A noção de sujeito posicionado em torno à pesquisa musicológica, suas leituras estéticas e políticas: o caso de Félix Casaverde e as relações de poder na música da costa peruana. /

Share Embed


Descrição do Produto

XI CONGRESO IASPMAL • música y territorialidades: los sonidos de los lugares y sus contextos socioculturales

423

A NOÇÃO DE SUJEITO POSICIONADO EM TORNO À PESQUISA MUSICOLÓGICA, SUAS LEITURAS ESTÉTICAS E POLÍTICAS: O CASO DE FÉLIX CASAVERDE E AS RELAÇÕES DE PODER NA MÚSICA DA COSTA PERUANA Fernando Llanos Carlos Fernando Elías Llanos, doutorando em musicologia, PPGMUS / ECA - USP, [email protected].

O presente artigo busca contrapor três níveis de fala: uma primeira, que evidencia as tensões descritas numa pesquisa na área de etnomusicologia, sobre a obra do violonista peruano Félix Casaverde, seu complexo relacionamento com a música tradicional da costa peruana, e os sentidos e escalas de valor da interpretação e a estética cultural-musical do seu tempo. Um segundo nível que comenta, em primeira pessoa, os motivos que justificaram a pesquisa e como esta veio veicular uma série de reivindicações culturais desatendidas pelas políticas públicas do país (Peru). Em última instancia, tentar-se-á desvendar a operação do pesquisador pela noção do sujeito posicionado segundo Rosaldo, usada para definir a própria situação do antropólogo em seu esforço de compreender outra cultura, mas igualmente para entender a diversidade de interpretações por indivíduos que compartilham uma mesma cultura. PALAVRAS-CHAVE:

Sujeito posicionado. Félix Casaverde. Etnomusicologia.

El presente escrito busca contraponer tres niveles de habla: un primero que evidencia las tensiones descritas en una investigación del área etnomusicológica, sobre la obra del guitarrista peruano Félix Casaverde, su compleja relación con la música tradicional de la costa peruana, y los sentidos y escalas de valor de la interpretación y la estética cultural-musical de su tiempo. Un segundo nivel comenta, en primera persona, los motivos que justificaron la pesquisa y cómo ésta se convirtió en portavoz de una seria de reivindicaciones culturales desatendidas por las políticas públicas del país (Perú). En última instancia, se intentará desvelar la operación del investigador guiados por la noción de sujeto posicionado de Rosaldo, usada para definir la propia situación del antropólogo en su esfuerzo por comprender otra cultura, pero igualmente para entender la diversidad de interpretaciones por parte de individuos que comparten una misma cultura. PALABRAS CLAVE:

Sujeto posicionado. Félix Casaverde. Etnomusicologia.

XI CONGRESO IASPMAL • música y territorialidades: los sonidos de los lugares y sus contextos socioculturales

1. DESVENDANDO O PESQUISADOR POR TRÁS DA PESQUISA. Numa das perguntas-chave do simpósio1, ¿De qué manera nos interpelan las prácticas musicales que son objeto de nuestras investigaciones?, poder-se-ia levar em conta uma série de considerações em relação à natureza do trabalho (que já são desde sempre variáveis e complexas) de pesquisadores em música, como também indagar, criticamente, a produção acadêmica resultado da referida interpelação entre práticas musicais e objeto de pesquisa . Assim, parecem pertinentes perguntas como “o que interpelou você (pesquisador) ao longo da sua relação com o objeto/sujeito de pesquisa?”, ou ainda “o que esperava seu objeto/sujeito de pesquisa de você/da sua pesquisa no transcurso da mesma?”

424

música afrodescendente no Peru e no Brasil em determinados compositores, a referência à liberdade na obra de um músico negro de meados do século passado, os elementos no “folclore” afroperuano presentes na música comercial e popular dos últimos cinco anos, e até mesmo traçar a rota do cajón marcando suas influências, variantes e usos atuais etc, etc, etc... Naquela tormenta de ideias também figurava uma peça para violão e cajón chamada Cuatro Tiempos Negros Jóvenes, composta pelo violonista Félix Casaverde, que em principio parecia “insuficiente” para a minha voracidade de pesquisador que ainda desconhecia a profundidade do assunto. A pergunta surgiria só depois de várias escutas atentas e repetidas, que me permitiram descobrir as camadas da obra e os pontos de vista distintos que a interpelavam. (LLANOS, 2011: xiii). As primeiras linhas do referido trabalho foram, de fato, as últimas a serem escritas. Entre

No caso em particular, que motivou este ensaio, trata-se da revisita de uma dissertação

a suposta simplicidade de pesquisar uma música só e achar mais importante estudar pes-

de mestrado (re)analisada no conceito de sujeito posicionado (Rosaldo, 1989:8), conceito

soas mais renomeadas da cena musical da costa peruana existia outra “distancia” a percor-

que parte de uma idéia geral de reflexividade na qual o pesquisador (antropólogo, no o exem-

rer: a do posicionamento frente ao contexto e à série de questionamentos revistos à luz do

plo do livro) é capaz de refletir a partir da sua própria experiência e falar sobre seu papel e

próprio processo de investigação.

suas ações. Ainda mais: o conceito evidencia a pesquisa como trajetos contínuos de ida e

Neste sentido, e desdobrando aos poucos esta noção de posicionamento no sujeito-pes-

volta, de negociações multilaterais, de questionamentos e de autocríticas, de posicionamen-

quisador, poder-se-ia dizer que em determinado momento do trabalho de campo estamos

tos e reposicionamentos:

preparados para advertir certos significados enquanto outros passam despercebidos. As-

Quando cheguei a pensar na música da costa peruana como tema de pesquisa sabia que poderia encontrar mais de uma possibilidade: queria pesquisar a questão da afroperuanidade na obra de Chabuca Granda, em fazer um estudo comparativo do discurso musical afroperuano e afrobrasileiro, em dissertar sobre a resistência cultural de instrumentos como o cajón -no Peru- e o tambú -no Brasil. Pensei também em que seria interessante pesquisar só expressões culturais como a décima e o zapateo, ou relatar diferenças e coincidências da

sim, esta temporalidade da pesquisa também diz respeito ao pesquisador, nem tanto pela maturidade que adquire graças à experiência, mas pela condição constante de ser um “produtor epistemológico posicionado” em todo momento, independente do amadurecimento. Estas tensões, relações, “vias de mão dupla” que são as posições assumidas tanto pelo pesquisador como por aqueles com os quais se relaciona, configuram toda uma forma de entender a pesquisa, seja para defini-la enquanto processo reflexivo (toda vez que interage criticamente com nossos próprios pressupostos e postulados culturais) seja para entender

1

Investigar sobre música: Reflexiones metodológicas e implicancias subjetivas en la construcción del objeto. (Simpósio 5 – IASPM/AL, Salvador (BA)/out/2014)

as negociações e trocas que todo encontro sugere e estimula. Seguindo com a desconstrução, de forma crítica, advertimos dois lugares de fala:

XI CONGRESO IASPMAL • música y territorialidades: los sonidos de los lugares y sus contextos socioculturales

1.

O de um conhecido músico e violonista autodidata, negro, peruano, peça chave para a própria definição de negritude em um país majoritariamente andino, que desenvolveu grande parte da sua carreira profissional fora do seu país natal, que possui uma produção estética multifacetada, cheia de influências cubanas e brasileiras e cuja obra permanece ainda desconhecida;

2.

Do outro lado, a de um músico peruano, mestiço, com passagem no jornalismo, violonista, que adotou um estilo autodidata para a música brasileira e cubana, que desenvolveu sua carreira profissional e acadêmica no Brasil, cujo trabalho musical explora a música contemporânea instrumental e elementos da música da costa peruana.

425

Assim, o pesquisa reflete as nuances desta relação que, embora formatada pela formalidade metodológica do trabalho científico e a suposta labor do “observador imparcial”, também é capaz de evidenciar as interdependências, os entrecruzamentos e as complementaridades de ambos os “sujeitos-na-pesquisa”. FIGURA 1. Julho de 2011. Félix Casaverde (com o violão) e eu. Na ocasião, levei a transcrição

De certa forma, retoma-se aquela velha discussão do êmico e do ético2, ou até mesmo

da suíte para que ele desse as sugestões sobre minha digitação, o andamento e outros detalhes da performance que se perdem na escrita. Nesse dia insisti que eu era um mero tradutor, e que o “monte de bolinha” era de sua autoria. Nunca ia imaginar que era nossa última reunião. Três meses depois faleceria. (Fonte: acervo pessoal do autor)

pode-se pensar em uma condição de bi-musicalidade, mas desta vez como relação dialética em que uma forma parte da outra e não como relação dicotômica de oposição. No caso, a relação a que se faz referência permeia o plano de que eu batizei como expectativas cruzadas da pesquisa: a do pesquisador e suas hipóteses, a do sujeito de pesquisa e suas observações em relação aos motivos do pesquisador, o do orientador do trabalho, a da comunidade científica que analisa a pesquisa e seus atores, a da comunidade social (cole-

Estas expectativas cruzadas aparecem nas seguintes linhas, ainda na introdução da dissertação:

gas músicos, pesquisadores, familiares) que observa o trabalho e seu percurso, entre outras

Escutar aquilo [a suíte Cuatro Tiempos Negros Jóvenes] provocou uma gama rica de sentimentos contraditórios: em primeiro lugar, o trabalho em conjunto de Chabuca, Félix e o cajoneador, Caitro Soto, parecia ser uma espécie de time dos sonhos da música afroperuana, ou crioula3, ou negra, ou da costa, mas peruana sem dúvida. Tinha arranjos de instrumentos “nobres” da música clássica,

variáveis. 2

Os termos emic e etic (no caso, êmico e ético) procedem das palavras fonemic e fonetic, utilizadas na linguística, propostas pelo missionário Kenneth Pike para designar (diferenciar), na antropologia, os critérios conhecimentos e significados mantidos pelos membros de uma cultura observada (analisada, pesquisada etc.) daqueles que aporta o observante com o seu estudo”. (CÁMARA DE LANDA, 2004, p. 35 –tradução nossa)

3

Ao falar de crioulo nos países de língua espanhola nos referimos ao mestiço de traços europeus -brancos sem referentes arábicos- na América Hispânica. Cf.: CRIOLLO. IN: Diccionario de la lengua

XI CONGRESO IASPMAL • música y territorialidades: los sonidos de los lugares y sus contextos socioculturales

arranjos de cordas, de sopros, um piano, acompanhados com cajón e violão. A segunda impressão foi de estupor e de raiva: senti-me enganado como peruano de não ter conhecido essas músicas antes, como se alguém tivesse tido a possibilidade de mostrá-las, mas por uma profunda ignorância não quis. Cheguei até a imaginar como seria essa pessoa de tão enraivecido que fiquei: pensei na imagem de um velho ranzinza de “mente quadrada” recebendo numa mão o master da gravação e com a outra jogando-o no lixo, como dizendo “ah, isso ai é biscoito fino que ninguém vai entender... aliás, onde já se viu música ‘negroide’ quase orquestrada?, coisa tosca!, teria ficado bem melhor uma valsa”. Nesse ponto da introspecção acadêmica e pessoal pareceu-me ter achado um álibi bastante peculiar: senti que devia responder a essa pessoa imaginada, mas só me confirmei nessa missão quando soube que em 2006 se lançou na Espanha uma nova versão do disco que de certa forma continuava desconhecido para uma grande maioria no Peru. Não tinha outra escolha: “ele”, quem queira que tenha sido, tinha de ler agora o que pensava a respeito desse “alzheimer” gravíssimo na música peruana e da América Latina. (LLANOS, 2011: xiv). As vivencias da pesquisa, dos motivos da pesquisa e das relações surgidas a partir da pesquisa são todos eventos particulares e conexões propiciadas no trabalho por vários atores, que muitas vezes são reduzidos a uma relação descritiva do texto acadêmico. No texto acima, as expectativas cruzadas apresentam-se, de fato, como um conjunto de interpelações derivadas não só das práticas musicais como também da pesquisa dessas práticas. A referida pesquisa teve ao longo de seu desenvolvimento a constante preocupação para contextualizar uma realidade familiar, para um peruano, mas nem tanto para o leitor brasileiro. A profusão de notas de rodapé explicativas teve essa finalidade: a de explicitar o caráter anfíbio da empreitada. Nesse esforço de comunicação contextualizada foi possível experimentar uma dupla leitura dos acontecimentos analisados: por um lado, revisitei os

española - Vigésima segunda edición. Madrid: Real Academia Española. 2001. Disponível em: Acesso em: 21 jan. 2011.

426

meus conhecimentos “êmicos”, como peruano; por outro, foi uma releitura que possibilitou, na medida do possível, considerações mais profundas, como em um exercício crítico de reaprendizagem. Finalmente, tudo isto leva a pensar até mesmo na categorização das relações no trabalho de campo etnográfico: até que ponto a entrevista não se configura como o encontro de dois pesquisadores? Como definir a pertinência da metodologia musical e as variáveis de análise? Afinal de contas, não estamos registrando o dialogo de dois saberes musicais posicionados?

REFERENCIAS CÁMARA DE LANDA, Enrique. 2004. Etnomusicología. Madrid: Ediciones del Instituto Complutense de Ciencias Musicales. 2ª edición. LLANOS, Fernando. 2011. Félix Casaverde, “violão negro”: identidade e relações de poder na música da costa do Peru. 213f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo. ROSALDO, Renato. 1989. Culture & Truth – The remaking of Social Analysis . Boston: Beacon Press..

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.