A ordem dos covardes

June 16, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Movimentos sociais, Ditadura Militar, Historia Contemporánea, Ditadura Brasileira
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A ORDEM DOS COVARDES por Waldísio Araújo

Ultimamente têm surgido grupelhos (espontâneos ou pagos) a pregar o retorno de uma ditadura militar ao Brasil. Falo "grupelhos" para acentuar seu caráter tradicionalmente corporativista e porque trata-se de pessoas que em geral costumam reunir-se em bandos por saberem que seus discursos não convencem a maioria, de modo que só ousam falar por si sós quando acobertados por dinheiro, mídia, cargos ou poderosos interesses nacionais ou estrangeiros. E não estou falando do corporativismo Juscelino toma conhecimento de sua cassação. Fonte: Wikipedia militar, pois sei que a ampla maioria dos oficiais não tem vocação golpista e muito menos fascista (aliás, como mencionarei abaixo, não o tinham mesmo na Alemanha ou Itália dos anos 30). Falo da pequena gentalha que se dissolve no dia-a-dia pelas ruas e que se reúnem real ou virtualmente apenas com quem pensa (ou pensa pensar) como ela. Essa corja de pequenos leitores que nunca estudou a fundo história, filosofia, ciência ou artes mas que julga ter reconhecido em um ou dois livros (aliás, suspeitos) alguma "verdade" última das coisas. Falo dos que simplificam tudo, dos que acham que todos os problemas do mundo dividem-se em dois blocos, dos que associam o Bem a um desses blocos (o deles, é claro) e condenam todos os demais a um pretenso bloco do Mal – que eles ingenuamente pensam que poderia à força ser suprimido, para "purificação" (ou "solução final") do planeta. Hoje talvez esses grupelhos não representem tanto perigo, pois seriam facilmente suprimidos pela opinião pública, pelas leis ou mesmo por força de armas. Contudo, nada é estável no mundo, de modo que um dia as vacas estarão menos gordas (ou mais magras, de acordo com o humor de quem as pesa atualmente) e a massa desesperada poderá estar disposta a segurar o primeiro tronco podre que lhe oferecerem. Hoje lembramo-nos dos tempos em que foram necessários grandes trabalhos para tirar países inteiros das patas desses animais, mas com o tempo a memória se dissolve e os jogos de poder ou de mídia a soterram com conceitos e palavras disfarçados de razão. A esses leitores de um só tipo de leitura, gostaria de dedicar os seguintes considerações a respeito de ditaduras militares no Brasil e os pressupostos falsos ou duvidosos sobre as quais poderiam tentar fundamentar uma... 1. Pensam que há uma desordem generalizada no país, que o caos toma conta das instituições, que a corrupção grassa, que o banditismo impera, que o país está à beira de um ataque de

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nervos, e em pontos muito localizados encontrarão algo disso realmente... Contudo, quando olhamos em volta vemos que as instituições estão funcionando mais ou menos da forma pretendida pelos que as fundaram num passado recente ou remoto. O que há é um questionamento generalizado da importância dessas instituições e propostas de mudança delas, e isso é muito saudável para uma democracia. De resto, nenhuma novidade, não há mais pilantragem e má-fé hoje do que no passado, embora saibamos mais detalhes das atuais do que das outras, talvez por temos nós próprios sempre algo delas dentro de nós. Mas em que uma corrupção que vemos seria mais condenável e tolerável que uma que não víamos? Seria o caso de aumentar a capacidade de as instituições democráticas detectarem a tempo e coibirem os erros, não de extinguir ou coibir as próprias instituições democráticas. Pensam (ao menos os mais antiesquerdistas) que a ditadura ajudaria a estabelecer o neocapitalismo de vez por aqui; contudo esquecem que a ideologia dos militares é nacionalista e tende a fortalecer (até exageradamente) o Estado. Nada mais contrário ao neocapitalismo, que prega um Estado mínimo (o que implica mesmo a redução de gastos com forças armadas). O que aconteceu na última ditadura foi os militares fortalecerem o Estado para deixar este mais manipulado pelos ricos internacionais e pelo império norteamericano, em detrimento da própria burguesia brasileira, além de gastar imensos recursos com obras faraônicas desnecessárias. Por falar em militares, a ideologia do exército sempre foi francamente positivista, baseada na ideia de que ordem conduziria a progresso, o que é uma mentira porque, em verdade, um sistema atrasado e inoperante também pode ser altamente ordenado, embora só pela força, e isso não tem nada a ver necessariamente com progresso. Por outro lado, ordem excessiva só leva a anacronismos, e anacronismo conduz à estagnação política, econômica, social e cultural – como, aliás, aconteceu por toda a época da ditadura, com seus altos níveis de desemprego, analfabetismo e inflação, muito piores que os atuais, sem contar com a corrupção que nunca nos tem faltado. Pensam que militares alguma vez teriam se preocupado em coibir a violência pública. Mas não há provas satisfatórias de quedas significativas do nível de violência entre o período pré64 e após o golpe, e entre a vigência deste e a Nova República. Na verdade, a documentação estatística mais rigorosa que temos é dos anos 80 para cá, mas o que se tem como certo é que há uma tendência geral, desde o final do século XIX, a um aumento dos níveis de violência, com raros e efêmeros períodos de maior tranquilidade, e essa tendência tem como causas aparente a expansão urbana e seus problemas, numa primeira fase, e, mais recentemente, a crise civilizacional de valores que envolve nossa vida moderna ou pós-moderna. Ora, nenhum desses dois motivos foi ou seria atacado pelos militares, que sempre se preocuparam mais em perseguir comunistas do que em coibir violências entre cidadãos (pelo contrário, quanto mais violência houver, mas álibis para manterem os cidadãos sob vigilância). Se ditaduras resolvessem violência, não teriam havido no período ditatorial grupos de extermínio como o Esquadrão da Morte ou o Mão Branca, sem contar que já é em si violência a própria manutenção do aparelhamento de cassações, perseguições, proibições e torturas que toda ditadura sustenta. Pensam até que uma ditadura aboliria uma democracia que tomam como já "falida". No entanto, nenhuma ditadura teria condições de ser governada só por militares, de modo que os esquemas representativos (justamente os que dizem que estariam agora "falidos") seriam

usados para manter a própria ditadura, aumentando a corrupção e o mandonismo pela troca de favores e manutenção de políticos e coronéis puxa-sacos dos ditadores, a exemplo dos ACMs ou Sarneys (do passado ou nem tanto), que foram amamentados exatamente pela ditadura e cujas famílias até hoje torram a paciência até de quem os apoiava nos tempos tenebrosos. 6. Pensam que uma ditadura restauraria os velhos e batidos valores da família, da propriedade ou da religião, mas não percebem que a crise desses valores não se deu por decreto, que eles decaem naturalmente desde bem antes do golpe de 64 e que uma restauração tampouco poderia ser realizada de cima para baixo (se é que seria desejável ou que poderia ser feita de alguma forma). Estamos numa época de dissolução, para melhor ou para pior, e não tem ditadura no mundo, de esquerda ou de direita, que possa retardar por muito tempo um processo que toma toda a civilização ocidental e mesmo mundial. Só nos resta cair no niilismo ou nos engajarmos na procura de alternativas criativas, e não é com autoritarismos que vamos fazer isso. 7. Pensam que uma ditadura traria uma paz (imposta) duradoura, mas não sabem que ditadura nenhuma, sobretudo as laicas, jamais conseguiu algo duradouro na historia contemporânea. Pelo contrário, todas as ditaduras foram mais ou menos efêmeras, desde os tiranos gregos até os fundadores do império romano ou o "Reich de 1000 anos" de Hitler. Aliás, o fim do Império Romano se deu após mais de um século de lutas militares pelo poder, ou seja, após uma sequência de efêmeras ditaduras que esgotaram os recursos e a paciência dos povos que as viveram. E onde as ditaduras têm durado mais tempo ultimamente é justamente nos lugares que nossos pregadores golpistas de hoje acusam de serem a escória da história (particularmente em Cuba, que talvez só tenha durado, paradoxalmente, graças ao isolamento imposto pelos norte-americanos). Mais engraçadamente, chegam a solicitar um autorismo sob alegação de que haveria um perigo de autoritarismo vindo do outro lado. Pedir ditadura para prevenir uma ditadura é o supra-sumo do pensamento confuso. 8. Pensam alguns (os neonazistas, em particular) que uma ditadura militar os protegeria e os instalaria nas estruturas de poder, como teriam feito os militares alemães após a ascensão de Hitler. Contudo, o conhecimento histórico desse povo é tacanho, pois não sabem que durante a vigência do nazismo havia um conflito interno entre o partido nazista e o exército, conflito nunca resolvido e em que o exército estava neutralizado por rígidas estruturas de comando, e porque os nazistas fizeram grupos militares paralelos que, como as SS, impunham o terror nas populações enquanto os militares se matavam nas frentes ocidental e oriental por um simbólico e ufanista "Deutschland alles übes". 9. Pensam os mesmos neonazistas e seus simpatizantes de folhetim que uma ditadura militar estaria interessada em fazer cessar as pressões pelos direitos das minorias, a exemplo das cotas para afrodescendentes, da criminalização da homofobia, do relaxamento da política sobre o aborto e das drogas etc. Ora, os militares são em geral conservadores, mas não são burros de navegar contra a maré que se ergue por todo o planeta. E sempre foram tão pouco preocupados com isso que, na época ditatorial, andavam mais dedicados a investigar a vida do Chico Buarque e suas letras políticas de rebelião geral do que com Raul Seixas e suas referências inofensivas sobre sociedades alternativas localizadas, que eram vistas mais como coisa de polícia do que como ameaça à "ordem social". 10.Pensam que as forças armadas teriam coesão para impor-se ao país, mas não sabem (ou

fingem não saber) que não há um tipo único de militar, que mesmo durante a ditadura os conflitos internos eram graves, e o são até hoje. Há muitos militares com espírito democrático, como há muitos (creio que em muito menor número) de linha dura. Esse conflito, apesar de acobertado, despontou fortemente no tempo da ditadura, e não é à toa que muitos dos perseguidos pelos ditadores eram eles mesmos militares (Lamarca, Mariguella), e casos como o atentado do Rio Centro pode talvez vir a ser visto sob a luz desses conflitos internos. 11.Alguns insinuam que hoje haveria ameaça de golpe comunista e que isso justificaria uma tomada de poder militar preventivo, o que é usar do mesmo argumento bobo utilizado no passado pela propaganda injetada pela CIA, pelas mídias e pelos conservadores pouco antes e pouco depois de 1964. Mas o mais engraçado é que isso costuma ser propagado pelos mesmos que dizem que o comunismo estaria sepultado desde a queda do Muro de Berlim. E nem percebem que hoje temos partidos comunistas patrocinados por empresários e com discursos de centro, nada parecido com a iminência de um "golpe vermelho". E pensam também que o PT parece de alguma forma com algum partido comunista ou mesmo com algum socialismo (enquanto alguns duvidam até que o partido seja propriamente de esquerda...). Na verdade a situação é sempre confusa, não deveria ser pensada e repensada com termos simplórios. 12.Pensam que militares impõem moral, seriedade e verdade num governo ditatorial, mas esquecem que por profissão eles não costumam entender de política, economia, artes ou ciência, exceto quando aplicados aos meios estritamente militares. No máximo eles impõem civis (os Delfim Nettos ou Magalhães Pintos do passado) para gerenciar a sociedade e a economia por eles, e na maioria das vezes escolhem esses civis mais pelo critério do puxasaquismo e do silêncio que por mérito. Ora, representatividade por representatividade, por que não a representatividade democrática? Há uma covardia implícita nas opiniões e atos dos que defendem acirradamente uma ditadura, e que consiste em esperar que alguém pegue em armas por eles. Como eles não têm coragem de ir às ruas exceto contra os pequenos marginais de esquina, sonham em ver e aplaudir paradas militares passando por baixo de suas janelas – após o que sairiam eles mesmos com seus grupelhos a espancar comunistas e gays e, mais engraçado, imaginariamente acobertados pelos mesmos militares que eles hoje insinuam que estariam preocupados com a ordem pública. Acho que daria para acrescentar mais alguns tópicos acima, mas para o presente, contentamo-nos com o espanto: usar direitos democráticos para pôr em causa a própria democracia é no mínimo autocontraditório, hipócrita e burro. As faixas pedindo golpe militar só apareceram durante manifestações porque estamos numa democracia. E numa democracia relativamente avançada, a ponto de permitir faixas contra ela própria. Se acham bonito, legal e útil uma ditadura de direita ou de esquerda, pensem – antes de sair para as ruas pedindo golpes – onde vocês estariam se estivéssemos numa ditadura de mão contrária à das faixas.

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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