A noção de validade formal e sua operacionalidade na lógica quantificacional de primeira ordem

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A noção de validade formal e sua operacionalidade na lógica quantificacional de primeira ordem

Vítor Beghini1

Todos raciocinamos, e todos sabemos que o raciocínio lógico — isto é, o trabalho intelectual de elaborar razões aptas a operar justificativas, soluções e descobertas — não representa apenas um instrumento medular ao método científico, à especulação filosófica ou à matemática. Sabemos que o raciocínio constitui-se, para além deste horizonte, como parte indissociável da própria vida, da gênese de nossa experiência enquanto seres pensantes e retóricos. Disto emerge as raízes e a importância do estudo da lógica, da constituição de uma ciência, como entendida desde a sua primeira sistematização no Órganon de Aristóteles, que buscasse fornecer meios para uma análise normativa e qualitativa dos raciocínios a partir da compreensão dos processos e pressupostos que os constituem. Com efeito, o objetivo fundamental da lógica é avaliar raciocínios, expressos sob a forma de argumentos, ou mais propriamente, inferências. Uma inferência consiste no processo de derivar conclusões de informações já dadas — as premissas — demonstrando o meio pelo qual se afirma uma nova informação — ou, idem, apresentar as razões devido às quais uma informação se justifica. O que importa para a lógica é saber quando uma inferência apresenta-se válida, quando é bem sucedida na operação que conecta as premissas à conclusão, resultando em um bom argumento a algo. A validade lógica de uma inferência é notável, desta forma, quando uma conclusão segue-se realmente das premissas dadas. O que devemos entender por validade aqui? É necessário que consideremos certos pressupostos inerentes a esta noção. Primeiro; um argumento pode ser indutiva ou dedutivamente válido, dependendo da operação que o engendrou. Importa-nos aqui considerar apenas este último, que por motivos diversos tornou-se o sinônimo padrão de validade lógica.

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USP — Universidade de São Paulo. Graduando em Filosofia. Artigo apresentado ao prof. Edélcio G. de Souza como conclusão da disciplina Lógica I, sendo avaliado com a nota 10,0.

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Um argumento válido dedutivamente é suficientemente direto para que a conclusão seja consequência necessária de suas premissas, de modo que estas não possam ser verdadeiras sem que a conclusão também o seja. Outrossim, sempre que todas as premissas forem verdadeiras a conclusão também deverá sê-lo. Por extensão, dizemos que a validade dedutiva é também monotônica, posto que o acréscimo de premissas — sejam elas verdadeiras ou falsas — não altera a validade da inferência. Segundo; faz-se mister a diferenciação entre as noções de validade e verdade. A verdade de uma premissa ou conclusão (de uma sentença genérica) é uma concepção semântica, isto é, entendida como propriedade da sentença, a depender da correspondência lógica entre uma sequência de palavras, fonemas, letras (os objetos línguísticos naturais que a constituem) e a existência na realidade daquilo que esta sequência denota quando entendida sintaticamente2. Isto significa que a verdade de uma sentença depende de seu conteúdo e de uma dada realidade, podendo variar situacionalmente no espaço, no tempo, no campo dos horizontes possíveis, de acordo com as condições de verdade que a estabeleça contextualmente. Já a noção de validade, neste mesmo sentido, será puramente formal — posto que, diferentemente da verdade, independe do conteúdo das sentenças. Para criar o ambiente sentencial propício à avaliação de um argumento, portanto, os sistemas lógicos clássicos devem valer-se de uma formalização da linguagem natural, erigindo uma estrutura sintática que opere em detrimento do aspecto semântico das sentenças, a fim de desconsiderar o conteúdo e afirmar, sobre uma inferência, apenas a racionalidade lógica de sua forma. Deste modo, afirmar que existem argumentos válidos significará afirmar que existem formas argumentativas válidas, e que válido será, doravante, todo argumento que se encaixar em uma forma válida. Como formalizar uma inferência? A isto será necessário, primeiro, uma linguagem proposicional apta a substituir a expressão das sentenças na linguagem natural. Eis que: sentenças simples ou atômicas (aquelas indivisíveis em mais unidades de sentido) serão representadas por letras singulares ('A', 'B', 'C', … 'a', 'b', 'c', …); sentenças complexas ou moleculares, formadas por sentenças simples, serão representadas com o auxílio de três conectivos lógicos verofuncionais, que expressam operações de formação sentencial: conjunção (&), disjunção (∨) ou negação (¬). Para entendermos como a avaliação inferencial deverá proceder sobre este contexto formal, será necessário analisarmos duas noções aqui implicadas, aquilo que chamamos de situação e de condição de verdade. Uma sentença relevante é uma expressão de uma dada linguagem que pode ser classificada como verdadeira ou falsa, exclusivamente, em um dado contexto. Disto, diz-se que e-

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cf. TARSKI, A. Truth and Proof. In: Scientific American, June 1969.

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xistem dois valores de verdade: verdadeiro (V) ou falso (F)3. Para as sentenças, uma situação corresponde a um destes contextos, e consiste na atribuição de um único valor de verdade a cada letra sentencial. Os valores de verdades das sentenças complexas podem ser obtidos através de tabelas que cruzem os valores das sentenças simples, valendo-se das condições de verdade de cada conectivo verofuncional4. Assim, são possíveis tantas situações quanto são possíveis combinações de valores de verdade entre as sentenças relevantes. Observemos que ao anunciarmos o conceito formal de validade dedutiva, explicitamos que válido é todo argumento no qual a conclusão segue-se das premissas, ou no qual as premissas não podem ser verdadeiras sem a conclusão sê-lo — isto significa, em última análise, que a validade de um dado argumento dependerá da configuração das situações possíveis a ele. Especificamente: terá forma inválida somente o argumento passível a uma situação em que todas as premissas possam ter valor V enquanto a conclusão tiver valor F. Esta não terá seguido das premissas. Vejamos abaixo um exemplo de formalização e avaliação argumentativa, de acordo com a lógica de proposições:

Inferência

Ou James Joyce é irlandês ou é americano.
 James Joyce é irlandês.
 Logo, ele não é americano.

Forma

i∨a, i ¬a

Tabela de verdade a

i

i∨a

¬a

V

F

V

F

V

V

V

F

F

F

F

V

F

V

V

V

Sabemos que James Joyce é um escritor modernista irlandês — e embora pudesse ser qualquer outra pessoa com este nome, a segunda premissa já nos fornece, de fato, sua nacionalidade. Mas o impediria, por exemplo, de ter nacionalidade dupla? estamos operando aqui com uma disjunção inclusiva, que não prescinde de exclusividade. Com efeito, a distribuição dos valores de verdade apresenta-nos uma situação na qual ambas as premissas são verdadeiras e a conclusão é falsa. O argumento é assim dedutivamente inválido.

Como estabelecido pelos princípios de não-contradição e terceiro excluído. V e F serão aqui, também, conceitos binários nítidos tal como na álgebra booleana, à diferença dos sistemas fuzzy. 3

4 A negação

de uma sentença apresenta valores opostos à mesma. Uma conjunção de duas sentenças (conjuntos) só é verdadeira quando ambas o forem. Uma disjunção inclusiva é verdadeira se pelo menos uma das sentenças (disjuntos) o for.

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Nomes, predicados e quantificadores Ao observarmos este processo de formalização há algo que pode parece-nos reducionista, ou ao menos estranho. Vejamos o seguinte argumento: Newton da Costa foi meu professor. ————————————————-
 Alguém foi meu professor.

n —— 
 : inválido a

É intuitivamente evidente que este é um argumento válido e que, do contrário, algo deve estar errado. De fato: as propriedades dessas sentenças completas deixa-nos patente que a formalização da inferência requer um instrumental mais sofisticado do que a mera lógica proposicional pode oferecer. Se a inferência é válida ou inválida isto se deve aos elementos constitutivos da própria sentença e à sua estrutura interna. No instrumental que utilizamos, sentenças simples são traduzidas formalmente através de letras singulares inaptas a diferenciar aquilo que funciona, segundo a sintaxe das linguagens extensionais naturais, como sujeito e predicado. Como solucionar este problema? A isto será necessário uma nova forma de representação de sentenças que opere tal decomposição em seu interior, e as permita comparar sintaticamente seus elementos funcionais. Eis que, doravante, os sujeitos (enquanto nomes próprios) serão representados como termos singulares (letras minúsculas: a, b, c, …), unidos a um predicado expresso por uma letra maiúscula (A, B, C, …). Em ‘Newton da Costa foi meu professor’ teremos portanto a forma ‘nP’. Isto nos leva diretamente a um segundo problema: não basta mais simplesmente atribuir valores de verdade arbitrários às sentenças, posto que elas possuem agora dois constituintes com funções diversas5. Como seria possível estabelecer as condições de verdade de uma sentença predicativa? Será preciso repensar o conceito sentencial de situação e sua concepção semântica. Para prosseguir, vejamos com mais atenção o que realmente significa ser um nome e um predicado. Um nome é um elemento linguístico, uma expressão, que em uma certa interpretação denota um objeto específico referido em um dado domínio de objetos. Assim, ‘Arnold Schoenberg’, por exemplo, representa um certo objeto do conjunto de pessoas ou de artistas europeus do século XX. Um predicado unário, por sua vez, expressa uma certa propriedade que um (ou mais) objetos pode (ou não) deter, e constitui, por conseguinte, um subconjunto do domínio dado. Na sentença ‘Schoenberg foi um compositor dodecafônico’ há o dado de que o objeto denotado por ‘Schoenberg’ possui a propriedade de ‘ser um compositor dodecafônico’. É justamente esta relação objeto-propriedade que poderá aqui ser verdadeira 5

Para Frege, esta equivale a uma distinção quase metafísica entre objeto e conceito.

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ou falsa. O que teremos, neste sentido, será uma profunda reconfiguração da noção de situação, de acordo com a lógica de primeira ordem. Com base na teoria dos conjuntos, uma situação corresponderá agora ao seguinte modelo: 
 
 𝑢: universo ou domínio do discurso.

𝑢

I(P)

I(n): objeto referente do nome ‘n’, de acordo com uma interpretação.

I(n)

I(P): subconjunto de objetos que possuem a propriedade ‘P’, de acordo com a interpretação de um predicado.

Assim, temos que a condição de verdade de uma sentença predicativa de forma nP será

“nP” é V ⟺ I(n) ∈ I(P) e que portanto nP será verdadeiro se, e somente se, o objeto nomeado pertencer à extensão do predicado. Simples e funcional. Haverá ainda, no entanto, uma outra categoria de sujeitos gramaticais que funcionarão de forma muito diferente dos nomes próprios. São, na lógica moderna, os chamados quantificadores. Numa linguagem natural, quantificadores são expressões genéricas como ‘todo’, ‘algum’ ou ‘nenhum’, que diferentemente dos nomes não denotam nenhum objeto específico de um domínio. No limite, como veremos, a função dos quantificadores será a de definir a extensão de um conjunto predicativo, a partir da quantificação de seus pertencentes em relação ao domínio do discurso. Segue-se que há essencialmente dois tipos de quantificador: um análogo à generalização particular expressa por ‘algum’, ‘alguém’ ou ‘algo’, presente por exemplo na frase ‘alguém entendeu Hegel’, e outro análogo à noção totalizante de ‘todo’, ‘todos’ ou ‘tudo’, como em ‘todos são fracassados’. Ao primeiro dá-se o nome de quantificador particular, ou existencial, e ao segundo quantificador universal. Se realmente funcionam de modo diferente dos nomes, estes quantificadores demandarão uma forma completamente nova de representação formal. Como fazê-lo foi o que descobriu ao início de sua carreira o fundador da lógica moderna, Gottlob Frege, promovendo uma verdadeira revolução no campo da lógica matemática. Esta solução permitiu introduzir

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sua chamada "conceitografia" e seu projeto-tentativa de explicar a aritmética em termos puramente lógicos, abrindo uma via para a sistematização das demonstrações matemáticas por uma única linguagem formal, que viria a ser fundamental ao trabalho de matemáticos como Hilbert, Gödel e Turing. Esta nova notação prescindirá da introdução de dois novos elementos à linguagem: os símbolos de quantificação (‘∃’ para o existencial e ‘∀’ para o universal) e uma variável (x, y, z) que a eles se ligará. De acordo com a noção predicativa de situação, isto funcionará do seguinte modo: uma variável referirá objetos do domínio, enquanto o quantificador ligado definirá sua relação (‘existe um’ ou ‘para todo’) com uma dada propriedade predicativa. Temos assim que ‘∃x xP’ significará ‘há um objeto x no domínio, tal que x detém a propriedade P’, e que ‘∀x xP’ significará ‘todo objeto x no domínio é tal que x detém a propriedade P’. Teremos portanto as seguintes condições de verdade e configurações situacionais:

“∀x xP” é V ⟺ I(P) = u “∃x xP” é V ⟺ I(P) ≠ ∅

𝑢

e, por conseguinte,

x

I(P)

“¬∃x xP” é V ⟺ I(P) = ∅ ( x ∉ I(P) )

Deste modo, ‘∃x xE’ será verdadeiro para ‘alguém entendeu Hegel’ somente quando a extensão do conjunto de pessoas que entenderam Hegel (referido pelo predicado) abranger pelo menos um objeto do universo de pessoas, (o que sabemos ser falso). ‘∀x xN’ será verdadeiro para ‘todos são fracassados’ somente quando todos os objetos do universo do discurso (pessoas, no caso) pertencerem ao conjunto das pessoas fracassadas. Destarte, já temos condições instrumentais de avaliar uma inferência análoga àquela com a qual iniciamos a discussão dos predicados. Vejamos:

Erwin colocou um gato na caixa. ————————————————
 Alguém colocou um gato na caixa.

eC ———-
 ∃x xC

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Sabemos que a premissa será verdadeira somente se, em uma situação, o objeto referido por 'Erwin’ (do universo de pessoas) pertencer ao subconjunto de pessoas que colocaram gatos em caixas. Se isto for verdadeiro, haverá algum objeto no conjunto; este não poderá estar vazio. Disto segue-se necessariamente que 'Alguém colocou um gato na caixa' é verdadeiro. É impossível que numa mesma situação a premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. Temos assim um argumento dedutivamente válido. As inferências possíveis com a articulação de quantificadores, no entanto, se estendem para muito além desta forma. Observemos um outro exemplo de como a noção de validade pode apresentar-se no contexto quantificacional: o Argumento Cosmológico causal para a existência de Deus. Este argumento, um dos mais célebres da filosofia, parte da lei de causalidade para inferir que, se no universo é certo que tudo tem uma causa, será sine qua non que haja uma causa primeira para o universo. Esta causa só poderia ser uma entidade metafísica, transcendente, incondicional e suprema, não por acaso correspondente a noção de Deus na tradição teológica ocidental. Pensemos então na sentença ‘tudo tem uma causa’. Se assumirmos as relações causais nos domínios dos objetos (tal que x é causado por y), poderemos notá-la de uma das seguintes formas: (1) ∀x ∃y xCy; (2) ∃y ∀x xCy. Bastará um pouco de atenção, ora, para percebermos que elas não significam a mesma coisa, não são logicamente equivalentes. Em (1) temos que para cada x existe um y, tal que x é causado por y — tudo tem uma causa ou outra, mas não a mesma causa. Em (2) temos que há algum y tal que para todo x, x é causado por y — existe algo que é a causa de tudo. Há portanto uma forte ambiguidade lógica em ‘tudo tem uma causa’. É justamente a ambiguidade desta sentença que engendra e alicerceia o Argumento Cosmológico. Vejamos:

∀x ∃y xCy —————— ∃y ∀x xCy

(I)

∀x ∃y xCy —————— ∃y ∀x xCy

∃y ∀x xCy (II) : —————— ∀x ∃y xCy

Nota-se que o argumento é uma clara falácia lógica. Se cada objeto possui uma causa, não se segue que há algo que é a causa de tudo. O que vemos, de fato, é que a premissa seguiria-se da conclusão (II), e não o oposto (I): a conclusão não segue-se da premissa. Não há validade dedutiva. Desta análise chegamos a um breve exemplo de como os quantificadores podem interagir entre si em predicados relacionais com generalidades múltiplas, o que logra-nos à impressão de que, de fato, as coisas nunca são tão simples quanto se pode parecer. Impressão que nos encerra em outra: a de que, para além do campo destas sínteses e definições, há muito !7

mais o que poderia-se afirmar e questionar sobre o funcionamento e o papel dos quantificadores. Ora, o mesmo há de ser dito a respeito da lógica de predicados, e da Lógica como um todo. Aqui, neste percurso, não fizemos mais do que explicitar certas vias pelas quais a noção de validade pode operar; tentativas mesmas de definir o que se entende por argumento válido. Mas bastará que adentremos às veredas de suas complexidades para que embrenhemos-nos em dificuldades que demandarão novas reconfigurações do paradigma operante — donde chegaremos em suas limitações inerentes ou desbravaremos novos horizontes de possibilidade. Quanto mais nos aprofundarmos na natureza dos raciocínios, axiomas e teoremas mais nos daremos conta do quão repletos de pressupostos escusos, nuances sutis, incertezas, inconsistências e incompletudes o são, sinal de que o estudo da lógica está definitivamente longe de ser esgotado. Eis que nisto reside sua beleza latente, mas também, e novamente, uma marca lancinante de sua relevância na contemporaneidade.

Referências:

PRIEST, G. Logic: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2000. DUMMET, M. Frege: Philosophy of Language. Ch. 2: Quantifiers. Cambridge: Harvard University Press, 1981. TARSKI, A. Truth and Proof, in: Scientific American, June 1969. HAACK, S. Filosofia Das Lógicas. Cap. 5: Termos Singulares. São Paulo: UNESP, 2002. RUSSELL, B. On Denoting. In: Mind, New Series, Vol 14, No. 56, Oct. 1905, pp. 479-493. Oxford: Mind Association, Oxford University Press. TUGENDHAT, E.; WOLF, U. Logisch-Semantische Propädeutik. Kap. 7. Stuttgart: Reclam, 1986.

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