A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas: do “Discurso do rio Amazonas” à saga dos soldados da borracha

Share Embed


Descrição do Produto

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas: do “Discurso do rio Amazonas” à saga dos soldados da borracha María Verónica Secr eto

A redenção do sertão e a revalorização da Amazônia são capítulos essenciais do programa traçado pelo governo para dar ao Brasil a prosperidade e a cultura que merece. (Discurso pronunciado no estádio do Vasco da Gama, por ocasião das comemorações do Dia do Trabalhador, em 1º de maio de 1941). Por lo demás, acumular espacio no es lo contrario de acumular tiempo: es uno de los modos de realizar esa para nosotros única operación. Los ingleses que por impulsión ocasional o genial del escribiente Clive o de Warren Hasting conquistaron la India, no acumularon espacio,

Nota: María Verónica Secreto é professora do CPDA/UFRRJ. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 40, julho-dezembro de 2007, p. 115-135.

115

estudos históricos l 2007 – 40

sino tiempo: es decir, experiencias, experiencias de noches, días, descampados, montes, ciudades, astucias, heroísmos, traiciones, dolores, destinos, muertes, pestes, fieras, felicidades, muertes, cosmologonías, dialectos, dioses, veneraciones. (Jorge Luis Borges, La penúltima versión de la realidad) Introdução Sempre que pensamos no que foi chamado de “era Vargas” vêm a nossa memória imagens urbanas, de trabalhadores industriais, de operários da construção civil. Parece que o Brasil deixou de ser agrário em 1930. É verdade que o processo de industrialização se aprofundou e o de urbanização se acelerou de forma inédita, mas muitas pessoas continuaram a trabalhar e morar no campo. O que aconteceu com essas pessoas? Todas migraram para os centros urbanos? Evidentemente, não. O governo Vargas tinha planos para os habitantes do campo. O principal: que eles ficassem onde estavam. Os trabalhadores rurais seriam mantidos no seu “habitat” e as leis trabalhistas não os atingiriam senão num futuro que não podia ser determinado. Considerou-se que existia um “fluxo natural” das correntes de povoamento que devia ter o sentido litoral-sertão. O contrário – a migração dos sertanejos para o litoral – era considerado no discurso e nas políticas oficiais um “erro histórico”. Para fixar o trabalhador rural nos sertões de Goiás e Mato Grosso, o governo Vargas concebeu um amplo plano chamado de “Marcha para Oeste”. Mas a idéia de marchar para o interior logo se estendeu à região amazônica, que também ingressou no “imaginário oficial” entre os territórios internos a serem ocupados pelos homens do sertão, preferencialmente pelos nordestinos. Este artigo tem por objetivo descrever e analisar o processo que se estende desde o momento em que é anunciada a política de colonização da Amazônia, dentro das políticas de ocupação dos “espaços vazios” do governo Vargas, até a mudança desta política, quando depois dos Acordos de Washington, no contexto da Segunda Guerra Mundial, o Brasil se compromete a produzir mais borracha para os aliados, abandonando as intenções “colonizadoras” e adotando uma prática de encaminhamento de trabalhadores sem suas famílias. Essa mudança de atitude será observada através do discurso oficial e da propaganda de recrutamento de trabalhadores, conhecidos como soldados da borracha, para a Amazônia. Finalizamos com uma breve análise sobre a apropriação que os trabalhadores e suas mulheres fizeram do discurso oficial quando tiveram que reclamar do abandono do Estado. 116

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

Ocupação dos “espaços vazios” Para alguns historiadores, a Revolução de 1930 significou o rompimento com o ordenamento agrário-conservador (Linhares e Teixeira, 1999). O sucesso do modelo econômico e de desenvolvimento, por meio da substituição de importações, dependia do alargamento do mercado interno. Este garantiria o desenvolvimento econômico e permitiria romper com a dependência das flutuações do mercado internacional, condenando-se assim o predomínio da política agrário-exportadora. Para o sucesso desse plano, seria necessária a intervenção do Estado em matéria de infra-estrutura viária e mercado de trabalho, além – e o mais importante para os nossos objetivos – do incentivo à mobilidade da fronteira, incorporando amplos “espaços vazios”, e da reunião dos diversos núcleos demográficos isolados. Para tal fim, a ideologia da fronteira, ou bandeirantismo, teve um papel fundamental. O campo deveria atender às necessidades que a nova regulação econômica exigia. Planejou-se a consolidação de uma ampla base urbana e fabril. A partir das cidades, se conquistaria o campo. O litoral marcharia para o sertão. Os historiadores Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva referem-se a uma incorporação imaginária do trabalhador rural. A opção por este tipo de incorporação deveu-se à impossibilidade de incorporá-lo nos mesmos moldes do trabalhador urbano. Essa impossibilidade esteve marcada por implicações políticas, o que significaria abrir uma dupla frente: organizar o trabalho fabril e libertar o trabalhador rural do “plantacionismo”. Essa incorporação imaginária mobilizou grande número de intelectuais e artistas populares. Sambas, poesias, romances, ensaios, pinturas foram produzidos durante o período, retratando o homem do campo, o retirante, o lavrador. Entre os vários intelectuais e artistas que contribuíram para esta construção simbólica destacamos Cassiano Ricardo, por seu forte vínculo com Vargas e com o Estado Novo (1937-1945), além de pela abrangência e pela influência de seu ensaio Marcha para Oeste (A influência da bandeira na formação social e política do Brasil). A obra de Cassiano Ricardo estabelece continuidade, e com esta, legitimidade, entre o bandeirismo dos séculos XVII e XVIII, as penetrações no planalto paulista no século XIX e o projeto estadonovista de colonização denominado “Marcha para o Oeste”. O Marcha para Oeste de Ricardo inscreve-se no programa homônimo elaborado pelo Estado Novo. No último ponto do livro, sugestivamente intitulado “O verdadeiro sentido da brasilidade está na marcha para Oeste”, Ricardo afirma que o novo regime tem parentesco muito próximo com o que o grupo social histórico da conquista nos havia indicado, embora 117

estudos históricos l 2007 – 40

em caráter rudimentar. O governo forte não é uma novidade para o nosso país, pois nasceu com a bandeira. (...) retomando o fio histórico da civilização brasileira, a Constituição de 10 de novembro reata, finalmente, o espírito bandeirante interrompido no século XIX e tão deturpado pela dialética do litoral. (Ricardo, 1979: 648) Salientamos desta citação de Cassiano Ricardo o seu caráter “americanista”, vinculado a um pensamento que podemos chamar de “profundamente americano”. Com efeito, ele foi definido como “um Turner autoritário” (Velho, 1979), em uma clara associação do seu pensamento com a obra do historiador americano F. J. Turner, autor de The frontier in American history (Turner, 2004 [1893]). Sinteticamente, esse pensamento “profundamente americano” define a formação das nações americanas com o Leste voltado para a Europa e o Oeste verdadeiramente americano – ou brasileiro, na versão de Ricardo (Secreto, 2006). A originalidade de Ricardo consiste em ter elaborado o conceito de bandeirismo com tal plasticidade que permite ser adaptado ao longo da história. Podemos citar como exemplo dois capítulos: “O neobandeirismo do século XIX” e “As bandeiras do século XX”. Nestes casos, o bandeirismo é transformado, anacronicamente, num conceito com o qual se pode interpretar toda a história do Brasil. “Viu a terra, ouviu o homem. E compreendeu os anseios de todos” Pensamos Cassiano Ricardo como um dos ideólogos da “Marcha para o Oeste”, mas ele não esteve sozinho na grande empresa estadonovista de criação de consenso em torno da idéia de conquista do espaço interior, de criação da unidade nacional por meio da integração territorial. Na revista Cultura Política – Revista Mensal de Estudos Brasileiros, circulavam algumas das idéias e dos slogans que o Estado Novo se encarregou de criar e recriar sobre o “Novo Brasil” (Velloso, 1982). O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) foi o encarregado da produção e da difusão desse discurso. A rev ista era somente um – embora qualitativamente diferenciado – de seus instrumentos. Entre as idéias veiculadas na revista Cultura Política, encontramos a da “Marcha para o Oeste”, que contou com um grupo heterogêneo de colaboradores: Péricles Melo Carvalho, Nelson Werneck Sodré, Ademar Vidal, Herberto Sales etc. Segundo Mônica Pimenta Velloso, à alta concentração de poder político durante o Estado Novo correspondeu uma igual concentração de poder simbólico. À elite intelectual correspondia a produção das representações que conformavam o discurso estadonovista. Aos intelectuais menores cabia a reprodução e 118

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

a difusão das idéias geradas por essa elite. Em Cultura Política escrevia esta última, composta por um seleto grupo de intelectuais divididos em dois grupos: a nata do Estado Novo e um conjunto heterogêneo de figuras que cobriam um amplo leque ideológico, que ia de Gilberto Freyre a Graciliano Ramos. Em 1941 Péricles Melo Carvalho (1941: 15-18), diretor de seção do Departamento Nacional de Imigração (DNI), dizia: Quem examinar o panorama que nosso país oferece no momento (…) vê, com pesar, que durante longos anos se processou no país o inverso do objetivo colonizador, na marcha lenta e assustadora da população rural para as cidades litorâneas do leste (grifo nosso). Carvalho explicava esse movimento da população reconhecendo que os trabalhadores rurais estavam privados do “progresso dos operários das cidades do litoral”. A legislação social, continuava ele, só poderia ter começado nos centros urbanos, para avançar nas esferas rurais em um momento posterior. Por isso, em seu balanço da legislação social, considerava que ela foi “prejudicial” aos efeitos da “Marcha para o Oeste”, concorrendo, pelo contrário, para a drenagem de trabalhadores rurais para as cidades do litoral em busca da proteção de que gozavam os operários urbanos. Tudo isso teria contribuído, segundo Carvalho, para o desequilíbrio da balança entre o urbanismo e o ruralismo. Nas cidades, os trabalhadores desfrutavam de ensino gratuito, garantia de assistência policial e segurança da propriedade, cooperativismo político, econômico e sindical, assistência social com a proteção da família, das mulheres e dos menores etc. Mas no presente, afirmava, o Brasil voltava-se para o interior, buscando conquistar-se. Carvalho salientava a importância do DNI na tarefa de encaminhar os trabalhadores rurais para lugares onde a sua falta se fazia sentir “no seu respectivo habitat”. Com o movimento de internalização dos trabalhadores, buscava-se afastar as tensões sociais no campo. Carvalho salientava que no ano anterior, 1940, o DNI tinha encaminhado oito mil trabalhadores nordestinos para os seringais do Alto Amazonas e do território do Acre. Lembremos que isto aconteceu antes dos acordos de Washington, selados em 1942. Estes acordos, na conjuntura da Segunda Guerra Mundial, modificariam os planos do governo Vargas a respeito do povoamento e ocupação da Amazônia. O programa original de “sedentarização” dos habitantes da região amazônica deu lugar ao já conhecido modelo de exploração extrativa tradicional e ao “nomadismo”. Apesar disso, quando do recrutamento dos “soldados” para a Amazônia, criou-se a ilusão de que se tratava de um programa geral de colonização de um território “vazio” com ga119

estudos históricos l 2007 – 40

rantias e proteção do Estado, e não de providenciar mão-de-obra barata para a elite agrária amazônica (Guillen, 2002: 69-82). Carvalho dizia que, com a “Marcha para o Oeste”, era a primeira vez que um governo no Brasil dirigia a conquista do interior do país. A “Marcha” e o seu complemento de ocupação da região amazônica tinham como objetivo a colonização, a fixação da família sertaneja nos territórios interiores. Num discurso pronunciado em Belém, em 1933, Vargas afirmava que o desafio maior para a Amazônia era transformar a exploração nômade em sedentária, e para isso era necessário povoá-la, colonizá-la, fixar o homem à terra. Em Manaus, em 1940, em outro pronunciamento, que ficaria conhecido como “Discurso do rio Amazonas” (Vargas, 1938-1947), Vargas disse aos amazonenses reunidos no Ideal Club daquela cidade que, sem demora, eles seriam incorporados ao corpo da nação, sendo necessário adensar o povoamento, incrementar o rendimento agrícola, aparelhar os transportes. Até o momento, segundo Vargas, o caluniado clima amazônico tinha impedido que partissem contingentes humanos de outras regiões com excesso demográfico. Somente o nordestino, com o seu “instinto de pioneiro”, teria se embrenhado pela floresta, abrindo trilhas de penetração e talhando a seringueira silvestre. Mas essa, segundo ele, tinha sido uma etapa que era desejável superar – embora dois anos depois se voltasse a clamar por esse “pioneirismo”. Era tempo, segundo palavras do presidente, de cuidar do povoamento amazônico em caráter permanente: O nomadismo do seringueiro e a instabilidade econômica dos povoados ribeirinhos devem dar lugar a núcleos de cultura agrária, onde o colono nacional, recebendo gratuitamente a terra desbravada, saneada e loteada, se fixe e estabeleça a família com saúde e conforto. Nada nos deterá nesta arrancada, que é, no século XX, a mais alta tarefa do homem civilizado: conquistar e dominar os vales das grandes torrentes equatoriais, transformando sua força cega e sua fertilidade extraordinária em energia disciplinada. A Amazônia, sob o impulso fecundo da nossa vontade e do nosso trabalho, deixará de ser, afinal, um simples capítulo da história da Terra, e, equiparado aos outros grandes rios, tornar-se-á um capítulo da história da civilização. (Vargas, 1938-1947, vol. 10) Dias depois de ter estado em Manaus e pronunciado estas palavras, Getúlio Vargas estava diante de outro auditório, o de trabalhadores cearenses, na cidade de Fortaleza. “Venho da região amazônica, do extremo norte do país. 120

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

Enquanto percorria o prodigioso vale, a cada momento, lembrava-me de vós” (Vargas, 1938-1947, vol. 10). A seca teria dado aos cearenses um destino, o de ocupar a bacia amazônica. Graças ao pioneirismo deles, dizia Vargas, foram até os confins do Brasil, reivindicando para a pátria e incorporando à soberania nacional o território do Acre, cerca de duzentos mil quilômetros quadrados. O “Discurso do rio Amazonas” foi “inflacionado” pelo DIP e transformado em marco da marcha para a Amazônia. Após um ano de seu pronunciamento, realizou-se no Palácio Tiradentes uma sessão comemorativa, na qual várias autoridades referiram-se ao discurso: o diretor-geral do DIP, o presidente da Comissão de Eficiência do Ministério de Viação, o ministro Bernardino de Sousa, o interventor paraense José Malcher, o prefeito de Belém, Abelardo Conduru, o ex-governador do Acre, Hugo Carneiro etc. Dois anos depois, quando o presidente Vargas fez 60 anos, a revista Cultura Política editou uma coletânea de artigos selecionados entre os primeiros 25 números. A coletânea foi intitulada O pensamento político do presidente e reuniu quatro textos sobre o “Discurso do rio Amazonas” que tinham sido produzidos para a solenidade do primeiro aniversário. Também no aniversário do ano do discurso, a revista fez um inquérito entre intelectuais da região amazônica, cujas respostas foram publicadas no número 9, de 1941. Todos os depoimentos foram sumamente elogiosos, destacando a penetração sociológica das palavras do presidente. Francisco Pereira da Silva, consultor jurídico do Instituto dos Marítimos, expressou que “desde aquele momento, estava iniciada a ‘Marcha da Amazônia’! O Presidente, depois de reunir todos os dados estatísticos e econômicos sobre a planície verde, foi vê-la… Viu a terra, ouviu o homem. E compreendeu os anseios de todos”.1 Inflacionado ou não, o “Discurso do rio Amazonas” foi uma “carta de intenções” que não seria cumprida. A Segunda Guerra Mundial e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil demandavam extrativismo. No biênio 1942-1943 se fazia urgente obter borracha para fornecer aos aliados. Assim, em junho de 1943, declarado o mês da borracha, Vargas explicava a urgência: Hoje, o problema se apresenta incomparavelmente mais grave. Não mais se trata de uma industrialização para as nossas necessidades pacíficas, mas de produzir para o consumo gigantesco de uma Guerra Mundial. É o problema de nossos aliados, aos que devemos fornecer a borracha sobre a qual rodarão as armas vitoriosas da liberdade. A idéia de povoamento, de famílias sendo encaminhadas para a região amazônica, foi substituída pela de recrutamento de trabalhadores, homens, a serem trasladados em caráter de urgência para os seringais. 121

estudos históricos l 2007 – 40

Em um discurso que atribuía ao sertanejo imensa cota de abnegação, o próprio Getúlio Vargas fez suas as palavras de Euclides da Cunha: “À sua miséria devemos um pouco de nossa opulência relativa, às suas desgraças, a maior parte de nossa glória. E esta dívida tem mais de 400 anos” (Vargas, 1938-1947, vol. 2). Em meio a esse discurso, esperava-se ainda do sertanejo mais três sacrifícios: que se dirigisse às fronteiras do Oeste e da Amazônia, que aguardasse pela chegada da legislação social, e que não fosse, de modo algum, em busca das cidades. Com isto, dizia-se estar reparando um erro histórico, o das migrações acontecidas no sentido inverso ao “natural”, e retomando o fio inaugurado com as bandeiras. Pelo resgate do passado bandeirante-caboclo, podemos perceber como esse programa de “inclusão” dos habitantes do campo recolhia alguma coisa que estava muito internalizada no mundo das representações populares. Há uma reapropriação de signos e significados. O discurso oficial do Estado Novo apropriou-se de um conjunto de idéias que faziam parte do “senso comum” e as reelaborou na forma de um projeto político que cristalizava também uma reivindicação tão secular quanto as entradas e bandeiras, o “destino” amazônico do nordestino: a do direito à terra, à ocupação dos “espaços vazios”. Esta última elaboração passaria ainda por novas apropriações.2 No caso do Estado Novo, a sua cuidadosa geração de idéias faz parte de um discurso hegemônico articulado nos mínimos detalhes. Mas esse discurso, pelo menos no caso que nos ocupa, retoma idéias arraigadas no imaginário das classes médias urbanas como as de ingenuidade, autenticidade, simplicidade e paciência do homem rural. O discurso gerado desde o Estado, em torno da “Marcha para Oeste”, é acolhido favoravelmente porque satisfaz expectativas e reproduz idéias há muito consensuais. Responde às expectativas, talvez urbanas, do que deve ser o campo e às expectativas rurais do que deve ser a cidade. Retoma, para corrigir, o mito dos “dois Brasis”. O “sucesso” dessa construção poder ser avaliado a partir do grande número de trabalhadores recrutados na campanha da borracha, e também da apropriação que de seus slogans fizeram tanto os soldados como suas mulheres, na correspondência trocada entre eles e na que elas encaminharam ao presidente da República, reclamando, quando em junho de 1944 foi suspendida a assistência familiar (Secreto, 2007: 89-114). Do “Discurso do rio Amazonas” ao recrutamento dos soldados da borracha A guerra criou uma nova conjuntura. Apesar de o modelo econômico não priorizar – muito pelo contrário – as exportações agrícolas, por elas implicarem, na visão varguista, uma fragilidade econômica, um ponto de vulnerabilidade, o ali122

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

nhamento com os Estados Unidos e a demanda de borracha, além de outras matérias-primas, recolocaram em pauta a questão do incremento das exportações de alguns produtos primários. Junto veio a necessidade de o litoral chegar no sertão. O litoral fez-se presente no Nordeste com a batalha da borracha e, para os trabalhadores, com o contrato de trabalho. Este, que tinha por intuito proteger o trabalhador, em lugar de explorá-lo, era uma novidade. Não foi a panacéia dos direitos trabalhistas, por causa da distância entre a lei escrita e a prática jurídica, mas foi importante na luta por direitos, uma luta com poucas conquistas, é certo. O bombardeio japonês a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, pôs fim à ambigüidade da política externa do governo de Getúlio Vargas e, de alguma forma, condicionou a política interna a respeito da Amazônia. O ingresso dos Estados Unidos na guerra exigiu uma posição clara das nações americanas. O domínio japonês de largos trechos do continente asiático e das ilhas do Pacífico cortou o fornecimento de borracha ao bloco Aliado e, com isso, foi necessário definir a política econômica dos países do continente que fossem capazes de abastecer as nações aliadas com matérias-primas. Em março de 1942, o Brasil assinou em Washington uma série de acordos sobre matérias-primas estratégicas, entre as quais a borracha. Durante a Primeira Guerra Mundial, cada pessoa em serviço militar utilizava 16 quilos de borracha, enquanto na Segunda Guerra Mundial essa quantidade tinha aumentado para 98 quilos, motivo pelo qual estava justificada a qualificação da matéria-prima como “estratégica”.3 Fazia tempo que os Estados Unidos intentavam aumentar o suprimento de borracha por meio da pesquisa voltada para duas áreas diferentes: a heveicultura – denominação derivada do nome científico da planta, Hevea brasiliensis –, isto é, o cultivo sistemático e racional de borracha, com plantas resistentes ao mal das folhas e de alta produtividade, e a borracha sintética. O incentivo ao extrativismo, a partir de 1942, foi somente circunstancial – e a terceira alternativa conjuntural. Dados os magros resultados obtidos com esta campanha extrativista, ficou evidente que a crescente demanda não podia ser suprida com base no extrativismo tradicional. As exportações da borracha brasileira, entre 1943 e 1946, alcançaram a cifra de 42,8 mil toneladas. Esta quantidade apresenta-se modesta se comparada com o consumo dos Estados Unidos em um único ano, 1943, quando os norte-americanos consumiram 332,7 mil toneladas de borracha vegetal, 173,6 mil toneladas de borracha sintética e 162,7 mil de borracha regenerada (Pinto, 1984: 101). O Brasil teve seu melhor desempenho em 1912, quando produziu 43,3 mil toneladas. Nesse mesmo ano, América Central e Ásia produziam aproximadamente 28 mil toneladas cada uma. Um ano depois, em 1913, a Ásia atingiria as 47,6 mil toneladas e aumentaria progressivamente ano após ano. Em 1919, enquanto o Brasil produzia 34,2 toneladas, a Ásia seria responsável por 381,8 mil toneladas de borracha (Weinstein, 1993: 47). 123

estudos históricos l 2007 – 40

Com a deflagração da guerra, afirma o historiador Warren Dean, evidenciou-se que as companhias químicas norte-americanas não dominavam o procedimento para a produção de borracha sintética, daí a busca frenética de alternativas. A partir de 1940, antes do bombardeio a Pearl Harbor, o governo norte-americano aprovou medidas destinadas a adquirir borracha – mas essa foi uma política de estocagem, e não de produção. Em 1940 foi criada a Rubber Reserve Company, com um capital de 140 milhões de dólares, cuja finalidade era a aquisição de borracha. Outra instituição norte-americana, que interviria nas áreas gomíferas da América Latina, ou nas quais a seringa poderia se adaptar, foi o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA – United States Department of Agriculture), que planejava uma estratégia a longo prazo: ampliar a heveicultura fora do espaço sob domínio do Japão. Os Acordos de Washington (de março de 1942) previam o incremento da produção de borracha no velho esquema: ampliação da atividade extrativa, com base no recrutamento de mão-de-obra no Nordeste do Brasil. A propaganda para o recrutamento de trabalhadores Assinalamos anteriormente que, nas décadas de 1930 e 1940, com o discurso de “unidade nacional”, um setor da sociedade, formado pelos trabalhadores rurais e pelos habitantes do campo, em geral, foi incorporado de forma simbólica ao “corpo da nação”. Pela natureza desta incorporação, foi fundamental o trabalho da propaganda oficial. Durante o primeiro governo de Vargas surgiram órgãos de propaganda oficial, que implicavam também controle e repressão de idéias contrárias ou consideradas ameaçadoras. Com o Estado Novo, foi criada, em 1939, uma peça fundamental: o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão vinculado diretamente à Presidência da República, que se ocupava não só do controle dos meios de comunicação, isto é, da censura, mas também da difusão e da divulgação das mensagens propagandistas. Em 1940 o DIP teve seu poder ampliado, com a instalação, em cada estado do país, de um Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP). Entre os objetivos do DIP, estavam centralizar, coordenar e orientar a propaganda e auxiliar os ministérios e as entidades públicas e privadas sobre a propaganda nacional, assim como incentivar a arte e a literatura “genuinamente brasileiras”. O trabalhador e o trabalho não eram prioritários nos meios de comunicação. Por exemplo, na imprensa paulista, controlada pelo DIP, os temas dominantes eram a doutrina do Estado Novo e as suas realizações. Entre 127 textos pesquisados por José Inácio Melo Souza, 2,2% referiam-se ao trabalho (apud Ca124

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

pelato, 1998: 173-191). Silvia Goulart analisou o conteúdo das matérias publicadas pelo DEIP de São Paulo na imprensa local em seu estudo de 5.799 recortes de jornais anexados aos processos do DEIP. Esses processos eram constituídos por correspondência de empresas editoriais reclamando o pagamento pela publicação de materiais oficiais. Da tabela temática que ela elabora a partir das matérias pagas entre 1941 e 1944, depreende-se que o tema do trabalho teve a mesma média de 2,2% (Goulart, 1990). Segundo Maria Helena Capelato, o trabalhador que aparecia nos cartazes produzidos pelo DIP era representado como força de trabalho. A organização racional do trabalho era representada pelo binômio trabalhador-máquina. Nesse binômio, a máquina ofuscava o trabalhador. Capelato explica a inexpressiva representação do operário na iconografia varguista pela negação estadonovista de identidade de classe, substituída pela identidade nacional. No entanto, na propaganda destinada ao recrutamento de nordestinos para a Amazônia, o homem-trabalhador foi a figura central na iconografia. Um dos conceitos-símbolo utilizados pelo Estado Novo foi a bandeira e o bandeirismo, aos quais nos referimos. O regime também utilizou-se de outros conceitos de menor sofisticação teórica, tais como: a simplicidade e a autenticidade da população sertaneja; o seu destino de desbravadora do Norte e a sua predisposição ao sacrifício; a ocupação efetiva do território brasileiro como ações de patriotismo; a seca como situação extrema e desumanizante. E, como contraponto a esse último aspecto, a Amazônia era então apresentada como terra de possibilidades para aqueles que não tinham opção alguma. A propaganda para mobilizar os trabalhadores para a Amazônia teve duas dimensões: uma nacional e outra local. Na dimensão nacional, a batalha pela borracha se encaixava no programa de ocupação e colonização dos “espaços vazios” e nos esforços de guerra do Brasil. Na esfera local, a emigração de nordestinos para a Amazônia era uma questão que contava com uma longa tradição e alguns debates. Um dos destinos mais procurados pelos nordestinos nas conjunturas de seca, e não apenas nelas, era o Norte, especialmente os estados do Pará e do Amazonas. A propaganda para recrutar trabalhadores explorou alguns elementos do imaginário, dos desejos e das emoções, por meio de símbolos e de um discurso direto e apelativo (Secreto, 2003). O historiador italiano Carlo Ginzburg (2001) analisou um cartaz famoso, que todos já vimos alguma vez em sua versão original, ou nas imitações que correram o mundo. Durante a Primeira Guerra Mundial, Lord Kitchner, secretário de Guerra de Sua Majestade britânica, realizou um chamado às armas mediante um cartaz que teve como resposta um alistamento voluntário sem precedentes. No cartaz aparecia Lord Kitchner em uma perspectiva que deixava o seu dedo gigante num primeiro plano apontando para o espectador. Trata-se, segun125

estudos históricos l 2007 – 40

do Ginzburg, de um dos cartazes mais eficazes da história, e prova disso foi a adaptação que dele foi feita pelos Estados Unidos e pela URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), em que apareciam Tio Sam e Trotsky, respectivamente, e, claro, o resultado imediato do recrutamento de voluntários para a guerra. A imagem no cartaz britânico era acompanhada por estas palavras: Teu rei e teu país te necessitam, ou Kitchner quer mais homens, Quero você etc. “A representação da autoridade atuou como a própria autoridade”, concluiu Ginzburg. A que se deveu esse sucesso, ou melhor, a sua eficácia, se pergunta Ginzburg? Este historiador constrói a resposta utilizando o conceito de “fórmula de emoção” de Aby Warburg. Não entraremos aqui nos detalhes da análise, mas é importante salientar que, para que um cartaz desse tipo – de recrutamento de homens – tenha sucesso, ele deve comover, deve despertar anseios ou apelar moralmente, deve acordar antigas emoções. Como foi realizada a propaganda para recrutar trabalhadores para a Amazônia? Essa campanha contou com alguma peça da eficácia do cartaz de Kitchner? No ano de 1942, a Coordenação da Mobilização Econômica foi incumbida de realizar um plano geral para seleção e encaminhamento de trabalhadores para a Amazônia, que seriam conhecidos como “soldados da borracha”. Pelo Decreto-Lei nº 4.750, foi criado o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para Amazônia (SEMTA), e pelo Decreto-Lei nº 5.044, de 4 de dezembro de 1942, foi criada a Superintendência de Abastecimento do Vale Amazônico (SAVA). O primeiro encarregava-se de recrutar e levar o trabalhador até Belém; a partir dali, a SAVA colocava o trabalhador nos seringais e se encarregava, com a Rubber Development Corporation (RDC), de fornecer gêneros essenciais diretamente aos seringueiros, evitando os intermediários, que não tardaram a se queixar. Segundo Nelson Prado Alves Pinto, depois do breve interregno bélico, a SAVA e a RDC passaram a operar por intermédio dos comerciantes da região, pondo fim, dessa forma, às tentativas de enfraquecer a estrutura do aviamento. O SEMTA teve uma vida curta e intensa. Por meio dele foi organizado rapidamente todo um sistema que implicava assistência às famílias, seleção dos trabalhadores, alojamento nas barracas, exames médicos, alimentação, transporte, vestuário e adiantamentos – até a colocação nos seringais. Mas o encontro do litoral com o sertão não seria tão simples como fora pensado e projetado no papel. O pintor suíço Jean Pierre Chabloz, que emigrou para o Rio de Janeiro em 1940, foi o encarregado de realizar parte da arte da propaganda oficial do SEMTA. Depois de uma permanência de quase três anos no Rio, fixou residência em Fortaleza, após o convite de George Rabinovitch para trabalhar no serviço de desenho da campanha da borracha. Como responsável pela propaganda gráfica, 126

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

realizou diferentes tipos de material, tais como folhetos e cartazes, caracterizou os caminhões em que eram transportados os soldados, fez os braceletes de identificação que levavam os trabalhadores etc. Trabalhou principalmente com duas técnicas: desenho e colagem com fotografias.4 Afirma Abraham Moles que, sobre a base da simplificação necessária, o cartaz constrói um novo quadro de símbolos pertencentes à nossa cultura. Por exemplo: as faces coradas da criança de boa saúde e a transparência da água mineral são símbolos elementares aceitos por todos (Moles, 1974: 25). São símbolos “axiomaticamente evidentes, com conotações estereotipadas, que vão constituir-se em uma linguagem simbólica das imagens”. Chabloz tinha trabalhado na Europa na área de publicidade e realizara vários cartazes publicitários. Foi essa experiência que utilizou em seu novo trabalho. As idéias sobre o Estado Novo e as dele a respeito do recrutamento de trabalhadores estavam mediadas, em grande parte, pelos contatos que o próprio Chabloz tinha feito: o círculo de funcionários que tinha viajado do Rio de Janeiro para Fortaleza, em final de 1942, para organizar todo o serviço do novo órgão – todos domiciliados, no princípio, em um par de hotéis do centro da cidade. Alguns permaneceram ali até a dissolução do SEMTA, uns tantos meses depois. Houve um convívio muito intenso devido, sobretudo, ao tipo de trabalho, encarado como uma missão dos homens do litoral, da cidade marchando para o interior – embora se tenha escolhido Fortaleza como sede. Segundo Mônica Velloso (1982), existia uma verdadeira divisão intelectual do trabalho entre os responsáveis por produzir idéias, conceitos, valores, e os encarregados de os reproduzirem. Qual seria o lugar de Chabloz? Acreditamos que seu trabalho implicou duas coisas: reproduzir idéias geradas pela “elite intelectual” do regime e criar, ele mesmo, imagens e conceitos. Uma das preocupações do Estado Novo, manifestada em sua campanha “Marcha para o Oeste”, era a do movimento migratório dos sertões para o litoral, expressa claramente nas palavras de Péricles Melo Carvalho: “Corrente migratória dirigida no sentido inverso da marcha que a verdadeira civilização indicava”; ou quando ele diz: “Encaminhar o trabalhador rural para seu respectivo ‘habitat’” (Carvalho, 1941). Na conjuntura da guerra, essa idéia foi representada por Chabloz por meio de uma imagem: um mapa do Brasil, em cujo litoral pode-se observar os soldados, e no interior amazônico os seringueiros extraindo látex das árvores, acompanhado da frase: “Cada um no seu lugar!”. A mensagem “cada um no seu lugar” não está falando somente da conjuntura – soldados na defesa do litoral e seringueiros nas florestas extraindo látex – mas, em geral, do lugar dos homens do litoral, da cidade, e do lugar dos homens do sertão, do campo. A imagem está dizendo que no Brasil de Vargas cada um tem um lugar. Na fotografia de uma manifestação de trabalhadores no Rio de Janeiro, acontecida no dia 9 de novembro de 1940, pode ver-se um grupo de homens carregando 127

estudos históricos l 2007 – 40

uma faixa que diz: “Trabalhador também tem o seu lugar no Estado Novo” (FGV, 1983). Pela metáfora espacial, o Brasil em que cada um tinha o seu lugar se contrapunha àquele do passado em que nem todos o tinham, o Brasil de inclusão se opunha, na propaganda, ao Brasil da exclusão. O Brasil da unidade era uma somatória de lugares. O lugar do sertanejo era no sertão. Outra das peças criadas por Chabloz é um cartaz colorido, desenhado a partir de uma perspectiva muito particular: do interior da casa do sertanejo para fora. Enquanto grupos de trabalhadores vão para a Amazônia, “para a fartura”, quem observa o cartaz pode ser o “caboclo passivo” da cena ilustrada por Chabloz: um homem forte encostado no umbral da porta que vê passar os caminhões. É para ambos a frase: “Vai também para a Amazônia protegido pelo SEMTA”. O espectador da representação de Chabloz é um homem de pés no chão, que está contemplando, ou esperando, e em condições de ser um trabalhador recrutado e “protegido” pelo SEMTA. É um caboclo desenhado com traços arredondados, de membros grandes, como os trabalhadores de Portinari de uma década antes. Uma imagem idílica da floresta amazônica começou a surgir dos cartazes de Chabloz. Num de seus cartazes, “Vida nova na Amazônia”, a exploração de borracha aparece como uma atividade de “fundo de quintal”. Toda a cena é idílica e indica fartura: casa, lenha, porcos, galinhas, boi e, para completar o quadro, uma criança brincando e uma mulher pendurando roupas brancas no varal. Até mesmo a densa floresta amazônica não é tão fechada e deixa passar alguns raios de sol. A casa está cercada e o homem está tirando látex de uma seringa vizinha ao cercado. Segundo Samuel Benchimol (1945), o que a monocultura fez em outras regiões do Brasil, o extrativismo fez na Amazônia: “Seringa e roça, portanto, não rimam bem… Seringa rima bem é com béri-béri, com charque e farinha, com pirarucu seco e feijão. Não combina com batatas, legumes, galinhas, ovos, leite”. Nessa ilustração de Chabloz, o extrativismo é ilusoriamente apresentado como uma atividade complementar na economia camponesa. Salientemos que o público a que era dirigido o cartaz era sobretudo camponês, para o qual a agricultura é uma parte importante do cotidiano. O trabalhador recrutado recebia um enxoval composto por uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branco, um chapéu de palha, um par de alparcatas de rabicho, uma caneca, um prato fundo, um talher que era colher e garfo, uma rede e um saco de estopa. Esse enxoval foi desenhado por Chabloz e anunciado com as seguintes palavras: “Equipamento de viagem fornecido pelo SEMTA”. Este desenho correspondia à cláusula segunda do contrato de encaminhamento. As cláusulas gerais do “Contrato padrão de trabalho nos seringais” também mereceram o desenho de Chabloz. Estas ilustrações serviam para tornar conhecido o conteúdo do contrato numa sociedade em que grande parte da população era analfabeta. 128

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

“Perfeitamente aparelhado, o SEMTA alista, transporta, hospeda, veste, alimenta, ampara, trata e defende, por todos os meios, o homem que se entrega aos seus cuidados, a fim de prepará-lo para o trabalho – sadio, forte, produtivo”, dizia um texto da extensa propaganda de recrutamento. Era o que mais se assemelhava a “direitos trabalhistas”. As representações de Chabloz nos trazem a terra, o homem, a luta, para usar o esquema de Euclides de Cunha. Diferentemente do trabalhador urbano, o trabalhador rural é o centro da iconografia do SEMTA. Numa colagem feita com fotografias, o protagonista é o soldado da borracha. Ele aparece em formação militar, fazendo ginástica, sendo examinado pelos médicos, cortando o cabelo, fazendo a barba, sendo vacinado, jogando vôlei, luzindo o seu uniforme, marchando, nos caminhões. Mas o centro do cartaz é o soldado no singular, o homem que personalizou o chapéu recebido, escrevendo nele o seu nome, Leonardo, provavelmente, de olhar orgulhoso e distante, de cruz amarrada ao pescoço, carregando uma sacola nos ombros. Em várias das fotografias que o rodeiam, aparecem funcionários do SEMTA, também trabalhando, vacinando, fazendo fichas, palestrando, organizando. A fotografia que constitui o centro, a de Leonardo, nos apresenta um homem “pronto”, que já passou por todos os preparativos e, de sacola no ombro, está disposto a partir. Perdeu a vulnerabilidade que tinha deitado na camilha, de frente ao funcionário, respondendo às perguntas para preencher a ficha, ou nas mãos do barbeiro com navalha. Ganhou individualidade. É uma campanha de recrutamento, como a realizada com o cartaz de Kitchner. Apela-se ao heroísmo pessoal. O homem do campo, nessas manifestações, aparece desprovido de tecnologia, de maquinaria. É ele contra a natureza. Ele espremerá a seringa até brotar o látex, o que fará com suas próprias mãos. Podemos nos aproximar do processo criativo de Chabloz por meio do bosquejo do cartaz “Rumo à Amazônia”. É evidente que ele quer explorar a sequidão da paisagem nordestina e contrapô-la à uberdade amazônica. A migração aparece nesta representação como um percurso entre dois pontos: um seco, de formações vegetais tortuosas e com espinhos, e outro verde e frondoso. Se a sequidão é a pobreza, a umidade é a riqueza; por isso, a esperança se transforma em certeza, em fartura. Num primeiro bosquejo que trazia um caminhão carregado de trabalhadores deslocando-se por uma estrada que começava numa paisagem de espinho e acabava na frondosidade amazônica, Chabloz escreveu: “Rumo à esperança”; na versão final o mesmo desenho trazia a frase: “Rumo à fartura”. Nesse caso, está-se explorando uma série de elementos que, se pretende, fazem parte do imaginário do sertanejo. De fato, entre 1872 e 1900, segundo o cálculo de Furtado (1979: 121), quinhentos mil nordestinos se mobilizaram para a região amazônica, e o fizeram, em grande medida, com a ilusão de enriquecer na terra da fartura. Nesta representação, porém, não só o elemento de atração é 129

estudos históricos l 2007 – 40

importante, mas também o de expulsão: a sequidão. A uberdade amazônica tem o mesmo efeito que as faces coradas da criança de boa saúde, ou deveria ter. Desde as primeiras crônicas sobre a América, as representações edênicas estiveram vinculadas a ela e à paisagem tropical. Com o tempo, surgiria outra imagem, a de floresta-inferno. Mas, no pensamento ocidental, a representação paradisíaca ainda tinha força. Pode ser que, para o desenhista suíço, fosse axiomática a preferência pelo verde e úmido em contraposição ao cinzento e seco. Mas Samuel Benchimol iria mostrar como os cearenses declaravam gostar do “enxuto”, e não do “encharcado”. Claro que essas declarações eram de cearenses na Amazônia, e outra poderia ter sido a sua representação do Vale do Grande Rio antes de chegar nele. Em 1944 foi realizado o X Congresso Brasileiro de Geografia. Nessa ocasião, Benchimol apresentou um trabalho intitulado “O cearense na Amazônia. Inquérito antropogeográfico sobre um tipo de imigrante”. Era “um trabalho de estréia”, como ele o definiu, no qual se propôs apanhar as primeiras impressões dos imigrantes sobre a terra, o rio, a seca, a borracha etc. O imigrante, segundo seu dizer, chegava com alguma impressão adquirida nas primeiras conversas nos portos de lenha onde os navios paravam para carregar madeira a fim de abastecer as caldeiras dos vapores. Nessa viagem vagarosa pelo rio Amazonas os imigrantes observavam silenciosamente a transformação da paisagem, as águas movendo-se debaixo do barco: As barracas mergulhadas, a canoa andando de um lado para outro como se fosse um cavalo, o silêncio da atividade humana no meio da mata (…). Daí o terror pânico da água, o medo do rio que se agrava à medida que ele toma contato definitivo com a várzea. O sertão ainda está perto dele. Por isso o recém-chegado diz coisas como: “Não gosto desta terra feia e encharcada”, ou “gosto do enxuto”. Não podemos avaliar individualmente o efeito de cada peça de propaganda. Mas podemos pensar no efeito que certos slogans tiveram a partir das reclamações realizadas pelas mulheres dos soldados da borracha depois que foi cortada a assistência às famílias em junho de 1944. Os milhares de trabalhadores nordestinos recrutados desde inícios de 1943 para trabalhar na região amazônica na extração da borracha assinaram um contrato de “encaminhamento”, no qual podiam optar – e a grande maioria optou – pela assistência que o SEMTA oferecia para suas famílias que ficavam no Nordeste.5 Muitas mulheres (e filhos) desses trabalhadores permaneceram em seus lugares de origem ou nas hospedarias im130

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

provisadas, esperando o momento para empreender, também elas, a viagem que as levaria ao encontro de seus maridos, ou aguardando o retorno deles ao termo de dois anos de ingresso no seringal. Nas hospedarias, chamadas de “núcleos”, longe dos maridos, entre pessoas estranhas e tendo que seguir normas e ordens antes desconhecidas, essas mulheres escreveram cartas angustiadas a seus esposos. Cartas pedindo desculpas pela fraqueza de se queixar; contando das injustiças contra elas cometidas; do desejo de ir ao encontro deles; das saudades sentidas por elas e pelos filhos. Cartas nas quais uma mulher podia assim se definir: “Tua triste e sem sorte esposa”.6 Depois, em junho de 1944, quando foi suspenso o pagamento da assistência, sentiram-se novamente abandonadas e escreveram ao presidente da República, Getúlio Vargas, como último recurso, apelando por justiça.7 Do Crato (Ceará), um grupo de mulheres escreveu ao presidente dizendo que a assistência às famílias tinha sido cortada e, em seu lugar, eram oferecidas passagens ao Amazonas para, supostamente, se encontrarem com seus maridos, dos quais não sabiam se ainda estavam vivos, muito menos o domicílio. A resposta que deu a Presidência da República a essas mulheres não a conhecemos, porque não aparece no processo, não obstante este caso tenha sido mencionado como um antecedente quando a CAETA teve que dar uma resposta pouco tempo depois a outro telegrama escrito em termos semelhantes, enviado pelas mulheres de Mossoró (Rio Grande do Norte), motivo pelo qual acreditamos que a resposta deve ter sido mais ou menos a mesma.8 Com base nesses argumentos do voluntariado, do status de “soldado”, que em lugar de metralhadora carregava nas suas costas a mochila e o machadinho para abrir os cortes na seringueira por onde escorreria o látex, foi que as mulheres do Nordeste escreveram a Vargas. Jovelina e as outras dizem: “Com esperanças de serem bem-sucedidos e prestarem relevante serviço à pátria no combate ao inimigo comum, produzindo borracha para a vitória das nações unidas”. É bom observar que esta última passagem está repleta de expressões do discurso oficial.9 E estas não foram as únicas mulheres a reclamar (Secreto, 2007: 89-114). Em 1945 a imprensa internacional denunciava o desastre da campanha da borracha, falava-se em 25 mil mortos ou desaparecidos. Levada a debate da Assembléia Constituinte de 1946 a gravidade da situação criada pela batalha da borracha, foi formada uma CPI que trabalhou entre os meses de julho e setembro de 1946. Ela reuniu documentos e tomou depoimentos dos funcionários vinculados ao DNI, SESP, SEMTA, CAETA, Banco do Brasil, Banco de Crédito da Borracha, Instituto Agronômico do Norte etc. Os depoimentos dados à Comissão de Inquérito da Campanha da Borracha deixam transparecer problemas políticos e até pessoais entre os depoentes. Mas, mais importante que isto, trazem à luz o verdadeiro desastre que foi a campanha. Alguns tinham consciência das conse131

estudos históricos l 2007 – 40

qüências sociais da introdução dos “migrantes nordestinos” nos seringais, como o responsável pela Hospedaria do Pensador, em Manaus, o doutor Ezequiel Burgos. Ele escreveu ao senhor Péricles de Carvalho, diretor do DNI, em setembro de 1943, comentando que os trabalhadores que voltavam dos seringais traziam notícias das piores, de que eram maltratados e ameaçados pelos capangas, de que a carne podre era vendida a 16 cruzeiros, de que o seringalista lhes negava remédios quando doentes etc. Burgos levou cópia desta carta, como de outras, para a CPI. Outros depunham que o transporte dos trabalhadores era realizado em condições deploráveis, que se desperdiçavam dinheiro e comida jogando ao rio alimentos em mau estado ou por carecer de meios para distribuir nos seringais, que se produziu pouca borracha e ainda se adulteraram as estatísticas etc.10 O relatório da CPI concluía que se impunha com urgência o amparo imediato aos soldados da borracha e às famílias que haviam ficado no Nordeste, afirmando que deveriam receber a assistência que lhes fora prometida na fase de propaganda. Aconselhava também a elaboração de um plano geral de assistência social e econômica. Quando, em 1944, as mulheres dos trabalhadores escreveram ao presidente da República contando que tinha sido cortado o pagamento da assistência familiar, que lhes era devido por força contratual, aquele teria sido um bom momento para se começar a reparação. Mas não começou. Em 1946, uma comissão de inquérito do Congresso chamou vários altos funcionários para depor sobre a campanha da borracha. A imprensa internacional denunciava a atrocidade cometida contra os trabalhadores brasileiros. Mas também não foi nessa oportunidade que se intentou a reparação. Foi apenas recentemente que a Constituição de 1988 estabeleceu pensão para esses trabalhadores.

Notas

1. A opinião de Francisco Pereira da Silva, como dos outros intelectuais consultados, está publicada em “À margem do ‘Discurso do rio Amazonas’”. Cultura Política, ano 1, n. 9, 1941, p. 163-171. 2. Estes versos populares recolhem as duas possibilidades que deparavam ao migrante cearense que escolhesse

132

o “destino amazônico”: “Cearense vai ao Norte, / Sonhando áureos castelos, / Sai daqui robusto e forte, / Volta magro e amarelo. / Vai de camisa e ceroula / Às vezes rasgado em tiras / E volta de lá, pachola, / De chapéu de sol, cartola / E terno de caxemira.” A migração entre o Nordeste o a Amazônia foi freqüente sobretudo a

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

partir da seca de 1877-1879. Ver Secreto (2007: 35-59). 3. Cf. http://www.exordio.com/1939-1945/ civilis/industria/caucho.html. 4. As referências sobre Chabloz e sua obra baseia-se em pesquisa no Arquivo Chabloz do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará e no fundo Paulo de Assis Ribeiro do Arquivo Nacional. 5. Fundo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. 6. Arquivo Regina Frota. Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. 7. Fundo Presidência da República. Arquivo Nacional. Cada carta ou

telegrama recebido dava lugar a um processo. 8. Parecer Auditoria Jurídica da Caeta. Fundo Presidência da República. Arquivo Nacional. 9. Fundo Presidência da República. Arquivo Nacional. 10. Diário da Assembléia, em 24 de agosto de 1946. Entre 1º de agosto e 12 de setembro de 1946 foram vários os números do Diário da Assembléia em que apareceu o trabalho realizado pela Comissão de Inquérito da Campanha da Borracha.

Refe rências bibl iog ráficas

BENCHIMOL, Samuel. 1945. “O cearense na Amazônia. Inquérito antropogeográfico sobre um tipo de imigrante”. Revista de Imigração e Colonização, ano VI, n. 4, dezembro. CAPELATO, Maria Helena. 1998. Multidões em cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas, Papirus. CARVALHO, Péricles Mello. 1941. “A concretização da ‘Marcha para o Oeste’”. Cultura Política, Rio de Janeiro, ano 1, n. 8, outubro. DEAN, Warren. 1989. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo, Nobel. FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. 1983. Exposição de fotografias. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV.

FURTADO, Celso. 1979. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Nacional. GINZBURG, Carlo. 2001. “‘Your country needs you’: a case study in political iconography”. History Workshop Journal. GOULART, Silvia. 1990. Sob a verdade oficial. São Paulo, Marco Zero/MCT/CNPq. GUILLEM, Isabel Cristina Martins. 2002. “Cidadania e exclusão social: a história dos soldados da borracha em questão”. Trajetos, n. 2, vol. 1. LINHARES, Maria Yedda & SILVA, Francisco Carlos Teixeira. 1999. Terra prometida: uma história da questão agrária no Brasil. Rio de Janeiro, Campus.

133

estudos históricos l 2007 – 40 MOLES, Abraham. 1974. O cartaz. São Paulo, Perspectiva. PINTO, Nelson Prado Alves. 1984. Política da borracha no Brasil: falência da borracha vegetal. São Paulo, Hucitec/Conselho Regional de Economia. RICARDO, Cassiano. 1970. Marcha para Oeste. 4ª ed. São Paulo, Edusp. SECRETO, Maria Verónica. 2003. “Ceará, a fábrica de trabalhadores: emigração subsidiada no final do século XIX”. Trajetos, vol. 2, n. 4. ———. 2006. “Capistrano de Abreu e J. F. Turner: a historiografia nacional e a história ambiental”. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2. ———. 2007. Soldados da borracha. Trabalhadores entre o sertão e a Amazônia no governo Vargas. São Paulo, Fundação Perseu Abramo. (Coleção História do Povo Brasileiro.)

TURNER, F. J. 2004. “O significado da fronteira na história americana”, em KNAUSS, Paulo. Oeste americano. Quatro ensaios de história dos Estados Unidos da América de Frederick Jackson Turner. Niterói, EdUFF. VARGAS, Getulio. 1938-1947. A nova política do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, vols. 2, 9 e 10. VELHO, Gilberto. 1979. Capitalismo autoritário e campesinato. Rio de Janeiro, Difel. VELLOSO, Mônica Pimenta. 1993. “A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11. WEINSTEIN, Barbara. 1993. A borracha em Amazônia: expansão e decadência (1859-1920). São Paulo: Hucitec/Edusp.

Resumo Este artigo analisa dois momentos e duas políticas de ocupação dos “espaços vazios” do governo Vargas. O primeiro momento é quando são anunciadas a marcha para Oeste e a incorporação da Amazônia numa política de colonização. O segundo, quando, na conjuntura da guerra e respondendo aos compromissos assumidos nos Acordos de Washington, se implementa uma política de mobilização de trabalhadores para a extração da borracha, produto estratégico para a guerra. O artigo explora as representações dos espaços geográfico e social dos sertões e da Amazônia nas criações de Chabloz e, finalmente, avalia os efeitos da propaganda, através da utilização de seus slogans, nas reclamações que as esposas dos trabalhadores fizeram chegar a Vargas. Palavras-chave: fronteira amazônica, soldados da borracha, “espaços vazios”, migração, propaganda, trabalho/trabalhadores

134

A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas

Abstract This article analyses two moments and two policies for the occupation of the “empty land” during president Vargas administration. The first moment was when government announced the march to the West and the incorporation of Amazonia in a policy of colonization. The second was when, in the context of World War II and responding to the commitments of the Washington Agreement, government implemented a policy of mobilization of workers for the rubber extraction, since rubber was a strategic product for the war. The article explores the representation of the geographic and social spaces of the “sertões” e the Amazonia in Chabloz creations and evaluates the effects of propaganda, through the use of slogans, in the claims that the workers’ wives directed to president Vargas. Key words: Amazonian frontier, rubber soldiers, “empty land”, migration, propaganda, work/workers Résumé Cet article analyse deux moments et deux politiques d’occupation des “espaces vides” pendant le gouvernement Vargas. Le premier moment a été quand le gouvernement a annoncé la marche vers ouest et l’incorporation de l’Amazonie à la politique de colonisation. Le second, quand, dans la conjoncture de la II Guerre Mondiale et en répondant aux compromis des Accords de Washington, a été mise en oeuvre une politique de mobilisation de travailleurs pour l’extraction du caoutchouc, produit stratégique pour la guerre. L’article explore la représentation des espaces géographiques et sociaux des “sertões” et de l’Amazonie dans les créations de Chabloz, et finalement examine les effets de la propagande à travers l’utilisation de ses slogans dans les réclamations que les femmes des travailleurs ont adressé au président Vargas. Mots-clés: frontière amazonique, soldats du caoutchouc, “espaces vides”, migration, propagande, travailleurs/travail

135

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.