A nova estética e seu papel na filosofia

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A nova ESTÉTICA e seu papel na FILOSOFIA A reconfiguração da Estética apoiada pelo avanço das ciências cognitivas apresenta um novo programa reflexivo, apto a auxiliar a reflexão filosófica em sua readaptação ao mundo semovente da realidade, após a morte da Metafísica

IMAGEM: SHUTTERSTOCK

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o longo da História, muitas atividades perderam validade teórica e prática, tornando-se com o tempo um registro de curiosidades, como é o caso da Alquimia, da Flogística ou do Mesmerismo. Estaria a Estética também destinada a uma triste e melancólica nota de rodapé na História da Arte? A encruzilhada que hoje se abre diante da Estética tornou-se decisiva. Ou a Estética abandona a tradição que compartilha com os fundamentos idealistas da Filosofia, para se transformar em uma reflexão sobre as experiências estéticas, ou se mantém como auxiliar teórica da reflexão filosófica, para justificar o império da razão sobre os fatos artísticos. Se, para a Arte contemporânea, o belo e o sublime da velha Estética perdem importância em favor da produção de experiências afetivas, a nova Estética também encontrou outros interesses epistemológicos que vão oferecer ao

pensamento organizado importantes alternativas reflexivas para a compreensão das transformações cognitivas, culturais e sociais por que passamos.

PHYSIS E NOMOS ENTRE OS PRÉ-SOCRÁTICOS

A principal atividade a que se dedicavam os sofistas e filósofos do século V a.C. consistia em conhecer as diferenças entre os conceitos de nomos (convenções culturais e juízo humano) e physis (mundo físico e natural). Os limites dessa divisão não os preocupavam apenas por seu caráter especulativo, mas porque essa oposição emergia sempre nas discussões mais importantes acerca da administração da cidade (polis): questões tais como a natureza da divisão social entre os habitantes da polis ou a arbitrariedade da convenção política, passível de ser alterada; questões sobre o comportamento humano e sua trágica fortuna diante do que seria natural (nascimento, morte, doença, prazer), www.portalcienciaevida.com.br •

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Marcos H. Camargo é mestre em Comunicação e Linguagens pela UTP, doutor em Artes Visuais pela Unicamp. Pós-doutor pela Escola de Comunicação da UFRJ. Professor do Campus de Curitiba II da Unespar, onde leciona Filosofia e Semiótica. Autor do livro Cognição estética: o complexo de Dante

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DESDE SÓCRATES E PLATÃO, A BUSCA PELA VERDADE PASSA A SER ENTENDIDA COMO A CONSTRUÇÃO DE UM MODELO METAFÍSICO AO QUAL O MUNDO CONCRETO DEVERIA SE ADEQUAR e o que poderiam almejar transformar em suas vidas, diante da convencionalidade dos costumes. O que pareceu aos sofistas uma traição, foi o desvio cometido por certos filósofos, a começar por Sócrates, ao abolir as diferenças características entre physis e nomos, para eleger o nomos como modelo padrão da physis. O socrático-platonismo passou a defender uma origem metafísica e eterna para a natureza e as convenções humanas, impondo a crença em uma ciência e moral transcendentais, constituintes de uma república ideal destinada a gerir os indivíduos e a própria natureza, segundo os critérios da verdade racional. “[A] physis é propriamente ‘natureza’; aquilo que desabrocha,

cresce e se expande fora dos limites da determinação exercida pelo nomos (a regra ética ou cultural), pela technè (o modo de fazer) ou pelo logos (a razão, a linguagem) dos homens. (...) A ideia de physis é, assim, a de um ‘além’ das representações ou das determinações puramente humanas”.1 Desde Sócrates e Platão, a busca pela verdade passa a ser entendida como a construção de um modelo metafísico (nomos) ao qual o mundo concreto (physis) deveria se adequar, reverberando no próprio território da convenção humana. Entendida como reflexo de leis universais provenientes de um mundo mais perfeito, a verda1

SODRÉ, 1994, pág. 61

de seria acessada pelo intelecto e sua lógica transformaria o mundo material e as convenções humanas à imagem e semelhança das ideias eternas – o nascimento da utopia. Quando Platão nega a realidade da physis, investe toda sua reflexão em favor do nomos, impondo uma hierarquia arbitrária, submetendo a experiência ao conceito, opondo o sensível ao inteligível, separando este mundo onde existem corpos e coisas de outro mundo ideal onde se encontram as verdades universais, acessíveis apenas pela racionalidade. “Uma boa maneira de compreender em que consiste a dualidade manifesta da Filosofia de Platão é o célebre texto da República,

A Estética ainda referenciada pela reflexão filosófica se encontra praticamente sem função, pois não pode mais dizer o que é a Arte 64 •

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conhecido como a ‘passagem da linha’. O que esse texto evidencia é que, para Platão, não pode haver verdadeiro conhecimento do sensível. O que corresponde ao domínio do sensível é apenas opinião – conjectura e crença –, e não saber, conhecimento, ciência. Só é possível um verdadeiro conhecimento do inteligível, das essências, das ideias”.2 Por isso, Platão funda a razão ocidental e o nosso modo de pensar, segundo o que seu discípulo Aristóteles irá desenvolver: os princípios lógicos da identidade, não contradição, terceiro excluído e causalidade. A influência platônica no pensamento ocidental reforçou a noção de que neste mundo empírico em que vivemos não há saber nem conhecimento verdadeiro: todas as coisas, inclusive nossos corpos materiais, não merecem qualquer atenção, nem dispõem de qualquer fidelidade. “Este mundo aqui, que em si mesmo não tem nenhum sentido, recebe a sua significação e o seu ser de outro mundo que o duplica, ou melhor, do qual este mundo aqui é apenas um sucedâneo enganador. (...) Talvez esta impressão de ter sido ‘duplicado’ constitua não apenas a estrutura da metafísica, mas ainda a ilusão filosófica por excelência”.3 Quando Platão hierarquizou a relação entre este mundo e seu duplo, subordinou moralmente o primeiro ao segundo. E a bem-aventurança platônica definiu a verdade que, por sua vez, representa a beleza ideal, pois a ninguém é dado o direito de desgostar da razão ou do bem. Com isso, dois milênios de pensamento ocidental se convencem da 2 3

MACHADO, 2009, pág. 41 ROSSET, 2008, págs. 57-58

EGIPTICISMO4 DAS FORMAS PLATÔNICAS

Platão defendia que o conhecimento seria uma recordação das verdades eternas que a alma contemplara

perversão das pulsões emocionais, da feiura das necessidades fisiológicas e da falsidade da percepção dos sentidos; como também aprendem a amar a universalidade da ideia, a “realidade” suprassensível e a beleza da intelecção – condenando a Arte (Estética) ao reino sombrio das falsas ilusões. Se os mundos metafísico e físico são incompatíveis; se a verdade e o bem provêm do mundo inteligível e se deterioram como falsidade no mundo transitório, a purificação do pensamento e do sentimento se torna uma condição imprescindível, já que qualquer elemento de afetividade ou subjetividade pode manchar uma teoria, uma definição, comprometendo a verdade, o bem e a beleza de uma ideia eterna. Assim, a Filosofia platônica alimentou o ódio à impureza, o preconceito contra a mestiçagem, a miscelânea, o hibridismo, o ecletismo, a heterogeneidade e a diversidade, em toda sua manifestação.

Para Platão, o conhecimento está na ideia. Arte só é conhecimento quando se coloca a serviço da verdade filosófica. Desse modo, o filósofo ateniense convenceu o Ocidente a amar a beleza da ordem cósmica, a sublime estrutura das equações matemáticas, o belo argumento de razão e a harmonia das formas ideais e abstratas. Segundo Platão, todo interesse humano deve se dirigir para o invisível, já que tudo o que vemos e sentimos aqui são imagens ilusórias de um falso mundo, onde o corpo humano se corrompe, não sem antes desviar nosso pensamento da verdade, com seu apelo às necessidades vitais. “Platão reserva um lugar para a beleza em sua filosofia: trata-se da beleza das formas ideais, das provas matemáticas e das deduções racionais. O conhecimento é a beleza e o bem, porque ele é conhecimento dessas verdades ideais que compreendem a verdadeira realidade das coisas. Sendo nosso mundo uma mera aparência ou aproximação das formas ideais (nossa justiça, uma cópia esmaecida da coisa real; nosso estado, uma pobre réplica do ideal), a arte é tudo que há de pior, pois se a poesia é uma droga performativa, então, a pintura e a escultura são meras cópias de cópias, tentativas de simular o mundo de modo indecifrável a partir de seu modelo”.5 4 Nietzsche define o “egipticismo” como o ódio próprio dos filósofos à noção de “devir” (evolução, transformação, diversidade). Tendência à fixidez, à atemporalidade, ao rigor. Faz referência a todo pensamento contrário ao movimento do mundo, como são a metafísica e os idealismos. 5 HERWITZ, 2010, pág. 19

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A ALIANÇA ENTRE A FILOSOFIA PLATÔNICA E A TEOLOGIA CRISTÃ VAI SUFOCAR QUALQUER REFLEXÃO QUE EVENTUALMENTE TORNASSE POSITIVA A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NESTE MUNDO OS PRESSUPOSTOS canônicos da Estética caducaram diante da velocidade com que os eventos emergem e submergem, impedindo a consolidação de uma norma – a Arte se independeu da velha Estética

Ao subordinar o mundo físico ao metafísico, Platão visa demonstrar que este mundo em que existimos é cópia bastarda do mundo incorruptível das ideias eternas. Sendo assim, a Arte se encontra entre as atividades mais perigosas a que o homem poderia se dedicar, de vez que ela produz obras que imitam as formas materiais transitórias, fazendo cópias de cópias bastardas (simulacros). Para Platão só há um modo de simular o mundo “real” da ideia, por meio da Arte: produzindo uma Arte que nos aproxime do mundo metafísico e nos auxilie a entendê-lo – esta é a arte da Lógica, cujas ferramentas fundamentais são as ciências da Gramática e da Matemática. Entendidas como as únicas mediadoras do pensamento humano entre o mundo ideal e o material, a Gramática e a Matemática nos entregam a fração de razão, com a qual podemos superar, até certo ponto, a vergonhosa encarnação humana. Matemática e Gramática proporcionam, portanto, exercícios

mentais que alargam nosso modo inteligível de pensar o mundo ideal, relacionando-o de maneira verossímil aos simulacros transitórios que habitam esta cópia corrompida em que temporariamente nos demoramos. Para Gilles Deleuze (1925-1995), segundo Roberto Machado, é com Platão que surge a imagem do filósofo como o ser das ascensões, como aquele que sai da caverna, se eleva e se purifica na medida em que se eleva. “Segundo essa orientação, a operação filosófica é ascensão, conversão, movimento de volta ao princípio do alto, que é princípio do Bem e da Verdade, princípio metafísico e epistemológico”.6 A aliança entre a Filosofia platônica (Metafísica) e a Teologia cristã (Patrística, Escolástica) vai sufocar definitivamente qualquer reflexão que eventualmente tornasse positiva a experiência estética neste mundo. “[A] História da Filosofia é escrita por pessoas que são nitidamente juízes 6

MACHADO, 2009, pág. 34

A Estética na Filosofia Estaria a Estética destinada a uma melancólica nota de rodapé na História da Arte? Hoje, se abre para a Estética uma encruzilhada decisiva: ou ela reafirma seus antigos vínculos com a Filosofia ou se transforma em uma nova reflexão sobre as experiências estéticas (abolindo os limites entre o que é ou não é arte). Por dois milênios, a Filosofia impôs uma hierarquia arbitrária sobrepondo o intelectual (nomos) ao sensível (physis), submetendo a experiência ao conceito, opondo o corpo à mente, alimentando a discórdia entre dois mundos permanentemente

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apartados. A Estética moderna nasceu humanista, no século XVIII, emprestando à sensibilidade humana mais importância na construção do conhecimento, abandonando as crenças racionalistas sobre um suposto vínculo do pensamento com o mundo das ideias universais. Atualmente, a Filosofia vem admitindo o necessário intercâmbio com a Estética para promover as condições objetivas de formação dos conceitos, pois se tornou impossível negar o movimento inconstante do mundo em favor do rigor das teses abstratas.

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e partes interessadas. A tradição platônica, intensamente retransmitida pelo cristianismo, domina o Ocidente há séculos. Tudo o que não entra nessa ordem é minimizado, negligenciado, caricaturado, esquecido. Demócrito, como figura tutelar do materialismo antigo, é relegado pelos idealistas que podem então fazer crer na onipotência de Platão e de seu clero”.7 Assim se passaram os mil anos do medievo europeu, longo período histórico em que a preocupação da Filosofia era oferecer um ordenamento racional às filigranas da fé cristã, reconhecendo a origem da verdade na revelação divina do cristianismo. Somente com a modernidade, o pensamento ocidental começa a enxergar frestas luminosas por trás das pesadas cortinas que a Metafísica fez encerrar o pensamento filosófico. O humanismo prospera.

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BAUMGARTEN E KANT

Em meados do século XVIII, Alexander Baumgarten (17141762) realiza um movimento típico da era moderna, com o objetivo de retirar a sensibilidade do domínio exclusivo da beleza divina, até então reconhecida como a imagem sensível da razão e da verdade eterna. “Esse termo (Estética) é adotado a partir da palavra grega ‘aísthesis’, como um termo cunhado por Alexander Gottlieb Baumgarten em seu livro Estética (Aesthetica) (1750). ‘Aísthesis’ traz o significado de ‘faculdade de percepção pelos sentidos’. Para Baumgarten, a estética era um estudo da sensi-

Além de bifurcar o caminho do sensível e do inteligível, do bem e do mal, da verdade e da falsidade, o dualismo platônico também foi responsável por alimentar o mito da pureza

bilidade como um tipo específico de cognição, a cognição das coisas particulares, em vez de conceitos abstratos”. 8 Esse pesquisador alemão pensa a primeira Estética moderna como uma disciplina técnica capaz de produzir conhecimentos “análogos aos da razão”, constituídos de percepções, analogias e metáforas, em vez de conceitos. Com o impacto dessa Estética moderna, as aparências artísticas “abandonam o status de meras ilusões ou signos ‘fracos’ em relação a representações do intelecto – consideradas mais nítidas e, portanto, mais confiáveis – para almejar o caráter de manifestações de verdades e valores essenciais”.9 O “outro” da razão – o analogon rationis, de Baumgarten – não pode ser proferido pela lógica linguística ou matemática, porque produz e comunica um pensamento que, semanticamente, não apresenta sentido. O erro de René Descartes (1596-1650) – sua excessiva crença na razão 8

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ONFRAY, 2008, pág. 51

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HERWITZ, 2010, pág. 29 SUAREZ, 2010, pág. 132

humana – já vinha sendo exposto por sensualistas modernos, como John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776). A Estética que surge naquele século participa da rejeição dos empiristas britânicos ao racionalismo cartesiano, tanto quanto apoia sua ênfase na experiência dos sentidos como a origem de todo conhecimento e o princípio da ciência, a partir da percepção humana. “A sensibilidade é libertada da negatividade e avaliada como uma fonte básica de confi rmação empírica e, desse modo, de ganho científico”.10 Como um conjunto organizado (e a organizar-se) de conhecimentos perceptivos, a Estética nasce humanista, na medida em que empresta ao corpo do homem considerável importância na constituição do conhecimento, afastando-se das crenças racionalistas acerca de um suposto vínculo do pensamento com o plano transcendente das ideias universais. “É precisamente contra tal modelo que se constitui a primeira 10

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O PREDOMÍNIO DO PLATONISMO CRISTÃO NAS FILOSOFIAS DA ARTE COMPELIA A UM JULGAMENTO DO GOSTO PELOS CRITÉRIOS IDEALISTAS DA BELEZA, ATADA À VERDADE E À RAZÃO quando Immanuel Kant (1724-1804) publica sua terceira crítica (do Juízo de Gosto), alterando o que se entendia por Estética (Arte) até aquele período. Para o fi lósofo de Köningsberg, “existe sempre a razão, mas ela é ou pura, ou prática. Dois modos que dão acesso a dois mundos. Mas nem um nem outro são válidos para um terceiro mundo: o da arte, onde as leis da natureza, assim como os preceitos da Razão (ou moral) não podem ser aplicados”.12 O platonismo, que vai embasar a Teologia cristã logo em seus primórdios, contribuiu muito para exacerbar o ascetismo e a aversão ao corpo

estética, a Aesthetica de Baumgarten. Porque o advento desta disciplina nova, resolutamente moderna, supõe uma retração do ponto de vista divino em proveito do homem...”.11 Porém, até o século XVIII, o predomínio do platonismo cristão nas filosofias da Arte compelia a um julgamento do gosto pelos critérios idealistas da beleza, atada à verdade e à razão. À Filosofia da Arte cumpria erigir proposições universais que visavam a colocar a Arte a serviço da evocação do sublime. Era sua função insistir em padrões universais de critério do gosto e beleza, especialmente para distinguir e classificar a arte modelar (erudita), em oposição às artes populares e não ocidentais. Daí a insistência milenar em favor da mimesis como metacódigo da Arte ocidental. Como teoria hegemônica da Arte ocidental, desde a Antiguidade clássica até a Idade Média e a Era Moderna, a mimesis vigorou praticamente sem oposições fi losóficas, até o século XVIII,

NIETZSCHE E DIONISO

Seria preciso ultrapassar o século kantiano, superar a Estética neoplatônica de G. W. Friedrich Hegel (1770-1831), para ver avançar o pensamento estético. Friedrich Nietzsche (1844-1900) “introduz desde logo na estética dois princípios a que dá o nome de dois deuses gregos. Apolo e Dioniso encarnam, com efeito, duas ‘pulsões artísticas da natureza’”.13 Essas pulsões se manifestam na humanidade por meio de estados psicofísicos. A pulsão apolínea conduz à medida, à consciência e à contemplação serena da razão, enquanto que a pulsão dionisíaca conduz a pessoa à embriaguez das sensações e celebra selvaticamente sua reconciliação com a natureza. Entende Nietzsche que o progresso da Arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, de modo parecido com a dualidade dos sexos, em lutas contínuas e com reconciliações somente periódicas. “A natureza [nietzschiana], 12

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FERRY, 2003, pág. 47

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em sua essência, é contradição e dor, porque é poder de criação e de metamorfose”.14 Quando incorpora o selvático e o natural nas manifestações de seus eventos, a Estética oitocentista vai progressivamente se afastando da tradição filosófica, gerando uma importante questão: despejada de sua humilde estrebaria que ocupava sob o castelo portentoso da Filosofia geral, destituída do poder normalizador da Arte, a Estética ainda teria alguma importância no desenvolvimento do conhecimento humano? Com o advento dos meios de comunicação audiovisuais, o século XX apresenta o desafio cognitivo da produção, do registro e da comunicação das linguagens imagética, sonora e cinética, nos obrigando a pensar sobre o tipo de conhecimento produzido por seus textos não verbais, híbridos e polissêmicos. Imagens, sons e movimentos, simultânea ou isoladamente, criam e representam ideias e conceitos, mas eles comunicam muito mais do que isso. Suas formas sensíveis não acionam em nós apenas significados abstratos, mas produzem também sensações, emoções, estranhamentos e afetos inconcebíveis. Se a Lógica desenvolve representações do conhecimento por meio de signos verbais e matemáticos, poderia a Estética produzir outros conhecimentos, a partir de mensagens audiovisuais, híbridas, constituídas de afecções e signos não verbais? 14

Idem, 1986, pág. 69

FORMA CONTEMPORÂNEA DA FILOSOFIA

Uma das funções da nova Estética é oferecer à Filosofia o imprescindível elo com o mundo real, rompido há dois milênios pelo idealismo metafísico da tradição platônico-cartesiana. A Estética contemporânea proporciona ao pensamento fi losófico o conhecimento sensorial gerado pelos “sinais estéticos”15 percebidos pela afetividade de nosso corpo. O mapa (as representações lógico-semióticas) deve ser constantemente criticado com o auxílio da percepção dos sintomas provenientes do território (mundo real), para garantir uma boa interpretação. O ataque dos “sinais estéticos” na direção de nossos sentidos físicos nos permite comparar a fração de real que podemos apreender, com o mapa de nossas representações semióticas (linguísticas, matemáticas, miméticas, etc.). Para mais informações sobre a origem dos “sinais estéticos” consultar CAMARGO, Marcos H. Cognição estética: o complexo de Dante, Editora Annablume, São Paulo, 2013.

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Immanuel Kant percebe que a Estética (Arte) compreende um gênero de conhecimento autônomo

Quem se dedica a melhorar os mapas, como é o caso dos pensadores e cientistas, não pode confiar neles. “Os mapas foram construídos como imagens e guias da realidade, e isso, presumivelmente, também ocorreu com a razão. Mas os mapas, como a razão, contêm idealizações. (...) O viajante usa o mapa para descobrir seu caminho, mas também o corrige à medida que procede, eliminando velhas idealizações e acrescentando novas. Utilizar [apenas] o mapa, não importa o que aconteça, logo o colocará em dificuldades”.16 As sensações produzidas pela percepção humana não são excrescências fisiológicas desprezíveis ou ilusões sensoriais, como ainda pensa o senso comum platônico e cartesiano. “O longo domínio da tradição platônica, fortalecida pelos séculos recentes de cartesianismo e de idealismo, cegou-nos para um fato crucial e óbvio para grande parte do pensamento antigo e não ocidental: como vivemos, pensamos e agimos por meio de nossos corpos, o estudo, o cuidado e o aprimoramento deles deveria estar no fulcro da Filosofia, sobretudo quando se concebe a Filosofia (como antigamente) como modo distinto de vida, um cuidado crítico e disciplinado do eu, que envolve autoconhecimento e autocultivo”.17 Hoje padecemos de uma “saturação” cognitiva, em função dos excessos cometidos pelo pensamento abstrato e transcendental, de modo que uma revolução sensualista caracterizada por uma nova Estética abre espaço para a elaboração de um pensamento mais 16 17

FEYERABEND, 2007, pág. 301 SHUSTERMAN, 2008, pág. 44

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LINGUAGENS COMO A IMAGÉTICA, MUSICAL, CINÉTICA, DENTRE OUTRAS, GERAM INFORMAÇÕES CAPAZES DE TRANSMITIR E REGISTRAR CONHECIMENTOS VITAIS PARA A SOCIEDADE concreto. Com outros conhecimentos (e outros pensamentos) gerados a partir da atuação de linguagens e sistemas simbólicos não verbais, tornou-se disponível toda cognição estética derivada de percepções e experiências sensoriais que constituem vasta soma de conhecimentos eficientes acerca do mundo. Quando a Filosofia se vê como uma reflexão sobre o conhecimento humano, precisa deixar de se traduzir apenas por palavras e números. O conhecimento humano tem outras faces que não se configuram por meio da Gramática ou da Matemática. Linguagens como a imagética, musical, cinética, dentre outras, geram informações capazes de transmitir e registrar conhecimentos vitais para a sociedade humana. A afetividade do indivíduo em contato com o mundo também é outro recurso cognitivo indispensável à busca pelo conhecimento. A Filosofia deve se impor o desafio de também pensar sem palavras, por meio de outros signos e pela experiência de saborear o real. Fazendo isso, a Filosofia nos brindaria com novos conhecimen-

Bagagem histórica da Filosofia Contemporânea Apesar de o século XIX ter dado início a uma “materialização” do pensamento filosófico, com nomes como Friedrich Nietzsche, Charles Darwin, Karl Marx e Sigmund Freud, o idealismo neoplatônico e cartesiano resistiu até meados do século XX, quando, após a Segunda Grande Guerra, cedeu espaço epistemológico para o relativismo e o perspectivismo que agora caracterizam a Filosofia contemporânea.

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tos, desenvolvendo pensamentos mais originais e criativos, do que os surrados conceitos abstratos sobre tudo. Segundo Roberto Machado, quando Gilles Deleuze diz que o filósofo deve ser um criador e não apenas um reflexivo, se insurge contra essa tendência e “reivindica para a Filosofia a produção de conhecimento ou, mais propriamente, a criação de pensamento, como acontece com as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não”.18 A Filosofia contemporânea já entendeu que a função do fi lósofo não é mais justificar o real, submeter o mundo ao pensamento, nem criar um novo homem. Agora é preciso inventar conceitos, tal como um artista inventa sua obra, de modo a dar ao homem variadas opções de imagem do real, algo novo com que possamos vislumbrar outras facetas das coisas. Para tanto, é preciso que a Filosofia não se esqueça do papel determinante desempenhado pelo verbo. Filosofar ingenuamente é imaginar que a linguagem não tem papel da formulação do pensamento. Ao considerar a influência decisiva da linguagem sobre a formação dos conceitos devemos reconhecer a prevalência da forma sobre a função, a influência do meio de comunicação sobre a mensagem e a dependência da forma simbólica para a leitura da representação. “A Arte não é mais para ele (Duchamp)19 uma questão de conteúdo (formas, cores, MACHADO, 2009, págs. 12-13 Marcel Duchamp (1887-1968) pintor, escultor e poeta francês, um dos precursores da arte conceitual, foi o inventor dos ready made.

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Herbert Marshall McLuhan (1911-1980) destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense. Conhecido por vislumbrar a internet quase 30 anos antes de ser inventada. 21 CAUQUELIN, 2005-B, pág. 93 20

A formulação e elaboração do pensamento não é privilégio apenas da Filosofia: cientistas, artistas, empreendedores, aventureiros são, antes de qualquer coisa, pensadores

dos conceitos, visto que se tornou impossível negar o movimento inconstante do mundo para se ater apenas ao rigor das teses abstratas. A imagem movediça do real embaralha as velhas retinas dos sóbrios pensadores, que reafirmam sua rejeição ao mundo, meditando sobre essências universais como anteparos marmóreos, brancos e frios, a proteger suas múmias inteligíveis do turbilhão da vida. Hoje, a velha especulação já perdeu sua dignidade ritual, “tornou-se ridículo o cerimonial e a atitude solene daquele que reflete; não se poderia mais suportar um sábio da velha escola. Pensamos muito rápido, e a caminho, em plena marcha, em meio a negócios de toda sorte, mesmo quando se trata das coisas mais graves...”.22 22

NIETZSCHE, 1976, pág. 43

REFERÊNCIAS

visões, interpretações da realidade, maneira ou estilo), mas de continente. É assim que Marshall McLuhan20 dirá, cinquenta anos mais tarde: ‘o meio é a mensagem’, apagando a distinção clássica entre mensagem (conteúdo intencional) e canal de comunicação (neutro e objetivo) para estabelecer a unicidade da comunicação através do meio”.21 Quando entendemos que a forma e o conteúdo partilham da mesma importância epistemológica, descemos ao mundo empírico das coisas que sensibilizam a percepção, antes de trazer à mente qualquer conceito. Aceitar a influência da forma sobre o conteúdo é admitir a proeminência do corpo das letras e das coisas, sobre a abstração do pensamento. A Filosofia que emerge daí não pode ter a pretensão da universalidade do cogito cartesiano, o espírito absoluto hegeliano ou o sentido da unidade platônica, pois a realidade da forma nega ao conteúdo abstrato qualquer vínculo com a eternidade – as formas simbólicas passam a valer mais por afetar os sentidos do que por abstrair a mente – mais poesia e menos silogismo. Quando abandonamos as ideias extáticas que flutuam na abóboda metafísica do pensamento filosófico, abdicamos do modelo idealista de mundo em favor de um real empírico, transitório, insuficiente. O pensamento filosófico vem admitindo o necessário ingresso dos elementos da Estética contemporânea nas condições objetivas de formação

CAUQUELIN, A. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _____ . Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005-B FERRY, L. Homo aestheticus: a invenção do gosto na era democrática. Coimbra: Almedina, 2003. FEYERABEND, P. Contra o método. São Paulo: Editora UNESP, 2007. HERWITZ, D. Estética: conceitos-chave em Filosofia. Porto Alegre: Armed, 2010. LACOSTE, J. A Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. MACHADO, R. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. NIETZSCHE, F. A gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1976. ONFRAY, M. Contra-história da Filosofia 1: as sabedorias antigas. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ROSSET, C. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008. SODRE, M. Jogos extremos do espírito. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. SHUSTERMAN, R. Consciência corporal. São Paulo: Realizações Editora, 2008. SUAREZ. R. Nietzsche: a arte em o nascimento da tragédia. In: HADDOCKLOBO, R. Os filósofos e a Arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

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