A nova ciência da moralidade e a “ciência” do direito (Parte 1)

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A nova ciência da moralidade e a "ciência" do direito
(Parte 1)




Atahualpa
Fernandez(

"Un ser humano debería ser capaz de cambiar un pañal,
planear una invasión, sacrificar un cerdo, guiar un barco,
diseñar un edificio, escribir un soneto, hacer cuadrar las
cuentas, construir una pared, acomodar huesos, consolar a los
moribundos, recibir órdenes, dar órdenes, cooperar, actuar en
solitario, resolver ecuaciones, analizar un nuevo problema,
palear estiércol, programar un ordenador, preparar una comida
sabrosa, combatir con eficacia y morir con dignidad. La
especialización es para los insectos." Robert A. Heinlein


Embora a ciência se caracterize por ser um labor humano que serve (ou
deveria servir) para cambiar nossa perspectiva do mundo, em muitos aspectos
a sociedade ainda mantém uma cosmovisão própria do obscurantismo medieval.
A teoria da evolução por seleção natural de Darwin é quiçá o exemplo
perfeito disso. Já se passaram mais de 150 anos desde a publicação da
origem das espécies, e pese a que esta teoria é hoje em dia o núcleo
central da biologia (e todas as ciências que derivam dela), segue sem
terminar de assentar na sociedade. Ainda que com algumas diferenças
importantes, ocorre algo similar, por exemplo, com o dualismo cérebro-mente
(a visão cartesiana do problema mente-corpo já superada pela neurociência).
À medida que tanto a ciência, como a experiência diária, apontem ao
contrário, socialmente seguimos sustentando a ideia de alma/mente imutável,
onde o livre-arbítrio parece ser capaz de alterar o determinismo físico à
vontade (literalmente).
Tampouco é diferente a percepção que ainda fomentamos da moral: nossa
moralidade e nossa humanidade não é algo que levamos incorporado, um
produto da história evolutiva que nos precede, com antecedentes em outras
espécies. Continuamos aferrados à ilusão de (i) que as deliberações morais
têm lugar em um plano (racional) mais elevado, (ii) que a moralidade tem
que vir imposta desde «acima» (e não pode vir de «dentro»), (iii) que as
regras morais não necessitam afiançar-se em «quem» e «que» somos, e/ou (v)
que não tem a moralidade que ajustar-se à «razão de ser» da espécie.
Apesar disso, nos últimos anos a moralidade se transformou em uma zona
de convergência para pesquisadores no âmbito das Ciências e das
Humanidades. A quantidade de investigações ou "experimentos de ética" se
incrementou rapidamente, ao igual que a diversidade de métodos empregados.
Pouco a pouco, no que se refere ao nosso comportamento moral, o ser humano
começa a compreender-se a si mesmo.
É um fato único na história, na medida em que, com a emergência dos
modelos dedicados ao estudo científico da natureza humana e dos esforços
por compreender a condição humana baseados em estudos empíricos, a conduta
moral se converteu em um objeto de estudo muito mais realista do que havia
sido até então[1]. E somente estamos no início do processo que busca
iluminar a estrutura e o funcionamento do pensamento moral: enquanto que a
sociedade pede às pessoas fazer eleições moralmente dignas e as tradições
religiosas estipulam o bem e o mal através de mandados divinos, escrituras
e sermões, a última palavra se encontra dentro de cada uma de nossas
próprias cabeças.
Por primeira vez, os avanços das ciências que se ocupam do cérebro e
da conduta oferecem propostas capazes de situar a reflexão humanística e
científico-social sobre uma concepção da natureza humana como objeto de
investigação empírico-científica e não mais fundada ou construída a partir
da mera especulação metafísica ou religiosa[2]. A ideia subjacente consiste
em que uma vez que cheguemos a entender a natureza humana (ou ao menos
alguns de seus aspectos) quiçá possamos cambiar a maneira de contemplar os
problemas importantes do mundo real e o modo de afrontá-los. Como disse em
certa ocasião Jonathan Haidt: "Vivimos la edad de oro de la nueva síntesis
en el campo de la ética que predijo E. O Wilson en 1975: la
«consilience»".[3]
Desde um ponto de vista científico e de uma maneira transcendente, o
fato de abraçar a importância desse câmbio de paradigma implica compreender
quem somos, o que nos motiva, por que nos comportamos (atuamos e reagimos)
da forma como o fazemos, por que desenvolvemos as estruturas sociais que
construímos, o que significa para o animal humano "atuar como agente
moral", de onde vem nossa predisposição natural para produzir juízos
morais, de onde procede a forte inclinação que têm os humanos para
construir sistemas normativos morais, sociais e legais (por essência
emocionais), e um longo etcétera.
É de sobra conhecido que no curso da história (e a despeito do
progresso de nossos conhecimentos científicos) não nos caracterizamos
precisamente pela compreensão que temos de nossa própria natureza e de
nossas identidades neuroculturais. Semelhante conhecimento, contudo, parece
ser uma condição prévia para conhecer a maneira em que a natureza humana
deve ser entendida e integrada à compreensão de nossas sociedades e nossas
concepções do mundo; quer dizer, para que sejamos capazes de reinventar, a
partir da percepção que temos de "quem somos" e da maneira como funcionamos
enquanto criaturas neurobiológicas e sociais (e por meio da construção
conjunta de alternativas reais e factíveis), as melhores e mais profundas
teorias acerca da moral, do direito e de suas respectivas funções na
dinâmica social.
Longe de conduzir a confundir de maneira enganosa os fatos e os
valores, e longe de naufragar na trampa clássica do "sofisma
naturalista"[4], o fato de que se reconheça que a natureza humana delimita
(não determina) as condições de possibilidade das condutas ético-jurídicas
e dos modelos socioculturais possíveis sugere adotar um modelo científico
construtivo. Ao fim e ao cabo, teorizar sobre a moral e o direito
depreciando a necessidade de levar em consideração os descobrimentos e as
contribuições decorrentes das ciências adjacentes desde uma perspectiva
interdisciplinar (uma radical interdisciplinaridade) é, sem mais, um risco
que não podemos permitir-nos, para não dizer um disparate.
Ou bem optamos por considerar que a ciência jurídica (e a ética) é um
âmbito gnosiológico autocontido que não requer fazer explícitos os
princípios nem a metodologia da investigação procedente de outras
disciplinas (uma sorte de reino causal insulado), de modo que não nos resta
outra saída que a via de uma exploração teórica arbitrária e abstrata; ou
bem consideramos epistemicamente irrenunciável a necessidade de encontrar
explicações empiricamente contrastáveis e consideramos, ademais, que o
verdadeiro conhecimento do humano consiste em decifrar a rede de conexões
causais entre as dimensões do natural e do cultural, do inato e do
adquirido, a partir de um programa construtivo, interdisciplinar e
carregado de responsabilidade acerca da natureza humana.
É uma evidência mais além de qualquer debate razoável que o tema
relacionado com o problema do direito pode ser apreciado de diferentes
formas e que uma das vias possíveis para analisar o fenômeno jurídico
consiste em oferecer uma reapreciação crítica sobre o objeto, a função e o
propósito do direito prático moderno baixo uma perspectiva naturalista
(evolucionista)[5], convertendo em viável a proposta (e inclusive a
exigência) de novos critérios para que os setores do conhecimento no
direito sejam revisados à luz dos estudos e pesquisas provenientes da
biologia evolutiva, da psicologia evolucionista, da primatologia, da
antropologia evolutiva, das neurociências, das ciências cognitivas, da
genética comportamental, entre outras que, ao adotarem uma perspectiva
científica, buscam entender em que consiste a natureza humana.
Esse conjunto de ciências (ponte), baseadas todas elas na dupla
perspectiva indivíduo-sociedade, nos ensina que o comportamento humano se
origina a partir da intercessão de nosso sofisticado programa cognitivo de
raiz filogenético com o entorno sociocultural em que transcorre nossa
ontogênese. Também nos indica que as representações culturais devem ser
vistas como algo que se sustenta em mecanismos próprios de nossa
arquitetura cognitiva inata: não há oposição entre o cultural e o natural;
o cultural é primeiro uma marca, uma impressão, neurobiológica. A estrutura
e o funcionamento desses mecanismos regulam de que modo as representações
específicas se transmitem de um indivíduo a outro, distribuindo-se dentro
da comunidade como resposta a condições sociais e ecológicas distintas. É a
natureza humana a que impõe constrições significativas para a percepção,
transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais,
limitando as variações sociais, morais e jurídicas possíveis.[6]
A um nível mais profundo, a existência desses mecanismos também
implica que existe em nossa espécie uma considerável carga de conteúdo
mental universal e que toda a mente humana pode não ser mais que
a emergência ocorrida "tras el procesado eléctrico conjunto de cientos de
millones de neuronas; las cuales utilizan un complejo conjunto
de patrones eléctricos (evolutivamente determinados) para comunicar
información entre las distintas zonas cerebrales y posteriormente hacia el
exterior - mediante la comunicación verbal, por ejemplo." (K. J. Miller, R.
P. N. Rao et al.)
Como apóiam as primeiras intuições de Darwin acerca da natureza
humana, nascemos com determinados instintos morais, em um marco em que a
educação intervém para graduar os parâmetros e guiar-nos até a aquisição de
sistemas morais (e jurídicos) particulares. Há algo, pois, no cérebro
humano que nos permite adquirir um sistema de valores e princípios ético-
jurídicos e que autoriza defender a existência de universais morais em um
sentido forte do termo (E. Tugendhat; M. Hauser). Para certas coisas,
portanto, há uma só moral universal (que não se fundamenta em um decálogo,
senão na experiência histórica e na peculiaridade neurobiológica da espécie
humana).

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
[1] Este é precisamente o ponto onde parece jogar um papel fundamental a
denominada filosofia moral experimental, desenvolvida por um grupo de
investigadores e filósofos que descobriram que para entender como atua o
ser humano "no bastaba con quedarse reflexionando sobre ello en el sillón
de su despacho"(J. Knobe). Não, por certo, com o intuito de substituir as
elaborações integrais da Ética, da filosofia e das ciências sociais e
jurídicas, senão dando-lhes um aporte fático e prático – quer dizer, sem
negar o papel determinante da cultura, mas sim reconhecendo a relação entre
«nature-nurture». De fato, a proposta de usar experimentos sobre os
comportamentos para confirmar hipóteses acerca da natureza e do
comportamento humano é antiga. Trata-se, o estudo experimental dos
pensamentos e comportamentos chamados «morais» ou «imorais», de um programa
de investigação que tem como objetivo comprovar hipóteses sobre nossos
juízos e condutas, mas cujo interesse é mais evidente, e com métodos um
pouco mais sérios, menos especulativos e um pouco mais respeitosos com a
ciência. Dito de outro modo, o método dos experimentos empregado neste
programa científico serve, sobretudo, para dois propósitos: (i) identificar
nossas intuições morais a fim de submeter à prova a validez das grandes
doutrinas morais; (ii) ajudar a eliminar as teorias mais irrealistas, as
que não têm para nada em conta a «natureza humana».
[2] É certo que nos últimos tempos se impôs no mundo acadêmico o
«desideratum» da interdisciplinaridade, entendida em um sentido mínimo como
a interação, coordenação e conexão de disciplinas distintas com o fim de
melhorar as explicações fragmentárias sobre partes do mundo. Nada obstante,
muito do que se afirma neste campo de cooperação entre disciplinas não
passa de ser "propaganda gremial disfarçada de alguma terminologia confusa
ou de algum arabesco metodológico inecessário"(M. E. Salas). A realidade de
sua utilização demonstra que seu uso ainda é muito escasso e que quando se
efetua muitas vezes se realiza baixo formas teóricas limitadas, pelo que é
frequente que se restrinja a meras intenções ou a logros muito por debaixo
das possibilidades que suas características oferece. Trata-se mais bem de
algo que todos falam e ninguém pratica, que todos elogiam, mas ninguém
realiza. E não é distinto o atual discurso interdisciplinar no âmbito da
filosofia e da ciência do direito: é tacanho e precário ao mesmo tempo. Um
tipo interdisciplinaridade restrita (prioritariamente) ao âmbito das
ciências sociais normativas que acabou transformando-se em um mainstream do
pensamento jurídico-científico atual. O problema é que, atuando como o
fazem, como se pudessem construir uma "ciência" especulando e inventando
tudo, uma "ciência" que nada tem que ver com o conhecimento científico
externo a si mesma, os juristas, arrastados por concepções esotéricas e
vulneráveis em sua frenética arrogância intelectual, se perdem uma série de
associações que podem ser críticas. E quando uma disciplina tem a intenção
de ser científica e não o é, não somente acaba utilizando conceitos,
critérios e "sistemas tendenciosos y chapuceros para evaluar la verdad" (R.
Trivers), passando por rios de tinta desperdiçados em «metafísica», senão
que também ignora deliberadamente a sensata advertência de que "toda
filosofia deve começar com uma teoria da natureza humana." (R. Lewontin)
[3] Nota bene: O paradigma epistemológico de la «consiliencia»
(consilience) promove uma concepção unitária do conhecimento, a coerência
de um corpus cognoscitivo sustentado sobre a conexão de fatos e teorias
pertencentes a várias disciplinas e que (por sua congruência) acabam dando
lugar a um âmbito comum de explicação; quero dizer: a necessidade de uma
comunicação entre ciências e humanidades com o fim de alcançar um
conhecimento integrado do universo físico-biológico e o mundo humano
(possível e, desde logo, necessário), para afrontar com inteligência aos
eruditos filósofos e juristas (entre outros) que se enquadram na mais
formal tradição academicista, "una cultura de especialistas, en la que cada
uno posee su propia «perspectiva fragmentaria»" (M.Bunge) e que não faz
justiça à complexidade e imprescindibilidade da natureza humana.
[4] "Nos encanta pensar que no somos animales. La llamada falacia
naturalista no es sino un ejemplo del daño que la filosofía del siglo XX ha
hecho en su esfuerzo por sustraer a la gente su sentido común". (Steven
Rhoads)
[5] Ideia que, dito seja incidentalmente e de passagem, não é tão nova como
parece. Em 1876, por exemplo, o então jovem filósofo do direito, Frederick
Pollock, escreveu sobre a evolução, o direito e a ética: "Afirmar que la
facultad [moral] vino de algún sitio no nos satisface; debemos tratar de
comprender de dónde vino y la naturaleza del proceso mediante el cual se
desarrolló; y ha sido el señor Darwin quien ha sentado los fundamentos de
este conocimiento en su obra sobre "El origen del Hombre"… La teoría de la
evolución nos proporciona un informe mucho más completo que el que
teníamos, sobre la génesis de los sentimientos que intervienen en la
configuración de la Sanción Ética [jurídica], y nos permite la explicación
de un conjunto importante de los elementos implicados en ella, en concreto
el instinto social y de empatía, que nunca antes habían sido explicados".
(Pollock, F. "Evolution and ethics", Mind: A Quarterly Review of Psychology
and Philosophy, vol. 1, nº 3, july/1876).
[6] Claro que dizer que existe uma natureza humana é algo que não está
admitido por todo mundo (filósofos e cientistas). Muita gente
(especialmente das ciências sociais) segue pensando que o ser humano é uma
«tabula rasa» na qual se pode escrever qualquer coisa, que sua
maleabilidade é infinita e que é somente produto da cultura. Mas, para os
que não compartem dessa ideia, dizer que existe a natureza humana significa
dizer que existem uma série de disposições de conduta e psicológicas que
foram modeladas e refinadas pela seleção natural e que são evocadas pelo
ambiente em que se vive. O comportamento moral e o sentido da justiça não
são criados a partir de zero em cada indivíduo unicamente pelas forças da
cultura, a educação ou as boas e más experiências vitais, senão que formam
parte de nossa herança como espécie. Existe uma anatomia humana universal
(com variações) e existe uma psicologia humana universal (também com
variações).
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