A ONDA CONSERVADORA NA POLÍTICA BRASILEIRA TRAZ O FUNDAMENTALISMO AO PODER

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A ONDA CONSERVADORA NA POLÍTICA BRASILEIRA TRAZ O FUNDAMENTALISMO AO PODER? Joanildo Burity1 INTRODUÇÃO Há 30 anos os mundos político e acadêmico brasileiros tomaram conhecimento, de surpresa, do surgimento de um novo ator na cena pública: os pentecostais. Desde então, muito se tem dito e escrito a respeito deles, que cresceram demograficamente de modo notável no período (o take-off começou ainda nos tempos da ditadura militar), após cerca de 60 anos de relativa invisibilidade e insignificância numérica na sociedade. Ao aparecer publicamente, em meados dos anos de 1980, os pentecostais já representavam mais da metade de todos os protestantes brasileiros, e este percentual cresceu, aproximando-se de dois terços. Não apenas isso, mas “pentecostal” ou “carismático” tornou-se um atributo de identidade religiosa de muitos protestantes em igrejas chamadas históricas, que absorveram essa espiritualidade e esse ethos, após escaramuças doutrinárias e divisões eclesiásticas entre fins dos anos de 1960 e fins dos anos de 1970. Desde o início de sua atuação pública, os pentecostais se notabilizaram pela polêmica, dada sua estridente denúncia de discriminação e perseguição religiosa e de uma ameaça comunista pairando sobre o país, na saída do regime militar. Depois, por seu corporativismo desbragado e por uma sequência de casos de corrupção, que chegaram a impactar duramente, em dois momentos eleitorais, sobre a estratégia de construção de um bloco evangélico no Congresso 2. Por fim, tornados uma espécie de fiel da balança no tabuleiro eleitoral nacional desde a segunda metade dos anos de 1990, os pentecostais3 são parte iniludível do cenário político brasileiro. Seu perfil, 1

Pesquisador titular, Fundação Joaquim Nabuco. Professor dos Programas de Pós-graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]. 2 Essa estratégia não foi inteiramente elaborada previamente, nem conduzida pelas mesmas mãos, ao longo do período. “Os pentecostais”, como “os evangélicos”, não são, sabidamente, um grupo monolítico, nem possuem uma liderança convergente em nível nacional (muito menos regional ou local). Assim, o sucesso da estratégia tem se devido, curiosamente, a sua flexibilidade e condução pragmática, numa palavra, sua contingência. Amplamente suprapartidária e policêntrica, a existência da “bancada evangélica”, em si, nunca foi suficiente para assegurar coesão. Isto veio politicamente, primeiro pela disputa anti-majoritária com a Igreja Católica, depois com “os comunistas” e, mais recentemente, contra feministas, LGBTs e militantes negros(as) e indígenas. Um processo de sobredeterminação, entretanto, não uma sequência cronológica, articula esses momentos ao longo do tempo. 3 Ou “os evangélicos”, como passaram a denominar o campo formado por um coletivo na verdade bem heterogêneo dos pontos de vista partidário e ético-político (para não falar diretamente de ideologia, algo bastante complexo no caso evangélico-pentecostal). “Os evangélicos” é um termo-valise, que expressa um bem-sucedido processo de hegemonização do campo protestante pelos pentecostais, iniciado ainda em fins dos anos de 1970, por iniciativa de uns poucos visionários pentecostais (criadores da tese do “irmão vota em irmão”), e consolidado em poucos anos a partir do sucesso eleitoral de 1986. “Os evangélicos” estão para a luta interna pela hegemonia do campo protestante como “bancada evangélica” está para a luta externa por influência na sociedade e na política nacionais. São significantes pivotais para a estratégia político-religiosa pentecostal, ancorados na plausibilidade e “evidência” produzidas pelo crescimento numérico ininterrupto ao longo de cerca de 50 anos. Por isso mesmo, não são referentes de uma objetividade dura e previamente dada, mas ingredientes de uma prática

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mantendo os traços já mencionados, aprofundou-se nos últimos anos pelo acirramento da disputa com outros atores minoritários igualmente beneficiados pelo mesmo processo de democratização brasileiro – mulheres, pessoas negras, indígenas e minorias sexuais. Até aqui, nenhuma novidade. Nenhum dado novo para complicar a narrativapadrão dos discursos acadêmicos, midiáticos e dos diversos atores – aliados e adversários – da minoritização pentecostal4. O perfil preponderantemente conservador, quase que independentemente do posicionamento partidário, não se alterou. Apenas tornou-se mais desabrido. Nada que não soubéssemos, mas mais incisivo e escancarado. Mas há, sim, um dado novo. Na conjuntura pós-eleições presidenciais, a desenvoltura e protagonismo com que o bloco pentecostal hegemônico (“os evangélicos”/a “bancada evangélica”) se moveu entre o legislativo e o executivo e mobilizou a “sociedade civil” e a “indústria cultural” evangélicas do país em seu favor, projetaram esse ator de forma notável no cenário político que se foi conformando até o desfecho no atual processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a formação do governo interino do vice-presidente Michel Temer. Não apenas isso, mas, desde dentro de uma coalizão liderada pelo PT, o principal partido de esquerda dos últimos 38 anos no país, emerge uma das mais reacionárias formações políticas da história republicana do país (não exatamente um primor de progressismo!), da qual “os evangélicos” parecem ser, não sem alguma surpresa, uma força-chave. Formação política que ameaça derrubar por terra um enorme e apenas parcialmente bemsucedido esforço de alinhar a trajetória institucional da democratização com a trajetória de auto-organização da sociedade civil e dos movimentos sociais e populares. Nos reunimos neste lugar5 para compreender esse dado novo. Percebemos que há algo aí que não se deixa captar por um único nome e intuem os organizadores do evento que se trate de uma confluência de figuras da reação moderna: conservadorismo, fascismo e fundamentalismo. Levando a sério o título do evento, há mesmo dúvidas quanto aos termos no singular, donde serem propostos no plural. Ou quem sabe, a julgar pelas vírgulas, restam dúvidas sobre se sua malignidade está na mera contiguidade ou numa espécie de remissão mútua, com laivos de especificidade em cada caso, mas harmonizados os seus efeitos numa comum desagregação da ordem democrática e plural que pensávamos estar sendo aprofundada e ampliada. Estaríamos sendo didáticos, reservando um momento específico para cada termo, uma visada particular para cada feixe de práticas descortinado por sua utilização analítica ou descritiva. Mas essa aparente clareza cartesiana esconde mais perplexidade e

hegemônica. De uma política. 4 Sobre minoritização religiosa não tenho como elaborar aqui. Só posso remeter a outros escritos recentes, nos quais me estendi mais a respeito: Burity 2015; 2016; a sair. 5 Este texto foi apresentado originalmente no Fórum Penses, promovido pela Universidade de Campinas, sobre o tema “Conservadorismos, Fascismos, Fundamentalismos”, realizado no dia 30 de agosto de 2016. O Fórum se propunha a discutir a conjuntura atual, com base na brasileira, em termos de se estamos vivenciando uma onda conservadora em política e que outras expressões de conservadorismo estariam presentes neste cenário. A presente discussão foi proposta na mesa “Religião no Espaço Público”.

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frustração do que confiança quanto ao percurso. Saberemos melhor ao final do mesmo? Por que nos preocupa tanto, neste momento, a confluência desses significantes? Estamos falando de objetos claramente configurados, dados, e sobretudo interconectados? Que lógicas ou ansiedades nos fazem ligar esses termos metonimicamente, como se nos falassem de um passado já conhecido e retornante (um fantasma do passado)6, ou como um futuro ameaçador, porque de certo só transparece a sanha de destruição do presente? Afinal, ao se colocar o significante “fascismos” entre “conservadorismos” e “fundamentalismos”, não apenas evocamos o trauma em escala mundial do período entre o pós-primeira guerra e o pós-segunda guerra mundiais, mas também indicamos que algo se agregou às representações conhecidas, no singular, de cada um desses termos, multiplicando-os, pluralizando-os, complicando-os. Perdemos uma guerra? Estamos entrando nela? Ou começa outra? Com quem lutamos ou lutaremos? Decorreria da multiplicidade dos três termos nosso maior medo ou ressentimento? Estaríamos sendo rodeados de figuras múltiplas, sorrateiras ou ostensivas, do mal? A religião, à guisa de fundamentalismos, é um dos inimigos? As religiões, no plural? Apenas aquelas correntes dentro de cada uma que faz o jogo dos conservadorismos e dos fascismos? Ou precisamente não o sabemos, porque os fundamentalismos seriam muitos, talvez já não somente os especificamente religiosos? Como se define a relação entre a enunciação científica num cenário de intensificação dos afetos no cenário político, quando o espaço público se torna sobrecarregado de valores, sentimentos de ameaça e urgência, incivilidade, dissimulação, táticas de defesa e de ataque e uma cacofonia de diagnósticos sobre a crise que vivenciamos (nunca esquecendo a tendência de continuarmos a tomar o estado-nação como unidade privilegiada de análise)? No que trago para compartilhar com vocês me sinto atordoado por todas essas questões. Particularmente por serem tão difíceis de responder. Por sequer sabermos se são estas as melhores, as mais aguçadas. De qualquer modo, eu gostaria de propor um percurso para colocar o tema proposto da “religião no espaço público” neste preciso contexto de trauma, de medo, de antagonismo, de ressentimento, de percepção de que as fontes do mal se multiplicam e tomam conta, tomam lugar. Falarei de religião, não da religião, neste preciso contexto. E interrogarei o que é ou se há algo de especificamente religioso nesta cena política que se arma que o conceito de fundamentalismo (seja no singular ou no plural) esclareceria, nomearia, singularizaria. Concluirei propondo que distanciemos um pouco o foco da discussão sobre o componente fundamentalista do trauma para perceber (a) um regime de publicização da religião que é irredutível às categorias “fundamentalismo”, “conservadorismo” ou “fascismo” e (b) uma nova governamentalidade emergente nucleada no conceito de tolerância, agora disputada, contestada pelos conservadorismos, fascismos e fundamentalismos, mas nada neutra ou inocente. Nesses dois regimes, a religião pública e a tolerância, e entre eles, parece se jogarem alguns lances importantes do

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Revenant, em francês, tanto pode significar retorno como fantasma, espectro. Isto não escapou a Derrida (1994) em sua análise do marxismo, em Espectros de Marx.

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que será o Brasil dos próximos anos. Mas seria apenas isso que estaria em jogo? O Brasil dos próximos anos? Comecemos, sem mais delongas. AUTOIMUNIZAÇÃO, RESSENTIMENTO E ANTAGONISMO Apresento, de partida, minha concordância: há, sim, uma onda conservadora (suspendamos, por enquanto, se esse termo substitui e engloba os outros dois). Na religião, na política e, descobrimos alarmados, nas relações interpessoais, entre nossos amigos e conhecidos (donde nosso perplexo recurso ao fantasma do fascismo) e, pelas mídias sociais, também entre estranhos e desconhecidos. Conservadorismo desabrido, insolente, sem meias palavras e sem meias medidas. Disputando todas as evidências do que chamamos de avanços dos últimos 13 anos (alguns dos quais já haviam começado mesmo antes) e anulando-as como desperdício de tempo, como apostas infundadas, como produtos da corrupção, como perigosos precedentes ou como figuras do mal a exorcizar, esquecer ou punir. O conservadorismo ao mesmo tempo se apresenta como ferido pelo que se passou e como aquilo que tem que voltar, se impor, para que a sociedade, a economia, a política se reergam, reajam aos sinais de corrupção e de decomposição do tecido social. Apresenta-se como o fundamento abalado, mas ainda capaz de reação e retomada, da ordem e do progresso, da ordem com(o) progresso, prometidos pela República cujo nome aplicado ao Brasil é um de nossos autoenganos. Conservadorismo que teve na crescente presença pública de certos atores religiosos nas últimas décadas tanto um sinal de sobrevivência como de reforço deliberado, capaz de ir absorvendo novos conteúdos com o passar do tempo. Em suma, há conservadorismo e, mais uma vez, “a religião” parece ser uma participante aguerrida e temivelmente protagonista de sua produção. Mas já introduzo minha primeira qualificação: a onda conservadora não se contém nas fronteiras nacionais, nem se origina a partir do seu interior. A geografia e a cronologia dessa onda não são singularmente brasileiras nem definidas de modo estável e linear. Não têm ordem, nem progridem linearmente. A maré montante de reação conservadora se ergueu no mesmo período, grosso modo, quero insistir, que a reação brasileira identifica como a temporalidade do desastre de que pretende nos redimir, só que muito mais amplamente e independente da dinâmica nacional 7: desde o início do novo século. Seus sinais apontam precisamente para uma resposta e uma recusa a processos iniciados anteriormente à conjuntura dos últimos três anos. Donde se tratar de uma reação conservadora. Elenco alguns desses sinais, esquematicamente: a) Desde fins dos anos de 1960 se foram intensificando diversas injunções ao estarjunto (reconhecimento, integração, inclusão, participação), traduzidas na emergência das chamadas políticas de identidade, do multiculturalismo, de múltiplos processos de democratização política, de uma guinada cultural na política 7

Ao contrário. A despeito de suas vicissitudes, os últimos 16 anos, especialmente os últimos 13, definiram a trajetória dominante brasileira numa certa contramão de macrotendências internacionais e globais. Digo trajetória dominante porque seja nos primeiros 3 anos dessa periodização algo improvisada, seja ao longo do período, houve abundantes indicações de que aquelas macrotendências eram favorecidas por forças sociais e políticas locais e eram potencializadas por iniciativas específicas dessas forças, representadas em todos os governos desde o retorno ao governo civil em 1985. Tendo prevalecido de 1985 a 2002, a sintonia entre a hegemonia neoliberal global e nacionalmente foi significativamente neutralizada, quando não revertida, a partir de 2003. Contramão agora penalizada.

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de esquerda, e de uma nova cepa de pluralismo liberal. Essas injunções constituíram uma prática de subjetivação levada a cabo por movimentos sociais emergentes, por ONGs internacionais e locais, por discursos acadêmicos e mesmo empresariais. Estar junto: reconhecer, nomear, acolher ou ao menos conviver com as diferenças. Estar junto: expressar solidariedade e assumir responsabilidade por derrotados e explorados de outrora e de hoje, de perto e de longe, fazendo-lhes justiça ou reparação. Estar junto: alargar a definição da identidade nacional pela contagem de práticas, narrativas e pessoas até aqui expulsas, excluídas, expropriadas. Em meio às lutas, as conquistas vieram. A resposta foi crescentemente positiva das instituições estatais, intergovernamentais e regionais a essas injunções ou a mudanças no âmbito das políticas públicas, da legislação e das práticas judiciais. Em outras palavras, a injunção a que as maiorias reconhecessem as minorias, que as elites ampliassem o acesso de massas ao bemestar e à segurança da cidadania a elas assegurado, que o reconhecimento da pluralidade social não produzisse ou justificasse exclusão e entrincheiramento, mas inclusão, essa injunção transformou-se em governamentalidade, para usar o termo de Foucault; b) Nos anos de 1990, com a crescente globalização do capitalismo em sua versão neoliberal, desregularam-se os mercados e estimulou-se uma mobilidade transnacional do trabalho. A multiplicação de conflitos, crises econômicas e catástrofes ambientais também provocou migrações por motivos políticos e econômicos. O envolvimento de potências ocidentais em vários desses conflitos – da antiga Iugoslávia ao Iraque e Afeganistão – oportunizou que contingentes de refugiados se deslocassem, particularmente para a Europa ocidental. Isso intensificou a circulação de pessoas dos países mais pobres ou devastados pela guerra em direção aos mais ricos e, por sua vez, o contato cotidiano entre diferentes (nacionais e imigrantes/refugiados), gerando formas de acolhimento mas também ansiedades, temores, ressentimentos e novos lugares de antagonismo na política doméstica e global. A presença de uma nova geração de imigrantes nos países do Norte reforçou processos de diasporização já em curso – e relacionados de várias maneiras ao processo de visibilização e reconhecimento da diferença em curso – mas introduziu disputas sobre o objetivo da tarefa da inclusão: assimilação? Hospitalidade cosmopolita? Aceitação resignada – e ressentida – do outro? Negociação de regras e limites de acolhimento e extensão do regime de cidadania? Reativação de códigos coloniais de produção da subserviência?; c) Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque (seguidos de outros em 11 de março de 2004, em Madri, e 7 de julho de 2005, em Londres) produziram um conjunto de efeitos-resposta que delinearam um crescente e incontrolável processo autoimunitário (cf. Derrida 2004) pelo qual a incerteza sobre quem seria, onde estaria e como agiria o inimigo levou a medidas que não só se destinavam potencialmente a qualquer pessoa (inclusive gente de bem) como causaram a suspensão ou autolimitação de mecanismos legais e políticos democráticos, introduzindo uma ambígua equação entre retórica democrática e funcionamento antidemocrático das instituições. Deu-se a construção, em escala global, de um novo inimigo do Ocidente capitalista, já não o socialismo, mas o Islã

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(com todas as qualificações feitas de que se trataria apenas do terrorismo ou extremismo ou fundamentalismo islâmico[s], a fronteira entre o particular e o universal aqui nunca foi tão deslizante). Como cultura, civilização ou religião, o Islã, assim concebido, reocupou o lugar da religião cristã como inimiga da modernidade de séculos passados, só que agora em plano civilizacional, como para Huntington (1997). De volta “a religião” como ameaça integrista, intolerante e irracional à ordem vigente; d) A crise financeira de 2008 reacendeu fantasmas de uma crise geral do capitalismo, nos moldes do crash de 1929, que recrudesceu o embate entre estatistas e desenvolvimentistas, de um lado, e neoliberais, de outro. Nos países mais duramente afetados, de partida, pela explosão e rápida disseminação da crise, o desemprego, o crescimento da inflação e a perda de capacidade regulatória do estado, geraram profundas clivagens políticas em relação ao que fazer. Nesse contexto, se dá uma paulatina aproximação entre forças ultraliberais em economia e forças ultradireitistas em termos de proteção do estado e sociedade nacionais contra os efeitos da crise. Essa aproximação produziu, assim, programas de cunho crescentemente privatista, tecnocrático e antipopular (inclusive xenófobo), justificados pela situação excepcional que a crise teria desencadeado, que demandava “proteger” os nacionais e demandar sacrifícios dos de baixo para que a travessia da crise se fizesse sem pôr em risco o status dos investidores e empreendedores como únicos com os meios de fazer a “retomada do crescimento”; e) Nem bem a crise financeira deu sinais de normalização – por meio de uma surpreendente concertação “keynesiana” entre governos do capitalismo avançado tanto quanto pela retomada das práticas financeiras e da ideologia neoliberal que geraram a crise – e dois processos fortemente conflitivos explodem no norte da África e na Ásia (da Península arábica ao Iraque): a chamada “primavera árabe” e a emergência do Estado Islâmico, compondo-se com os efeitos da primeira, no caso da Síria. Reforça-se o clima de insegurança, belicosidade e autoimunização já existente desde o início do novo século e amplia-se a movimentação de massas em busca de sobrevivência ao ponto de produzir uma profunda crise migratória na Europa, agora tanto a do Leste como a do Ocidente. Aprofunda-se a ambivalência quanto a quem é o inimigo a ser combatido, com a multiplicação de atos terroristas perpetrados por cidadãos europeus. O inimigo é percebido como já estando dentro do corpo, alimentado, apoiado, permitido por “nós próprios” – em outras palavras, nacionais, membros de diásporas e os novos imigrantes/refugiados, todos se tornam inimigos em potencial e alvos da ação preventiva/repressiva do estado contra o terrorismo. Na melhor das hipóteses, políticas de contenção doméstica da radicalização são ativadas, normalmente associadas a expedientes de racialização baseada no binômio estrangeiro/muçulmano. Assim, a conjuntura dos últimos 16 anos exibe uma questão intratável referente ao presente (doentio) e ao futuro (talvez fatal) da “ameaça terrorista”, que leva à autoimunização por meio de uma intensificação do antagonismo, da máxima vigilância, da abdicação de direitos e garantias em nome da proteção contra a ameaça intangível e da rapidez na arregimentação das defesas contra o outro, mesmo que ao custo do fogo amigo, da generalização da desconfiança, do medo e da agressividade

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reativa, dos danos colaterais. Trauma: a ferida aberta nos deixa suscetíveis a efeitos ainda piores, que não conhecemos ainda. Como diz Derrida: “O traumatismo é produzido pelo futuro, pelo que há-de-vir, pela ameaça do pior que há-de-vir, mais do que pela agressão que ‘já terminou’” (2004: 160). Os efeitos desse trauma sobre as instituições e cultura democráticas não demoraram a fazerem-se sentir, criando um caldo de cultura no qual o acirramento da competição econômica, a emergência de tensões e descompassos entre demandas redistributivas e por reconhecimento, e um crescente temor e ressentimento frente à pluralidade étnica e cultural, levou a uma intensificação da polarização política. O BRASIL NESTE CENÁRIO Se o ponto da primeira parte do argumento é que a onda conservadora vem se erguendo há muitos anos, num cenário global alimentado pela insegurança (interna e externa) e por crises econômicas, meu segundo passo é sugerir que o contexto brasileiro não ficou imune às mesmas forças, nem a reencontrar soluções apresentadas para ela no plano global, embora as tenha refratado por um bom tempo. No caso da “ameaça terrorista”, somente muito recentemente houve alguma ressonância – na preparação jurídica para as Olimpíadas do Rio de Janeiro, com o sancionamento da lei antiterrorismo, com vetos, pela presidenta Dilma Rousseff (lei nº 13260/2016). Creio que se trate, em nosso caso, também de um caso de intensificação e propagação, não tanto de surgimento de processos inauditos. Afinal, seja pela via de dinâmicas político-institucionais decorrentes do presidencialismo de coalizão brasileiro, seja de dinâmicas glocais de afirmação de direitos, a “coexistência” de liberais, esquerda e direita em política exibiu uma constante disputa por hegemonia no interior das coalizões eleitorais desde a redemocratização dos anos de 1980. Nas duas formações hegemônicas das últimas décadas, a da terceira via liderada pelo PSDB entre 1995 e 2002 e a do lulismo pós-2003, a direita manteve-se como sócio minoritário, mas jamais ausente ou sem possibilidade de influência. O que temos hoje é um reencontro da política brasileira com os vetores macro da política global, que não deixa de surpreender pela virulência e urgência da estratégia de desmontagem dos arranjos construídos nas gestões lideradas pelo PT. Me parece, em segundo lugar, que essa virulência e urgência foram dramatizadas pela extensão e profundidade do avanço das demandas minoritárias no pós-2003: feministas (ações de promoção da igualdade de gênero em várias áreas de governo); afrodescendentes (Estatuto da Igualdade Racial); religiosas (novo Código Civil e várias concessões nas políticas sociais e culturais); LGBT (lei contra a homofobia; terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos); ativistas sociais (Política Nacional de Participação Social). Emoldurando este processo, as políticas majoritárias no campo social (Bolsa Família e políticas de educação, saúde e habitação) produziram um impacto fortemente democratizador e trouxeram para a equação vida cotidiana/política institucional uma solução altamente inovadora na história republicana brasileira. Vários desses avanços, inclusive, já vinham dos governos FHC. Mas produziram, particularmente a partir das eleições de 2010, um acirramento crescente entre perdedores relativos – sendo a elaboração da perda diversamente construída desde lugares sociais que não se poderia igualar apenas com expressões como “elites” ou “classes dominantes”. O denominador comum dos conservadorismos

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que foram se arregimentando não estava na origem, mas foi alvo de uma complexa trama de aproximações táticas no contexto de uma crescente frustração e impaciência ante a determinação da maioria da população em sancionar a continuidade do projeto lulista (Rennó e Cabello 2010; Singer 2012; Ricci 2013). Projeto no interior do qual havia ganhadores que se sentiam perdedores, alarmados pela equalização de condições em curso num dos países mais desiguais do mundo. Quando se esperava que este seria um cenário de virada, de consolidação de um caminho de transformação, uma aurora de democracia social, política e econômica, uma conjunção de contratendências emerge a partir de 2013 que desencadeará uma nova crise de hegemonia no Brasil. Disso podem ser apresentadas como indicativas do processo e do seu desfecho: a) As chamadas “Jornadas de Junho de 2013”, que exibiram e intensificaram a fragmentação do campo democrático-popular e a emergência de demandas conservadoras usando os repertórios da ação coletiva daquele campo e situandose no mesmo nível, passando em seguida a disputar a voz e a identidade popular com a esquerda; b) As dificuldades crescentes de gestão das forças políticas no governo Dilma, sem a presença afiançadora e negociadora de Lula, e a infeliz tentativa de repetir a receita utilizada no primeiro enfrentamento da crise mundial de 2008, pela adoção de uma composição entre política econômica e reformas legais de corte neoliberal com indução “desenvolvimentista” (anticíclica) do estado, acentuou o distanciamento do seu governo das expectativas do novo “povo” criado pelo lulismo, resultando numa fragmentação da coalizão, no aprofundamento da crise econômica e no crescimento da insatisfação de múltiplos setores. Estes vetores foram mutuamente reforçados durante e após o processo eleitoral de 2014, pela posição de sistemático boicote e bloqueio assumido pelas oposições e de esfriamento do apoio popular, levando a uma inviabilização do governo desde seus primeiros momentos; c) A efetiva derrota da coalizão lulista nos primeiros meses de 2016, a despeito da vitória eleitoral, levou à abertura do processo de impeachment da presidenta e à materialização de um golpe parlamentar-jurídico-midiático que pôs a direita no poder pela primeira vez depois de Collor. A figuração de uma “nova ordem” pós-lulismo, desde o ano de 2015, foi conformando a montante do que estamos chamando de onda conservadora. Nesse período, vemos emergir cadeias de equivalência entre demandas conservadoras de diferentes naipes e vários esforços de construção de uma nova lógica majoritária, uma nova hegemonia (ainda que permaneçamos, talvez por um fio, em crise de hegemonia, no pleno sentido gramsciano do termo). Como no início de cada uma das duas outras formações hegemônicas recentes (a terceira via peessedebista e o lulismo), o caráter heterogêneo das forças convergentes não impediu de se fazer sentir o peso dessa lógica majoritária, com uma “evidência” que se quer irresistível. As medidas anunciadas e as mudanças na legislação iniciadas a partir do governo interino de Michel Temer, o impeachment incontornável ainda que inteiramente fabricado jurídica e politicamente e, revendo o texto em setembro de 2016, o rápido e implacável desmonte de políticas, marcos legais e garantias constitucionais, são o testemunho

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dessa tentativa de reconstrução hegemônica (ainda que também indiquem diversos prenúncios de um regime de exceção, à medida em que a impaciência e a urgência do desmonte possuem indícios de uma insegurança quanto à possibilidade de fazer tudo nos marcos de uma ordem democrática). A nova ordem que emerge desde a autorização de abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff resulta da convergência proativamente produzida entre três estratégias de enfrentamento: a) Enfrentamento da crise econômica pela desmoralização (em escala glocal) das políticas anticíclicas da esquerda e pela proposição radicalizada do receituário neoliberal nos moldes de uma nova reforma do estado (tanto institucional como nas políticas públicas) e de uma ampla desregulação da legislação social e trabalhista, desta vez sem etapas, limites ou concessões; b) Enfrentamento da pauta anticorrupção, por meio de um deslocamento na relação entre legislativo, judiciário e grande mídia, que passam a pautar fortemente o executivo, a “focalizar” os alvos de investigação e a desmobilizar, em toda a extensão do estado (executivo, legislativo e judiciário), o ímpeto investigatório dos últimos anos, ao mesmo tempo em que “focalizam” os alvos das investigações e não se furtam a ir atropelando o devido processo de modo cada vez mais acintoso – particularmente nos casos de condução coercitiva, prisões preventivas e indiciamentos seletivos e com timing ditado pelos movimentos da conjuntura; c) Enfrentamento da pluralização de valores, da relativização das fronteiras étnicas e das hierarquias sociais produzida pelas políticas da era Lula-Dilma, e suas traduções em termos de direitos e participação ampliados para pobres, mulheres, jovens, minorias sexuais, afrodescendentes, indígenas, etc., pela articulação de um discurso de recomposição da ordem, assentado na desqualificação ou silenciamento do dissenso e na contenção sociocultural e legal das políticas de reconhecimento. Esses enfrentamentos não são obra de algum ator particular. A convergência – indicativa de uma recomposição política emergente – se dá num aparente consenso a que concorrem atores partidários, do judiciário, a grande mídia e significativos setores da academia e da burocracia estatal. Em nome do afastamento da presidenta e, por vezes explicitamente, do objetivo de banir o Partido dos Trabalhadores do cenário político nacional, as demandas de enfrentamento são vistas como equivalentes ou complementares, por enquanto, sem maiores tensões entre elas. Vemos surgir, efetivamente, nos últimos meses o cenário de uma pós-democracia emergente, de uma democracia consensual (Colin Crouch, Jacques Rancière, Chantal Mouffe) e de uma violação decisionista (Carl Schmitt) da lei e dos direitos democráticos em nome da preservação da democracia e da sociedade frente às ameaças a serem enfrentadas – crise econômica, corrupção, demandas por direitos, inversão das hierarquias, pluralização dos valores majoritários. Ou seja, processo autoimunitário: o afã reconstrucionista de uma nova hegemonia ameaça destruir a própria coisa em nome da qual fala tão maniacamente. Autoimunização.

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HAVERIA UM “ESPECIFICAMENTE RELIGIOSO” NESTE CENÁRIO DE CRISE E SURGIMENTO DE UMA NOVA HEGEMONIA? Os ingredientes que se combinam na nova receita de ordem e progresso, estou sugerindo, provêm de tendências e processos globais e locais que, no entanto, precisaram ser articuladas, não simplesmente se deram. Até mesmo o formato institucional da derrota do lulismo tem precedentes internacionais e latino-americanos recente: Paraguai e Honduras. Mas haveria uma singularidade no caso brasileiro: a proeminência de uma das minorias beneficiadas pelas transformações trazidas pela democratização e agora inconciliada com os rumos assumidos por esta nos últimos 13 anos, apenas desembarcando pragmaticamente de um barco a pique. Tendo participado ativamente do mesmo processo, descola-se dele nos últimos lances. “Os evangélicos”, uma novidade na política brasileira pós-Nova República, voltam-se contra o mesmo projeto que mais sistematicamente os empoderou e cortejou. Outra expressão de autoimunização. Mas este registro bastaria? A obviedade desse script não esconderia algo? Seria uma confirmação do que já se denunciara tantas vezes, quer na academia e no mundo do ativismo social quer na política institucional? Minha primeira observação é que um balanço da presença pública das religiões na conjuntura que se encerra nos permitiria identificar quatro atores principais8, não apenas um: católicos, evangélicos, movimento ecumênico/ativismo social interreligioso e religiões de matriz africana. Nos três últimos casos estivemos às voltas com processos de minoritização religiosa, ou seja, de emergência de atores concorrentes da religião majoritária, pensada como coextensiva à identidade nacional e com acesso privilegiado ao estado e à esfera pública. Emergência que se caracterizou por reclamar a “equiparação” do catolicismo ao status de uma minoria religiosa entre outras, em pé de igualdade com outras, por meio da lógica cultural da pluralização e das políticas de identidade. Minoritização que também atravessou a tessitura organizacional das próprias religiões estabelecidas, delineando minorias emergentes no seu interior, articuladas a contrapartes em outros espaços sociais, pelo impacto no campo das religiões das demandas étnicas, sexuais, de gênero, etc., articuladas na sociedade em geral ou em torno de demandas por políticas públicas ou por justiça.

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Agradeço a Ronaldo Almeida e Rodrigo Toniol por haverem, na discussão em que este trabalho foi apresentado, identificado uma ausência em minha classificação original (que tratava apenas de religiões minoritárias e só incluía três modalidades de religião pública no Brasil de hoje): a Igreja Católica. Desde minha perspectiva, reconsidero de fato justificar-se falar de quatro modelos. O modelo católico corresponde estritamente ao conceito sociológico de Igreja na tipologia weber-troeltschiana – institucional, coextensivo com a identidade nacional, abrigando disputas entre várias modalidades de relação com a cultura e a política e delas lançando mão em diferentes momentos: o constantinismo (religião oficial), a cristandade, os dois gládios, o enfrentamento anti-moderno, a concordata, o liberacionismo, etc. – e neste sentido não se confunde com os outros que nomeio. Mas, quero ressaltar, o modelo católico vive, neste contexto, uma clara contestação por parte do modelo evangélico, que, na lógica da minoritização connollyana (cf. Connolly 2011; Burity 2013), demanda que o catolicismo seja “rebaixado” ou nivelado à condição de uma entre muitas “minorias religiosas”, uma entre outras modalidades de religião pública, em nome de uma isonomia jurídico-política e de uma agonística politico-cultural (caso especial da estratégia da Igreja Universal do Reino de Deus e das teologias do domínio). Isto tem levado, na prática, a que o modelo católico de Igreja venha perdendo coesão, nas últimas décadas, mesmo quando conquista vitórias parciais, como no caso do Acordo do Brasil com o Vaticano, de 2010.

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Apesar de produzir uma pluralização de campos e estratégias no interior das religiões (com repercussões, inclusive no modelo católico), esses processos minoritizantes definiram, ao largo do modelo polimórfico católico-romano (e tensionando com ele), três modelos de “ocupação” do espaço público, ao longo das últimas três décadas: (a) a via politico-eleitoral pentecostal; (b) a via da incidência pública ecumênico-ativista e (c) a via da culturalização das religiões afro-brasileiras. Estas vias são claramente distintas da via hierárquico-eclesiástica do catolicismo (e suas ramificações “pastorais”), de relação institucional da Igreja com o estado, através de sua hierarquia episcopal ou de suas estruturas de ação pastoral herdadas da Ação Católica e do Vaticano II. Embora os três modelos minoritários não sejam exclusivos dos respectivos grupos e tenham se cruzado de várias maneiras, inclusive com o modelo católico, houve, a meu ver, uma clara predominância na atuação de cada um. Por outro lado, o destino que terão na nova ordem pós-impeachment não está dado de antemão, mas parece no momento indicar a prevalência da via político-eleitoral em detrimento das outras duas, com o catolicismo mais uma vez perdendo espaço9. “Os evangélicos”, nome para uma aliança intrarreligiosa de protestantes conservadores capitaneada pelos pentecostais, optaram por uma estratégia de representação eleitoral autônoma (“corporativa”) que, pelo seu sucesso, foi se redefinindo paulatinamente em termos de uma pretensão a tornarem-se governo (cf. Machado e Burity 2014), participando como tais (ou seja, como grupo religioso) em negociações de coalizões, ocupando diferentes partidos e buscando controlá-los (com maior ou menor grau de sucesso, como no caso da IURD com o PL/PR e da Assembleia de Deus com o PSC, mas também envolvendo diretórios regionais de vários outros partidos) ou criando novos partidos e dirigindo-os (casos da IURD com o PRB). Mesmo onde se tratou de trajetórias individuais (como Eduardo Cunha no PMDB), essa “vocação hegemônica” não deixou de fazer-se sentir, materializando-se na construção da Frente Parlamentar Evangélica 10 e na indicação de nomes na formação de chapas para eleições majoritárias (executivos em todos os níveis de governo e Senado federal).

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Esta perda de espaço do catolicismo quase por definição não afeta a igreja de uma única vez. O catolicismo não é uno e tem sempre mantido rotas de escape, mobilizando suas correntes internas em função dos interesses de longo prazo da Igreja hierárquica. No caso brasileiro, por exemplo, há suporte oficial da Igreja a iniciativas dos três modelos minoritários – em acordos pragmáticos da “bancada católica” no Parlamento com a evangélica; na reação ao impeachment junto com as igrejas e organizações ecumênicas protestantes (unanimemente anti-impeachment, oficialmente); e no apoio às políticas de patrimonialização da cultura religiosa afrodescendente, que também beneficiam a Igreja. Esse polimorfismo, indicativo da pluralidade interna e da lógica estratégica da hierarquia, adverte contra leituras apressadas sobre uma espécie de fenecimento generalizado do catolicismo. 10 A Frente Parlamentar Evangélica existe desde 2003. Embora registrada neste ano (52ª. Legislatura, 2003-2006), a Frente não aparece no site da Câmara nas duas legislaturas seguintes, seguindo regulamentação instituída pela Mesa Diretora da Câmara, em seu Ato nº 69, de 10/11/2005. Isto porque a exigência formal do regimento da Câmara Federal de participação de pelo menos um terço dos parlamentares para a formação de uma frente parlamentar manteve o agrupamento como extraoficial, comumente conhecido como “bancada evangélica”. Retorna na atual, 55ª. Legislatura, iniciada em 2015, quando reuniu 199 assinaturas de deputados e 4 assinaturas de senadores, em novembro daquele ano, constituindo-se como frente mista (cf. http://www.camara.leg.br/internet/deputado/frentes.asp). Para diferentes análises da Frente Parlamentar Evangélica, ver Baptista 2009; Trevisan 2013; Dip 2015; Suruagy 2016.

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Acumulando uma sólida experiência através da criação de estruturas cada vez mais profissionalizadas de planejamento, deliberação e monitoramento da estratégia, os chamados conselhos políticos, a cúpula pentecostal se constituiu como partido religioso, no sentido gramsciano de uma força sociopolítica efetiva, mesmo que a representação tenha se construído por vias pluripartidárias, no sentido institucional de partido político. O sucesso do modelo pentecostal levou a uma emulação por parte de outros grupos religiosos, da renovação carismática católica aos espíritas e religiões de matriz africana, com variados resultados. Mas cada vez mais os pentecostais se afirmaram aí como protagonistas e reforçaram sua estratégia de representação autônoma com participação num bloco de forças políticas regido pela lógica do presidencialismo de coalizão. Por ecumênicos/ativistas sociais inter-religiosos quero designar um conjunto predominantemente formado por católicos e protestantes envolvidos em projetos sociais locais, pastorais sociais, agências ecumênicas de serviço, organizações nãogovernamentais e instâncias de direção denominacionais, nacionais ou atuantes no Brasil, mas também gente de outras religiões e sem religião empregada nessas organizações ou aliadas em iniciativas inter-religiosas concretas. A principal marca desse conjunto de atores tem sido a prioridade de atuar sobre as instituições (executivo, legislativo e judiciário), desde o contexto da sociedade civil e dos movimentos sociais. Sua perspectiva prioritária foi a da incidência pública, entendida como lobby, como controle social, como participação qualificada em instâncias consultivas e deliberativas (fóruns e conselhos de políticas públicas ou de programas governamentais, conferências temáticas, etc.), e como mobilização de base para pautar temas importantes, subsidiar a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas ou protestar contra situações várias de injustiça, violência, riscos ambientais, etc. Ao campo ecumênico, desde os anos de 1990, veio se juntar, em diferentes níveis de organicidade, um veio do mundo evangélico socialmente mobilizado e decididamente escanteado pela minoritização pentecostal, o evangelicalismo da missão integral, forçado à aproximação pelo estreitamento dos espaços no campo evangélico para sua proposta de integrar evangelização conversionista, identidade doutrinária tradicional e ação sociopolítica radical. De um lado, os pentecostais se apropriaram dessa proposta e venceram pelos números. De outro lado, os evangelicais se radicalizaram no mesmo período da minoritização pentecostal, distanciando-se dos pentecostais e sendo neutralizados por ela na disputa pela “sociedade civil” evangélica e no reconhecimento público de quem falaria pelos evangélicos. O fiasco da Associação Evangélica do Brasil e o impacto modesto da nova Aliança Cristã Evangélica Brasileira11 em operar uma clivagem com o Conselho de Pastores do Brasil e com a liderança da Assembleia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus, selaram a subalternização dos evangelicais e ensejaram um encontro com a minoria ecumênica e inter-religiosa, tanto pela base como em nível de lideranças. Hoje, uma organização evangelical de ponta como a Visão Mundial Brasil, uma das maiores ONGs do país em estrutura e financiamento, praticamente não se identifica mais como evangélica (e sim como cristã), atua sem a prioridade de antes 11

Ver www.aliancaevangelica.org.br.

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em atrair igrejas evangélicas para a promoção de projetos sociais, descola-se do proselitismo e engrossa as redes seculares e religiosas de ativismo sociopolítico. Incidência pública é seu jogo, juntamente com outra referência institucional desse campo evangelical, a Rede Nacional Evangélica de Ação Social (Renas) 12. A via afro-brasileira de ocupação do espaço público nunca foi exclusivamente religiosa, nem na sua agência nem no seu conteúdo propositivo. Referência de autenticidade da ancestralidade africana para o movimento negro, objeto privilegiado da antropologia da religião e crescentemente da sociologia da religião brasileiras, e candidatas de primeira hora a compor a frente pela inclusão das pessoas negras a uma ampliada identidade histórica e política brasileira, as religiões de matriz africana, especialmente o candomblé, seguiram o caminho oblíquo recomendado por uma plurissecular tática de sobrevivência e subalternidade: buscaram o reconhecimento e a participação pela via da culturalização. Por este termo quero ressaltar a complexa articulação de uma política de identidade, uma reivindicação de cidadania religiosa e uma patrimonialização como mecanismo de institucionalização do reconhecimento via políticas públicas de cultura. Jogo oblíquo pelo qual a identidade negra brasileira foi ancorada pelo movimento negro na religião sincretizada dos ex-escravos, como liame vivo com as raízes africanas, ao mesmo tempo em que os próprios líderes do candomblé e, em menor escala, da umbanda, demandaram contagem (no sentido rancièreano) entre as religiões publicamente reconhecidas – inclusão – e como parte do patrimônio cultural brasileiro. De há muito sua presença já se fizera sentir na música e nos esportes; agora, sua sobrevivência nos terreiros e nos remanescentes de quilombos 13 foi simbolizada como diversidade étnico-cultural-religiosa indissociável da identidade nacional brasileira. Pela via das políticas culturais e de uma nascente política nacional da diversidade religiosa, as religiões afro-brasileiras definiram um percurso próprio de publicização. Dado este quadro, o que ocorre na conjuntura? Beneficiada por sua própria estratégia num contexto de nova concertação de elites, entre as quais agora é contada, apesar de minoritária, a via político-eleitoral dos evangélicos, sob a batuta dos pentecostais, prevaleceu, por ter-se desassociado do bloco lulista e se juntado à reação anti-petista. Com ela, as possibilidades representadas pelas minoritizações ecumênica/ativista e afro-brasileira ficaram associadas ao projeto lulista e identificadas como adversárias a serem combatidas sem tréguas. A orientação decisivamente política dos pentecostais, no sentido de operarem com uma lógica populista de dicotomização do espaço público (Laclau 2005) e uma agonística (Mouffe 2013) que até então disputava espaços de forma agonística, sem negar o direito de existir dos adversários, revela-se instrumental para a estratégia da oposição derrotada pela quarta vez seguida nas eleições de 2014. Cessadas as tentativas de guerra de posição no interior da coalizão, passa-se a uma guerra de movimento contra o lulismo. E contou o know-how dos pentecostais, acumulado ao longo de três décadas de disputas em várias frentes. Seu forte pragmatismo, enraizamento popular, apelo eleitoral para além de suas fileiras religiosas e sua acelerada curva ascendente de aprendizagem dos expedientes da tradição política das 12

Ver www.renas.org.br. Termo ampliado em seu significado original para indicar um lócus de resistência continuada dos tempos da escravidão até nossos dias, ocupado por “populações tradicionais”. 13

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elites brasileiras teriam permitido aos pentecostais se apresentarem como fiadores da nova ordem pós-lulista. Jogam agora um ousado e arriscado jogo, em que não mais se juntam ao caudal da democratização para dele se beneficiarem, mas o golpeiam e saem à disputa aberta numa coalizão de neoliberais, neoconservadores e outras correntes de centro e de direita (Moll 2015), uma “máquina de ressonância evangélico-capitalista”, como chamou Connolly (2008) a articulação entre conservadorismos na era Bush. Uma questão é, neste contexto, se estaríamos diante de uma completa hegemonização (supremacia, em termos gramscianos) dos pentecostais no campo religioso começando a se espraiar para a esfera estatal. Outra questão é se a contribuição específica desta força sociopolítica seria acrescentar às tendências conservadoras e fascistizantes dos últimos três anos de desconstrução do lulismo como projeto hegemônico um componente fundamentalista. Isto, se verdadeiro ou se efetivamente resultante do atual movimento conjuntural, nos lançaria num período fortemente regressivo tanto política como socioculturalmente. Uma onda que se quebraria de cheio contra as conquistas democrático-radicais do período pós-transição democrática. E que confirmaria, como profecia autocumprida, todas as advertências feitas desde 1986 contra a publicização da religião no Brasil enquanto descatolicização da política, enquanto pluralização dos códigos religiosos de atuação pública para além da “autocontenção” da religião majoritária (devidamente retornada às paróquias e rusgas doutrinárias internas após haver contribuído virtuosamente para a saída do regime militar) e enquanto reação antidemocrática e dessecularizadora. Neste aspecto, eu diria primeiramente que a vitória da via político-eleitoral não significa desaparecimento dos modelos concorrentes. As estratégias destes continuam sendo ativadas como parte da arregimentação de vozes e de forças que têm construído o contradiscurso sobre o golpe em escala nacional e transnacional, inclusive no caso da hierarquia católica 14. Por outro lado, embora seja possível dizer que o campo ecumênico esteve praticamente fechado com a defesa do mandato da presidenta Dilma Rousseff, a despeito da dispersão de organizações de base ecumênica pelo país, mais cautela é preciso ser utilizada para os afro-brasileiros, bem menos articulados em termos de estratégias públicas. Atos inter-religiosos 14

Uma importante sequência de pronunciamentos institucionais e de iniciativas de mobilização, virtual e presencial, nacionais e locais, emergiu desde 2015, emitidos por instituições católicas, evangelicais, protestantes ecumênicas, tanto denominacionais como vinculadas ao campo, mas não subordinadas às cúpulas dirigentes. Em ordem cronológica, um apanhado não sistemático somente em 2016, permite citar: Igreja Metodista (Expositor Cristão, jornal denominacional, de Janeiro); Renas (24/2; 7/4); Aliança Evangélica (10/3; 12/7); Igreja Presbiteriana Unida (10/3); Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (11/3); Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (11/3); Conselho Latino-Americano de Igrejas-Brasil (13/3); Igreja Episcopal Anglicana (31/3); Diaconia (7/4); CNBB (14/4); Aliança Bíblica Universitária do Brasil, Rede FALE e Seven Movimento Estudantil (16/4); Pastoral Popular Luterana (21/4); Católicas pelo Direito de Decidir (25/4/16); ACT Aliança (rede internacional de organizações religiosas de apoio ao desenvolvimento e ação humanitária, com participação de entidades brasileiras, 10/5); Fórum Ecumênico ACT Brasil (articulação de 19 organizações ecumênicas brasileiras, 17/5); Koinonia (28/7); Coordenadoria Ecumênica de Serviços (31/8). Várias páginas no Facebook surgiram também neste processo, desde 2015, com vistas a mobilizar a opinião anti-impeachment entre evangélicos e católicos. Cito como exemplo: Evangélicos, Democracia e Participação; Evangélicos com Dilma; Púlpito e Parlamento: Evangélicos na Política; Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito; Cristãos pela Democracia; Cristãos pela Democracia – contra o golpe; Cristãos x Frente Parlamentar Evangélica; Cristãos de Esquerda; Evangélicos pela Justiça; Missão na Íntegra; Cristãos Progressistas.

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(normalmente chamados pelos ecumênicos-ativistas) sempre envolvem representantes de terreiros ou de organizações do movimento negro. Mas iniciativas originadas nas lideranças afro-brasileiras são bem mais esparsas e modestas, fora do culturalismo. Indo ao cerne do debate, em segundo lugar, pergunto: o “fundamentalismo” é um princípio fundante da via politico-eleitoral, ou quem sabe desta sua novíssima fase pós-impeachment? Seria a hegemonia religiosa dos “evangélicos” a porta de entrada ou talvez o formato pelo qual outras expressões do conservadorismo religioso encontrariam seu lugar ao sol na nova ordem pós-democrática? Daria nome à publicização religiosa de modo genérico e não-qualificado? E seria seu conteúdo fundamentalista num sentido rigoroso ou mais bem acusatório? Em qualquer desses casos, estaríamos diante de uma dimensão especificamente religiosa dessa nova ordem, quer em termos de uma clivagem religiosa no cenário político quer em termos de uma agência religiosa que traduziria ou expressaria, em seu comportamento religioso, os traços e comportamentos do conservadorismo político? Sim, não e talvez. Não é possível responder a essas perguntas sem cautelas e dúvidas, muitas dúvidas. Sobretudo se atentarmos para as lições da pesquisa global e doméstica, historiográfica e socioantropológica, sobre a categoria “fundamentalismo” e sobre o pentecostalismo. Nosso afã de fixar um horizonte para a avaliação dos resultados da minoritização e publicização religiosas dos últimos trinta anos pode nos levar a juízos apressados e proclamações ad hoc. Há uma copiosa literatura sobre fundamentalismo, tanto em termos conceituais, como de realidades empíricas e comparáveis entre diferentes religiões e em diferentes coordenadas de espaço e tempo. É impossível pretender sequer resumir esse debate aqui. Mesmo atendo-nos apenas ao aplicável ao mundo evangélico, em geral, e ao pentecostalismo, em particular, eu ainda teria que simplificar grosseiramente. Me limitarei a fazer uns poucos registros nos limites da presente discussão. Contemporaneamente, fundamentalismo, ainda quando devidamente relido como um fenômeno moderno (e não um atavismo pré-moderno), é associado a uma reação antiliberal, violenta ou antagonística, a uma tentativa integrista de reconquistar o controle da vida social contra os avanços da biopolítica, da equalização de condições e da pluralização social (cf. Ruthven 2007; Brekke 2011)15. Isso o colocaria no sentido de uma reversão da secularização (suspendendo qualquer juízo aqui sobre este termo). Mesmo sendo um termo insatisfatório, fundamentalismo serviria, por semelhança de família (em sentido wittgensteiniano), para identificar e comparar um grande número de manifestações religiosas que não são idênticas entre si, nem gêneros de uma mesma espécie, focalizadas na defesa de valores tradicionais (patriarcais, hierárquicos e hieráticos) e de interpretações atribuídas à literalidade de textos sagrados ou a revelações especiais, mas à vontade diante das dimensões sociotécnicas e econômicas da modernidade capitalista.

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Um megaprojeto financiado pela Academia Americana de Artes e Ciências, coordenado por Martin Marty e Scott Appleby, The Fundamentalism Project, entre 1987 e 1995, produziu cinco coletâneas (1991-1995) que, apesar de apresentarem uma enorme diversidade de casos empíricos de manifestações religiosas conservadoras de reação antimoderna, não conseguiram convencer muitos estudiosos quanto ao que haveria de comum em todas essas experiências.

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Além disso, embora decididamente conservadores em matéria de valores e interpretação, os fundamentalistas não o são em relação à autoridade religiosa estabelecida, questionando-a e disputando espaços com ela, por não se manter em linha com as exigências da religião. Há várias contranarrativas acadêmicas sobre esses processos, que ressaltam particularmente a ausência de base escritural em muitas religiões nas quais se identificam correntes “fundamentalistas”, ou ausência de posturas literalistas na interpretação de doutrinas e rituais, ou na ausência de posturas agressivas de imposição sobre outros grupos dos valores e crenças “fundamentalistas”, ou ainda como recurso colonial/orientalista de estigmatização de religiões nãoocidentais (cf. Marsden 1980; Nagata 2001; Frey 2007; Brekke 2011; Wood e Watt 2014). A questão sobre se o pentecostalismo brasileiro é fundamentalista também se cerca de senões. Me parece claro que grande parte da elite parlamentar evangélica (esmagadoramente pentecostal) é profundamente conservadora na atual legislatura, tanto em termos de valores morais como políticos. Numa palavra, politicamente de direita. Mas de direita e fundamentalista são equivalentes? Alguns parlamentares parecem vestir bem o figurino de “fundamentalista”, mas muitos não16. O mesmo se pode dizer das principais lideranças extraparlamentares da reação religiosa ao lulismo (católicas e evangélicas). Mas esta observação não pode ser estendida sem mais para o conjunto do campo evangélico, nem especificamente para o meio pentecostal. A melhor literatura científico-social recente, brasileira e internacional, não autorizaria esse movimento classificatório-acusatório. O apelo pentecostal entre as massas não se dá tanto pela proposta de aderir a confissões ou doutrinas específicas, como no fundamentalismo americano histórico, mas pela promessa – cumprida – de fortalecimento dos vínculos comunitários, de afirmação de sua dignidade, a despeito das estreitas margens de reconhecimento igualitário (até mesmo legal) por parte das instituições estatais e pela sociedade majoritária, e de construção de uma imagem de assertividade e pujança na relação com as elites políticas e culturais do país (Corten 1996; Mafra 2001; Martin 2002; Machado 2006; Oro 2011; Machado e Burity 2014; Souza, 2016). E a projeção política tem mais a ver com um renitente e planejado esforço de construção de uma voz autônoma que começou a render frutos palpáveis a partir, ironicamente, da armação da coalizão petista que levou Lula ao poder nas eleições de 2002 e alcançou um ponto de inflexão na primeira campanha de Dilma Rousseff à Presidência, na qual esse segmento tornou-se claramente um veto player em relação a temas de ordem moral. Os códigos desse duplo processo de construção de uma base religiosa e de articulação de um esforço de inserção no presidencialismo brasileiro a partir de uma representação eleitoral bem-sucedida e fortemente dispersa partidariamente não são os do fundamentalismo como movimento, mas os do protestantismo conservador evangélico e pentecostal. Podemos, sim, identificar traços de retórica e comportamento fundamentalistas nessa conjunção. Mas apenas em utilizando as figuras da semelhança de família, que representa uma renúncia a trabalhar com a categoria identidade, e de articulação, que representa uma renúncia a trabalhar com 16

Em trabalho escrito com Maria das Dores Campos Machado, baseado em pesquisa com lideranças pentecostais e carismáticas envolvidas com a política no Brasil, encontramos muitos exemplos de conservadorismo não-fundamentalista (cf. Machado e Burity 2014).

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as categorias de unidade e centralidade. O fundamentalismo no pentecostalismo, onde houver, deverá ser, assim, captado na sua dispersão e na contingência dos vínculos estabelecidos (que são globais e locais, tanto na política como na religião). Segundo ponto sobre fundamentalismo: até agora, o modelo de minoritização pentecostal aderiu sem reservas à lógica majoritária das coalizões típica do presidencialismo brasileiro. Portanto, nada de fronteiras rígidas, nítidas e claras entre atores e demandas; nada de tradução dos códigos estritos de moralidade pessoal em termos de virtudes republicanas gerais; nada de confessionalização da política. Ou seja, a defesa da separação entre religião e estado ainda é afirmada publicamente, sem restrições, pelos pentecostais. E isto porque, entre outros fatores, os pentecostais não são a única força religiosa organizada no parlamento (vide a Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana, com 213 membros, maior que a Frente Parlamentar Evangélica) e nunca atuaram, nas propostas e votações decisivas, em termos isolados de outros conservadores, religiosos ou não (a expressão acusatória “bancada BBB” nos alerta para isso17). O lugar do pentecostalismo, na liderança do campo chamado de “os evangélicos”, assim, está assegurado. Mas não há sinais – para além de comentários vagos como o do vice-presidente Temer ao assumir a interinidade em maio, sobre o caráter “religioso” do projeto de religar a sociedade brasileira consigo mesma 18 – de que esses atores estariam a ponto de confessionalizar o estado à sua imagem e semelhança. À medida que o regime pós-impeachment se vai delineando, em todas as suas contradições, isso me parece ir ficando mais claro. Trata-se mais de uma aposta de um setor identificado com a via político-eleitoral, em meio a uma aliança circunstancial que não se sabe quanto tempo durará e que extensão terá (cf. Fernandes e Castro 2016; Suruagy 2016). Uma análise da trajetória da performance eleitoral dos evangélicos no Congresso desde 1982, ademais, não substancia a tese de uma linha ascendente linear, que seria um dos indicadores de confessionalização. Houve vários momentos de inflexão, devido ao envolvimento de parlamentares em casos de corrupção (1990 e 2006) e o crescimento, quando se deu, não acompanhou o percentual de crescimento demográfico dos evangélicos, em dados censitários. De 1980 a 2000, o crescimento foi de 200%, mas em 2002 somente 60 parlamentares foram eleitos, entre deputados e senadores, quando, em 1998, 51 haviam sido eleitos, representando menos de 20% de crescimento, portanto. Esta bancada de 60 seria reduzida para 32, em 2006. Apesar de crescer nas legislaturas seguintes, a de 2010-2014 e a atual (2015-2019), o crescimento foi mínimo, de 73 para 75 parlamentares, no início da legislatura (incluindo senadores), mesmo considerando que os números variam ao longo de cada legislatura, inclusive na atual (entre 75 e 83, até agosto de 2016), dentre outras razões, porque suplentes assumem em vagas deixadas por parlamentares que se licenciam, que assumem cargos 17

Ver, a propósito, duas excelentes matérias sobre as “bancadas” na Câmara e na comissão do impeachment publicadas por Bruno Fonseca (2016a, b), que detalham em gráficos as sobreposições entre elas, e que permitem perceber-se até onde se espraia a bancada evangélica. 18 A frase de Michel Temer foi: “O que queremos fazer agora com o Brasil é um ato religioso, um ato de religação de toda a sociedade brasileira com os valores fundamentais do nosso país.” (UOL, 12/5/16, em http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/05/12/catolico-temer-reforca-aceno-areligiosos-em-seu-discurso-de-posse.htm)

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eletivos ou na composição de secretarias ou ministérios, respectivamente, em nível estadual e federal19. Terceiro ponto: o manejo do termo “fundamentalista” se dá nas disputas de fronteira entre pentecostais e seus outros: (a) religiosos, particularmente afrobrasileiros, evangelicais, ecumênicos, sem-religião (em larga medida uma oposição passiva, ao modo da desafiliação e da indiferença) e secularistas (oposição ativa, defesa da laicidade estrita, no modelo francês); (b) jurídico-políticos, como a esquerda parlamentar, promotores e juízes sensíveis ao pluralismo e ao secularismo; (c) movimentalistas, como feministas, LGBTs, militantes negros; além da mídia tradicional, oscilando, ao sabor de suas linhas editorais, mas nunca ausente de cena, entre oposição religiosa, discurso liberal da neutralidade e discurso liberal da laicidade. Fundamentalismo é, portanto, uma categoria relacional, que diz tanto sobre destinatários quanto sobre usuários. Não há um uso autoatribuído, nativo, pelos pentecostais, salvo por grupos extremamente marginais desse campo e do campo evangélico mais amplamente. Portanto, “fundamentalismo” é uma categoria de combate, mobilizada quase sempre do lado dos adversários dos pentecostais e, à luz do cenário contemporâneo de autoimunização, tendente a evocar paralelismos com grupos radicais islâmicos, hindus, budistas, judeus, produzindo uma resposta classificatória e denunciatória aos “evangélicos”, transformados em metonímia de “pentecostais”. Voltando à questão desta seção, o especificamente religioso na conjuntura referese apenas à novidade representada pela presença pentecostal no proscênio do golpe, legitimando abertamente o processo de impeachment e as propostas do governo interino, via Frente Parlamentar Evangélica e figuras autoprojetadas do mundo eclesial, como o pastor Silas Malafaia. Mas não há um especificamente religioso que dê sentido ao golpe, como marcação de uma clivagem religiosa no cenário político, definidora de uma agência religiosa particular. Os pentecostais não estão, como conjunto demográfico e interdenominacional, inteiros neste processo. A Frente Parlamentar Evangélica não é o espelho de todos os evangélicos. E o perfil desse corpo heterogêneo não autoriza sua assimilação ao conceito (ou ao bordão) de fundamentalista. Mas essa conclusão preliminar ainda não esgota o mapeamento que é preciso ser feito para a compreensão do lugar e do papel das religiões na conjuntura do golpe. Subjacente à denúncia contra o fundamentalismo dos evangélicos ou dos pentecostais ainda resta uma postura reativa ao que me parece ser um fenômeno nada conjuntural: a religião pública. RELIGIÃO PÚBLICA E A CONJUNTURA DO GOLPE: UMA ONDA DE FUNDAMENTALISMOS? Tenho insistido em publicações nos últimos anos sobre o caráter heurístico da categoria “religião pública” (cf. Burity 2015; 2016a). Entendo que ela traduz, para além 19

Para um quadro ilustrativo da variabilidade dessa presença parlamentar nas assembleias legislativas dos Estados, ver a matéria e o gráfico publicados pelo jornal Estado de São Paulo, em 20 de abril de 2013, em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,evangelicos-atuam-forte-tambem-emassembleias,1023500 e https://i2.wp.com/www.estadao.com.br/fotos/EvangelicosAssembleias01_InforgraficosEstadao.jpg.

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do uso sociológico com que ganhou espaço nas ciências sociais da religião, uma mutação estrutural do status “da religião” no mundo contemporâneo. Esta mutação não pode ser captada pelo uso descritivo da expressão “religião no espaço público”. Esta assume, contra crescente evidência empírica, histórica e contemporânea, em escala global, um tempo em que a religião teria sido “privatizada” e distanciada do “espaço público”. Esta narrativa hoje revela-se muito mais um transbordamento de projetos iluministas e secularizantes para o discurso científico do que uma evidência demonstrada e irretorquível, histórica e contemporaneamente. Tornou-se uma narrativa contestada: há outras interpretações e outras evidências a serem reconhecidas que, no mínimo, a relativizam. Mais do que isto, a tese da privatização/desprivatização é assumida como se previamente à desprivatização recentemente admitida exista uma identidade e um projeto acabados “da religião”, que se manteriam intactos ao ser cruzado o umbral do “espaço público”. A religião “no espaço público”, assim, é vista como uma ocupação, por parte de um ente bem conhecido e facilmente discernível, que traria para esse espaço algo que estivera ausente dele ou que lhe seria, em todo caso, estruturalmente externo. Além disso, “a religião” continuaria inteira e essencialmente não-afetada após sua ocupação do espaço público, sua movimentação nesse espaço apenas taticamente assumindo formas pluralistas ou democráticas, enquanto acumularia forças para uma investida contra as instituições legadas pela modernidade ocidental. Investida que traria de volta “a religião”, velha conhecida, a um controle de que fora deslocada, mesmo que representada por novos agentes. Não se trata aqui de ingenuamente contrapor a essas observações uma imagem pristina da religião como intrinsecamente virtuosa, bem-intencionada e alinhada aos anseios de liberdade e igualdade para todos. Apenas está em questão a suposição de que há uma usurpação, por princípio, em curso, quando a religião, assim, no singular, “adentra” o espaço público, e de que, quanto a este último, se supõe que seja uma espécie de domínio a proteger, sem maiores qualificações e questionamentos sobre quem de fato nele se move ou a ele tem acesso. Essas suposições, não demonstradas, revertidas ou recentemente contestadas, tornam plausível a reentrada do termo “fundamentalista” como marcador político, qualificativo do conservadorismo que seria específico do religioso na atual conjuntura. Mas creio que não é tão simples nem será tão fácil assim. Não é tão simples, porque não existe, como destaquei acima, um único modelo de religião pública. Se nos ativermos apenas aos quatro mencionados, o perfil dessa intervenção é claramente diferenciável. E me parece totalmente descabido associar a política eclesiástica católica, a incidência pública ecumênica ou a culturalização afrodescendente ao conceito de fundamentalismo. Mas ainda que consideremos o campo pentecostal e evangélico – que não são termos sinônimos – como candidato maior à associação, não há aí um alinhamento automático nem integral à via político-eleitoral. Entre outras coisas, a representação parlamentar dos evangélicos tem sido sistematicamente menor do que Mais: mesmo de forma marginal, há pentecostais e evangélicos associados à via ecumênico/ativista (por exemplo, a Visão Mundial, a Rede Evangélica Nacional de Ação Social e vários posicionamentos de lideranças pentecostais). Por fim, o modelo clássico protestante no Brasil, o do absenteísmo associado a uma rejeição da política e a uma postura aquiescente diante das autoridades constituídas, continua

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bastante vivo (uma pesquisa realizada durante a Marcha para Jesus de junho de 2016, em São Paulo, identificou um percentual de 62,7% dos entrevistados sem identificação política no gradiente direita/esquerda, com 16,4% não respondendo ou não sabendo, 9,4% se afirmando como de direita e 8,8% como de esquerda 20). Assim, “fundamentalismo” deve ser claramente especificado se quisermos aplicar o termo como conceito, como categoria descritiva e até como bordão acusatório para caracterizar a religião pública nesta conjuntura. Por outro lado, não será tão fácil estender o uso do termo “fundamentalismo”, seja face à adesão ou aquiescência de amplos segmentos da representação parlamentar e de setores da mídia aos argumentos, propostas e formas de mobilização dos parlamentares pentecostais, seja à reação de setores laicos, não-religiosos e politicamente liberais ou de esquerda, seja pela não-identificação dos pentecostais com a expressão. Há apoio para os pentecostais além da bancada evangélica; os pentecostais não podem tudo; muitos pentecostais não aceitam o rótulo em boa fé. É preciso, então, posicionar melhor “os evangélicos” nesse jogo. No primeiro caso, é óbvio que não se trata de uma “tomada de poder” pentecostal, à revelia dos demais atores participantes da coalizão golpista. Se expressa aí uma possível homologia entre conservadores sociais e políticos e fundamentalistas, que na melhor das hipóteses deve ser vista como indicativa de uma aliança (o que qualificaria um termo pelo outro, “conservador” como “fundamentalista” e vice-versa, ou demandaria especificar mais o que tornaria fundamentalista a atuação pentecostal) e, na pior, produziria uma confusão deliberada e analiticamente espúria 21. No segundo caso, a própria existência de uma crítica religiosa – tanto institucionalizada como difusa – aos pentecostais como “fundamentalistas” indica duas coisas: primeiro, a existência de um lócus de uso polêmico, agonístico, do termo (o que o torna nativo, parte de uma disputa intrarreligiosa); e segundo, que há uma crítica do fundamentalismo (real ou imaginado) que visa a tudo fazer para não permitir que o que quer que se deixe descrever por este termo ganhe terreno no mundo público. Crítica feita por uma posição religiosa, mas de forma alguma fundamentalista. Religião pública. No caso, de ecumênicos, ativistas inter-religiosos e simpatizantes secularistas. Em nenhum desses dois casos o uso do termo é admitido pelos atores visados. Neste sentido, o caráter político do termo se evidencia com bastante força, tornando seu uso no contexto científico-social, enquanto descritor, marcador empírico, se não um equívoco, pelo menos uma injustificável incoerência teórico-metodológica. Para quem não aprecia essa querela acadêmica, o argumento, com o mesmo efeito, seria um pouco diferente: se fundamentalismo pode se aplicar a religiosos não-pentecostais e a não-religiosos conservadores, o que exatamente se quer atingir politicamente, além de construir um espantalho para então atacá-lo? E, ainda que se excetue, por concessão, do uso acusatório quem vier a se mostrar “não-fundamentalista” entre os 20

Ver http://pt.slideshare.net/LeandroOrtunes/infogrfico-marcha-para-jesus-mire-62581533/9. Esse segundo gesto teórico-político é realizado, por exemplo, por alguém do quilate de Marilena Chauí, que não apenas considera, sem qualificações, o “retorno da religião” um sinal de barbárie na cultura contemporânea (numa leitura canhestra de Walter Benjamin), simplesmente o desrecalque de “fundamentalismos religiosos”, como aplica o termo tanto ao mercado como à religião – ao “fundamentalismo religioso” corresponderia um “fundamentalismo de mercado”, ao “misticismo do mercado” corresponderia “a violência da teologia política” (cf. Chauí 2006: 128-29, 131, 132). 21

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evangélicos, como qualificar esse expediente pelo qual se constrói uma figura de inimigo público (“os evangélicos” como fundamentalistas) que, no entanto, se aplica ao sabor da conveniência de quem a usa? O que há de não-conjuntural nisso tudo é o caráter estrutural dessa presença pública da religião. De um lado, a militância religiosa na política está instalada e corta de muitos lados. De outro lado, cada vez mais lógicas e interlocutores seculares e religiosas se interpenetram, em público, com vistas a uma maior visibilidade e em disputa pelo que seria público, portanto, geral. Mas, diferentemente de um retorno ao conceito sociológico de Igreja (isto é, de religião estatal e de identidade nacionalreligiosa), o processo se dá em marcos crescentemente pluralistas e minoritizante. É isto que significa o conceito de religião pública. Para concluir essa breve revisita ao tema da religião pública, uma característica adicional dessa mutação estrutural e não singularmente brasileira é o fato de que tanto o conteúdo quanto a forma do discurso religioso articulado publicamente e/ou sobre questões públicas passam a ser objeto de discussão ou contestação, e os atores religiosos precisam dar contas do que querem dizer, do grau de precisão ou fidedignidade de suas interpretações dos textos sagrados ou de argumentos teológicopolíticos utilizados. E os interlocutores não-religiosos (ou de religiões concorrentes) podem fazê-lo seja em bases estritamente seculares, seja no terreno mesmo do discurso religioso22. Mais, a religião pública provoca nos atores religiosos nela envolvidos uma injunção a verem resolvidas em público suas querelas teológicas em torno do papel da igreja no mundo, da tradução prática de princípios ético-sociais de base religiosa (mesmo segundo interpretações populares de agentes religiosos não-clericais), ou da relação entre convicções e comportamentos específicos do grupo religioso e os contextos extramuros das instituições religiosas. Isso faz com que pressões internas por relevância ou obediência à palavra divina, juntamente com a retroalimentação de embates sociais e políticos sobre o campo intrarreligioso, impulsionem à exposição pública, à disputa em público com atores religiosos e não-religiosos considerados adversários e a pretensões de utilizar o poder estatal (via legislação, política pública ou aparatos repressivos) para garantir a vitória e implementação de visões particulares do grupo ou de correntes hegemônicas em seu interior. Voltando ao caso brasileiro, na atual conjuntura, onde estaria a religião pública? Não na vitória total e definitiva do fundamentalismo evangélico, mas na continuidade dos quatro modelos, numa emergente nova correlação de forças favorável a um deles e também na crescente vigência de um discurso da tolerância que circula em toda parte, assumindo duas formas distintas. De um lado, a continuidade dos modelos sob nova correlação de forças (pró-via político-eleitoral) significa tanto que os outros atores não simplesmente 22

É interessante perceber como isso tem acontecido no parlamento, com propostas simetricamente opostas sendo apresentadas por parlamentares defensores do estado laico ou dos movimentos de mulheres e LGBT. Mas qualquer passeio pelas mídias sociais e blogs vai permitir percebermos a mesma tendência: o sentido do discurso religioso e o conteúdo das propostas oriundas de atores religiosos são debatidos publicamente, para além das fronteiras das organizações religiosas e independentemente da voz autorizada de suas lideranças.

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desapareceram, nem foram inteiramente paralisados e desarticulados, como que “conservadorismo” não é o único registro para capturar essa movimentação. Como já sugeri anteriormente, até mesmo no interior das denominações pentecostais há contracorrentes e uma ainda frágil produção de evidências empíricas relativiza a tese da “representação” de todo o campo evangélico pela elite parlamentar e pastoral pentecostal, especialmente a de orientação neopentecostal – que precisa ser singularizada e devidamente dimensionada em seu poder de fogo. De outro lado, o que se opõe à via político-eleitoral tem se bifurcado em duas alternativas. Ambas as posições se opõem ao que consideram uma tendência à “fundamentalização”. De um lado, um discurso liberal e secularista (ou laicista) da tolerância, que tenta re-hegemonizar em bases liberais a fronteira entre religião e espaço público, pela mobilização do fantasma da religião pública como fundamentalista e intolerante. Neste campo encontram-se defensores da laicidade do Estado ligados à via ecumênica/ativista social, à via da culturalização e à via hierárquico-eclesiástica católica, além de pessoas e grupos não-religiosos. A ênfase varia um pouco: para uns, o problema são os evangélicos, isto é, a elite parlamentar e pastoral evangélico-pentecostal; para outros, é a religião pública em si, “a religião”, de volta e sem máscaras. O discurso da tolerância se torna, assim, outro sinal da vigência da religião pública. Na medida em que é mobilizado dentro e fora do estado, pelo estado e por múltiplas outras agências no plano da sociedade civil, a tolerância define-se como arranjo transreligioso, no qual o paralelismo e a nitidez das fronteiras entre público e privado e entre religioso e não-religioso (ou laico) são também ativamente postos em xeque ou relativizados. Portanto, por mais que se afirme a necessidade de uma reprivatização ou contenção da religião pública, o discurso da tolerância é apenas mais uma forma desta última. Novamente, este não é um traço singularmente brasileiro. Desde o 11 de setembro tem havido um maciço e amplamente diversificado investimento na tese da tolerância, reinstituindo um regime (ou uma governamentalidade) em que se deslegitima e se busca controlar ou regular pela via estatal um conjunto de comportamentos associados à noção de intolerância, extrapolando sua aplicação do conflito religioso para outras esferas da vida social: (i) a afirmação de crenças de modo assertivo e não-conciliatório; (ii) a transposição do umbral do privado para realizar a defesa de implicações culturais e políticas dessas crenças que não se restringiriam àqueles que as esposam, ou seja, a tentativa de impor crenças particulares sobre o conjunto da sociedade a partir da ação estatal; (iii) o ambiente de contestação de valores de civilidade e respeito a posições adversárias produzido pelas duas situações anteriores, ou seja, produzindo polarizações e debates apaixonados; (iv) o potencial de recurso à violência que as três situações anteriores provocam, quando a intensificação dos embates e o acirramento das paixões extrapolam os limites do respeito ao outro e mesmo da lei. O cenário internacional, em escala global, mostra as vicissitudes e a ambiguidade do discurso da tolerância como governamentalidade. Mesmo que haja numerosas indicações reais de radicalização e de intolerância em nome da religião em distintos contextos – o que assegura no mínimo a plausibilidade dos chamados à tolerância – verifica-se a impossibilidade de evitar que a tolerância se transforme em autoimunização e produza políticas de ressentimento, já que há várias outras formas

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de religião pública em jogo que serão atingidas pela nova tentativa de privatizar a religião, pessoas inocentes são estereotipicamente identificadas como intolerantes e xingadas, discriminadas ou agredidas e a disputa política amplia o potencial dessa má identificação para atingir grupos inteiros de pessoa. Isso tem ocorrido generalizadamente com muçulmanos mundo afora, transformados em fundamentalistas, antidemocráticos, violentos, passivos à manipulação por minorias extremistas e transformados em alvos suspeitos privilegiados da viligância estatal – tanto diplomática como policial. O problema da tolerância não está na ética pessoal que a anima, mas em sua transformação num recurso de poder em uma disputa na qual grupos aparentemente poderosos e “do mal” são na verdade alvos fáceis de enquadramento, exposição e confrontação.23 Mas há uma alternativa ao discurso da tolerância, que creio estar também representada no contexto brasileiro, por uma certa “turma-do-deixa-disso” ou “turmado-muita-calma-nessa-hora”. Em muitos casos é difícil distingui-la do discurso da tolerância, senão na sua recusa em mimetizar os grupos que se utilizam da religião pública para impor suas crenças e bizarrices a setores da população que não as compartilham; ou seja, em sua recusa a usar o estado para construir uma figura de um inimigo público a ser combatido, em nome da tolerância! Ela encarna uma proposta de pluralismo agonístico como antídoto filosófico e sociopolítico à arregimentação contra a religião pública em curso na construção de uma nova articulação entre religião, conservadorismo moral/cultural e fascismo político/social. Alguns pensadores liberais e não liberais contemporâneos podem ser apontados, como, por exemplo, John Gray, James Tully, William Connolly e Chantal Mouffe. Não se trata de tolerância, nem mesmo no sentido refinado por Paul Ricoeur (sua “quarta etapa da tolerância”) ou André Comte-Sponville (sua visão se que a tolerância deve-se aplicar no contexto da “opinião”), ambos deslocando-a do terreno da verdade. Pois a visão desses autores é ainda insuficientemente relacional: só prescreve o respeito, não o engajamento mútuo (origem da aspereza de diálogo, da escalada das paixões, da incompreensão mútua e do ressentimento). Pluralismo agonístico é admissão dessa “quarta etapa da tolerância” em meio à impossibilidade de encontrar recessos sociais e culturais onde o outro estaria distante ou ausente. Não é política no sentido de neutralidade do estado, como defende Ricoeur. Não é a laicidade francesa. E não se funda na suposição do indivíduo isolado ou autônomo (como também questiona Jessé Souza em texto recente – cf. Souza 2016), mas em agentes sempre situados, não em um só, mas em vários complexos normativos de valores e práticas grupais ou institucionais, de histórias coletivas e trajetórias pessoais nunca descoladas daquelas, de ambíguos gestos de afastar-se da doxa e da incitação conjunturais mas sempre a partir de contextos que nada têm de inocentes, puros e virtuosos. A resposta pluralista, no contexto polarizado da conjuntura brasileira, aparece menos em grandes pronunciamentos do que em gestos de desarme associados a chamados a uma abertura para o diálogo áspero, pouco educado, imoderado, mas franco e realmente preocupado e comprometido com saídas que não aumentem as vítimas, o sofrimento, a má-fé e a injustiça que já campeiam. Ora se expressa na busca 23

Minha leitura do discurso da tolerância ampara-se aqui diretamente no trabalho de Wendy Brown sobre tolerância como governamentalidade e suas reverberações nos debates contemporâneos sobre religião e sexualidade (2006; Brown e Forst 2014).

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por maior imparcialidade nas informações e relatos sobre ocorrências 24. Ora se expressa na tentativa de criar espaços para que as partes mais conflagradas aceitem se colocarem frente a frente sob um código mínimo de moderação que se expressa em cada uma ser ouvida na mesma medida em que permite que as outras falem. Ora se expressa na criação de oportunidades de reflexão e debate intelectual, como a que nos reuniu neste lugar, neste fórum. Para finalizar, e enfim responder diretamente à questão do lugar da religião na conjunção de forças que definiu “a crise” e levou à consumação da derrota do lulismo, ao processo de impeachment e à instauração de uma ordem ilegítima no Brasil entre o processo eleitoral de 2014 e a votação no Senado em 31 de agosto de 2016, “fundamentalismo” é um dispositivo relacional, uma categoria que pede compreensão etnográfica daquilo que está dos dois lados da fronteira entre a elite parlamentar pentecostal (e seu campo de gravitação) e seus adversários. Não explica nem descreve. Não nos fala do que já sabemos. Aponta. Em geral, faz petição de princípio de que a acolhamos por plausibilidade de que a identidade religiosa e seu “projeto” já preexistam à recomposição política do campo da direita no Brasil, na atual conjuntura. Do ponto de vista conceitual, seu uso sem qualificações contrabandearia um debate entre crentes e descrentes (logo, interno ao “campo religioso”) e se arriscaria a fazer o jogo das novas formas de “guerras de religião” e da nova governamentalidade da tolerância que se afirma como alternativa ao cenário dos fundamentalismos. Quando combatido por meio da injunção à tolerância, nesta conjuntura, não me parece que escapemos de ver reproduzirem-se desdobramentos que a “guerra ao terror” trouxe para a cultura política, a esfera pública e a própria legalidade democráticas globalmente. Se pensarmos a lógica do político como envolvendo precisamente a emergência do antagonismo, a polarização criada pela retórica conservadora não será desarmada, apenas deslocada, pela retórica da tolerância. Se a própria experiência da polarização do debate público e privado brasileiro sobre a crise, a corrupção, o PT, o governo Dilma e o impeachment for observada de perto, a dicotomização do espaço entre “nós” e “eles” nessa conjuntura de anti-petismo, fazendo-se acompanhar não só de atos virulentos de disputa retórica mas também de suposições sobre a subjetividade e a própria moralidade dos inimigos (conhecidos ou não), não foi estranha a nenhum dos campos. O uso do discurso da tolerância em nada serviu para dissuadir quem quer que fosse situado do “outro lado”, mas funcionou como uma das posições do campo anti-retórica da crise e anti-impeachment. Por sua vez, a revisita ao conceito de religião pública me permite afirmar a relacionalidade da “religião no espaço público” (tema da mesa na qual este texto foi apresentado) e que não é a religião pública em si que realiza a hipotética virada fundamentalista na conjuntura brasileira. Suas fronteiras não mais se decidem em termos de um especificamente religioso, mas num descentramento e borramento que lhes abre espaço no público ao custo de a religião passar a ser contestada em seu próprio terreno pelos seus outros (religiosos, juridico-políticos e movimentalistas), enquanto empresta seu léxico, suas táticas e sua semântica a processos políticos nos 24

Ressalto, por exemplo, o trabalho realizado pelo Grupo de Pesquisa Mídia, Religião e Cultura (MIRE) do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo. Grande parte do material jornalístico e opinativo reunido para este texto beneficiou-se do blog mantido pelo Grupo de Pesquisa.

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quais participa mas, até aqui, nunca como ator central. Neste contexto, a publicização também implica em que o estado de novo emerge como lócus de embates entre religiões e entre “a religião” e seus outros. A onda de conservadorismo já quebrou em nossa praia, com força suficiente para destruir conquistas que se julgavam ao abrigo do retrocesso. Politicamente, há uma co-presença de componentes políticos, jurídicos, midiáticos, religiosos, empresariais, acadêmicos na montagem do script e da cena do golpe que se perpetrou e busca consolidar-se. É fato inconteste que o conservadorismo religioso é um componente do processo e que há várias conexões entre este e várias outras posições no campo golpista. Mas ganharemos pouco se justapusermos golpismo, conservadorismo, fascismo e fundamentalismo e se, assim fazendo, inflacionarmos o que cabe dentro de cada um e fragilizarmos o que poderiam ser anteparos preciosos no nível do associativismo civil, das religiões organizadas, dos partidos e da própria institucionalidade à generalização de formas regressivas de ocupação do espaço público que a cada dia se tornam mais desenvoltas em sua retórica e suas iniciativas de “reforma”. Todas as esferas da vida social são atravessadas pelo antagonismo instalado na cena brasileira. Faremos bem em saber onde pisamos, porque nem tudo é pantanoso ou incendiário. Também faremos bem em não simplesmente nos indignarmos com a “intolerância” da conjuntura, mas tomarmos ou construirmos nossa posição no embate, pois em momentos de crise desta profundidade e amplitude não existe o lugar-nenhum da isenção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTOUN, Richard T. (2001) Understanding Fundamentalism: Christian, Islamic, and Jewish Movements. Walnut Creek: Altamira ARENARI, Brand; DUTRA, Roberto (2016) “A religião e sua vocação na recuperação de usuários do crack: ‘os longos futuros’”, in SOUZA, Jessé (org.) Crack e exclusão social. Brasília: Ministério da Justiça e Cidadania, pp. 209-221 BAPTISTA, Saulo (2009) Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobre cultura política, Estado e atores coletivos religiosos no Brasil. São Paulo/São Bernardo do Campo: Annablume/Instituto Metodista Izabela Hendrix BREKKE, Torkel (2012) Fundamentalism: Prophecy and Protest in an Age of Globalization. New York: Cambridge University BROWN, Wendy (2008) Regulating aversion: Tolerance in the age of identity and empire. Princeton/Oxford: Princeton University ______; FORST, Rainer (2014) The power of tolerance: a debate (eds. Luca Di Blasi; Christoph F.E. Holzhey). New York: Columbia University BURDICK, John (1998) Procurando Deus no Brasil. BURITY, Joanildo (2015) A cena da religião pública: Contingência, dispersão e dinâmica relacional, Novos Estudos Cebrap, 102: 89-105, julho ______ (2016a) “Religião, cultura e espaço público: onde estamos na presente conjuntura?”. In Frank Antônio Mezzomo; Cristina Satiê de Oliveira Pátaro; Fábio André Hahn (orgs.) Religião, cultura e espaço público. São Paulo/Campo Mourão: Olho D’Água/Fecilcam, pp. 13-49

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