A obra de arte entre a criação e a interpretação

October 12, 2017 | Autor: Fabio Fonseca | Categoria: Arte Contemporanea, Artes, Arte, História da arte, Historia Da Arte, Arte Contemporânea Brasileira
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A OBRA DE ARTE ENTRE A CRIAÇÃO E A INTERPRETAÇÃO

Fabio Fonseca - UnB1 Resumo: Esse texto tem por objetivo analisar a relação entre a criação e a interpretação da obra de arte. Procura-se entender a obra no processo de percepção e do discurso construído a partir do que é imanente a ela. Com a finalidade de estabelecer esse diálogo entre a prática e a teoria dentro do ambiente acadêmico será analisada a obra da artista Renata Rinaldi, presente na exposição “Diálogos, Inverossímeis”, realizada no Espaço Piloto, do Instituto de Artes, da Universidade de Brasília, em 2014. Serão considerados os aspectos formais e figurativos da obra, mas também sua estrutura, no que diz respeito à sua materialidade e as marcas deixadas pela artista na obra. Palavras-chave: arte contemporânea, teoria e história da arte, desenho. Résumé : Ce texte vise à analyser la relation entre la création et l'interprétation de l'œuvre d’art. Il cherche à comprendre l’ouvre dans le processus de perception et de discours construit à partir de ce qui est immanente. Afin d'établir ce dialogue entre la pratique et la théorie dans le milieu universitaire será analysé l’ouvre de l'artiste Renata Rinaldi, présent à l'exposition «Diálogos, Inverossímeis», que a eu lieu dans l’Espaço Piloto, de l'Instituto de Artes, de l'Universidade de Brasília en 2014. Des aspects formels et figuratives de l'œuvre seront considérées, mais aussi sa structure, dans ce que concerne à sa matérialité et les marques laissées par l'artiste dans l’ouvre. Mots-clés: L’art contemporaine, théorie et histoire d’art, dessin.

O desenho a e pintura, a obra entre polaridades Na exposição coletiva “Diálogos, Inverossímeis”, realizada no Espaço Piloto, do Instituto de Artes (IdA), da Universidade de Brasília (UnB), em 2014, com as obras dos artistas André Barroso, Clarissa Paiva, David Almeida, Débora Amor e Renata Rinaldi, entre as obras expostas um conjunto de quatro desenhos, compondo um painel horizontal, chamou a atenção não apenas pelas características formais e pelo conteúdo, mas principalmente pelos aspectos plásticos da obra. A exposição foi selecionada e organizada pelo Núcleo de curadoria do Espaço Piloto. O local é utilizado por estudantes da UnB como forma de divulgação de suas obras e, nesse sentido, de expor as experimentações desenvolvidas no âmbito acadêmico. Nesse texto procura-se analisar o painel com o conjunto de desenhos mencionados, 1

Fabio Fonseca, Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Teoria e História da Arte, orientadora, professora Dra. Maria Eurydice de Barros Ribeiro.

 

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produzidos pela artista Renata Rinaldi. A análise deve levar em consideração a pluralidade de questões que podem ser feitas partindo da própria obra até suas condições de produção e inserção no espaço artístico. A fundamentação teórica do texto se apoia em obras de Jean-Marie Schaeffer sobre a noção de obra de arte, de Algirdas Julien Greimas sobre semiótica figurativa e semiótica plástica e George Didi-Huberman sobre imagem e sobrevivência. A obra e o sentido de obra de arte Trata-se de um conjunto de quatro desenhos em papéis com dimensões 65 x 50 cm, justapostos e orientados na vertical (fig. 01). Produzidos em crayon aquarelado e tinta acrílica, os desenhos figuram uma lebre e um lobo. Cada um dos animais ocupa duas folhas justapostas, que são separadas e intercaladas na montagem. Representados em perfil, monocromaticamente, têm os membros dianteiros em uma folha e os traseiros em outra. Da esquerda para a direita está posicionado inicialmente o desenho com a parte dianteira da lebre, em seguida a dianteira do lobo, a traseira da lebre e, por fim, à direita, a traseira do lobo. Expostos sem moldura, pendurados por clipes na parede, os desenhos contrastavam com pinturas de grandes dimensões e pluralidade cromática. Todavia a síntese apresentada pela artista é provocadora, parece estabelecer não somente uma sensação de paradoxo com outras obras da exposição, mas uma polarização a partir de sua própria estrutura, técnica, formal, temática, plástica. A obra parece estabelecer uma síntese entre categorias que se opõem e se complementam em um jogo tensivo, entre a obra e o espaço, entre papel e pigmento, entre traço e mancha, entre forma e conteúdo, entre construção e desconstrução, entre tradição e transformação.

 

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figura 01: Renata Rinaldi sem título, 2014 crayon e acrílica sobre papel, 65 x 200 cm foto da artista

A representação de animais e vegetais se enraíza, por um sentido, na tradição das ilustrações científicas, próxima dos limites do que pode-se entender como objeto artístico, ou ao menos, do que se entende atualmente como arte, enquanto atuante no meio artístico. A noção de obra de arte foi apresentada por Jean-Marie Schaeffer a partir de seis aspectos semânticos que interferem nos seus usos, os limites e fragilidades de cada uma delas. O autor não se propõe a encerrar as noções dentro desses limites, mas procurar entender a complexa sedimentação histórica dos sentidos atribuídos a elas. (Schaeffer, 2004, p. 58) Segundo o autor, pode ser utilizada inicialmente para caracterizar classes de objetos, o que distingue, por exemplo, um quadro de um mapa topográfico. Esse uso supõe a preexistência de uma classe de referência aceita, porém não define por que nem como essas classes de objetos foram tratadas como classes de objetos de arte, também não explica o que há de comum entre elas que possa definir uma obra de arte. (Schaeffer, 2004, pp. 58 - 59) Outro sentido está relacionado à gênese do objeto. Em um primeiro nível entendendo a obra como um produto humano, e não um objeto ou evento natural, o que não a diferencia de outras criações humanas. Para essa distinção foi atribuída a existência de uma “faculdade específica”, o “uso dessas faculdades”, “a existência de uma relação específica entre o produto e o criador” e o emprego de uma “intenção

 

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específica”, estética e artística do criador. Porém, nem todas as obras que são reconhecidas historicamente como obras de arte, provêm dessa intenção artística, como as máscaras ritualísticas, os afrescos pintados nas igrejas ou as ilustrações científicas dos viajantes. A intenção estética, nesses casos, está relacionada ao bom funcionamento do objeto segundo ao que ele se propõe. Porém essa condição não impede que tais objetos recebam, na atualidade, o estatuto de objeto artístico, ou que sejam estudados no âmbito da arte. (Schaeffer, 2004, pp. 59 - 62) Um terceiro sentido da noção de obra de arte pode ser concebido em uma perspectiva semiótica, um objeto que possui uma “estrutura intencional”, como o que está “a propósito” de alguma coisa. Dentro dessa noção, para se entender a diferença entre obras de arte e outros artefatos, deve-se explicar um “funcionamento semiótico específico” da arte, que nem sempre está ligado à intenção da obra, mas é resultado da atenção estética. (Schaeffer, 2004, pp. 62 - 63) Ainda de acordo com Schaeffer, a obra de arte pode ser definida pela função específica que ela desempenha, ao ocorrer a função estética. Está ligada à intenção receptiva, é uma obra de arte entendida como tal a partir de uma relação cognitiva. Segundo essa noção o funcionamento estético implica uma separação parcial do componente artístico em relação às outras funções. (Schaeffer, 2004, pp. 63 - 64) Uma quinta noção de obra de arte apontada pelo autor compreende o componente institucional. É necessário que para ser um objeto de arte, deve ser aceito pelas instituições artísticas. Nesse sentido o museu constitui a própria identidade da abra, muito além de apenas fazer parte de sua significação. (Schaeffer, 2004, pp. 66 69) E finalmente a expressão pode ser usada em uma perspectiva normativa. De inclusão ou exclusão de objetos específicos, seja ao negar a condição artística de uma pintura, uma escultura, um poema, ou considerar um objeto utilitário específico como “uma (verdadeira) obra de arte”, no sentido de reconhecer que se trata de um objeto que atende melhor sua função do que outros pertencentes à sua categoria. Quando há negação, no entanto, indica que esse objeto faz “parte de uma classe de objetos que podem ser candidatos à avaliação artística”, do ponto de vista da gênese, em um  

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sentido semiótico, genérico ou institucional, que reivindicam a condição de obra de arte, que se propõe a uma avaliação artística. Essa definição ligada à avaliação do objeto procura “remodelar a extensão da noção de obra de arte em virtude de preferências”, e mesmo que a avaliação seja polêmica, “a arte é um fato intrinsecamente avaliativo [...] a obra cria uma ‘pretensão à validade’”. Trata-se, nesse caso, de separar “a abordagem cognitiva da arte e a experiência estética das obras”, de distinguir “a questão de saber se um objeto é uma obra de arte”, da atribuição de um valor à obra, seja ele positivo ou negativo. (Schaeffer, 2004, pp. 70 72) A luz e o espaço A partir da análise da obra, das considerações sobre sua execução, os materiais utilizados, as técnicas empregadas, a forma de utilização dessas técnicas, os resultados plásticos e formais obtidos, os conteúdos representados, procura-se pensar as relações cognitivas que envolvem o ato de observar uma obra específica. Ou seria melhor dizer, percebê-la como um todo, a partir das relações sensoriais estabelecidas com a obra, das relações do corpo com a obra e com o próprio espaço expositivo. Como resultado de uma convocatória para o uso do espaço, a exposição “Diálogos, Inverossímeis”, teve, pela condição de submissão das obras, a procura de uma validade, de um reconhecimento, pleiteou a condição de obra de arte, sujeita a uma recusa; e uma vez aceita, uma vez reconhecida essa condição ao ser legitimada por uma instituição artística, sujeita a um julgamento estético público. Esse julgamento parte fundamentalmente da obra, mas também da relação estabelecida entre as obras presentes na exposição coletiva, das relações entre as obras e o espaço da exposição e do deslocamento de cada observador por esse espaço na medida em que reconhece ali a condição de ter contato com obras de arte. O painel estava exposto no fundo da galeria, na parede oposta a uma grande janela que permite a entrada de luz durante o dia, incidindo frontalmente na superfície  

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da obra. A reflexão do papel e da tinta acrílica iridescente, aplicada em áreas sobrepostas ao desenho em crayon, realçou o contraste entre o material fosco e monocromático, entre o tratamento linear, o traço definindo uma figuração, e a pincelada aplicada em aguadas que desmancham partes dessa figuração, dessa linearidade, da tinta que reflete cores diversas, aplicada sobre o pigmento do crayon e sobre o branco do papel. Ao intercalar as figuras representadas, provoca um ritmo na transição entre as cores conforme o olhar percorre os desenhos. Uma obra que apresenta um conjunto intrincado de polaridades. Para definir essa dinâmica de polaridades pode-se recorrer ao conceito desenvolvido por Georges Didi-Huberman a partir do pensamento de Aby Warburg, que procura entender a dinâmica de coisas que se desenvolvem como “nós entrelaçados”, como “uma estrutura polarizada, híbrida”, uma “polaridade do símbolo”, a confrontação dialética de oposições a partir de sua própria estrutura, que possui uma heterogeneidade em si, o conflito entre essas oposições. Tudo isso acompanhado das relações corporais do sujeito (artista ou espectador) com a obra. (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 160 - 165) A matéria e o gesto Para Greimas a análise da estrutura plástica de uma obra, deve reconhecer os “efeitos de sentido” provocados por ela, comparar e opor esses efeitos uns aos outros, e tentar elaborar um “sistema de significados paralelo e coextensivo” ao sistema de símbolos plásticos que se procura descrever. Deve haver o reconhecimento de uma relação lógica entre elementos que pertenceriam a “classes” diferentes. (Greimas, 2004, pp. 92 - 93). Ou seja, é procurar entender nos desenhos em que medida o uso de um determinado material como o crayon, um pigmento fosco, possui uma correlação com a forma linear que define o contorno das figuras; e outro material como a tinta acrílica, reflexiva, possui uma correlação com as pinceladas aguadas que cobrem áreas e desmancham o contorno das figuras. É procurar entender em que medida níveis diferentes se complementam no processo de percepção da obra.

 

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Para o autor essas associações das categorias plásticas ligadas ao dispositivo topológico, podem ser comparadas às categorias gestuais e também às articulações dos conteúdos. (Greimas, 2004, p. 93). O que corresponde a estabelecer a relação entre o uso da superfície, a localização, as condições de contiguidade e sobreposição, com as orientações dos gestos, dos traços, e com a natureza dos conteúdos representados. Corresponde a analisar as relações ora de sobreposição, ora de contiguidade entre o pigmento do crayon, o da tinta acrílica e o do próprio papel, branco, na medida em que se faz presente na obra não apenas como suporte, mas como elemento plástico. Entender como é feito o uso do material, como a artista constrói linhas e formas, como a artista usa esse material enquanto técnica; é pensar como o uso do crayon pela artista, por meio de determinadas linhas, expressa um determinado conteúdo. O observador e a obra O reconhecimento dos desenhos como uma obra de arte por parte de uma instituição, ao integrá-los em uma mostra coletiva, compreende entender que podem ser pensados segundo a categoria semântica proposta por Schaeffer que permite entender a noção de obra de arte ligada a uma função estética, de característica receptiva, em uma relação cognitiva. É preciso pensar, não se o espectador a reconhece como tal, mas no quanto identifica nelas seu componente artístico, no quanto identifica seu valor enquanto objeto de arte. A sensação de paradoxo que um espectador possa sentir diante da simplicidade da obra e de sua apresentação, estria diretamente conectada com a percepção desses desenhos em uma galeria de arte, junto com as outras obras presentes. Segundo Didi-Huberman essa sensação de paradoxo, presente com frequência ao se deparar com certas obras de arte, pode ser deixado de lado, mas também pode deixar o espectador insatisfeito. E levá-lo a pensar no que a imagem suscita no indivíduo ao deixar uma lacuna a ser preenchida. No que a imagem provoca no sujeito, pensado como abertura de possibilidades, como rasgadura, não como fechamento. (DIDI-HUBERMAN, 2013, pp. 9 - 15)  

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Diante desse caráter lacunar deixado pela obra é necessário ir adiante daquilo que pode ser reconhecido e nomeado. Para Didi-Huberman, se consiste em uma etapa dialética, ao invés de procurar apreender a imagem, é preciso se deixar ser apreendido por ela, o que quer dizer: se “desprender de seu saber sobre ela”. É preciso retornar ao ponto de partida, “aquém do visível representado”. Se voltar para o que a obra “apresenta”. (Didi-Huberman, 2013, p. 24). Ao analisar os desenhos, portanto, é preciso pensar na crueza dos papéis pendurados na parede pelos clipes, objetos estandardizados compostos de uma pinça preta e duas hastes metálicas reflexivas, assim como o papel produzido em série, que carrega na margem a marca d’água do fabricante. Diferente de uma tela fixada sobre um tabuleiro de madeira, que recebeu inicialmente um tratamento, uma base, para então o artista trabalhar sobre essa superfície. Que recebeu uma moldura, feita especificamente para o quadro após ter sido finalizado. É preciso pensar no que a aridez da obra provoca no espectador que entra em uma galeria de arte e procura reconhecer o “componente artístico” das obras expostas, que estabelece uma relação com a obra a partir de sua função estética, por serem objetos que já tiveram reconhecida sua condição de obra de arte. A aridez rigorosa e mecânica do papel, todavia, contrasta com o gesto da artista, com as marcas deixadas sobre sua superfície, com o traço seguro que define as figuras, com a articulação precisa entre luz e sombra na própria figura, com a tinta iridescente que, pelo brilho, evoca uma preciosidade. Contrasta com as áreas da tinta aguada que dissolve o pigmento aquarelado do crayon e desmancha o contorno das figuras, mescla a aguada com o brilho da tinta e com a aridez branca e seca do suporte. O que a materialidade da obra como um todo provoca, não se dissocia da forma nem do conteúdo, ao contrário, atuam se complementando entre si, promovendo um equilíbrio entre os diferentes níveis, em uma direção transversal ao equilíbrio tensivo estabelecido pelas polaridades, pelas oposições dentro de cada nível. Logo, pensar os conteúdos expressados pelos desenhos, parte da associação entre o que está figurado, o que é possível ser reconhecido, e como está figurado, do ponto de vista gestual, topológico, técnico, material. Os animais estão representados  

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em movimento, de perfil, a lebre em azul, o lobo em uma tonalidade de marrom tendendo a um metálico dourado. Seus corpos ocupam a parte superior da superfície. A lebre, como animal veloz tem os membros estendidos para frente e para trás do corpo, ocupando apenas a parte superior da superfície, com um espaço vazio abaixo de si. O lobo ocupa uma área maior acima e parte da superfície abaixo com as pernas, porém sem tocar o limite inferior da folha. Vistos de perfil, o movimento dos animais é apresentado em um deslocamento da direita para a esquerda, contrário ao sentido da leitura ocidental. Para Greimas, o processo de reconhecimento do figurado está associado ao espectador. A imitação da natureza em uma superfície plana consiste em uma redução das qualidades naturais. Percebemos o mundo pelos sentidos, percebemos a extensão da profundidade e dos volumes e a apresentação planar do que compõe esse mundo é uma transposição. Podem ser identificáveis, mas não aceitos como “objetos do mundo”. Em alguns casos o reconhecimento de formais naturais pode se dar em maior ou menor grau, conforme as condições culturais do espectador. Mesmo em casos de formas que não figuram nada do mundo natural, como as chamadas “pinturas abstratas”, mas que sugerem algum reconhecimento no observador a partir da configuração percebida. (Greimas, 2004, pp. 78 - 81). No caso dos desenhos analisados não há a ambiguidade, mas ainda assim, o reconhecimento do mundo natural, da lebre e do lobo, se dá por parte do observador na medida em que recorre a seus próprios conteúdos para estabelecer o referencial com a realidade. A artista, ao transpor o mundo vivido para sua obra, operou uma série de escolhas, desde a própria escolha do tema, às questões que definem a maneira de representá-lo, como o material, a técnica para usar esse material, os gestos ligados a esse uso, a forma obtida com os gestos. Essas marcas deixadas pela artista na superfície do papel se constituem como um elemento significante que operam tanto no nível figurativo como no nível plástico, e o reconhecimento de suas qualidades é uma construção de quem a observa, é o resultado de um processo, de um acontecimento.

 

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Porém essa representação de um objeto da natureza não deixa margens para ambiguidade no que diz respeito ao reconhecimento das figuras como lebre e lobo. É certo que as noções e impressões que cada pessoa carrega a respeito de uma lebre e um lobo são distintas, se conformam às suas experiências e lembranças individuais, mas também parte dessas experiências podem se apoiar sobre os mesmos eventos e noções que conformaram as experiências e memórias de outras pessoas. O reconhecimento das figuras nos desenhos atua nas particularidades, mas também no que há de comum, na simplicidade apresentada, na síntese entre a figura e a superfície. E não haveria nada além das figuras desenhada em crayon se não fossem as pinceladas com tinta acrílica que cobrem áreas e, ao serem aplicadas sobre o desenho, dissolvem o pigmento que escorre pelo papel junto com a tinta aguada, e dissolvem o próprio contorno das figuras. Desestruturam uma organização rigorosa entre figura e fundo, sem tornar a figura irreconhecível. Ou seja, a artista desenhou primorosamente as figuras, depois desmanchou-as, quase como fez Robert Rauschenberg ao apagar um desenho de De Kooning, em 1953. Porém aqui, a artista não as apaga, é um ato que desmancha as figuras, e apenas parcialmente. As figuras mantém sua estrutura e podem ser reconhecidas sem dificuldade. Esse ato da artista interessa particularmente. Partindo da figuração de um animal, como nas ilustrações científicas, objetivas, ou nas pinturas rupestres, plenas de subjetividade aos nossos olhos contemporâneos pela sua distância temporal; partindo de um desenho a partir de um entendimento convencional, com linhas produzidas por um bastão de pigmentos, como os blocos de ocre usados em desenhos primitivos. Partindo de um gesto que executa uma figuração, outro gesto atua para desmanchá-la. É o segundo ato que age em sentido contrário do primeiro, aí se dá a polarização na obra. É o que possibilitou o diálogo tensivo entre as polaridades. Essa ação da artista foi premeditada, independente se a intenção de produzi-la surgiu antes ou depois do desenho com crayon ter sido finalizado, a artista optou por desmanchar o desenho com as aguadas em tinta acrílica iridescente. Essa ação contrária se integra com o sentido do movimento dos animais, contrário à leitura  

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ocidental, provocando o movimento da visão. E são as marcas deixadas pela artista no papel, por meio de suas ações, que se constituem como um objeto apreensível. Nesse sentido a obra pode ser analisada por uma perspectiva semiótica, no sentido abordado por Schaeffer, de se constituir como uma “estrutura intencional”, estar “a propósito” de algo, mesmo que seja uma função estética. Para Greimas, ao pensar um objeto como os desenhos analisados, um objeto plano, que “produz efeitos de sentido”, implica reconhecer que é um objeto que faz parte de um sistema desconhecido, e o processo de apreensão pressupõe o sistema como virtual, ou seja, com “a possibilidade de vir a ser”. É preciso considerar a superfície em sua materialidade como a possibilidade de significar algo, a partir da experiência do espectador ao ver as obras na galeria. No processo de análise da forma plásticas o autor propõe uma segmentação em categorias topológicas, cromáticas e eidéticas. Deve-se pensar o objeto segundo diversas categorias e colocá-las em paralelo, procurar descrever e analisar, pensar as possíveis relações estabelecidas entre os pontos de vista apresentados. Deve-se procurar os contrastes, termos opostos dentro da mesma categoria. (Greimas, 2004, pp. 84 - 90). A análise dos contrastes plásticos dos desenhos revelou um conjunto de oposições, de polaridades. E o discurso construído a partir da confrontação dialética dessas polaridades é um processo construído pelo espectador. O caráter lacunar da obra não apenas permite, como provoca o virtual, induz a uma reflexão. O contato inicial, ao ver desenhos expostos de modo tão sumário na galeria, porém com detalhes minuciosos, provoca o jogo tensivo e equilibrado entre as polaridades identificadas. A obra como discurso A análise da obra e o discurso produzido sobre ela, porém, não faria sentido, nem mesmo existiria sem o trabalho da artista. Pois a análise deve partir do sensível, da obra, do que a artista planejou e executou, do resultado concreto de um processo, da transposição de um pensamento, em matéria. Ao submeter a obra a uma seleção pública, a artista pleiteia a condição de obra de arte a sua obra, sabe que será  

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submetida a uma avaliação artística e que pode ser candidata à condição de obra de arte de um ponto de vista institucional, semiótico, genérico e no que diz respeito à sua gênese, a intenção da artista ao criar uma obra de arte. Ou seja, a escolha de cada material pela artista, do tema, da maneira de trabalhar, do uso de sua imaginação e seus conteúdos próprios. Como obra de arte está sujeita a uma série de análises e comparações com outras imagens da cultura. Está ligada a um universo imagético com o qual dialoga. Pode dialogar com as imagens sequencias do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge, ao ser montada em uma sequência. Seu gesto de desmanchar as figuras em uma aguada pode ser comparado com o de Rauschenberg, ao apagar o desenho de De Kooning. Dialoga com as ilustrações científicas e com os bestiários. Em sua síntese pode ser pensada como as primitivas pinturas na cavernas ou mesmo como as fábulas de Ésopo e La Fontaine. Referências DIDI-HUBERMAN, G. (2013). A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto. DIDI-HUBERMAN, G. (2013). Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte (1ª ed.). (P. Neves, Trad.) São Paulo: 34. GREIMAS, A. J. (2004). Semiótica figurativa e semiótica plástica. In: A. C. Oliveira, Semiótica plástica (I. A. Silva, Trad., p. 270). São Paulo: Hacker. SCHAEFFER, J.-M. (2004). A noção de obra de arte. In: A. C. Oliveira, & A. C. Oliveira (Ed.), Semiótica plástica (p. 270). São Paulo: Hacker.

 

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