A ópera Sarapalha do compositor brasileiro Harry Crowl

July 23, 2017 | Autor: Semitha Cevallos | Categoria: Opera, Harry Crowl, Musica Brasileira de Concerto
Share Embed


Descrição do Produto

A ópera Sarapalha do compositor brasileiro Harry Crowl

Palavras-chaves: Harry Crowl, ópera brasileira, Sarapalha, Guimarães Rosa.

Tanto os compositores de origem brasileira, quanto portuguesa,
transitaram de forma periférica pelo mundo da ópera sem realizar,
aparentemente, até tempos recentes, um trabalho mais profundo para tornar a
língua portuguesa mais operística. A tradição da ópera está ligada
principalmente, a três idiomas – italiano, alemão e francês – e as óperas
de Puccini, Wagner, Berg e Debussy assim o comprovam até o séc.XX. Contudo,
Béla Bartók, na ópera O Castelo do Barba Azul, e, Leoš Janáček em Jenůfa,
estão entre os compositores mais importantes do leste europeu a utilizar
seus idiomas – o húngaro e o tcheco – rompendo assim com a prática
operística vigente e introduzindo uma prosódia específica para sua línguas,
o que serviu de ponto de partida para Harry Crowl, que ao compor a ópera
Sarapalha preocupou-se com questões semelhantes relacionadas ao português
do Brasil. O resultado é uma obra que utiliza dicção lírica para o idioma,
a introdução de ritmos pelo deslocamento de sílabas tônicas e
consequentemente o melhor entendimento do texto por parte dos falantes da
língua. Trabalho possivelmente inédito no Brasil e em Portugal, segundo o
compositor.
Sarapalha é um dos contos que compõe a obra Sagarana do escritor
Guimarães Rosa, importante nome da literatura brasileira. Formado em
medicina, o escritor trabalhou na década de 1930 em regiões remotas do
sertão mineiro, lugares onde pode escutar relatos e observar a vida, os
costumes, a visão de mundo e o linguajar destes lugares onde o tempo custa
a passar. Essas experiências são o material com o qual Guimarães Rosa
trabalhou para criar seu estilo literário.
O texto utilizado por Crowl é uma adaptação teatral de Renata
Palottini. Quando perguntado sobre o interesse por Guimarães Rosa, Crowl
comenta:


Há muito tempo eu queria usar Guimarães Rosa para fazer
uma ópera. Eu conhecia essa história, achava que ela se
prestava para tal por ter sido concebida em forma de
diálogo, mas mesmo assim ainda havia muito texto
narrativo. Foi quando eu conheci essa adaptação da Renata
Palottini. Ela enxugou bastante o texto, mas as frases que
estão lá são todas do Guimarães Rosa, ela não alterou
nada. Ela fez essa adaptação com a aprovação dele. [1]


A história se passa no interior de Minas Gerais e relata a relação dos
primos Argemiro e Ribeiro, os dois personagens do conto. Após uma epidemia
de malária, os primos se encontram a sós, doentes, em uma vila abandonada,
situação que os leva ao delírio e à reflexão existencial.
O enredo tem um aspecto universal, poderia ser contada em qualquer
língua e se aplica a qualquer país onde seja encenada, pois a obra aborda
temas universais como a solidão, a peste, o abandono e a amizade. O
regionalismo do contexto e a linguagem empregada atuam apenas como cenário
para o drama humano relatado pelo autor.
O musicólogo André Egg compara os universos do interior do Brasil com
o do Leste Europeu ao realizar uma crítica da obra:

A referência a Bartók e a Janáček me remeteu também a uma
outra coisa, que é esse parentesco entre os interiores do
Brasil e o Leste Europeu. Grotões, regiões semi-áridas,
culturas rurais tradicionalíssimas, totalmente não
ocidentais e pré-modernas, que teimam em existir/resistir,
mesmo porque são regiões que nunca foram bem-vindas à
civilização, funcionaram sempre como periferias
incomodamente próximas. [2]


O compositor relata que "viajando pelo Leste Europeu, ouvi histórias
muito parecidas de pessoas que tiveram que abandonar seus lugares pelo frio
e pelo isolamento".[3] Regiões geograficamente tão distantes, contudo
ligadas por um drama comum que as une do ponto de vista humano.
A partir do século XX, o canto lírico em português estava sob forte
influência da corrente nacionalista. As óperas de Camargo Guarnieri e de
Lopez Graça são bons exemplos disso, estes compositores entendiam que
deveriam assimilar o folclore e a música popular, utilizavam o que já
existia na cultura dos respectivos países e incorporavam elementos
populares às suas obras. Não estavam preocupados em dar uma cadência para a
música de acordo com a fala. Bartók em o Castelo do Barba Azul e Janáček em
Jenůfa realizaram um trabalho com suas respectivas línguas, de fazer com
que a métrica respeitasse não somente a prosódia mas principalmente o jeito
das pessoas falarem, criando uma nova dicção lírica específica para o
húngaro e o tcheco. Trabalho ainda não realizado até aquele momento.
O italiano, francês, alemão e inglês, eram idiomas que possuiam dicção
lírica estabelecida e o trabalho realizado pelos compositores do Leste
Europeu por suas línguas, é uma atividade ainda por ser realizada pelos
compositores de língua portuguesa. Brasil e Portugal são países que
importavam e ainda importam ópera, como símbolo de status. Funcionam como
periferias do operismo alemão, francês e italiano. São poucos os esforços
dos compositores brasileiros e portugueses para que a língua portuguesa
possua uma dicção lírica própria. Mário de Andrade em "Os compositores e a
Língua Nacional" iniciou uma reflexão que deveria ter sido continuada à
exaustão até que o português alcançasse o nível de dicção operística.
Um bom exemplo de trabalho com a dicção, métrica e prosódia do
português é a obra de Crowl, que nasceu em Minas Gerais, assim como
Guimarães Rosa. Familiarizado com o modo de falar daquela região, Crowl
comenta:


Minha preocupação quando eu fiz Sarapalha era de pegar
essa adaptação da Renata Palottini, ler os textos em voz
alta e tentar imitar como algumas pessoas da região que o
Guimarães Rosa falavam. Eu tinha muito convívio com esse
tipo de linguajar na casa da minha avó. Comecei a pensar
na forma peculiar de falar das pessoas mais simples que
trabalhavam na casa da minha vó e dos parentes por parte
de mãe que apareciam para visitar. Comecei a ler o texto
em voz alta e tentava imitar o jeito que eu ouvia as
pessoas conversarem quando era criança. Então eu comecei a
marcar, fazer acentuações no texto. [4]


Uma das características da fala do povo da região de Minas Gerais e do
Brasil central é fazer com que a última sílaba das palavras quase que
desapareça. As frases tem uma entonação descendente. É possível perceber na
partitura de Sarapalha, o cuidado que o compositor teve em preservar essas
características do modo de falar das pessoas daquela região do Brasil.
(Exemplo 1) O ritmo da fala também é preservado, o que facilita a
compreensão do texto por parte dos ouvintes.
A prosa de Guimarães Rosa atingiu representação perfeita na
transposição musical de Harry Crowl. As vozes masculinas (primo Argemiro –
tenor, e primo Ribeiro – barítono) fazem um longo recitativo, declamam seus
diálogos, sendo fiéis ao texto. Seria inconveniente, devido à dramaticidade
da trama, realizar árias de exibicionismo vocal. A solução encontrada por
Crowl é fazer com que os instrumentos, viola, oboé, corne inglês realizem
as árias. O caráter camerístico da instrumentação da versão original-
acordeão, viola, oboé (alternado com corne inglês), violão e percussão –
possibilita a exploração de timbres, texturas e sonoridades. Esse ensemble,
além de realizar o acompanhamento dos cantores, atua como agente principal
na ambientação que envolve os personagens e enfatiza a intensidade
emocional da trama.
Além de tudo a obra exige muito de todos os músicos envolvidos –
regente, cantores e instrumetistas. O regente precisa ter perfeição em
tempos irregulares e ouvido preciso para os sons do ambiente atonal. Harry
Crowl escolheu Daniel Bortolossi para a estréia da ópera em 23 de novembro
de 1999, ele tem atuado todas as vezes que a obra tem sido apresentada
desde então. A partitura pode intimidar muitos cantores de ópera
tradicional por sua complexidade. Estes devem, necessariamente, estar
familiarizados com a música atonal, intervalos dissonantes, ausência de
apoio harmônico e discursividade melódica.
Sarapalha, está ligada à ópera mundial como comenta André Egg:


Do ponto de vista da escolha da história, Harry Crowl
remete às óperas de Mozart/Da Ponte, quando os personagens
são os homens comuns do tempo, e cuja escrita vocal é
cheia de detalhes que caracterizam social e
psicologicamente os personagens. Do ponto de vista do
papel de protagonismo dado ao conjunto instrumental no
todo da obra, Sarapalha é wagneriana, sem dúvida. A
escrita vocal em recitativo ou sprechgesang, é claramente
referente ao Pierrot Lunaire de Schoenberg. [5]

A obra poderia ser apresentada com mais frequência, pois é uma ópera
de câmara e não exige uma grande montagem como o das óperas tradicionais.
Três cantores, um regente, cinco músicos, pianista para os ensaios, um
diretor de cena. Sarapalha vem para desmentir o fracasso da ópera
brasileira e aponta para uma possível solução não somente no que diz
respeito à língua, mas também à viabilidade da montagem e da sobrevivência
do gênero no Brasil e em Portugal.

















NOTA BIOGRÁFICA


Entrevista
CROWL, Harry. Ópera Sarapalha. Curitiba/Paraná. 23 dez. 2011. Gravado.
Entrevista concedida à Semitha Cevallos.

Livros
ANDRADE, Mário. Aspectos da Música Brasileria. São Paulo: Livraria Martins
Editora, 1965.
MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2005.
NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi
Brasileira, 1981.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
TARUSKIN, Richard. Music in the Early Twentieth Century. Oxford: Oxford
University Press, 2005.
TARUSKIN, Richard. Music in the Late Twentieth Century. Oxford: Oxford
University Press, 2005.

Partitura
CROWL, Harry. Ópera Sarapalha. Ouro Preto/Curitiba: manuscrito inédito do
compositor, 1996. Ópera de câmera em um ato sobre o conto homônimo de
Guimarães Rosa, adaptação de Renata Palottini.

Sites
HARRY CROWL. Disponível em: www.harrycrowl.mus.br. Acesso em: 05/02/2012.

_______________________________________________________


-----------------------
[1] CROWL, Harry. Ópera Sarapalha. Curitiba/Paraná. 23 dez. 2011. Gravado.
Entrevista concedida à Semitha Cevallos.
[2] HARRY CROWL. Disponível em: www.harrycrowl.mus.br. Acesso em:
05/02/2012
[3] CROWL, Harry. Ópera Sarapalha. Curitiba/Paraná. 23 dez. 2011. Gravado.
Entrevista concedida à Semitha Cevallos.
[4] CROWL, Harry. Ópera Sarapalha. Curitiba/Paraná. 23 dez. 2011. Gravado.
Entrevista concedida à Semitha Cevallos.
[5] HARRY CROWL. Disponível em: www.harrycrowl.mus.br. Acesso em:
05/02/2012
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.