A Oficina de Circuito Alterado como Metodologia Ativa de Ensino/Aprendizagem

May 26, 2017 | Autor: Alexandre Fernandez | Categoria: Ensino, Música, Educação Musical, Música Experimental, Musica e tecnologia, Educação de Jovens e Adultos
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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR ALEXANDRE MARINO FERNANDEZ

A OFICINA DE CIRCUITO ALTERADO COMO METODOLOGIA ATIVA DE ENSINO

Artigo entregue ao Orientador Prof. Dr. Carlos Jorge como exigência parcial para a conclusão do curso.

SÃO PAULO 2012

RESUMO Nesta monografia de conclusão de curso, pretendo apresentar, através de Relato de Experiência, a oficina de Circuito Alterado como Metodologia Ativa de Ensino para os cursos de Produção Musical e Produção Musical Eletrônica, apresentando os conceitos de Circuito Alterado e Metodologia Ativa de Ensino, estabelecendo relações contextuais entre o Circuito Alterado, o Ensino, as Artes e a Sociedade Contemporânea. Palavras-chave: Circuito Alterado, Metodologia Ativa de Ensino, Música Experimental

ABSTRACT In this paper, I intend to present, through Experience Report, Circuit-Bending and Hardware Hacking workshops as Active Teaching Methodology for Music Production and Electronic Music Production courses, presenting the concept of Circuit-Bending and Hardware Hacking and Active Teaching Methodology, and establishing contextual relationships between Circuit-Bending, Hardware Hacking, Teaching, the Arts and Contemporary Society. Keywords: Circuit-Bending, Hardware Hacking, Active Teaching Methodology, Experimental Music.

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INTRODUÇÃO 1. Definição Conceitual O primeiro passo nessa empreitada é definir os dois objetos do estudo: Circuito Alterado e Metodologia Ativa de Ensino. 1.1. Circuito Alterado Circuito Alterado é um termo adotado por mim para traduzir dois termos em inglês: CircuitBending, criado por Qubais Reed Ghazala em 1992 (Ghazala, 2005), e Hardware Hacking criado por Nicolas Collins na mesma época (Collins, 2006), que, essencialmente, consistem em abrir circuitos eletrônicos – brinquedos musicais, computadores, aparelhos de rádio, tocadores de CD e DVD, etc. –, alterar a forma como a eletricidade trafega por dentro de seus componentes, através da criação de novos caminhos, inclusão e/ou exclusão de componentes eletrônicos, conexão entre circuitos, até a adição de elementos orgânicos (frutas, legumes, corpos humanos) nesse caminho. Refere-se, também, à criação de circuitos eletrônicos simples, com baixo custo de produção e simples confecção, que utilizam componentes comuns (circuitos integrados à venda em qualquer loja de microcomponentes, resistências, capacitores, ldrs, etc.), grande margem para modificações em suas estruturas, sendo cada criação, em geral, singular, e que visam a produção de sons e/ou vídeo, como é o caso do Atari Punk Console ou do Quadrok6. É interessante notar como essa prática de criação sonora e musical, ruidosa por natureza, se enquadra bem no habitat contemporâneo, nessas novas “paisagens sonoras das quais o ruído se torna elemento integrante incontornável, impregnando as texturas musicais” (Wisnik, 2002: 47) Típica da música contemporânea, é uma prática que “se defronta com a admissão de todos os materiais sonoros possíveis: som/ruído e silêncio, pulso e não-pulso”. (idem: 31) No Brasil, entretanto, ainda é uma prática pouco conhecida do público. Alguns dos principais Alteradores de Circuitos brasileiros são o paranaense Pan&Tone (http://panetone.net), o duo paulistano N-1 (http://n-1.art.br) e o também paulistano Dada Attack (http://dadaattack.com). Nos países europeus e na América do Norte é um movimento com um pouco mais de popularidade e é possível encontrar uma cena efetivamente ocorrendo. Inclusive se expandindo para o mundo da música pop, com artistas como U2, Radiohead, Flaming Lips, Björk utilizando aparelhos musicais alterados em seus set-ups.

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Fernando Iazzetta argumenta que, no caso do Circuito Alterado, a elegância e a infalibilidade, que são marca das tecnologias hi-fi e aparecem na metade do séc. XX, “dão lugar a um desprendimento que expõe a sua vulnerabilidade e transforma os seus defeitos em virtudes. O hi-fi passa a dividir espaço com uma estética low-fi que permeia diversas formas artísticas contemporâneas.” (Iazzetta, 2009: 213) Reed Ghazala, criador do termo Circuit-Bending e um dos principais propagadores da arte em âmbito mundial comenta que grandes novos sons e realidades musicais podem ocorrer quando você senta com um instrumento 'fora da teoria', um instrumento verdadeiramente alienígena, e escuta seu som metamorfoseado. Afinal, em mãos você tem um instrumento que não existe em lugar algum do universo e produz sons nunca antes escutados1. (Ghazala, 2004: 99) Para finalizar essa primeira conceitualização, vale a pena citar Collins, comentando a forma como suas oficinas são, normalmente, encerradas: nós lotamos a galeria, lobby ou o bar com mesas, cada uma com seu pequeno amplificador ou alto-falante; os participantes, então (por volta de 25), se organizam em grupos de dois a três em volta das mesas. Alguns “tocam”os instrumentos que criaram durante a semana, enquanto outros vão soldando até o fim do tempo, ocasionalmente testando suas criações através dos alto-falantes. Parte instalação, parte performance, parte rito social - o ruído resultante é algo nunca visto antes. Depois de cinco dias alterando circuitos, nenhum dos participantes pode se considerar um engenheiro, mas, coletivamente, eles são realmente muito espertos 2. (Collins, 2008: 38) Infelizmente a oficina que será relatada no desenvolvimento desta monografia não foi tão longa e não foi encerrada dessa forma, mas pode ser uma boa forma de encerrar um semestre letivo, por exemplo.

1 Tradução livre do seguinte trecho: “great new sounds and musical realities can occur as one sits with one's instrument, a out-of-theory truly alien instrument, and listens to its metamorphosed output. After all, now in hand is an instrument that exists nowhere else in the universe and that presents sounds no one else has yet heard.” 2 Tradução livre do seguinte trecho: “We fill a gallery, lobby, or bar with tables, each with its own small amplifier and speaker; then partici- pants (as many as 25) set up in groups of two or three around the tables. Some “perform” on the instruments they’ve made in the course of the week, while others solder on until closing time, oc- casionally testing their evolving circuit through their speakers. Part installation, part performance, part social ritual—the resulting din is unlike anything else I’ve heard. Af- ter five days of hacking circuits, none of the participants can claim to be an engineer, but collectively they are very smart indeed.”

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1.2. Metodologia Ativa de Ensino Como bem define Geraldo Alécio de Oliveira: Metodologias ativas são processos interativos de conhecimento, análise, estudos, pesquisas e decisões individuais ou coletivas, com a finalidade de encontrar soluções para um problema, um caso, ou construir e executar um projeto. O professor atua como facilitador ou orientador para que o estudante faça pesquisas, reflita e decida por ele mesmo, o que fazer para atingir um objetivo. É um processo que estimula a autoaprendizagem e facilita a educação continuada porque desperta a curiosidade do aprendiz e, ao mesmo tempo, oferece meios para que possa desenvolver a capacidade de análise de situações e apresentar soluções em consonância com o perfil psicossocial da comunidade na qual está inserido. (Oliveira, S/d: 1) Oliveira salienta a importância da interdisciplinaridade nesse processo, e aponta que essas metodologias já têm sido amplamente aplicadas em áreas da saúde, com bastante sucesso. Entretanto, destaca a facilidade de trabalhar com Metodologias Ativas de Ensino em qualquer curso, de qualquer área, desde que sejam quebradas as noções tradicionalistas (tecnicistas) de conhecimentos atomizados e compartimentados, atuando, assim, de forma “mais dinâmica e integrada”. O problema principal é o confrontamento com essas estruturas isoladas das instituições de ensino, com suas grades curriculares baseadas nos processos de disjunção, redução e especialização fechada. Ainda segundo Oliveira, desta forma, as instituições “atuam de maneira isolada, constituindo ilhas de saberes onde a comunicação com as demais áreas de formação do egresso é dificultada. ” (Oliveira, S/d: 2) Na lógica da Metodologia Ativa de Ensino, o aluno é o centro do processo de aprendizagem e não o professor. Sendo assim, o processo de aprendizagem “abrange um processo de crescimento e desenvolvimento da pessoa em sua totalidade, abarcando minimamente quatro grandes áreas: a do conhecimento, a afetivo-emocional, a de habilidades e a de atitudes e valores.” (idem: 3) Desta forma, estudante é envolvido como um indivíduo, levando em conta sua singularidade, valorizando seu lado intelectual, mas também seu lado afetivo, cultural, social e histórico. Esse tipo de Metodologia privilegia o que Edgar Morin chama Condição Humana - o caráter complexo do ser humano, que engloba três circuitos: cérebromentecultura; razãoafetopulsão; e, finalmente, indivíduosociedadeespécie. Para o filósofo francês, “todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana.” (Morin, 2011: 49) Sob esse ponto de vista, torna-se fundamental, então, quebrar o “domínio da pseudorracionalidade” 5

que se abate sobre a humanidade por influência da expansão da cultura ocidental que ocorre entre os sécs. XVIII e XX, chegando em seu auge de dominação cultural ao final do séc. XX e começo do séc. XXI. Ainda segundo Morin, esse domínio “atrofiou a compreensão, a reflexão e a visão em longo prazo.” Morin continua sua crítica apontando que a insuficiência desse pensamento pseudorracional para lidar com os graves problemas que aparecem com a mundialização da cultura “constituiu um dos mais graves problemas para a humanidade.” (idem: 42) Finalizando essa primeira parte de conceitualização, Geraldo Alécio de Oliveira destaca dez princípios básicos para uma boa Metodologia Ativa de Ensino (Oliveira, S/d: 9): 1. Ser construtivista (aprendizagem significativa) 2. Ser colaborativa (em grupo) 3. Interdisciplinar (integrado) 4. Contextualizada (realidade) 5. Reflexiva (ética e valores) 6. Crítica 7. Investigativa (aprender a aprender) 8. Humanista (social) 9. Motivadora (emoção) 10. Desafiadora O autor, entretanto, destaca que um bom método ativo de aprendizagem não necessita, obrigatoriamente, contemplar todos os dez princípios: Muitas vezes, bons métodos podem contemplar parcialmente as características mencionadas, quase todas ou todas. Há de se considerar que existem outras variáveis presentes, como o docente, a sala de aula, a infraestrutura, a fase do curso, as competências intelectuais dos estudantes, a idade e o sexo, os fatores emocionais, os fatores sociais, a motivação, a concentração, os hábitos de estudar, dentre outras. O importante é atender a construção dos saberes necessários para o bom exercício profissional como o saber aprender, o saber fazer, o saber ser, o saber conviver, o saber transformar-se, o saber agir e o saber reproduzir. (Oliveira, S/d: 13) Para esta monografia, utilizarei os dez princípios citados por Oliveira como forma de avaliação da eficácia da oficina relatada, buscando analisar se ela efetivamente funciona como foma de excitar a curiosidade dos participantes e auxilia na construção dos saberes (saber, aprender, fazer, ser, conviver, transformar-se, agir e reproduzir).

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2. Justificativa O artigo pretende destacar a importância da utilização das Metodologias Ativas de Ensino na busca de resgatar a curiosidade dos alunos, desgastada por anos de formação nas Metodologias Tradicionais, onde o professor é o centro do processo de ensino e o conhecimento é visto como um compêndio de informações que devem ser transmitidas para os alunos, vistos como receptores passivos. Como bem coloca o filósofo da educação Edgar Morin: A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência. Este uso total pede o livre exercício da curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência, que, com frequência, a instrução extingue e que, ao contrário, se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, de despertar. (Morin, 2011: 37) 3. Objetivos 3.1 Geral •

O objetivo principal desta monografia é inscrever as oficinas de Circuito Alterado como Metodologia Ativa de Ensino para os cursos de Produção Fonográfica e Produção Fonográfica: Produção de Música Eletrônica.

3.2 Específicos •

Apresentar o Circuito Alterado como prática artística relevante no cenário contemporâneo.



Apresentar a oficina de Circuito Alterado como possível Metodologia Ativa de Ensino.



Apontar a importância da utilização das Metodologias Ativas de Ensino no âmbito da escola de Artes, principalmente nos cursos relacionados à Música.



Estabelecer relações contextuais entre o Circuito Alterado, o Ensino, as Artes e a Sociedade Contemporânea.

4. Metodologia Pretendo trabalhar o tema acima descrito com o relato de experiência de uma oficina de Circuito Alterado ministrada em São Paulo, em julho de 2012, por Nicolas Collins, estabelecendo relações entre a oficina e as referências bibliográficas assinaladas ao final desta monografia.

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DESENVOLVIMENTO 1. Relato de Experiência: Oficina de Nicolas Collins em São Paulo Após a descrição conceitual dos objetos de análise, da apresentação da justificativa do projeto, de seus objetivos e da metodologia de trabalho, passo agora, então, para o relato de experiência da Oficina de Circuito Alterado realizada por Nicolas Collins em São Paulo, no dia 5 de julho de 2012. A oficina teve duração de 8 horas, sendo realizada em um dia (das 9h às 17h), no espaço Intermeios em Pinheiros, com produção do grupo Mobile (http://www.eca.usp.br/mobile/). A oficina foi gratuita e, para participar, era necessário levar os seguintes materiais: – Um rádio portátil à bateria (sendo que a banda AM é mais importante do que a banda FM), com o seletor de frequência analógico. Rádios grandes são mais fáceis do que os pequenos e os mais velhos soam melhor do que os mais novos. O rádio deve possuir um alto-falante embutido. E, o mais importante, DEVE SER ALIMENTADO Á BATERIA! – Dois ou mais brinquedos produtores de sons à bateria, com baterias apropriadas. Bem como com o rádio, o brinquedo deve ser descartável, não muito pequeno e deve possuir um altofalante embutido. Um brinquedo produtor de sons é mais interessante do que um mudo, e sons sampleados (como vozes, sons de animais ou instrumentos musicais) são mais úteis do que simples beeps. Quanto mais botões e interruptores, melhor, em geral, teclados musicais têm pouco potencial para alterações interessantes. Brinquedos produzidos nos últimos 10 anos não são alteráveis – por favor tentar encontrar brinquedos antigos, usados. E, claro, DEVEM SER ALIMENTADOS Á BATERIA! – Um ou mais alto-falantes destacados de qualquer tamanho (somente o alto-falante, não enclausurado em uma caixa). – 3 baterias de 9 volts. – Um pequeno pedaço de metal corroído ou áspero. – Um ferro de solda (leve, ponta fina), apoiador e estanho. – Ferramentas de mão (cortadores diagonais, desencapadores de fios, estilete, etc.) – Opcional: um cassette player descartável de qualquer tipo.

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1.1. Alto-falante como aparelho musical3 Nicolas Collins começa a oficina com um projeto bastante simples a baseado em um componente amplamente conhecido por todos: o alto-falante. Esse primeiro projeto, a construção de um Victorian Synthesizer (V.S. - Sintetizador Vitoriano, na tradução livre), é extremamente simples e subverte a função do alto-falante: reproduzir sons. A oficina começa de maneira lenta e simples, o sintetizador vai ficando mais complexo e interessante aos poucos, em pequenos passos. No primeiro deles, conecta-se através de garras tipo jacaré, o positivo e o negativo de uma bateria ao positivo e negativo do alto-falante (não sendo necessário conectar positivo com positivo e negativo com negativo). A conexão produz um estalo e empurra o alto-falante para cima ou para baixo, mantendo-o na mesma posição enquanto a conexão está estabelecida. É uma primeira deixa para que compreendamos um pouco melhor o funcionamento dessa caixa-preta com a qual estamos tão acostumados a trabalhar, mas que entendemos tão pouco. Todos os participantes, empolgados com a descoberta, passam a “brincar” de conectar e desconectar as baterias aos alto-falantes, produzindo ritmos simples, tocando entre si, experimentando os timbres específicos de cada alto-falante. O segundo passo é adicionar metal à equação. Ao adicionar um metal rugoso a esse simples circuito, ao nível de complexidade sonora aumenta, os simples estalos transformam-se em texturas até certo ponto aleatórias, até certo ponto controláveis (é possível obter algum tipo de controle gestual nesse tipo de manipulação, mas nem sempre o resultado obtido será o esperado). Collins salienta o fato de estarmos trazendo o “espírito” do metal, sua história, para os sons, já que, quanto mais velho e desgastado o metal, mais complexa será sua sonoridade. Essa simples adição permite uma demonstração do princípio da condutividade elétrica, além de ser um ótimo exemplo da diferença entre ritmo intencional e a aleatoriedade do objeto sonoro textural que floresce do metal rugoso envelhecido. Collins nos dá um tempo para explorar os diferentes materiais que cada um dos participantes trouxe. A curiosidade de cada um vai trazendo uma série de outras adições para os circuitos, inclusive algumas não propostas por Collins (como a mistura de dois ou três circuitos distintos, a seis mãos, etc.). O terceiro passo é efetivamente a construção do V.S.. Collins começa conectando as duas garras (positivo e negativo), em cima do cone do alto-falante, possibilitando, assim, que um processo de 3 Todos os projetos realizados durante esta oficina e mais alguns tantos estão descritos com precisão no livro Handmade Electronic Music: The Art of Hardware Hacking, de Nicolas Collis.

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retroalimentação da energia elétrica, com a mecânica, somada à gravidade gerem frequências, que variam de acordo com a posição a qual são seguradas as garras e a força aplicada. Logo em seguida demonstra que, ao colocar diferentes objetos metálicos leves sobre o cone do alto-falante, esse passa a funcionar de forma aleatória e intermitente, gerando, assim, um sintetizador que produz texturas interessantes e orgânicas, mesmo custando em média R$ 5,00! Nesse momento, a abertura para exploração é mais intensa, já que cada um dos participantes experimenta com diferentes objetos, uma quantidade diferente de objetos em cima do alto-falante e cada um tem um alto-falante de tamanho e potência diferentes. O ambiente da oficina vai ficando cada vez mais colaborativo, já que a diversidade de sonoridades proveniente desse simples experimento vai despertando a curiosidade dos participantes para com as realizações dos outros participantes. Essa primeira parte acaba com a finalização do Alto-falante Preparado (prepared loudspeaker), com a adição de caixas de ressonância em cima do cone, levando-o a soar de forma ainda mais distinta. O experimento, extremamente simples, permite, de forma lúdica e produtiva, abordar algumas questões importantes para a prática musical contemporânea: eletricidade, magnetismo, ritmo, textura, frequência, aleatoriedade, encadeamento, circuito, e nos incita a explorar de forma mais complexa elementos que parecem ser neutros ou não ter outras possíveis funções dentro do processo de produção musical, como o alto-falante, que, normalmente é encarado pelo músico como aparelho que tem a única função de amplificar o sinal musical, não podendo ser, ele próprio, gerador de sons musicais. Alguns pontos devem ser salientados dessa primeira parte da oficina. Como fica claro no parágrafo anterior, as discussões que podem florescer dessa primeira experiência (bem como de todas as outras), são de cunho bastante interdisciplinar. Sobre esse aspecto, cabe um pequeno desvio. Diversos autores têm apontado a importância da interdisciplinaridade na transformação da educação para o futuro. Edgar Morin é um desses. Em seu livro Os sete saberes necessários à educação do futuro, Morin fala da importância de quebrarmos o paradigma simplista cartesiano que se impõe em nosso modelo de educação. Esse paradigma, segundo ele, atua por separação e disjunção, quebrando a possibilidade de integração dos saberes, enfraquecendo a percepção global proveniente das relações contextuais entre diferentes universos. Esse enfraquecimento da percepção global, segundo Morin “conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos)”. (Morin, 2011: 38)

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Outra questão importante que aparece nesse primeiro momento é o evidente ambiente lúdico que floresce do “jogo” com os alto-falantes. Sobre esse aspecto importante, tanto do processo de conhecimento como das artes musicais, o livro Homo ludens de Johan Huizinga é uma importante contribuição. O antropólogo Alemão do começo do século XX (a obra foi escrita no final dos anos 1930), argumenta que o aspecto lúdico é mais antigo que a cultura: “O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica.” (Huizinga, 2000: 3) Ele argumenta que grande parte dos aspectos mais desenvolvidos de nossa civilização surgem do jogo e ainda possuem uma grande herança desse elemento lúdico: filosofia, direito, guerra, linguagem, poesia, música. Música e Conhecimento, aliás, têm grande relação com o jogo em sua origem. Huizinga afirma que na Grécia antiga, bem como em sociedades arcaicas do Oriente, a filosofia surge dos jogos de enigmas e adivinhações, sendo a própria origem da universidade marcada pelo elemento lúdico: A competição pode ser considerada um dos traços mais marcantes de toda a evolução da escolástica e das universidades. Durante muito tempo a moda dominante nas discussões filosóficas foi o problema dos 'universais', que era sempre seu tema central e conduziu a uma profunda divisão entre realistas e nominalistas. Tal fato foi certamente determinado por fatores essencialmente agonísticos, originando-se na necessidade fundamental de construir partidos opostos a propósito de todas as questões controversas. (...) Todo o funcionamento da Universidade medieval era eminentemente agonístico e lúdico. As intermináveis querelas, correspondendo às atuais discussões científicas e filosóficas em revistas etc., o solene cerimonial que ainda hoje é uma característica tão importante na vida universitária, o agrupamento dos especialistas em nationes, as divisões e subdivisões, os cismas, os abismos intransponíveis entre diversas orientações, todos estes fenômenos são próprios da esfera da competição e das regras lúdicas. (...) Toda forma de conhecimento, incluindo, evidentemente, a filosofia, é por natureza profundamente polêmica, e é impossível compreender qualquer polêmica a não ser em termos agonísticos. As épocas em que a humanidade fez as descobertas culturais mais importantes foram geralmente marcadas pelas mais violentas controvérsias. (Huizinga, 2000: 174) A música é outro exemplo evidente dessa herança lúdica: Conforme dissemos, o jogo situa-se fora da sensatez da vida prática, nada tem a ver com a necessidade ou a utilidade, com o dever ou com a verdade. Ora, tudo isto pode aplicar-se também à música. Além disso, as formas musicais são determinadas por valores que transcendem até nossas ideias sobre o visível e o tangível. Esses valores musicais só podem ser compreendidos através das designações que a eles aplicamos, termos específicos como ritmo e harmonia, que se aplicam igualmente ao jogo e à poesia. Não resta dúvida que o ritmo e a harmonia são fatores comuns, em sentido exatamente idêntico, à poesia, à música e ao jogo. (...) a música 11

nunca chega a sair da esfera lúdica. (idem: 177-178) O grande problema, é que a partir do final do séc. XVIII com o processo de industrialização e expansão do modo capitalista de produção que tomam rumo nesse período, o elemento lúdico vai perdendo força: Parece haver pouco lugar para o jogo no séc. XIX. Já no séc. XVIII o utilitarismo, a eficiência prosaica e o ideal burguês do bem-estar social (elementos que foram fatais para o barroco) haviam deixado uma forte marca na sociedade. Estas tendências foram exacerbadas pela revolução industrial com suas conquistas no domínio da tecnologia. O trabalho e a produção passa a ser o ideal da época, e logo depois o seu ídolo. (...) Este grotesco exagero da importância dos fatores econômicos foi condicionado por nossa adoração do progresso tecnológico, o qual por sua vez foi fruto do racionalismo e do utilitarismo, que destruíram os mistérios e absolveram o homem da culpa e do pecado. Mas esqueceram de libertá-lo da insensatez e da miopia, e a única coisa de que ele passou a ser capaz foi de adaptar o mundo à sua própria mediocridade. (idem: 212-213) Toda essa “adoração do progresso tecnológico” vai se intensificando no séc. XX, período que, apesar de importantes revezes a esse estilo de vida (Grandes Guerras, Crack da Bolsa, Crises do Petróleo, etc.), vai, como um vírus fatal, se apoderando de todas as esferas da vida, chegando, por volta dos anos 1950, aos âmbitos da arte, da música e da educação. Chegamos, hoje, a uma situação onde os aspectos econômico, funcional e utilitário são soberanos e inquestionáveis, deixando, assim, o aspecto lúdico de lado. A grande consequência desse contexto para a educação é a redução da curiosidade, do prazer de aprender, que resulta em um grande processo de desmotivação para os estudantes e para os professores (que sofrem, hoje, processos de depressão, como a síndrome de Burnout). Para o universo musical, o efeito é o congelamento da descoberta e da experimentação em detrimento do “tiro certeiro”, do “sucesso de vendas”, do hit, que leva a um processo de repetição de fórmulas que ficam evidentes em programas do tipo “Ídolos” e na baixa qualidade musical dos lançamentos tocados nas rádios e à venda nas redes on-line desse começo de séc. XXI4. É nesse contexto que práticas que valorizem a curiosidade e o ambiente lúdico se mostram tão fundamentais para quebrar essa lógica míope, zarolha que se impõe, reduzindo nossa capacidade criativa, como bem critica Edgar Morin, “o mundo dos intelectuais, escritores ou universitários, que deveria ser o mais compreensivo, é o mais gangrenado sob o efeito da hipertrofia do ego, nutrido pela necessidade de consagração e de glória.” (Morin, 2011: 84) 4 O economista francês Jacques Attali tem um excelente estudo sobre esse processo de influência mercadológica no mundo da música. Segundo ele, vivemos em um período histórico chamado Repetição, período de alienação, onde a cultura se transforma em commoditie, passa a ser mensurada por parâmetros quantitativos e não qualitativos. Perde a singularidade já que é criada com base na garantia de sucesso e lucro para os produtores e distribuidores, novos atores sociais que aparecem e passam a ditar os padrões artísticos a serem seguidos. (Attali, 1999: 20)

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1.2. Rádio como aparelho musical O próximo passo foi a alteração de um rádio de pilha. Primeiramente, Collins nos mostrou seu próprio aparelho, um rádio de pilha antigo montado em uma elegante caixa de charutos, do qual ele extrai sons interessantes e inesperados. Começamos, então, abrindo nossos rádios de pilha e explorando suas partes internas (rádios antigos, sem elementos digitais, são melhores para esse processo, no meu caso, utilizei um rádio novo, mas que usa tecnologia antiga, da marca Companheiro, de fabricação nacional). Nesse momento, a exploração é importante, tocar partes distintas do circuito leva a sonoridades diferentes. Cada rádio trazido por cada aluno, dependendo da época de fabricação, modelo, componentes utilizados, estado de conservação, etc., soa de uma maneira distinta. Outro fator que altera a sonoridade é a relação entre umidade e salinidade da pele, sendo assim, molhar com água a ponta do dedo faz com que o aparelho soe de uma forma, lambê-la faz com que soe de outra. Há também a diferença entre rádio AM e FM: o rádio AM, pela forma como a onda é codificada e decodificada, permite ao aparelho captar uma série de interferências eletromagnéticas (desde a interferência de outros equipamentos eletromagnéticos, até interferências geradas por eletromagnetismo natural), já o rádio FM permite captar menos a interferência desse tipo, porém possui um maior espectro de intensidade e volume, permitindo a geração de sons mais complexos em temos espectrais. Outro fator importante desse momento é a descoberta da interferência que dois aparelhos de rádio podem gerar um no outro. Durante esse período de experimentação, com a criatividade já bastante aguçada pela primeira hora de oficina, os participantes começam a incrementar seus rádios com uma série de elementos, tocar os circuitos de formas distintas, duplas e trios começam a estabelecer pequenos jogos musicais de pergunta e resposta, escolher rádios específicas para alterar e distorcer, explorar os espaços entre as rádios, procurando as interferências acima citadas... Faz-se necessário aqui, então, uma pequena digressão sobre a experimentação. Jorge Larrosa Bondía, em um excelente artigo intitulado Notas sobre a experiência e o saber de experiência, fala sobre o conceito de experiência. Segundo ele, a palavra implica “o que nos passa”, “o que nos acontece”, “o que nos chega”. Bondía parte do filósofo Walter Benjamin, que já havia notado a pobreza das experiências no mundo moderno. Para Bondía, essa pobreza da experiência no mundo moderno tem algumas raízes, as quais vale a pena apresentar. A primeira questão trazida pelo autor é a do excesso de informação - no mundo moderno, nos tornamos máquinas de obter informações e, com isso, nos fechamos para a experiência. A segunda 13

questão é a da opinião - sendo o sujeito moderno aquele que sempre opina, acaba por se fechar à experiência (aqui, de novo o autor cita Benjamin, para quem o periodismo é o grande dispositivo moderno de destruição da experiência, por seu foco na informação e na opinião). A escola moderna, salienta Bondía, ensina através desse binômio (Informação/Opinião), matando o potencial de experiência que a escola poderia desenvolver. O terceiro ponto é o da falta de tempo - o excesso de informação, de excitação nos faz vivenciar o tempo mais depressa, tudo é fugaz, efêmero (líquido, diria Zygmunt Bauman), com isso a memória é afetada, não guardamos mais nada, já que as informações devem ser sempre recebidas e a memória logo esvaziada para que as próximas informações tenham espaço para ser recebidas - nessa lógica, a experiência também é anulada, ou melhor, é impossível. O quarto ponto é o excesso de trabalho - na lógica capitalista e consumista, cada vez mais nos vemos obrigados a trabalhar em troca de capital para comprar nossas necessidades diárias, nessa lógica, o tempo dedicado ao trabalho destrói a possibilidade do tempo necessário para a experiência. O sujeito moderno, então, por essas características, é um sujeito de ação, que se crê poderoso para atuar no mundo (como já colocou de forma magistral Goethe em seu Fausto). A consequência disso, porém, é a hiperatividade, nossa marca fundamental como seres modernos, sempre em busca daquilo que somos, ou daquilo que não temos, não nos permitindo, assim, o tempo à experiência, já que o saber da experiência demanda a interrupção - “parar para pensar, para olhar, escutar, sentir, calar, ser paciente, dar-se tempo e espaço” (Bondía, 2002: 24) Ainda segundo o pesquisador espanhol, “somente o sujeito da experiência está (...) aberto à sua própria transformação.” (idem: 26). A questão, entretanto, é que o saber da experiência exige uma atitude diferente daquela que encontramos em nossas instituições de ensino. O saber da experiência, para Bondía, se dá na relação entre conhecimento e vida (não nos termos modernos: conhecimento como mercadoria e vida como satisfação das necessidades). Nessa lógica proposta por Bondía, diferentemente da concepção moderna, a relação entre conhecimento e vida se dão no âmbito singular, no conhecimento que o indivíduo adquire ao passar da vida, de acordo com suas experiências, de acordo com suas necessidades. Esse conhecimento não é neutro, objetivo, mas sim apaixonado, subjetivo, carregado das necessidade singulares e individuais. Seu caráter é existencial (dependente da existência individual). O saber da experiência, então, exige passividade, paciência e, fundamentalmente, estar aberto para a incerteza, para o caótico e aleatório. Aprender a lidar com a incerteza, aliás, é ponto fundamental para a transformação de nossas instituições de ensino, que, segundo Morin, lidam com a lógica da ciência ocidental, que procura a todo custo a certeza e a segurança, com isso fechando-se para o 14

mundo: O surgimento do novo não pode ser previsto, senão não seria novo. O surgimento de uma criação não pode ser conhecido por antecipação, senão não haveria criação. (...) A história avança, não de modo frontal como um rio, mas por desvios que decorrem de inovações ou de criações internas, de acontecimentos ou de acidentes externos. A transformação interna começa com base em criações inicialmente locais e quase microscópicas, efetua-se em meio inicialmente restrito a alguns indivíduos e surge como desvios em relação à normalidade. Se o desvio não for esmagado, pode, em condições favoráveis proporcionadas geralmente por crises, paralisar a regulação que o freava ou reprimia, para, em seguida, proliferar de modo epidêmico, desenvolver-se, propagar-se e tornar-se tendência cada vez mais poderosa, produzindo a nova normalidade. (Morin, 2011: 71) As práticas do Circuito Alterado têm a incerteza, o aleatório, o caótico como base de sua atuação artística. No caso da alteração de rádios de pilha, o resultado obtido pela atuação do Alterador depende de uma série enorme de fatores (desde o sons que a estação de rádio vão tocar naquele momento, passando pelas condições da pele do alterador, as características do rádio em questão, as condições climáticas e os ruídos eletromagnéticos do ambiente em que a performance se dá, etc.). Para que a performance com rádios alterados seja interessante, o alterador tem que estar necessariamente nesse estado de passividade, sensibilidade e atenção que Bondía afirma ser necessário para que se desenvolva um ambiente realmente experimental. 1.3. In/Out, treinamento de solda Para que esse rádio alterado possa ser um "aparelho musical" utilizável em performances, entretanto, é necessário expandir suas qualidades acústicas, já que os alto-falantes desse tipo de rádio têm sérias deficiências quanto a intensidade sonora e resposta de frequência. Conectar sua saída de fones de ouvido (quando existentes) a um sistema de som não é uma opção, já que pode, caso exista algum curto-circuito em qualquer parte do sistema, eletrocutar quem toca o circuito. Sendo assim, Collins passa para a próxima etapa da oficina, onde aprendemos a montar microfones de baixo custo, com uma placa piezoelétrica, um indutor e um alto-falante. Cada um desses captadores tem uma característica particular e, novamente, compreende-se um pouco mais dos elementos que estão a nossa volta. A placa piezoelétrica é o alto-falante utilizado em grande parte dos aparelhos simples que emitem sons (brinquedos sonoros, telefones, computadores, relógios, etc.). É um componente eletrônico extremamente barato, que funcionam pela ativação de cristais. O indutor é uma espécie de bobina e, como toda bobina, tem a capacidade de captar campos eletromagnéticos, no caso do rádio alterado, utiliza-se o indutor como captador dos sons emitidos pelo alto-falante embutido no rádio, podendo, assim, captar o espectro sonoro completo sem a 15

necessidade de conectar o sistema através de cabos e correr o risco de ser eletrocutado. Por fim, os alto-falantes, que no começo da oficina são utilizados para produzir sons, agora são subvertidos novamente, sendo utilizados para captação de sons - aprende-se, então, muito sobre a construção e o funcionamento de microfones dinâmicos5. Nesta etapa da oficina, aprende-se a soldar, importante passo para a próxima etapa. O aprendizado da técnica de solda, aliás, pede uma nova digressão. Collins, durante o momento em que estávamos soldando os componentes, produzindo esses microfones de baixíssimo custo, salienta o baixo custo dos microfones, comentando a importância de saber produzir e construir seus próprios equipamentos, não ficando, assim, reféns da indústria. Sobre esse ponto o filósofo francês Bernard Stiegler, no artigo The Age of De-proletarianisation: Art and teaching art in postconsumerist culture, faz uma ótima reflexão. Segundo ele, com a difusão e expansão, durante o séc. XX, do sistema capitalista consumista, ocorre um processo chamado por ele: proletarização generalizada. Segundo Stiegler, nesse modelo econômico social, espera-se dos seres humanos que trabalhem em suas funções especializadas e consumam todo o resto necessário com o dinheiro recebido em troca desse trabalho especializado. Com isso, toda uma sorte de tarefas que antes eram de responsabilidade de todos, passam a ser responsabilidade única e exclusiva dos especialistas; e uma grande quantidade de habilidades que demoramos milênios para aprender e aperfeiçoar e que faziam parte do repertório de habilidades de qualquer ser humano há 100 ou 200 anos são perdidas, já que não são importantes para nossa função profissional (não fazem parte do nosso job description). Nos tornamos proletários no sentido original da palavra definido por Marx, a perda de conhecimento e capacidade em níveis profundos. Segundo Stiegler: Com a generalização da proletarização, o conhecimento humano é curtocircuitado como resultado de sua reprodução e implementação tecnológica, levando, após a Segunda Grande Guerra (...), para a globalização do modelo consumista. No modelo consumista, não é apenas o saber fazer (savoir-faire) dos trabalhadores que se torna obsoleto, mas também o saber viver (savoir-vivre) dos cidadãos, que assim transformam-se em meros consumidores: um bom consumidor é ambos: absolutamente passivo e irresponsável, o oposto completo daquilo que Kant e a filosofia Iluminista em geral chamaram maturidade, isto é, o cidadão à medida que ele(a) atinge a racionalidade - em particular, de acordo com Kant, pelo seu conhecimento 5 Nesse momento Collins nos conta uma anedota interessante que vale a pena ser mencionada: Paul McCartney, no início da carreira dos Beatles, reclamava para o engenheiro de gravação do estúdio Abbey Road sobre a sonoridade de seu baixo. A referência do baixista era o som obtido pelos engenheiros da estadunidense Motown Records. O pedido de McCartney fez com que um engenheiro do estúdio Abbey Road viajasse para os EUA e procurasse descobrir o segredo “mágico” da gravadora estadunidense. Para surpresa do engenheiro e dos músicos britânicos, os engenheiros da Motown utilizavam um alto-falante de grande diâmetro como microfone, captando o som reproduzido pelo amplificador do baixo. Esse é o mesmo princípio, aliás dos microfone de Sub-Grave que são vendidos comercialmente e custam uma fortuna.

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de leitura e escrita.6 (Stiegler, 2010: 11) Dado esse contexto social, Stiegler propõe a necessidade de um processo amplo de desproletarização, isto é, “a retomada do conhecimento de todos os tipos.” (idem: ibidem) Sendo assim, atividades como essa proposta por Collins, podem despertar nos participantes o desejo de produzir suas próprias ferramentas, tornando-se menos dependentes das soluções industrializadas que são padronizadas, normalizadas e, obviamente, muito mais caras. Além, é claro, de todo o aprendizado envolvido na produção dessas ferramentas, que para Stiegler, são a chave para o processo de revolução necessário para sairmos da crise social em que nos encontramos. Segundo o filósofo francês, o momento de crise em que nos encontramos é fruto de, entre outros fatores, uma séria crise da energia libidinal. Para Stiegler, o consumismo tem como base as estratégias de marketing e publicidade que visam atiçar os desejos dos consumidores. O grande problema começa quando o processo de proletarização atinge níveis elevados. Somando-se a isso uma nova crise de eficiência capitalista que gera desemprego e aumento no nível de desigualdade social, o efeito colateral é a perda da energia libidinal dos cidadãos (consumidores), que entram em processos de depressão e deixam de consumir, gerando um problema grave para a continuidade do sistema: O consumismo liquida o desejo dos indivíduos: o desenvolvimento do consumismo depende do curto-circuito dos sistemas sociais que transforma as pulsões em desejos, isso é, em fidelidade. A transformação das pulsões em desejos constitui o que Lyotard chamou “economia libidinal” - por exemplo, a relação inicial mãe/criança como descrita por Donald Winnicott, dentro da qual o objeto transicional aparece como matriz de todas as formas de interação adultas que são as artes, ciências, e todas atividades de sublimação social e investimentos individuais no coletivo. O Consumismo curto-circuitou o papel educativo dos pais, através do qual a primeira identificação que constitui a formação do ego ideal, do ego e superego é produzida, e, também, curto-circuitou a educação nacional, que permite o processo secundário de identificação que permite idealizar as figuras de conhecimento e disciplina do espírito. É dessa forma que o consumismo, destruindo a libido, se torna baseado na pulsão - a destruição da libido significa que as pulsões não mais são realizadas. O consumismo tenta atar os consumidores e força-los a sujeitar-se pela dependência, ou melhor, vício7. (Stiegler, 2010: 12) 6 Tradução livre do seguinte trecho em inglês: “With general proletarianisation, human knowledge is short-circuited as a result of its technological reproduction and implementation, leading, after the Second World War (which is the time of Duchamp strictly speaking), to the globalisation of the consumerist model. In the consumerist model it is not only the know-how (savoir-faire) of workers that becomes obsolete, but also the knowledge of how to live (savoirvivre) of citizens, who thus become as such mere consumers: a good consumer is both utterly passive and irresponsible, the complete opposite of what Kant and Enlightenment philosophy in general called maturity, that is, the citizen insofar as he or she attains rationality – in particular, according to Kant, through his or her knowledge of reading and writing.” 7 Tradução livre do seguinte trecho: “Consumerism liquidates the desires of individuals: the development of consumerism depended upon short-circuiting the social systems that transform the drives into desire, that is, into fidelity. The transformation of the drives into desire constitutes what Lyotard called a “libidinal economy” – for

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Essa análise de Stiegler acerca da sociedade contemporânea mostra a grande importância que têm estratégias que procurem ampliar os conhecimentos dos alunos não somente em termos informacionais e mercadológicos, mas em técnicas mais simples, como por exemplo a técnica de soldagem (que pode ser de extrema utilidade em situações domésticas), além de chamar a atenção para a necessidade de estratégias que procurem fornecer técnicas e ferramentas para que os alunos deixem de ser meros consumidores e passem a ser, também, produtores. 1.4. Circuit-Bending A última parte da oficina consiste em alterar um brinquedo produtor de sons, utilizando a técnica do Circuit-Bending. Aproveitando os conhecimentos obtidos nas três primeiras partes da oficina esta quarta e final parte da oficina faz muito mais sentido. Neste momento, cada participante abre seu brinquedo produtor de sons e começa a explorá-lo. A primeira etapa é explorar o circuito da mesma forma como fizemos com o rádio, buscando os elementos que possam fornecer melhor resultado sonoro ao serem alterados. Normalmente esse componente é um resistor. Ao encontrá-lo, a próxima etapa é cortar o circuito e remover o componente. Começa então um novo processo de experimentação, procurando quais os melhores componentes para serem adicionados a esse circuito. São infinitas as possibilidades, desde a adição de potenciômetros, outros tipos de resistores (como os ldr, sensíveis à luz) ou ainda de pontos de contato para o corpo. Finalizado esse processo de experimentação, o próximo passo é soldar o(s) novo(s) componente(s) ao circuito e fechar o brinquedo, sendo ainda possível algum tipo de alteração na estrutura externa do brinquedo para acomodar os novos controles adicionados. É importante notar o ambiente colaborativo que emerge nesta etapa da oficina. É um ambiente desenvolvido ao longo do tempo, com todo o clima lúdico debatido acima e que se intensifica nesta etapa final, já que cada brinquedo tem uma característica muito diferente. A singularidade dos circuitos para alterar é muito maior do que no caso dos rádios e as alterações possíveis também. Esse ambiente colaborativo, aliás, é um último ponto que vale a pena ser abordado com um pouco example, the early mother/child relation as described by Donald Winnicott, within which the transitional object appears that, for Winnicott, is the matrix of all those adult forms of play that are the arts, sciences and all the activities of social sublimation and individual investment in the collective. Consumerism has short-circuited the educative role of parents, through which the primary identification that constitutes the condition of the formation of the ego ideal of the ego and the superego is produced, and has, too, short-circuited national education, which enables secondary identification processes to be bound to idealised figures of knowledge and to the disciplines of the spirit. It is in this way that consumerism, destroying the libido, becomes drive-based – the destruction of the libido means it is no longer capable of binding the drives. Consumerism tries to bind consumers and make them submit by producing dependence, that is, addiction.”

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mais de atenção antes de concluir o estudo. Bernard Stiegler pode novamente ser uma interessante contribuição nesse sentido. O filósofo francês aponta outro importante problema (também decorrente do modelo consumista) que enfrentamos nos dias de hoje, o processo de desindividuação. Antes de entrar na questão da desindividuação propriamente dita, é importante contextualizar um pouco o trabalho de Stiegler. Para ele, não vivemos em uma sociedade industrial ou pós-industrial, mas sim na era hiperindustrial. O principal sintoma dessa era é a perda da singularidade humana de forma generalizada. Para ele, a sociedade hiperindustrial começa a ser gestada no ano de 1835, ano de criação do jornal La Presse, inventor da publicidade; no ano seguinte surge a primeira agência de informação e em 1865, Louis Havas se junta com a Sociedade Geral de Anúncios para criar a Havas Publicidade. Outro fato importante ocorre entre 1917 e 1929 quando o sobrinho de Freud utiliza as descobertas do pai da psicanálise para criar as relações-públicas: “o controle do inconsciente e do corpo pela manipulação de fantasmas para suscitar desejos; a captação lógica e sistemática da libido dos indivíduos por objetos fetichizados” (Stiegler, 2007: 33-34). As relações-públicas, anos mais tarde se transformarão no marketing. Para ele, o capitalismo passa, assim, da exploração de energias naturais em sua fase industrial, para a exploração da energia libidinal, através da manipulação do desejo, em sua fase hiperindustrial. Essa nova forma de capitalismo tende a captar e a canalizar o potencial libidinal dos indivíduos, isto é, seus desejos, porque é preciso que eles desejem os objetos para que os consumam, mas “essa captação é destrutiva, é um controle destrutivo, como se diz também na genialidade mecânica, isto é, aquilo que é submetido ao controle acaba sendo destruído por aquilo que ele controla.” (idem: 26) Dentro da lógica de consumismo globalizado a que chegamos desde os anos 1990, o problema da desindividuação passa a ser generalizado. Segundo Stiegler, “individuar-se é aprender, experimentar, tornar-se algo através da passagem ao ato a partir do potencial que reside em cada alma noética.” (Stiegler, 2010: 16) Nicolas Bourriaud (curador francês), comentando a obra de Félix Guattari também argumenta sobre a importância da individuação a partir da forma como Guattari aborda a questão da subjetividade: A subjetividade como produção, no dispositivo guattariano, desempenha o papel de pivô ao qual os modos de conhecimento e ação podem se engatar livremente e se lançar em busca das leis do socius. (...) A finalidade última da subjetividade é a conquista incessante de uma individuação. A prática artística forma um território privilegiado dessa individuação, fornecendo modelizações potenciais para a existência humana em geral. (Bourriaud, 2009: 123) 19

A grande questão, entretanto, é que não há individuação que ocorra no âmbito da individualidade, é necessário um processo de transindividuação (individuação mais ampla e profunda que ocorre entre indivíduos de uma mesma comunidade). Como bem coloca Bourriaud “a essência da humanidade é puramente transindividual, formada por pelos laços que unem os indivíduos em formas sociais sempre históricas (Marx: a essência humana é o conjunto das relações sociais)” (idem: 25) Entretanto, para que o processo de transindividuação seja efetivamente realizado, são necessários tempo e disponibilidade por parte dos indivíduos, commodities escassos no período atual. Como exemplo, Stiegler cita o tempo médio que os espectadores param diante das obras no museu do Louvre: 42 segundos - tempo que impossibilita a criação de um circuito de transindividuação - pode no máximo, segundo o autor, criar um curto-circuito. Sendo assim, a guinada mecânica da percepção, que ocorre a partir da invenção da fotografia, do fonógrafo e etc. e tem seu auge nos anos 1990 com a chegada dos computadores domésticos e a internet, engendrou um processo de desindividuação coletiva, “que destrói o coletivo e destrói a cultura. E essa desindividuação é também um tipo de proletarização, dado que o termo proletário, de fato, refere-se a aqueles que perderam seu conhecimento – seu savoir-faire (saber fazer), seu savoir-vivre (saber viver), e seu conhecimento teórico.” (Stiegler, 2010: 17) Esse processo de transindividuação incitado pelo ambiente colaborativo da oficina torna-se muito importante nos dias de hoje, principalmente no âmbito da educação universitária, e práticas que estimulem esse ambiente colaborativo devem ser adotadas ao máximo, já que a escola deve ter uma grande parcela de responsabilidade na retração e inversão do processo de desindividuação que toma conta de nosso mundo consumista de proletarização generalizada.

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CONCLUSÃO Nesse estudo, descrevi, através do relato de experiência, uma oficina de Circuito Alterado ministrada por Nicolas Collins em São Paulo, em Julho de 2012. Nesse relato, procurei estabelecer relações contextuais entre a oficina e alguns aspectos da sociedade contemporânea. Cabe agora, no âmbito da conclusão, analisar se essa oficina se enquadra como um bom exemplo de Metodologia Ativa de Ensino/Aprendizagem. Para tal, utilizarei os dez princípios enumerados por Geraldo Alécio de Oliveira, descritos na Introdução desse estudo (ser: construtivista; colaborativa; interdisciplinar;

contextualizada;

reflexiva;

crítica;

investigativa;

humanista;

motivadora;

desafiadora). Em primeiro lugar o aspecto construtivista: a oficina de Collins tem um caráter evidentemente construtivista já que começa com um projeto simples que se utiliza de elementos extremamente conhecidos dos participantes (alto-falantes e baterias) e vai trazendo uma série de outros elementos, ampliando o nível de complexidade com o passar do tempo. O segundo princípio, ser Colaborativa, também é bastante evidente, já que o clima da oficina é bastante colaborativo e todos se ajudam (emprestando componentes, ensinando técnicas, juntando circuitos, etc.) O final proposto por Collins em suas oficinas mais longas – uma espécie de concerto onde todos os participantes formam um ensemble e apresentam suas criações para o público também denota o princípio colaborativo. A interdisciplinaridade é outro elemento forte - como já foi debatido no desenvolvimento desse trabalho - da oficina de circuito alterado, trazendo questões da física, da música, da elétrica, do design, entre outras questões que podem aparecer nas oficinas. Os itens 4, 5, 6 e 8 (ser Contextualizada, Reflexiva, Crítica e Humanista) dependem bastante da atuação do professor (ou seria melhor usar o termo Mediador?). Collins procurou trazer questões contextuais para a oficina, procurando fazer críticas, por exemplo, às corporações que cobram uma fortuna por equipamentos que podem ser construídos com um custo muito menor. Outro potencial contextualizador, reflexivo e crítico das oficinas reside no fato de a matéria-prima principal do Circuito Alterado ser o lixo eletrônico, outro grande problema de nossa era consumista, nesse sentido, representa um forte apelo social. Durante a oficina, Collins não tocou nesse assunto, porém

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no concerto que apresentou no dia anterior à oficina, no Itaú Cultural, apresentou uma performance chamada Salvage, onde utiliza um circuito de telefonia encontrado no lixo como elemento principal de sua performance. Sendo assim, há um forte potencial contextualizador, crítico e reflexivo que pode ser explorado nas oficinas, cabe ao professor utilizar esse potencial. O elemento investigativo também pode ser bastante trabalhado, principalmente com um tempo maior. Em um dia de oficina é mais difícil trabalhar esse potencial, entretanto, ao transformar uma oficina desse tipo em uma disciplina para ser realizada em um semestre, é possível explorar mais o elemento investigativo e epistemológico desse tipo de projeto. Por fim, resta saber se a oficina é motivadora e desafiadora. Acredito ter ficado claro na descrição o nível de motivação e curiosidade apresentado na oficina de Collins. Estando em um ambiente de produção musical, acredito que esse tipo de oficina tem um enorme apelo para os alunos que têm um grande nível de curiosidade em saber o que se passa dentro dos aparelhos com os quais criam música. E o desafio de produzir algo musicalmente interessante de elementos tão simples como um alto-falante, uma bateria e alguns pedaços de metal me parece bastante grande. Por último o desafio de criar aparelhos musicais únicos com elementos de baixo custo, também me parece bastante interessante para os alunos de produção musical. Após essa análise, creio ter demonstrado que a oficina de Circuito Alterado tem um grande potencial como Metodologia Ativa de Ensino/Aprendizagem. Os livros de Nicolas Collins (2006) e Reed Ghazala (2005) apresentam uma série de outros projetos que podem ser realizados, além de a Internet ser um enorme repositório de projetos que podem ser escolhidos pelos alunos para realização durante o semestre. Acredito que a criação de uma disciplina, algo como Luteria Experimental ou Práticas Experimentais de Criação Musical, poderia ser de grande benefício para os cursos de Produção Musical e Produção Musical Eletrônica, por todas as questões abordadas no corpo desse trabalho.

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Referências Bibliográficas ATTALI, Jacques. Noise: The political Economy of Music. Minessota: University of Minessota Press, 1999. BONDÍA, Jorge Larrosa. ‘Notas sobre a experiência e o saber de experiência’. In: Revista Brasileira da Educação. No. 19, Jan/Fev/Mar/Abr, Rio de Janeiro: ANPED, 2002. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2009. COLLINS, Nicolas. Handmade Electronic Music. Nova Iorque: Ed. Routledge, 2006. __________. ‘A Solder´s Tale: Putting the “Lead” back in “Lead Users”.’. In: Pervasive Computing. San Francisco: v. 7, nº 3, 2008. GHAZALA, Reed. Circuit-Bending: Build Your Own Alien Instruments. Indianápolis: Wiley Publishing Inc., 2005. __________. ‘The Folk Music of Chance Electronics: Circuit-Bending the modern coconut’. In: Leonardo Music Journal. San Francisco: v.14, 2004. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000. IAZZETTA. Fernando. Música e Mediação Tecnológica. São Paulo: ed. Perspectiva. 2009. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez ; Brasília: UNESCO, 2011. OLIVEIRA, Geraldo Alécio de. Uso de Metodologias Ativas de Ensino Aprendizagem em Educação Superior . Programa de Capacitação Docente Anhembi Morumbi. S/d. - VER FONTE CORRETA STIEGLER, Bernard. “The Age of De-proletarianisation: Art and teaching art in post-consumerist culture”. In CORCORAN, Kieran & DELFOS, Carla (ed). ArtFutures Current issues in higher arts education. Amsterdam: ELIA, 2010. pp. 10-19. STIEGLER, Bernard. Reflexões (não) contemporâneas. Chapecó: ed. Argos, 2007. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2002.

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