ideia de que consideramos, ou que o agente racional considera, todos os momentos de nossas vidas de modo idêntico. 20

Isso apenas é tornado plausível, ou apenas se encaixa na sistematicidade da formulação (sua plausibilidade é o tema seguinte), porque a noção de plano de vida é formulada anteriormente à vida e à experiência. Sendo o terreno mapeado de antemão, para continuar com a metáfora cartográfica, pela força da imaginação e da razão, ele não distingue os diferentes valores do que mapeia e torna possível a tópica de Rawls de que todos os pontos são iguais (se distinguindo da noção que me parece mais plausível de que ao vivermos transformamos esses pontos e os polarizamos e os polarizamos com graus e medidas diversos de acordo com o processo mais geral da nossa cognição). Nesse sentido, essa geografia da dimensão do tempo somente é possível porque Rawls assume que, do ponto de vista de seu agente deliberativo, anterior à experiência e ao viver, o tempo é aquele tempo noumenal em uma radicalização da busca de pureza já desmedida do kantismo. Como o imperador do conto de Borges, Rawls, e terminamos essa apresentação com isso, apenas se decepciona com um aspecto: “These remarks are unhappily too brief” (Rawls:1999, p.361). Num sentido isso é verdade. Mas há outro que irei discutir em que essas sugestões são já em demasia no sentido de uma perfeição que compreendo como terrível. Mas creio que temos um quadro extenso, e espero que justo, da noção de plano de vida e que posso passar a investigar esse sentido em que a completude dessa formulação causa agonia e claustrofobia. O farei apresentando minhas dúvidas de que exista tal plano e/ou que a partir deles possamos estabelecer o que seriam nossos valores ou, no limite, que mesmo que possamos acreditar na narrativa, que em minha mente estão essencialmente conectadas aos velhos “sábios” que Aristóteles nos alertou condenados à prudência15, elas sejam o caso comum. Minha formulação aponta uma versão mais fluida de nós mesmos, captada pela frase “vamos aos nossos Taitis e lá e na volta ruminamos porque o fizemos”, e uma conexão dessa rejeição à noção de plano de vida pela sua conexão com o grande problema da moral. 2ª Seção – Rumo à noção de grande problema da moral

Numa longa passagem da Retórica (1389b 13s) em que se afirma que esses velhos, apesar de sábios, não mais dado a se impressionarem nem ao riso, se diferem dos jovens pela cristalização de suas mentes (“pensam sobre todos os assuntos sem saberem de coisa alguma”). E são eles que têm essa visão curta de nós mesmos. Essa visão que revive com a memória seletiva que temos de nós, como plano o que se viveu como expectativa. Nussbaum:1986 apresenta uma análise dela. O ponto da prudência é indicado por Larmore:2008. 15

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Planejando uma rejeição a essa concepção O ponto que gostaria de discutir é aquele relacionado a se há algum sentido em dizermos que podemos, porque somos agentes deliberativos, racionais, ou seja lá o que for considerarmonos, aceitar a verdade “that we are responsible to ourselves as one person over time” e que essa aceitação implica uma visão de nós mesmos como sendo estabelecidos como um plano de vida. Há modos diversos de avaliar esse ponto que parece tão radical então talvez seja útil primeiramente tentarmos uma abordagem negativa, ou seja, o que não estou interessado em discutir. Talvez o maior dos nãos seja o seguinte: com minha avaliação não quero indicar nenhuma investigação quanto à noção de pessoa ou alguma tentativa de adentrar na discussão puramente metafísica que lhe diz respeito. Rawls parece pressentir a dificuldade que é entrar nessa discussão ao afirmar: “these suggestions are quite straightforward but unfortunately setting out the details is somewhat tedious” (Rawls:1999, p. 358). Limitando ainda mais, estou interessado, não do ponto de vista de uma concepção social ou política de nós mesmos, mas do ponto de vista da Ética, do ponto de vista da pergunta sobre como viver. Nesse sentido estrito, o que me interessa é se há qualquer possibilidade de sustentarmos uma concepção de grande planejador que dispõe dos anos vindouros como usando a formulação aristotélica, o arqueiro que conhecendo seu alvo planeja o rumo a que enviar sua flecha. É nesse sentido que vou entender a pergunta acerca de nossa responsabilidade distendida no tempo e quiçá no tempo de nossa duração e me perguntar se ela pode ser uma compreensão de nós mesmos. A justificativa para esse interesse é que, na noção de plano de vida (própria e circunscrita à filosofia moral já que aquela de caráter que rejeitamos poderia ser entendida como uma exterioridade relacionada à filosofia da psicologia), atingimos um duplo fim: de um lado mostrar sua falha em nos descrever, e, de outro, mostrar que se queremos prosseguir na iniciativa de teorizar, ela tem que se circunscrever nessa externalidade que é uma filosofia da psicologia, porque apenas com ela podemos fazer uma investigação sincrônica ao viver. Assim, meu objetivo ao ir a essa questão pode ser visto como o de mostrar que: 22

1- Essa formulação é falsa por nos empobrecer: com Larmore e Proust veremos que ela deixa escapar o que compreendo ser o modo como a maior parte dos bens que prezamos e que são os objetivos de nossas vidas, se ainda queremos traduzir nesses termos equivocados, aparecem para nós. 2- Ela é falsa por se estabelecer, como o faz em geral a filosofia moral, de um ponto de vista anterior ao viver. 3- Essa noção de que identificamos os bens e nossos fins ao vivermos aponta a necessidade de um redirecionamento da Ética para algo mais sincrônico. Creio que o modo como nossa cognição opera é nossa melhor aposta. Nesse sentido circunscrito (e comedido), se adentramos nas discussões em torno da ontologia da pessoa, isso ocorre por acidente e duvido que qualquer contribuição a ela possa ser encontrada aqui. Mas reconheço que essa recusa instaura de antemão uma diferenciação frente à concepção de Rawls (que lembramos foi tomada porque é a mais completa quanto à noção de plano de vida). Rawls sustenta sua argumentação, no seu talvez momento mais creepy, na formulação de Josiah Royce, que estabelece uma identidade entre ser uma pessoa e ter um plano: “a person may be regarded as a human life lived according to a plan” (e talvez ainda mais americanamente em ser uma pessoa e explicar com que trabalha). Isso se refere a algo que Rawls demorou a ter clareza (aquela do prefacio à segunda edição) que é aos fins do indivíduo e sua busca por bens do ponto de vista de uma teoria política. Esse objetivo político não é circunscrito como deve e a concepção que pode ser vista do ponto de vista mecanicista da sociedade e seu funcionamento e seus objetivos como plausível (não sem conseqüências para a vida de seus membros que são então tratados do mesmo modo pelas “instituições” que assim se estabeleceram mas que devem lidar ao cabo com pessoas) transborda para o lado da Ética (no que Max Weber chamaria de invasão de esferas). Há na minha argumentação uma suposição que diz respeito à possibilidade de existirem outros modos diversos de se rejeitar essa noção de plano de vida deliberado por nós em busca de certos objetivos que sempre me pareceu contra-intuitiva como uma indicação do que somos. Obviamente, por si só, essa aparência contra-intuitiva não significa nada e até mesmo parece ridícula nessa era de império dessas razões sociais. Mas acredito que posso apontar alguns bons argumentos para a rejeição dessa noção e, especialmente, acho que isso possa ser feito de 23

modo alheio à ontologia (não que a partir dela fique vetado considerações feitas a partir do meu sofá acerca de se paramos de ser nós mesmos se paramos de ter esse plano em nossas mentes, o que parece ser o fato dado essa fixação acerca do se quando dormimos morremos 16 e coisas do gênero). Agora que argumentos sejam menos ridículos que intuições isso só revela uma esperança, afinal ambos são vítimas constantes das razões de estado e similares associados a esse transbordamento. Uma primeira rejeição à visão de nós como um plano de vida ou Uma avaliação franca da noção de plano de vida Estabelecido esse modo de relacionamento com a questão ontológica da pessoa e meus objetivos em rejeitar a noção de plano de vida, gostaria de passar ao que chamo de uma avaliação franca dessa noção ou ao primeiro ponto da lista que apresentei mais acima. Como primeiro ponto, gostaria de retomar a noção, derivada de duas leituras relativas ao domínio do prazer e dos períodos de ócio que muito me aprazem e são normalmente postas pra fora do sistema pelos moralistas, de que pensarmos nós mesmos como um plano de vida nos faz perder o que há de mais importante que são os próprios bens que servem, na visão planificada de nós mesmos, de objetivos a serem conquistados17. De fato, pensarmos em nós mesmos como um plano de vida, e um plano de vida anterior ao viver, impede de alcançarmos esse mecanismo único que é o de escolha de determinados traços como traços importantes ou na minha concepção como traços relevantes e que, traduzindo nos termos do moralista, são as próprias razões que ele supõe compreender. Assim, quanto ao ponto de que esses bens estão sempre numa relação contextual, num para nós e relativos ao viver, duas leituras (Proust e Larmore) vieram a confirmar esse “parecer” e creio que fornecem bons argumentos até porque a parte filosófica dessas leituras confirma e retém a mesma impressão que eu tive de Proust18. Tenho em mente a discussão de Aristóteles. Ver Veloso:2004. O segundo ponto, algumas páginas à frente, apontará o que chamo de grande problema da moral que é o relacionado à sempre mencionada e pouco teorizada prioridade do viver. 18 E tomo Proust como sendo a mais completa investigação acerca do que é um “eu” do mesmo modo que tomei Rawls como a investigação mais completa sobre o que é um plano de vida. 16 17

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Nesse sentido, diz Charles Larmore (que cita a passagem de Proust que eu contrapus à de Rawls ao começar a tratar sua formulação), contrapondo a filosofia moral e sua concepção de nós com aquela personificada por Marcel nos seus dilemas com Albertine no “Em busca do tempo perdido” de Proust: “The canonical view among philosophers ancient and modern has been, in essence, that the life lived well is the life lived in accord with a rational plan. To me this conception of the human good seems manifestly wrong. The idea that life should be the object of a plan is false to the human condition. It misses the important truth which Proust, by contrast, discerned and made into one of the organizing themes of his great meditation on disappointment and revelation, A la recherche du temps perdu: the happiness that life affords is less often the good we have reason to pursue than the good that befalls us unexpectedly” (Larmore:1999 e Larmore:2008) Concordo com Larmore enquanto interpretação da obra Proustiana (a felicidade e a ansiedade dos momentos com Albertine são derivados pura e exclusivamente da falta de controle relacionado a esses momentos por Albertine não ser uma escrava de suas vontades ou quando o é apenas por ser escrava de seus sentimentos por Marcel19) e como compreensão de um aspecto do conhecimento não-científico informal (o entrelaçamento entre sorte e nossas razões). Mas podemos dar o passo além e aceitarmos que não apenas a Sorte se entrelaça com a vida mas que importantes elementos da vida ética (a felicidade e a responsabilidade) são devidos à Sorte? Acredito que sim e que não apenas esse entrelaçamento profundo entre Sorte e Ética devem ser aceitos, como é aceito pelos mortais não filósofos na banalidade de suas vidas, mas algo de mais impressionante e que apenas uma estrutura cognitiva não limitada pelo que é racional, uma estrutura cognitiva como a nossa, pode lidar: o fato de que é nesse inter-relacionamento que nos tornamos capazes de determinar nossos próprios objetivos, que são os bens que queremos. Não é que o defensor da noção de plano de vida esteja alheio a isso que poderíamos chamar de visão contextual dos bens. Rawls a reconhece mas, mesmo ele que apresenta essa concepção do modo talvez mais completo, falha em dar o passo além desse reconhecimento que é aquele de

Talvez por isso a importância de Josephine – a criada de Marcel por toda sua vida – nessa parte do “Em busca…”? Ela, serva por suas obrigações enquanto criada, apareceria nessa parte de forma onipresente por contraposição à outra personagem? Questões deixadas aos Proustianos. 19

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apontar que não apenas esse contextualismo mostra esses bens e que a reconstituição do que fizemos, na narrativa de um plano de vida “aposteriori”, somente é plausível por esse contextualismo. De fato, a ilusão da interpretação aposteriori dessa narrativa como pura ficção (a que retomo apontando num certo sentido uma outra formulação de nós mesmos afetada pelo dito de Kieekgaard e afetada também por um outro equivoco) pode indicar parte de sua gênese na força desse contextualismo, no sentido de que ele conserva mesmo na sua narrativa, já uma ruína do fenômeno ele mesmo, a única “mágica” que vejo na moral que é esse contextualismo. Mas como ele opera? Talvez a limitação da formulação de Larmore é a de responder a isso muito proustianamente. Ele floreia-a em demasia (“our finitude is itself our acess to reality”) quando o que deve ser apontado é uma visão da operação envolvida. De qualquer maneira, algumas lições preliminares são alcançadas por ele e seriam alcançadas com uma leitura de Proust também. Lições como aquelas acerca da falta de confiabilidade de nossas escolhas diárias, apontando uma maior falta de confiabilidade e plausibilidade para a noção de que possamos ter a visão implicada na formulação de um plano de vida mesmo respeitando a generalidade da formulação de Rawls e que um grande número de coisas que cremos ser o que há de melhor em nossas vidas ocorrem quando menos esperamos ou intencionamos (“we live well when we are not simply active, but passive too” Larmore:2008, p.249-50). E a formulação de Larmore está correta também em apontar que há em Rawls uma equivocada equivalência entre o que seríamos, essa fonte de racionalidade deliberativa, e o que seria nossa virtude maior, a prudência. Seguindo sugestão de Slote, Larmore (Larmore:2008, p.263) chega à conclusão acertada acerca da relatividade da prudência e a como é implausível pensarmos prudentemente num plano de vida quando somos jovens, ou de forma mais geral como é duvidosa essa possibilidade de que, como Sócrates e Rawls indicam, “a person’s life as a whole is a proper object of evaluation” (Larmore:2008, p.265). Mas qual a origem dessa rejeição? Trata-se de uma verdadeira consideração do caráter contextual desses bens. Creio que Rawls, por isso esse primeiro passo é sobretudo uma avaliação franca da noção de plano de vida, apesar de indicar o caráter contextual dos bens, não abarca suas consequências verdadeiramente.

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Talvez ele tenha boas razões para isso. Seu interesse em circunscrever o que seria uma sociedade justa pode ser sempre apontado nesse sentido. Mas parece duvidoso que possamos ficar sem uma teoria que leve em conta verdadeiramente as consequências da concepção contextual dos bens com esse fim político, restrito em mente. Isso porque, se aceitamos a contextualidade, devemos eliminar algo como a postura que permite pensarmos uma noção de plano de vida. Essa postura está relacionada àquilo que Larmore associa a Sócrates ou melhor dizendo a esse composto Sócrates-Platão que chamarei apenas de Sócrates. Sócrates associa sua ideia de uma vida examinada com a noção de que a bondade não é contextual mas descoberta (como vemos na Republica). Essa associação gera uma postura, que é aquela de que somos “masters and architectures of ourselves”. Com essa postura, e como ela tem na sua base uma visão não contextual dos bens e da bondade, qualquer noção derivada dela, como é o caso do plano de vida na formulação de Rawls, está fadada, mesmo que se esforce contrariamente, a perder o ponto da visão contextual dos bens20. Assim, em Rawls, por exemplo, sua afirmação acerca dessa contextualidade é ou relegada a um lugar menor (dado que no plano geral ficam a faltar os pequenos detalhes que aí sim seriam contextuais e Rawls mesmo afirma relacionados à Sorte) ou simplesmente destituída de significado como eu creio ser o caso propriamente dado à prioridade da noção geral e de mais longo alcance que a de contextualidade que é a de plano de vida. Contra isso talvez pudéssemos retomar à Gaugain. É apenas porque Gaugain vai e não porque ele imagina se planejar a ir que há a possibilidade dos bens que ele não propriamente revelará como na imagem socrática mas que ele constituirá tanto com suas felicidades (as taitianas de seus quadros ou sua visão e concepção sobre o nosso aqui e agora) como suas misérias (a descoberta que esse paraíso não se sustenta, que ele não existe em si mesmo). Mas esses dilemas são regidos por o que talvez seja uma lei do contextualismo e que Larmore bem apresenta:

Larmore, e não sei se ele está correto, parece duvidar da própria autenticidade da noção do contextualismo dos bens em Rawls (sendo mais radical que eu que creio que o problema de Rawls é a visada que lhe permite a formulação e que é derivada da própria forma que a filosofia se instaurou com essa associação entre bens são descobertos e vida é arquitetada a qual retomo na seqüência). Nesse sentido que entendo afirmações como as seguintes: “he (Rawls) moves directly from our self-understanding’s being bound up with our purposes to the idea that these purposes, when rationally weighed and organized, serve to define the nature of our good” (Larmore:2008, p.259). 20

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“the good we have reason to pursue is likely to fall short of the good that life has yet to disclose” (Larmore:2008, p.269) Nesse sentido, a noção de plano de vida associada à tópica da prudência que Rawls insere no seu núcleo – no seu coração por assim dizer – revela-se não ser outra coisa que uma das facetas dessa proteção que o moralista sempre esta a buscar para essa parte que Williams chama de “pequena parte higienicamente reservada de privacidade sem sentido” (Williams:1981, p.38). De fato, a formulação de Rawls repetidamente se refere à noção de que a prudência traduzida na planificação de nossas vidas serve de garantia contra o “self-reproach”. Williams vai duvidar disso tanto no seu Ethics and the limits of philosophy quanto nos artigos de Making sense of humanity. Lá ele formula uma visão da própria razão prática que diverge em seus fins, especialmente quanto à possibilidade de garantias, da razão teórica. Retomarei essa formulação num certo sentido quando apresentar minha própria visão sobre a diversidade das formas de conhecimento ou como prefiro da diversidade das formas de interação com o mundo. O ponto que devemos considerar aqui é o seguinte: essa garantia nunca pode ser dada. Nunca podemos garantir que no futuro, o amanha ou o daqui a um ano, estaremos protegidos do arrependimento e da angústia de termos agido equivocadamente e a noção de plano de vida ao qual o sujeito deliberativo dá seu aval (algo como “dadas as informações disponíveis fiz o melhor e, portanto, não me arrependo”) jamais é plausível. Esse jamais constitui uma radicalidade que procura-se absoluta no seguinte sentido: mesmo aquelas ações que morremos sem ter nos arrependido podem ser abertas, e isso deveria estar claro se aceitamos a noção estabelecida com o erro de atribuição fundamental tanto aos fatores externos (uma nova informação que chega a nossa atenção) quanto pelas modificações em nós mesmos. E são essas modificações o ponto mais interessante, porque elas são a marca e revelam para aqueles ainda céticos algo importante: a radicalidade do contextualismo da normatividade é tal que molda nossa própria “consciência” ou o nosso “eu”. Nesse sentido, os bens inesperados de Larmore (e sua apresentação deles é prazerosa o suficiente para uma leitura tornando desnecessária um comentário de minha parte) são apenas um aspecto de algo mais geral. Nossa cognição, ao relevar contextualmente (operação que origina as razões) aponta que todo bem é um bem contextualizado e, nesse sentido, há um modo em que todo e qualquer bem apenas é tornado plausível para nós porque, ao vivermos, eles apelam a nossa 28

cognição e são relevados e tornados razões e, nessa dimensão do viver, buscados. Nessa busca se insere uma dimensão estratégica quase planificada que pode ser vista como a origem da própria noção de plano de vida do moralista. Mas ela nunca é anacrônica frente ao viver do modo que Sócrates e Rawls a colocam. O agente que busca esses bens jamais está na posição de sonhá-los anteriormente à sua “encarnação” no viver se queremos indicar a proximidade da formulação de Rawls com as passagens finais da República indicando estes dois marcos do fechamento e simplificação da visão de nós mesmos (e o mito de Er e a posição original não seriam uma marca dessa comunhão? Versões diversas dessa antiga e persistente – e má visão de nossa cognição e de nossas mentes – que é a noção de reencarnação?). Creio com esse passo alcançar as bordas da discussão que deve ser a mais importante do presente artigo, que é aquela que unifica todos esses temas (da sorte, da contexualidade dos bens, da contextualidade da nossa cognição, da reinterpretação das válvulas de escape do reino universal da moralidade etc) que é o que chamo de grande problema da moral.

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Transição para o grande problema da moral Como já mencionei creio que o grande problema da moral diz respeito ao fato de que “a vida deve ser vivida em direção ao future mas apenas pode ser compreendida vislumbrando o passado”. Mas como o dito de Kieerkgaard ataca esse ponto? Se ao agirmos não sabemos como iremos compreender a ação, como podemos considerar nossa vida como um todo? De fato, consideramo-la como um todo num certo sentido e chamamos isso de personalidade (em si mesmo mais uma pista para nossa conclusão que aponta uma formulação cognitiva). Mas o que não fazemos é ser equânimes nessa consideração e novamente isso se deve porque nosso sistema cognitivo não chega a uma parada quando se desdobra sobre si mesmo. Ao refletir sobre si mesmo ele continua a operar e pinçar aquilo que a memória conserva (e que ainda é algo a ser desvendado) e aquilo que contextualmente se apresenta o que é relevante. Desse modo, a concepção que estou implicando ser rawlsiana, mas que na verdade é geral de que consideramos a vida de maneira equânime é falsa no sentido de uma má apreensão de nós mesmos. Valoramos relevantemente o que importa, porém essa valoração é sempre desequilibrada: quando velhos, nossa infância é tida como saudosa (mesmo que esse saudosismo sirva sobretudo para ocultar – devido à operação própria da memória – o grande espaço vago e obscuro que é a infância), relevamos eventos em desproporção com a quantidade de prazer ou sofrimento que nos trouxe – o que é um problema não explorado aqui para qualquer formulação utilitarista – e talvez sobretudo esquecemos nossas felicidades sob a efígie daquele dito de que “a felicidade não deixa marcas na história”. Assim, há um desequilíbrio de nossas avaliações que tornam implausível uma compreensão que estabeleça qualquer vinculação (ainda mais de proporcionalidade) entre seguir um plano e ser feliz tal como estabelecida pelos defensores da noção de plano de vida e exemplificada na seguinte passagem de Rawls: “… with certain qualifications (§83) we can think of a person as being happy when he is in the way of a successful execution (more or less) of a rational plan of life drawn up under (more or less) favorable conditions, and he is reasonably confident that his plan can be carried through. Someone is happy when his plans are going well, his more important aspirations being fulfilled, and he feels sure that his good fortune will endure” (Rawls:1999, p.359).

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Mas desequilibrada frente a quê? Essa pergunta mostra o absurdo da própria noção. Nem mesmo podemos dizer desequilibrada frente à visão de nossa vida como um todo, porque não é nem mesmo esse referencial, de todo implausível, que é tomado. Não é tomado porque não é disponível a ninguém, nem mesmo no fim e isso está assegurado pela própria noção de plano de vida, mesmo quando frente a uma visão neutralizada dos bens. Quando a cognição se volta sobre si mesma, ela se recheia de hipérboles (gosto daquela quando sofremos um acidente e dizemos que nossa vida passou em frente à nos em um instante) e esse gosto por hipérboles apenas sacia a vontade do moralista em anacronizar nossa vida, visto que sabe que o dito de Kieerkgaard coloca um profundo questionamento às suas pretensões. Nesse sentido, retornando um aspecto da argumentação de Rawls, há certa maquinação na simplificação do que é um bem e do finalismo em nós. Quando ele afirma sua versão thin dos bens, ele perde o bem para nós que aponta a existência de uma inescapabilidade da condição humana, do fato de que ela é vivida e de nosso sistema cognitivo que não permite a argumentação que interessa a Rawls, que ao exigir racionalidade em demasia escapa dos limites de racionalidade nossos. Essa arapuca foi aquela onde Sidgwick instaurou o dualismo da razão prática e “confessou” nos seus Métodos (cada vez com mais ceticismo como vemos nos prefácios às sucessivas edições) que a Ética não poderia resolver e não poderia resolver-se. Rawls talvez esteja justificado dado seu interesse fundamental na construção de uma sociedade o que aponta que, ao final, o dualismo de Sidgwick é “resolvido” em Rawls com a priorização de um dos pólos21. Mas essa priorização ainda está a ficar aberta para o indivíduo que sabe que o que considera bens e objetivos (aquilo que almeja) está sempre os relacionando com o momento em que, tendo a história sido instaurada no sentido de que o mundo já está a ser vivido, deve aceitar que esses bens apenas aparecem para ele no exato momento em que sua cognição opera a normatividade para a compreensão do mundo que agora sabemos, enquanto filósofos tal qual sempre soube o homem comum, está sob o signo da irmã da Ética: a Sorte.

E esse não é o ponto do seu livro Liberalismo Político? Lá temos uma compreensão de que a definição de bem da Teoria da Justiça é rejeitada como formulação ética para ser entendida justamente como uma formulação social ou política. Acho que isso fornece um elemento interessante para duas coisas: 1- o dualismo de Sidgwick não é resolvido mas apenas um de seus lados é proposto como prioritário (o lado não individual) 2- que Rawls abandona sua analogia linguística e sua compreensão da bondade como uma tendência em nós (que o leva ao que poderia ser encarado como extremado no momento da Teoria da Justiça de sugerir que a Ética é parte da psicologia, mas que eu considero acertado e que Mikhail: (2011) tão bem desenvolveu). 21

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Afora isso, esses bens e fins estão sempre a se transformarem quando do jogo que é o jogo normativo no sentido de que o que se pensou querer ao entrarmos no barco rumo a Taiti deixa de ser exatamente o mesmo para começar a vislumbrar ainda outros horizontes mais distantes no que pode ser a lição final que conservarmos dos bens inesperados de Proust e Larmore. É isso que é apresentado de forma clara com o grande problema da moral. Reconheço que há um sentido em que o que estou a chamar de o grande problema da moral diz respeito, justamente a algo que o dualismo de Sidgwick é uma instanciação. Uma instanciação porque, sendo sua preocupação “meta” normativa relacionada com os modos de compreender a normatividade 22 e com o conflito dos métodos que permitem essa compreensão – o que pode ser resolvido por uma formulação como a de Rawls que aponta a prioridade de um dos pólos, mas que me parece não poder ser resolvida sem uma “escolha” nesse sentido de uma escolha por alguma forma de priorização e uma escolha que escapa a Ética –, o dualismo de Sidgwick diz respeito a um dos lados do problema que pode se revelar, para usar uma imagem datada, fractal (se enroscando em cada particular da teoria ética como uma marca da sua fragilidade geral reflexo, talvez, do fato de que o presente é sempre contido na dimensão do instante numa questão metafísica mais relevante para a ética que àquela de pessoa) enquanto o grande problema da moral ataca a própria empresa da filosofia na sua resposta ao como viver. Mas antes de passarmos ao grande problema da moral, gostaria de fazer uma distinção que evitará que compreendamos a formulação aqui apresentada como cética. Creio que o verdadeiro ceticismo, que me é por hábito alheio, diz respeito, contemporaneamente, àquelas formas de ficcionalismo as quais quero dedicar algumas linhas.

E tenho clareza que estou colocando na boca de Sidgwick uma palavra mágica, essa “invenção dos anos 19601970” como bem me apontou Raymond Geuss, que lhe é alheia: a ‘normatividade’. 22

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Questão da Clara: a noção da moral e da justificação como uma narrativa ficcionalista23. Há um modo, no entanto, de reinterpretar a noção de plano de vida da qual não tratei ainda. Ela diz respeito a uma estratégia argumentativa arguta que parece inverter os papeis: ao invés de crítico da filosofia moral, estaríamos não compreendendo corretamente essas noções ao não captar que a noção de plano de vida assume na verdade um papel puramente reconstrutivo e não justificativo e seria, nesse sentido, uma narrativa, uma justificação “a posteriori” que nos ajudaria a sinalizar quem somos sem mais a necessidade daquela valoração e daquele parentesco com a verdade que essa noção parente da de caráter exigia. Obviamente, poderíamos aplicar as noções de autoengano contra a transformação do plano de vida em pura ficção e acredito que há nela também um pouco do paternalismo do moralista que supõe a ignorância24 dos humanos em vez de se dar o trabalho de compreender que a limitação de conhecimento é lidada de forma fascinante por nossa cognição. Mas ao invés desse procedimento gostaria de sugerir um ataque franco à postura ficcionalista e para tal acho que o melhor aliado seria o moralista que tanto ataquei. De fato, ele sempre pode dizer de si mesmo que manteve, naquilo que ridicularizei anteriormente, o nervo moral ao sustentar sua posição ou ainda mais ao sustentar sua postura quanto à Ética. E é isto que falta a esse tipo de argumentação ficcionalista: certa honra. Bernard Williams menciona algo nesse sentido na conclusão de seu artigo: “These forms of skepticism will leave us with a concept of morality, but one less important, certainly, than ours is usually taken to be; and that will not be ours, since one thing that is particularly important about ours is how important it is taken to be” Williams:1981, p.

Essa seção me foi sugerida em conversa com minha orientadora. Assim, um objetivo de qualquer visão acerca da cognição deve ser seguir a eliminação da ausência de informação para a compreensão das válvulas de escape e para a operação geral da normatividade. Essa eliminação é próxima daquela compreensão equivocada de falha dos sentidos. Rawls aponta isso do seguinte modo: “One might reply that the rationality of a person’s choice does not depend upon how much he knows, but only upon how well he reasons from whatever information he has, however incomplete” (Rawls:1999, p.349). Esse tipo de erro é raro no funcionamento da normatividade e suas sugestivas metáforas são, normalmente, apenas isso, “sugestivas”, sem realmente alcançar qualquer esclarecimento mais profundo. 23 24

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A conjunção da Sorte e da Ética do modo como estou apontando, uma conjunção traçada em nós mesmos por nossa história e de modo tão profundo que essa história sobrepassa os episódios meramente locais e culturais (abertos ao relativismo) se funda como um naturalismo. Tal naturalismo está baseado na história evolutiva cujos traços mais profundos, aqueles cujas marcas da resposta aos mais diversos contextos, carvaram o que chamamos de nossa cognição, provê essa “certa honra”. Provê pela sua dimensão épica mesmo que seu uso por parte dos agentes particulares acanhe essa dimensão na banalidade, que repetidas vezes mencionei, é o local próprio para encontrar a normatividade no sentido de desvendá-la e investigá-la. E isso o ficcionalista (mesmo aquele que como Joyce estabelece essa visão natural de nós mesmos) não pode prover. O outro argumento contra o ficcionalista é ainda mais próximo do arsenal comum do filósofo: diz respeito ao onde o ficcionalista ou aquele que sustenta qualquer forma de grande ocultamento (do poder, das relações de opressão e etc) se põe que lhe permite escapar à Ética. Não apenas duvido da possibilidade desse escapar, mas concordo com Sidgwick que o próprio método para compreensão da Ética envolve um compartilhamento por parte do investigador: “A moralidade que examino é a minha própria moralidade tanto quanto é a de qualquer homem. Como afirmei, é a “moralidade do senso comum” que tento representar na medida em que a compartilho, apenas me colocando de fora ou (1) temporariamente, com o propósito de uma crítica imparcial, ou (2) tão logo sou forçado a ir além devido a uma conscientização prática de sua incompletude” (Sidgwick:1907, p.x). Não investigo mais profundamente essa opção ficcionalista por dois motivos: 1- pela minha crença na sua implausibilidade derivada da concepção do normativo como estrutura mesma de nós mesmos e, portanto, inescapável e inescapável porque, moldando nossa cognição, o próprio questionamento da Ética já é mediado pelo que a Ética investiga. 2- mas, sobretudo, pela urgência e ansiedade em retomar as conclusões que venho apontando como o grande problema da moral ou o dito de Kieerkgaard.

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Fortalecendo a segunda rejeição à visão de nós como um plano de vida ou Sorte e o grande problema moral Nesse sentido espero que esteja claro que a proposta aqui não diz respeito a esse tipo de ceticismo mas a uma maior sensibilidade que invalida circunscrever a sorte sob o reino do voluntário e, de fato, a questão da sorte trouxe consigo o que considero o maior problema para a compreensão da moral e para a própria possibilidade do normativo como um reino cognoscível e o motivo pelo qual, ao cabo, toda a tentativa de uma fundação de uma ciência da Ética deve ser limitada mas não entendida como impossível ou mentirosa ou fictícia25: o fato de que claramente há dois momentos distintos e que a normatividade parece se situar em nenhum deles. O dito de Kierkegaard toca exatamente esse aspecto paradoxal: “a vida deve ser vivida em direção ao future mas apenas pode ser compreendida vislumbrando o passado”. Esse dito aponta que algo em nós foi compreendido de modo equivocado pelos filósofos e, especialmente, como relacionado a um defeito ou imperfeição em nós. Quando aceito benevolamente, como uma característica dos humanos dado sua “finitude” a ter suas implicações lidadas pela Ética, essa benevolência foi normalmente tornada possível porque se diminui a dimensão profunda que a ética representa para nós substituindo-a por alguma coisa mais mesquinha ou menor como a idéia de ficção, a noção de um grande ocultamento ou mesmo, no limite desse tipo de explicação, como um instrumento de subjugação e opressão por parte de uns sobre a maioria de nós. Todas essas visões, a benevolente, a que vê como imperfeição e aquelas que crêem encontrar um modo de subjugação apresentam visões equivocadas tanto da ética e da normatividade em geral e, digamos claramente, do valor dos valores para nós acarretando obviamente uma visão equivocada de nós mesmos. Portanto, devo agora sugerir o modo de lidar com esse dito, o modo como eu o creio não implicar num ceticismo e farei isso ao esboçar uma visão de nós mesmos que respeite esse dito como dizendo algo de importante sobre nós e algo que deve ser considerado na elaboração de

E creio capturar com isso as três variações de ceticismo mais comum: o ceticismo clássico, o que pensa o assunto como um grande ocultamento do que seria o verdadeiro fenômeno e, por fim, a interpretação ficcionalista. 25

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uma Ética. Mas ao invés de perseguir essa linha gostaria de trazer novamente o caso na epistemologia de modo a fortalecer a argumentação acima. Como vimos: “Gettier's counterexamples are taken to be so devastating to the classical tripartite view of knowledge precisely because they show that such an account is consistent with there being lucky knowledge” (Pritchard:2007, p.278). Uma hipótese retomada da formulação de Riggs seria a de que o ponto em comum com a moralidade é a noção de realização e dos créditos que deveríamos receber ao realizarmos algo e nesse sentido, deixei em aberto a seguinte pergunta: essa defesa de nossas realizações e do crédito que ganhamos com elas justificaria a busca de uma defesa contra a Sorte? Como também apontei, Williams credita a persistência do kantismo a algo relacionado a isso, que é a intuição que temos acerca da injustiça reinante no mundo e como o kantismo fornece algo (“solace” na formulação de Williams) contra essa intuição. Mas esse tipo de consolo pode ser interessante ao comum dos civis, mas não ao filósofo, se seu interesse é muito mais aquele do general planejador e alheio aos perigos mesmos da Sorte. Então, a pergunta aqui é por que a persistência dessa concepção reconfortante de crédito? Obviamente, uma explicação social é plausível aqui, mas não condiz com minha dúvida acerca da orgia em nosso tempo dessa explicação. Mas há outra possibilidade de explicação que gostaria de apontar que diz respeito a como essa noção de crédito se adapta à própria visão mais geral de nós mesmos como agentes racionais e, portanto, maximizadores de prazer, de crédito ou de qualquer outra coisa. Assim, essa segunda, e curta ida à epistemologia, apenas é feita com um intuito: de refrescar em nossas mentes a associação que a filosofia moral faz entre sermos agentes racionais e evitarmos a Sorte como constituindo uma fonte e um motivo associado para o funcionamento desse esquema. E isso deve ser mantido claramente para a consideração de que essa associação deve ser desfeita por ser uma má visão de nós mesmos argumentativamente. Conclusão O que resta ao curioso da normatividade é, com a necessária paz de espírito, não dar ouvidos ao cético e se defender, reconhecendo para si e esbravejando para os outros que o dito de Kieerkgaard é paradoxal mas não cético. Ele apenas rejeita uma concepção de Ética, aquela que crê encontrar em nossas narrativas racionalizadas (e diríamos com Williams: higienizadas) uma 36

chave para o caráter. E nele um ponto arquimediano, porque imóvel e anacrônico frente às circunstâncias, para o reino do que depende de nós. Ainda mais, não contente com toda essa engenharia, tal concepção dá um passo seguinte e floreia esse reino como o da liberdade, como se ela já não estivesse nessa animalidade, que é nossa cognição e uma cognição sempre circunstanciada. De qualquer maneira, essa concepção foi rejeitada com uma confissão que se expandiu ao banal, com a adesão do que chamei de válvulas de escape do reino universal da moralidade com a formulação de Williams em torno do remorso e como esta não implica falta de caráter ou amoralismo, mas a implausibilidade de instaurarmos esse reino universal da moral, esse puro racional, nesse ponto arquimediano que seriam nossos planos de vida e nosso caráter. Isso porque, nesse momento, nesses planos de vida, não apenas não se está sob fundação sólida como se pensou mas mais do que isso que exatamente aí estamos frente aos mesmos dilemas que encontramos onde quer que direcionemos nossa visada para a experiência humana Nesse sentido, a conclusão do presente artigo é que seres humanos estão sempre às voltas com a Sorte (usada aqui, argumentativamente, como marca, exemplo e como unificadora de fenômenos mais disseminados e que denominei como as válvulas de escape frente ao reino universal da moral) o que foi usado no ataque à noção de plano de vida tal qual incrivelmente desenvolvida por Rawls na sua noção de que devemos considerar todos os momentos da vida de maneira equânime. Mas essa argumentação silencia o interessado da normatividade e o estudioso da Ética? Vimos como não, como o resultado do dito de Kieerkgaard não é o triunfo do cético mas apenas o fracasso de uma visão (pobre) do humano que, de forma a esclarecer determinados aspectos, (o que fez com maior ou menor sucesso uma vez que ao inflacionar o “racional” em nós deturpou em muito o que somos), deixou de lado importantes elementos cuja Sorte é um representante e unificador. Com essa visão do humano fracassada, devemos explorar outros caminhos e creio que um dos principais é aquele relacionado ao impressionante funcionamento de nós mesmos enquanto animais, que operam esse mecanismo de relevar certos elementos ou traços da realidade e dar a eles um local (e um nome) especiais em nossas vidas enquanto razões. Tal formulação foi desenvolvida alhures. Mas agora gostaria de um novo desafio: investigar as conseqüências do que vem sendo dito e essa investigação revela dois grupos de consequências: uma medonha (de como 37

não apenas a racionalidade não é uma boa diferença específica, mas como podemos imaginar e talvez criar seres racionais alheios ao que mais prezamos que são certos valores); e uma esperançosa (a de que podemos continuar essa prática gratificante que é a filosofia, especialmente se aceitarmos suas impurezas). Nesse sentido, apontar mais alguns desdobramentos de minha formulação sobre o que pode ser a Ética frente a todos esses limites indo aonde a filosofia parece ter abandonado terreno há muito passa a ser a proposta para futuros desenvolvimentos.

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