A nova ciência da moralidade e a \" ciência \" do direito (Parte 2)

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A nova ciência da moralidade e a "ciência" do direito
(Parte 2)


Atahualpa Fernandez(

"«Pero – dije distraído - ¿tendríamos que volver
a comer del Árbol de la Ciencia para regresar al
estado de inocencia?»
«Así es - respondió él -, ése es el capítulo
final de la historia del mundo»".
Heinrich von Kleist






A duras penas se vai aceitando (a exceção dos criacionistas) a
evolução do "pescoço para abaixo" e a maioria das pessoas admite que a mão
tem uma história ou que o olho tem uma história. Com a evolução do "pescoço
para arriba" a situação é mais problemática e aqui os criacionistas não são
os únicos em discuti-la, senão que estão muito acompanhados e,
curiosamente, lhes acompanha demasiada gente ilustrada situada no âmbito
das humanidades.
Aceitar que a evolução também ocorre "do pescoço para arriba" supõe
admitir, como dizia Darwin, que nossas faculdades mentais têm uma história
e se foram desenvolvendo de maneira gradual: o medo tem uma história, o
amor tem uma história, os ciúmes têm uma história, a moral tem uma
história, etc...etc. Nada disso aparece de golpe ou por intervenção de
alguma força sobrenatual em nossa espécie, senão que tem precursores em
outras espécies. A partir daí, podemos perguntar-nos se também o direito
pode ter uma história (quero dizer, diversos estágios conhecidos do
processo evolutivo da espécie humana que deu origem ao fenômeno jurídico).
E a resposta é um categórico sim.
E, se é assim, haverá que aplicar ao caso dos valores humanos mais
apreciados — dignidade, justiça, liberdade, igualdade, autonomia... — a
ideia de que somente através do adequado conhecimento da natureza humana
podemos ter a esperança de fazer uma contribuição significativa à
compreensão do ser humano e da cultura por ele produzida (S. Zeki). Não é
possível compreender o sentido profundo do direito (suas normas, princípios
e valores) sem abordar antes a complexidade de nossa mente e do cérebro que
o habilita e que o sustenta, um conjunto que administra e gera o sentido da
identidade, da personalidade, do pensamento, da conduta, da linguagem, da
percepção, da memória, do cuidado do outro e da intuição de nossa própria
condição enquanto seres morais.[1]
Tudo isso tem uma enorme importância para a filosofia e a ciência do
direito. Algo radicalmente novo está no ar: novas formas de entender nossos
sistemas cerebrais, novos modos de pensar sobre o pensamento e a conduta
que põem em tela de juízo muitas de nossas suposições básicas, etc...etc.
Uma visão realista da mente-cérebro que levanta questões de grande
importância crítica com respeito ao que significa ser humano, com
consequências profundas e mais amplas das que envolvem a uma pequena elite
acadêmica. Desde logo, consequências jurídicas, porque, com o que já
aprendemos, é despropositado todo intento de ensinar qualquer tema
relacionado com a moral e o direito desconsiderando os problemas e as
controvérsias que surgem desde uma perspectiva interdisciplinar: "Ninguna
ciencia es independiente o autosuficiente, toda disciplina interactúa con
otras disciplinas y todas ellas poseen un núcleo lógico y filosófico común.
Cualquier campo que no esté relacionado de este modo no es científico: si
está aislado, es un fraude». (M.Bunge)
Ademais, os cientistas que participam no estudo científico da natureza
humana estão ganhando influência sobre os demais "cientistas" e as outras
disciplinas que se baseiam no estudo das ações sociais e da cultura humana
independente de seu fundamento biológico. Por quê? Porque para entender
adequadamente as raízes da condição humana – e o direito enquanto cultura é
parte dessa condição e a sua ideia (ideia de direito) é o resultado da
ideia do homem – há de compreender ao mesmo tempo genes, mente, cérebro e
cultura, e não por separado a maneira tradicional, e tão peculiar, das
"ciências do espírito". (J. Ledoux)
Se o direito, enquanto artefato cultural, resulta da coevolução entre
"natureza e cultura", entre "as estruturas neurobiológicas e as estruturas
socioculturais", parece razoável supor que na medida em que a ciência
permite um entendimento cada vez mais sofisticado do cérebro e da mente
humana, as possíveis implicações morais, jurídicas, filosóficas e sociais
destes avanços no conhecimento da natureza humana deveriam começar a ser
seriamente considerados pelos estudiosos do direito com o objetivo de
adotar uma visão jurídica nova que permita utilizar o método científico
sabiamente, em lugar das formas especulativas que vemos girar a nosso ao
redor continuamente[2]. Para dizê-lo de um modo mais simples: temos que ter
o mais claro possível de que estamos feitos e com que contamos. O dogma de
que «se os fatos contradizem uma teoria, tanto pior para os fatos» é uma
soberana estupidez.
Depois de tudo, poderíamos perguntar: É possível superar a natureza
humana recorrendo à outra coisa? A que outra coisa? A nossa natureza
divina? A uma ética de princípios (de direitos ou de justiça), à razão
humana e/ou à cultura? E a cultura o que é, natureza extraterrestre? Por
certo que não. A cultura é natureza humana, surgiu da natureza humana e
leva sempre seu selo. E embora com a invenção da metáfora e do "novo
significado" a cultura tenha adquirido, ao mesmo tempo, uma "vida própria",
não se pode utilizá-la (a cultura) como explicação de qualquer fenômeno,
senão que é algo que em si mesmo requer explicação. Pretender "explicar" a
cultura com a cultura é, em última instância, «redescrever» um fenômeno,
não é uma explicação. A cultura não é independente da biologia e a cultura
como explicação causal é um mito: a cultura (e a variação cultural) é um
fenômeno que necessita explicação por si mesmo.[3]
Nesse sentido, ao reconhecer que o direito não é mais nem menos que um
produto biossocial, um conjunto de estratégias sócio-adaptativas – cada vez
mais complexo, mas sempre notavelmente deficiente – empregado para
abordar, regular e articular – de fato, nem sempre com justiça –, por meio
de atos que são qualificados como valiosos, os vínculos sociais relacionais
elementares através dos quais os humanos constroem sistemas aprovados de
interação e estrutura social (quer dizer, um conjunto de estratégias
biológicas e culturais para solucionar os problemas de cooperação e
conflito dos grupos humanos), me inclino a considerar que qualquer teoria
social normativa (ou jurídica) que pretenda ser digna de crédito na
atualidade deve sustentar-se em um modelo darwiniano sensato acerca da
natureza humana.
Somos objetos físicos (corpo e cérebro) dos quais as mentes emergem;
e, de algum modo, de nossas mentes se formam as sociedades e as culturas. E
uma vez que a cultura surge e evoluciona a partir de esforços coletivos dos
cérebros humanos ao longo de muitas gerações (A. Damasio), para entender-
nos completamente temos que estudar e compreender todos esses três níveis:
biológico, psicológico e sociocultural. É certo que há muito tempo existe
uma divisão do trabalho acadêmico: os biólogos e neurocientistas estudam o
cérebro como um objeto físico; os psicólogos estudam a mente; os
sociólogos, filósofos, antropólogos e juristas estudam as normas de conduta
e os movimentos construídos socialmente dentro dos quais as mentes se
desenvolvem e funcionam. Mas a divisão de trabalho só é (e será realmente)
produtiva quando as tarefas se tornem coerentes; quando todas as linhas do
trabalho acabem se combinando para criar alguma coisa maior do que a soma
de suas partes.
Durante quase todo o século XX isso não aconteceu – um campo ignorava
os outros e se concentrava em suas próprias questões. Nada obstante, hoje
em dia, afortunadamente, o trabalho interdisciplinar está florescendo e se
espalhando (ainda que timidamente). As ciências começam a estar associadas,
o que gera a coerência em vários níveis cruzados. Como mágica, começam a
surgir novas grandes ideias, particularmente no que diz respeito ao
surgimento de uma nova visão das disciplinas humanísticas clássicas. E se a
realização completa deste caminho empreendido se cumpre, o qual pode
depender de muitos fatores aleatórios, não me cabe nenhuma dúvida que
daremos com câmbios importantes no conhecimento de nós mesmos e da
sociedade em que nos toca viver.

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
[1] Recordemos que o cérebro humano, sede de nossas ideias e emoções, da
linguagem, da moral e do direito, é o único meio através do qual os valores
chegam ao mundo. É o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral,
que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade,
para interpretar e dar sentido ao mundo, para tomar decisões e solucionar
determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e
reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e
dignidade. Toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo o
que pensamos, sentimos, fazemos ou deixamos de fazer sucede e depende de
nosso cérebro; se originam em nossas faculdades de percepção, pensamento e
emoção, "y se acumulan y difunden a través de la dinámica epidemiológica en
la que una persona contagia a otras." (S. Pinker). Se em algum órgão se
manifesta a natureza humana em todo seu esplendor é sem dúvida em nosso
volumoso cérebro. O que implica que para compreender "lo que somos y cómo
actuamos, debemos comprender el cerebro y su funcionamiento" (P.
Churchland). Dito de modo mais direto: não somente nossa noção do "eu" e
tudo o que a acompanha (a memória, o pensamento, a linguagem, as emoções, a
percepção, etc...etc.), a causa da mente e de toda conduta está sustentada
por certos processos de nosso cérebro, senão que «Somos nosso cérebro». (D.
Swaab)
[2] Quando se fala da possibilidade de vincular questões de grande alcance
com nossa natureza e os desenvolvimentos das ciências, há sempre quem
adverte sobre os perigos do "cientificismo". Este significa o intento
ofensivo de levar a ciência a lugares que supostamente não são de seu
domínio, ou bem a enorme ilusão de que a ciência pode explicar e fazer
tudo. A objeção de que uma aproximação científica ao entendimento da
moralidade ou do direito comete o pecado de "cientificismo" exagera
realmente o que a ciência é capaz de fazer, dado que a empresa científica
não intenta banir o conhecimento das humanidades e nem tampouco determinar
os valores humanos. De fato, a ciência não resolve problemas morais,
jurídicos ou de gostos; simplesmente aporta ajuda, dado que é a melhor
maneira de conhecer a realidade (por exemplo, sobre a origem - evolutiva,
social,... - de nossas preferências nesses temas e a coerência interna de
alguns sistemas de valores). Ademais, uma vez que resulta muito fácil
encher páginas e páginas explicando e/ou argumentando como reivindicar ou
deduzir modelos de conduta moral/jurídica com a "razão", o conhecimento
científico, nesse sentido, demonstra que a união entre ciência e
humanidades não somente é possível, senão que é desejável e necessária. Nas
contundentes palavras de Patricia Churchland: "Shakespeare, Mozart y Hume
no están en competencia con las proteínas quinasas y el ARN micro. Por otra
parte, es cierto que las afirmaciones filosóficas sobre la naturaleza de
las cosas, tales como intuiciones morales, son vulnerables. Aquí, la
filosofía y la ciencia están trabajando sobre el mismo terreno, y las
evidencias deberían vencer a la reflexión de butaca. En el caso presente,
no se trata de decir que la ciencia dará cuenta de todos los dilemas sobre
lo que es bueno o malo, justo o injusto. Más bien, se trata de entender que
comprender más profundamente aquello que nos hace sociales, a nosotros y
otros animales, y aquello que nos dispone a preocuparnos por los demás,
podría conducirnos a un mejor entendimiento sobre cómo tratar con los
problemas sociales. Y eso no puede ser malo."
[3] O que as culturas nos ensinam é que por debaixo das variações culturais
existe uma psicologia evolucionada humana desenhada para produzir
diferentes tipos de conduta segundo as circunstâncias ambientais, e que não
a podemos saltar. A cultura poderá introduzir variação, mas não é todo-
poderosa e tem umas limitações. A gente pode variar em seu bronzeado
segundo o sol ao que esteja exposto em seu ambiente, mas o bronzeado se
deve a um mecanismo biológico adaptativo de proteção que está desenhado
para responder à luz do sol com melanina (P. Malo). Por isso que um estudo
da conduta humana completo deve ser capaz de explicar tanto as variações
como os traços universais que observamos nela. O conteúdo específico e a
organização de cada cultura é um produto de uns mecanismos psicológicos
evolucionados e dos ambientes específicos aos que está exposto um grupo
humano – fenômeno ao que Leda Cosmides e John Tooby denominam de "cultura
evocada", para referir-se ao fato de que as condições sociais e econômicas
são uns inputs ambientais para uma psicologia evolucionada muito rica e
que, dessa maneira, evocam diferentes repertórios de condutas, forjando-se
assim diferentes culturas. Isto implica que a partir da ideia de "cultura
evocada", útil para entender algumas das formas de variação cultural, é
possível inferir que a cultura influi tanto no sentido de acentuar como de
rebaixar as tendências mais profundamente enraizadas na natureza humana.
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