A ORDEM JURÍDICA COMO ORDEM SIMBÓLICA: A lógica da legitimação social (Law School Grade Work)

June 1, 2017 | Autor: G. Eidelwein Silv... | Categoria: Legitimacy, Pierre Bourdieu, Legal Sociology, Symbolic Power, Legal Field, Libido Sciendi
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Gabriel Eidelwein Silveira

A ORDEM JURÍDICA COMO ORDEM SIMBÓLICA: A lógica da legitimação social

Monografia apresentada à Universidade do Vale do Rio dos Sinos como requisito para obtenção do título de bacharel em ciências jurídicas e sociais.

Orientador: Dr. Álvaro Filipe Oxley da Rocha

São Leopoldo 2005

“É uma convenção vã e contraditória estipular, de um lado, uma autoridade absoluta e, de outro, uma obediência sem limites”.

ROUSSEAU

RESUMO

Desde Marx, a sociologia sugeria a idéia de que o Direito poderia funcionar como uma “superestrutura” de legitimação das desigualdades sociais. Mas ainda era muito vago e misterioso o fato de haver um tipo de “consenso tácito” dos prejudicados diretos das convenções sociais em relação a estas mesmas convenções. A abordagem dos juristas, a da dogmática jurídica, é incapaz de explicar o mecanismo pelo qual o processo de legitimação social se efetiva, tendendo, pelo contrário, a negar a existência de um tal processo. A sociologia, como toda ciência nova, ainda era – e em certo sentido ainda é – pouco formalizada, havendo baixo grau de consenso sobre os seus métodos e conceitos. Por um lado, Marx apresentava, a partir de categorias próprias da filosofia, um misterioso “efeito de universalização” obtido pelas “ideologias”. Por outro lado, a sociologia era fundada em torno da querela entre Durkheim e Weber, cujo objeto era saber se a ação social e a correspondente “visão de mundo” dos indivíduos, a respeito dessa mesma ação social, eram determinadas pela “consciência individual” ou pela “consciência coletiva”. Nesse contexto, surge Bourdieu com a pretensão de unificar a ciência social e, principalmente, as perspectivas dos “pais fundadores”. Uma das principais descobertas de Bourdieu é a de que o peso do arbitrário social é incorporado pelos indivíduos sob a forma de um mecanismo autônomo e criativo, o qual funciona no interior de seu corpo como um “sistema de disposições” inconscientes (habitus), capaz de orientar a prática e a apreciação do mundo. Além disso, Bourdieu demonstrou que, nas sociedades diferenciadas, existem “campos de produção cultural” específicos – dentre os quais o “campo jurídico” –, os quais produzem os habitus específicos – como o habitus jurídico – e contribuem para inculcar esses habitus nos sujeitos que pertencem a esses campos. O fato de os sujeitos possuírem os habitus, que são o produto mental subjetivo da incorporação da estrutura social objetiva, fazem com que eles percebam essa estrutura de uma forma “essencialista”, como se ela fosse “natural” ou “necessária” e, portanto, legítima. Além disso, as condições em que surgiu o “campo jurídico” e o habitus correspondente – as condições de instituição do Estado de Direito –, atribuíram a esse habitus a característica de produzir práticas com pretensão de “universalidade”, segundo uma retórica do “desinteresse” e do “bem comum”. É por isso que o “discurso jurídico” funciona como um discurso legitimador da realidade social, sem que, no entanto, os juristas tenham a intenção de produzir esse efeito. São vários os exemplos em que o Direito obtém essa eficácia: quando institui a família legítima, a língua legítima, o regime de propriedade legítimo, o critério obrigacional legítimo, etc. Bourdieu sugere que a illusio gerada pela pertença ao campo teria como causa um processo mental que o próprio Freud já descrevia, o “investimento de libido”. A comparação entre Bourdieu e Freud também é fluida para aclarar as características

da eficácia propriamente “simbólica” do discurso jurídico, que é a eficácia de ocultar dos principais interessados a verdade arbitrária das convenções.

PALAVRAS-CHAVE: sociologia do direito; legitimidade; campo jurídico; poder simbólico; libido; Pierre Bourdieu.

LISTA DE ILUSTRAÇÔES

FIGURA 1 - Espaço das posições sociais e espaço dos estilos de vida ....................... FIGURA 2 - Campo do poder; adaptação detalhada do diagrama original de Bourdieu .............................................................................................. FIGURA 3 - Aparelho mental .........................................................................................

SUMÁRIO

PREFÁCIO - Prof. Dr. Álvaro Filipe Oxley da Rocha .................................................... INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1. A DIMENSÃO SIMBÓLICA DO PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO SOCIAL .............. 1.1. Fundamentos sociológicos: referências à teoria de Pierre Bourdieu ................. 1.1.1. Bourdieu e os clássicos: algumas continuidades e rupturas .......................... 1.1.2. Alguns conceitos fundamentais ...................................................................... 1.1.2.1. Espaço social e capital 1.1.2.2. Habitus e campo .......................................................................................... 1.1.2.3. Poder simbólico ............................................................................................ 1.1.3. O funcionamento do campo jurídico ............................................................... 2. A LÓGICA DA LEGITIMAÇÃO SOCIAL: RELAÇÕES CONCEITUAIS ENTRE BOURDIEU E FREUD.................................... 2.1. A illusio como “investimento catético” ................................................................ 2.2. A função simbólica na sociologia e na psicanálise ............................................ CONCLUSÃO ................................................................................................................ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................

PREFÁCIO

{...}

Prof. Dr. Álvaro Filipe Oxley da Rocha

INTRODUÇÃO

Essa monografia é o resultado de um estudo teórico em Sociologia do Direito a respeito da problemática da “legitimidade”. A hipótese geral de que se parte é a tese de Marx de que o Direito funciona como uma superestrutura ideológica capaz de legitimar a ordem social, inculcando nos cérebros dos sujeitos pertencentes às “classes dominadas” um certo tipo de “falsa consciência” sobre a sua condição.

A questão dos “efeitos” sociais produzidos pelo Direito não pode ser apreendida através de uma abordagem de dogmática jurídica, senão apenas através de uma aproximação mais sociológica ou até psicanalítica do fenômeno jurídico. Para tanto, foram mobilizados os instrumentos teóricos da teoria social de Pierre Bourdieu (capítulo 1), por entender-se que esse autor é o que melhor trata da problemática.

A escolha de um autor como Bourdieu justifica-se pelo fato de que ele conseguiu – conforme acreditamos – reunir num único corpo teórico as grandes tradições da teoria sociológica, simbolizadas pelos nomes de Max Weber, Émile

Durkheim e Karl Marx, desfazendo os antagonismos aparentes entre elas e corrigindo vários de seus erros.

Dentre as diversas bibliografias consultadas, o marco teórico principal utilizado para abordar os processos do “campo jurídico”, foi o texto A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico, capítulo VIII do livro intitulado O Poder Simbólico.

Para muito além das vagas descrições de Marx, a perspectiva de Bourdieu apresenta o trabalho de legitimação da ordem social, empreendido pelo Direito, em termos de “eficácia simbólica”, aproximando-se muitas vezes de Freud. Inclusive, alguns conceitos que Bourdieu utiliza, como o de illusio, por exemplo, são passíveis de uma comparação fluida e elucidativa com os conceitos da psicanálise, como o de cathexis, por exemplo (capítulo 2). O texto psicanalítico principal utilizado é o clássico freudiano O Ego e o Id. E a comparação entre Bourdieu e Freud talvez seja a novidade mais ousada que essa monografia apresenta.

O problema central que esse trabalho se propõe a enfrentar é a questão de saber em que condições o Direito pode funcionar como um discurso que oculta a arbitrariedade das divisões sociais, legitimando-as. Três hipóteses específicas são levantadas a esse respeito.

A primeira é a hipótese de que existe um universo social – aqui chamado de “campo jurídico” – cuja lógica interna de funcionamento cria as condições para que os seus participantes tenham a ilusão de que a dogmática jurídica seja uma “ciência

pura”. A segunda hipótese, ligada à primeira, é a de que a illusio jurídica tem como causa o fenômeno psíquico do investimento libidinal nos jogos gerados pelo campo jurídico. E a terceira hipótese é a de que o habitus jurídico, adquirido pelos juristas ao terem investido sua libido no campo jurídico, impele os mesmos a realizarem práticas discursivas que tem uma retórica do “interesse universal” e do “bem comum”, capaz de ocultar a arbitrariedade das instituições jurídicas e, assim também, a da desigualdade social.

O objetivo teórico que se pretende ter atingido é o de demonstrar a aptidão da teoria sociológica de Pierre Bourdieu para explicar a “eficácia simbólica” de ocultação do arbitrário social produzida pelos discursos jurídicos aparentemente mais desinteressados.

Essa empresa justifica-se pela pretensão de fornecer as armas teóricas para destruir algumas das ilusões mais nocivas arraigadas no senso comum douto dos juristas e, assim, contribuir para diminuir um pouco da “violência simbólica” que se exerce na sociedade.

1. A DIMENSÃO SIMBÓLICA DO PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO SOCIAL

1.1. Fundamentos sociológicos: referências à teoria de Pierre Bourdieu

1.1.1. Bourdieu e os clássicos: algumas continuidades e rupturas

Como toda ciência em seu início, a sociologia costumava ser uma ciência “dispersa”, no sentido de que suas categorias e teorias fundamentais ainda não formavam um sistema teórico integrado e coerente. Os métodos adotados pelos “fundadores” – Durkheim, Weber e Marx – para construir o objeto da sociologia, em muitos casos, pareciam colidir uns com os outros, invalidando-se mutuamente.

Uma das principais contribuições de Bourdieu para a ciência social foi, sem dúvida, a demonstração de que muitas dessas “contradições” eram apenas “aparentes”. Para tanto, ele precisou refinar os conceitos operacionais, numa teoria social bastante complexa, capaz de expor alguns dos equívocos fundamentais dos fundadores, bem como a complementaridade de suas perspectivas. Bourdieu comenta esse projeto:

Desde o começo do meu trabalho, pareceu-me que seria possível fazer que a sociologia progredisse decisivamente se conseguisse reunir os conhecimentos, aparentemente antagônicos, ou em todo caso dispersos, desta disciplina. Se conseguisse integrar, sem recorrer a conciliações retóricas ou a compromissos ecléticos, as tradições simbolizadas nos nomes dos “pais fundadores” – Marx, Durkheim, Weber – e superasse as oposições epistemologicamente fictícias (...) (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003, p.32).

Em primeiro lugar, a perspectiva de Durkheim, conhecida como sociologia explicativa1, para a qual a sociologia deveria consistir no estudo dos fatos sociais, entendidos como “toda maneira de fazer” – isto é, de pensar, de sentir ou de agir – “fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior”, que seja “independente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2001, p.40). “Ao considerar os fatos sociais como coisas, Durkheim procurava apreender neles os traços que podem ser vistos por um observador. Por esse método ele definiu o fato social pela coerção imposta aos indivíduos por formas de agir que lhe são exteriores” (GALLIANO, 1981, p.90).

A concepção da sociologia de Durkheim se baseia na teoria do fato social. Seu objetivo é demonstrar que pode e deve existir uma sociologia objetiva e científica, conforme o modelo das outras ciências, tendo por objeto o fato social. Para que haja tal sociologia, duas coisas são necessárias: que seu objeto seja específico, distinguindo-se do objeto das outras ciências, e que possa ser observado e explicado de modo semelhante ao que acontece com os fatos observados e explicados pelas outras ciências. Esta dupla exigência leva às duas celebres fórmulas com que se costuma resumir o pensamento de Durkheim: é preciso considerar os fatos sociais como coisas; a característica do fato social é que ele exerce uma coerção sobre os indivíduos (ARON, 1999, p.325-326).

Segundo Aron (ibidem, p.327), dizer que os fatos sociais devam ser tratados “como coisas” pode significar duas coisas muito diferentes. Em primeiro lugar, significa que devemos considerar como “coisa” “toda a realidade observável do exterior, e cuja natureza não conhecemos imediatamente” (idem, ibidem). Neste

sentido, o pensamento está sociologicamente correto. Por outro lado, o termo “sugere que toda interpretação do significado que os homens atribuem aos fatos sociais deve ser afastada pela sociologia” (idem, ibidem), induzindo ao equívoco muito comum em seguidores de Durkheim, que é o de ignorar absolutamente a perspectiva compreensiva2.

Ao contrário de Durkheim, Weber defende expressamente a sociologia compreensiva3, sustentando que o objeto da sociologia deveria ser a ação social, definida como “uma ação que, quanto a seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros, orientando-se por este em seu curso” (WEBER, 1999, p.03). Essa perspectiva destaca o caráter compreensivo da ação, quando “compreensão” significa a “apreensão interpretativa do sentido” (idem, ibidem, p.06) visado pelo executor da mesma ação.

Para Weber, o fato de manusear os aspectos subjetivos (“sentidos visados”), não pode, por si só, comprometer a objetividade da ciência. Para ele, “é preciso ter o senso do interesse daquilo que os homens viveram para compreendê-los autenticamente; mas é preciso distanciar-se do próprio interesse para encontrar uma resposta universalmente válida a uma questão inspirada pelas paixões do homem histórico” (ARON, 1999, p.456). Para obter tal neutralidade, Weber propõe a metodologia dos “tipos ideais” ou “puros” da ação social4.

1

Em As regras do método sociológico, Durkheim (2001, p.103-131) defende a perspectiva explicativa, pela qual, a sociologia deveria focar as causas eficientes dos fatos sociais (“arbitrário social”), capturando seus aspectos externos, observáveis e objetivos. 2 Para a sociologia compreensiva, cujo paradigma é a obra de Max Weber, “compreensão é precisamente a apreensão do significado interno dos fenômenos sociais” (ARON, 1999, p.327). 3 A teoria da sociologia compreensiva é sistematizada por Weber (1999, p.03-35) no capítulo I da Economia e Sociedade. 4 Weber identifica os tipos puros da ação social, utilizando o critério da sua maior ou menor racionalidade. Assim, a ação social “pode ser determinada: 1) de modo racional referente a fins: por expectativas quanto ao

“O tipo ideal ou puro é uma construção mental. É formado pela exageração ou acentuação de um ou mais traços, ou pontos de vista, observáveis na realidade” (TIMASHEFF, 1960, p.263), cabendo ao cientista “a indicação do grau de aproximação de um fenômeno histórico a um ou vários desses conceitos” (WEBER, 1999, p.12), classificáveis quanto a essa tipologia.

Ao reconhecer a distinção entre as ciências da natureza e as coisas do homem, Weber se esforçou no sentido de desenvolver um método com validade científica e que fosse próprio das ciências do homem. Ele conseguiu demonstrar a possibilidade de uma explicação causal para a sucessão dos fatos históricos e empenhou-se em salientar (...) [que] as ciências humanas podem compreender os fenômenos ou fatos estudados a partir do seu “interior”. O historiador, o sociólogo, o psicólogo, o economista, podem interpretar os fatos e fenômenos colocando-se mentalmente no lugar dos sujeitos, associando-se a seus sentimentos ou adotando sua representação dos fatos (GALLIANO, 1981, p.89).

Galliano (ibidem, p.90-91), no entanto, explica que as perspectivas explicativa (Durkheim) e compreensiva (Weber), “se complementam, ao invés de se oporem”. Ou seja, deve-se reconhecer tanto a “causa exterior” da ação social (“arbitrário social”); quanto a sua “internalização” sob a forma de habitus.

As pessoas agem, em cada momento determinado, fazendo uso de sua personalidade total – e isto quer dizer: o seu temperamento, seus caracteres hereditários e todas as experiências vividas desde que nasceram e tudo o que essas experiências lhe deixaram de resíduos. Mas é também evidente que a orientação das ações sofre influência de condicionamento social (idem, ibidem, p.91).

comportamento de objetos do mundo externo e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como “condições” ou “meios” para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; 2) de modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor – ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de modo afetivo, especialmente emocional: por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo tradicional: por costume arraigado” (WEBER, 1999, p.15). Em todos os casos, o autor da ação é visto aqui como alguém que “sabe o que faz”, pois “visa um sentido” consciente para a sua ação. Bourdieu, ao definir a noção de habitus pretenderá justamente “sair da filosofia da consciência” (BOURDIEU, 2004d, p.63), para encontrar o motor num sistema de disposições inconscientes (“habitus”), que é o produto da incorporação das necessidades sociais (“arbitrário social” ou “fato social”).

É nesse ponto específico que Bourdieu vai superar Durkheim e Weber, ao demonstrar que a ação social não é nem o produto das representações conscientes (“sentido visado”) do sujeito, nem tampouco uma resposta mecânica às pressões externas (“fato social”), tendo como verdadeira causa eficiente o funcionamento autônomo do habitus, que é, em suma, um sistema de disposições incorporadas. Ou seja, um mecanismo subliminar interno, que deve grande parte de suas características ao fato de ter sido produzido e inculcado desde fora, na e pela interação social. Assim, “a noção de habitus exprime sobretudo a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo, etc.” (BOURDIEU, 2004d, p.60).

Por fim, a teoria social de Marx – com forte influência do idealismo de Kant e de Hegel – tendia a colocar os problemas da sociedade através de categorias próprias da “filosofia”, não se podendo classificá-la pelas divisões sociológicas; e estando, portanto, fora da alternativa entre a explicação e a compreensão5. No entanto, a concepção de Marx, quanto aos “efeitos da ideologia” contribuiu decisivamente para a construção teórica de Bourdieu.

Marx se referiu com freqüência às ideologias, e procurou explicar as maneiras de pensar ou os sistemas intelectuais pelo contexto social. A interpretação das idéias pela realidade social comporta diversos métodos. É possível explicar as maneiras de pensar pelo modo de produção ou pelo estilo tecnológico da sociedade. Contudo, a explicação que até hoje teve maior êxito é a que atribui determinadas idéias a uma certa classe social. De modo geral, Marx entende por ideologia a falsa consciência, ou falsa representação, que uma classe social tem a respeito de sua própria situação, e da sociedade em conjunto (...). Essa teoria da falsa consciência, associada à consciência de classe, pode ser aplicada a muitas idéias ou sistemas intelectuais. Quando se trata de doutrinas econômicas e sociais [e também jurídicas], pode-se a rigor

5

Para uma crítica da perspectiva de Marx vide ARON, 1999, p.149-170.

considerar que a ideologia é uma falsa consciência, e o sujeito dessa falsa consciência é a classe (...) (ARON, 1999, p.176).

A noção de “poder simbólico”, pela qual Bourdieu explica o exercício de poder legítimo – que não é sentido como arbitrário; que é aceito tacitamente pelos próprios dominados – deve muito à assimilação do referido “efeito de ideologia”, conjugado como a noção psicanalítica de “símbolo”, consistente numa idéia conhecida que “oculta” uma outra idéia que não se pode conhecer. Simplificando, o efeito “ideológico” é “simbólico” na medida que falseia à consciência a arbitrariedade da ordem que se quer impor e, assim, a legitima. Daí a fórmula segundo a qual o desconhecimento da arbitrariedade implica sempre

no reconhecimento da

legitimidade da “ordem” (BOURDIEU, 2004b, p.170), no duplo sentido de estrutura (“ordem de distribuição objetiva”) e de mandamento (“conteúdo subjetivo da ordem”)6.

Esse efeito acontece sempre que as “relações de força” (econômica, política, etc.) entre as classes e os grupos sociais aparecem dissimuladas como “relações de sentido”. Por isso, “uma vez que a cultura só existe efetivamente sob a forma de

6

Um dos esforços principais desse trabalho é justamente o de mostrar que o “conteúdo de sentido” subjetivo de uma ordem, nos casos em que a ação social se orienta por “máximas indicáveis” (WEBER, 1999, p.19), as quais muitas vezes aparecem como modelares ou obrigatórias, ou, conforme dizemos, legítimas (idem, ibidem, ibidem), consiste num conteúdo tal que corresponde à descrição discursiva da “estrutura de distribuição objetiva”, com todas as suas divisões sociais em “grupos”, “classes”, “instituições”, etc. E é justamente pelo fato de o homem possuir idéias estruturadas sobre a sociedade, que ela pode realizar-se na prática como coisa estruturada. Por outro lado, é possível que o fato de que a sociedade tenha sido, a priori, coisa estruturada seja a causa dessa representação estruturada que os indivíduos têm sobre ela. “E isso é tão verdadeiro que a sociologia pode, à vontade, partir do homem para reencontrar, na análise de sua natureza, a presença da sociedade, ou partir da sociedade, cujo estudo conduzirá, necessariamente, ao Homem. “O homem-na-sociedade”, ou “A sociedadeno-homem”: as duas fórmulas são eqüivalentes, e podem servir, uma e outra, a definir a sociologia, se é verdade que o homem tem, necessariamente, dimensão social, e a sociedade, não menos necessariamente, composição humana” (DAVY In DURKEIM, 1983, p.XXIII). As perspectivas de Durkheim e de Weber, porém, não permitem construir o objeto da sociologia de uma maneira que se possa, ao mesmo tempo, encontrar o “ciclo de reprodução” das estruturas mentais do homem e da estrutura de distribuição da sociedade. Bourdieu pretenderá superar essa dificuldade “pela construção de uma ciência experimental da dialética da interioridade e da exterioridade, isto é, da interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade” (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003, p.53), onde os habitus serão considerados “sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes” (idem, ibidem, p.53-54).

símbolos, de um conjunto de significantes/significados, de onde provém sua eficácia própria, a percepção dessa realidade segunda, propriamente simbólica, que a cultura produz e inculca, parece indissociável de sua função política” (MICELI in BOURDIEU, 2004a, p.XIII). Aparentando estarem em jogo “meramente idéias” sobre o mundo social, é a própria “estruturação/hierarquização” (o critério de definição das posições) deste mundo que está em jogo, uma vez que as idéias que se têm sobre ele podem estruturá-lo na prática, desde que sejam internalizadas sob a forma de habitus.

O efeito propriamente ideológico consiste precisamente na imposição de sistemas de classificação políticos sob a aparência legítima de taxionomias filosóficas, religiosas, jurídicas, etc. Os sistemas simbólicos devem a sua força ao fato de as relações de força que neles se exprimem só se manifestarem neles em forma irreconhecível de relações de sentido (deslocação). O poder simbólico como poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário (BOURDIEU, 2004d, p.14).

Bourdieu relê os clássicos, redimensionando os seus conceitos, até chegar numa teoria social capaz de dar conta, ao mesmo tempo, das “estruturas objetivas” e das “representações subjetivas”, demonstrando como as primeiras condicionam as segundas, no sentido de reproduzirem as primeiras, como num “ciclo de consagração”. Descobriu, nesse sentido, o processo pelo qual o “espaço social” total se estrutura, bem como os mecanismos pelos quais os diversos “campos” restritos produzem o sentido prático do jogo, inculcando-o como habitus.

Em todos os casos, sempre se verificou o funcionamento da “operação fundamental da alquimia social” que é a de “transformar relações arbitrárias em relações legítimas, assim como diferenças de fato em distinções oficialmente reconhecidas” (BOURDIEU, 2004b, p.211), operação essa que o “discurso jurídico” realiza com excelência. Para penetrar nessa teoria complexa, porém, é preciso compreender seus principais conceitos – espiralados e recorrentes – em suas relações mútuas, bem como as recusas teóricas que neles estão implicados.

1.1.2. Alguns conceitos fundamentais

1.1.2.1. Espaço social e capital

Em primeiro lugar, é preciso elucidar que Bourdieu concebe a estrutura social, como “espaço social”, isto é, como um espaço “semelhante” a um espaço geográfico, composto por várias posições ou regiões. Ele desenvolveu essa teoria – descrita a seguir – a partir dos estudos empíricos, sobre a sociedade francesa dos anos 70, elaborados em A distinção.

Numa primeira dimensão, o espaço social é estruturado hierarquicamente em razão da desigualdade na distribuição das propriedades socialmente valoradas (“capitais”). Esse critério primeiro de estruturação social, portanto, é estritamente quantitativo, pois reserva as posições mais altas aos mais ricos nessas propriedades; e as mais baixas para os menos ricos. Numa segunda dimensão, porém, o espaço vai estruturar-se por um critério qualitativo, de modo que a composição dos patrimônios específicos – isto é, o “peso relativo” dos diferentes

tipos de capitais nos patrimônios particulares – serve também para definir posições nesse espaço, sob a forma de proximidades e distanciamentos.

Pode-se descrever o campo social como um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição atual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se nele, na primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem e, na segunda dimensão, segundo a composição do seu capital – quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto de suas posses (BOURDIEU, 2004d, p.135).

Nas “sociedades mais desenvolvidas” o critério qualitativo de estruturação do espaço social deve levar em conta, principalmente, o volume relativo do “capital econômico” e do “capital cultural” nos patrimônios dos agentes. É em função desses dois tipos de capitais que são determinadas as semelhanças e as distinções sociais mais relevantes, uma vez que as mesmas são definidas em função da menor ou maior distância que os agentes ocupam, respectivamente, no espaço assim estruturado.

O espaço social é construído de tal modo que os agentes ou os grupos são aí distribuídos em função de sua posição nas distribuições estatísticas de acordo com os dois princípios de diferenciação que, em sociedades mais desenvolvidas, como os Estados Unidos, o Japão ou a França, são, sem dúvida, os mais eficientes – o capital econômico e o capital cultural. Seguese que os agentes têm tanto mais em comum quanto mais próximos estejam nessas duas dimensões, e tanto menos quanto mais distantes estejam nelas. As distâncias espaciais no papel eqüivalem a distâncias sociais. Mais precisamente, como expressa o diagrama de La distinction [infra], no qual tentei representar o espaço social, os agentes são distribuídos, na primeira dimensão, de acordo com o volume global de capital (desses dois tipos diferentes) que possuam e, na segunda dimensão, de acordo com a estrutura de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo dos diferentes tipos de capital, cultural e econômico, no volume global de seu capital (BOURDIEU, 1996, p.19).

Desse modo, ocorre que “os agentes que ocupam posições semelhantes ou vizinhas

estão

colocados

em

condições

semelhantes

e

submetidos

a

condicionamentos semelhantes, e têm toda a probabilidade de possuírem

disposições [“habitus”] e interesses semelhantes, logo, de produzirem práticas também semelhantes” (BOURDIEU, 2004c, p.155). No universo das possibilidades, as práticas e os “estilos de vida” tendem a respeitar, estatisticamente (“em média e aproximadamente”), a regra que liga o espaço social ao espaço das práticas.

O espaço social tal como descrevi acima apresenta-se sob a forma de agentes dotados de propriedades diferentes e sistematicamente ligadas entre si: quem bebe champanha opõe-se a quem bebe uísque, mas estes também se opõe , diferentemente, a quem bebe vinho tinto; mas quem bebe champanha tem muito mais chances do que quem bebe uísque, e infinitamente mais do que quem bebe vinho tinto, de ter móveis antigos, praticar golfe, equitação, freqüentar teatro de bulevar, etc. (...) [vide diagrama infra]. (...) O espaço social tende a funcionar como um espaço simbólico, um espaço de estilos de vida e de grupos de estatuto, caracterizados por diferentes estilos de vida (idem, ibidem, p.160).

Nesse ponto, já se pode ver como Bourdieu está a rechaçar a tradição, representa por Marx, segundo a qual o universo das idéias sobre o mundo social (“espaço simbólico”) seria determinado pela estrutura das relações de produção material, demonstrando que “se deve relacionar espaços práticos e universos simbólicos e não universos materiais e universos simbólicos” (CORADINI, 1997, p.05).

Além disso, Bourdieu está para definir que as posições no espaço social se definem “relacionalmente”, umas em relação às outras, apontando assim outro grave equívoco de Marx, que é a concepção “substancial” das classes sociais, como grupos reais, cujos membros se conhecem como tais e estão engajados num projeto histórico comum. O espaço social é uma realidade relacional no sentido de que as “posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras”, são “definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de

vizinhança ou distanciamento e, também, de ordem, como acima, abaixo e entre” (BOURDIEU, 1996, p.18-19).

Figura: Espaço das posições sociais e espaço dos estilos de vida (BOURDIEU, 1996, p.20).

Os grupos que a noção de “espaço social” permite construir são meramente grupos “teóricos”, constituídos por sujeitos agrupados apenas “no papel”, em razão de suas características comuns, as quais justificam a semelhança nas suas tomadas

de posições perante questões existenciais práticas; o que absolutamente não permite supor que as pessoas sitas numa mesma região do diagrama constituam autênticas “classes sociais”. Quando muito, são classes “potenciais”, que só poderão funcionar como grupos unificados (corporate bodies) se conceberem a si mesmas como classes (“consciência de classe”).

Assim, o erro maior, o erro teoricista encontrado em Marx, consistiria em tratar as classes no papel como classes reais, em concluir, da homogeneidade objetiva das condições, dos condicionamentos e portanto das disposições, que decorre da identidade de posição no espaço social, a existência enquanto grupo unificado, enquanto classe [reunida, mobilizada, engajada, etc.] (BOURDIEU, 1996, p.156).

Foi preciso construir o espaço social como “espaço de relações objetivas transcendente em relação aos agentes e irredutível às interações entre os indivíduos” (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003, p.20) para descobrir que os habitus (“sistemas de disposições”) individuais são incorporados a partir da pertença a uma “posição” específica no espaço estruturado hierarquicamente, de modo que “os pontos de vista” dos agentes “são apreendidos enquanto tal e relacionados a posições dos respectivos agentes na estrutura” (BOURDIEU, 2004c, p.152)7.

Conforme já dito anteriormente, as posições no espaço social são definidas pelo volume global de capital (critério quantitativo) nos patrimônios individuais; e também pelo peso relativo dos diversos tipos de capitais (critério qualitativo) nos mesmos patrimônios. Assim, são essas propriedades – aqui referidas como “capitais” –, inseridas no universo das relações implicadas na sua distribuição desigual, que definem a estrutura dos habitus específicos dos agentes, habitus esses que se manifestam como “estratégias objetivas” nos jogos sociais. 7

Sobre as características específicas dos habitus, vide ponto 1.1.2.2.

Em suma, objetivamente, a posse de “capital” é o critério de estruturação social; e, subjetivamente, a posição definida pela maior ou menor posse de capital, das diferentes qualidades, vai definir as disposições (“habitus”) de ação do agente. Como a estruturação social (“divisão da sociedade em grupos e classes hierárquicas”) é sempre uma “questão de poder”, os “capitais” devem ser concebidos pela sua eficácia específica, como “conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor delas, força ou poder nesse universo” (BOURDIEU, 2004d, p.133-134).

Num esforço para constituir uma simplificação sistemática do que poderíamos chamar de “teoria geral dos capitais”, podem ser tecidas as seguintes considerações quanto ao “conceito”, ao “estado” e às “espécies” de capitais:

a) O conceito de “capital” deve ser definido abstratamente pela sua eficácia específica, que é a de funcionar “à maneira de trunfos num jogo”, quer dizer, como “poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado” (idem, ibidem, p.144). Tecnicamente, os capitais são “instrumentos de apropriação” do equipamento institucional de um campo “e de mecanismos indispensáveis ao funcionamento deste campo e, ao mesmo tempo, dos lucros que ele prodigaliza” (BOURDIEU, 2004b, p.194);

b) Quando ao estado (idem, ibidem, ibidem), o capital pode existir tanto no estado “objetivado”, em forma de propriedades materiais, como o dinheiro, as coisas, etc; quanto no estado “incorporado”, como no caso do capital

cultural – em suas diversas formas, artístico, literário, lingüístico, jurídico, etc. –, podendo ser juridicamente garantido8.

c) Quanto às espécies de capital, podemos citar “o capital econômico – nas suas diferentes espécies –, o capital cultural e o capital social e também o capital simbólico, geralmente chamado prestígio, reputação, fama, etc. que é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital (idem, ibidem, p.135-135).

O capital econômico não exige maiores explicações, senão a ressalva de que a sua eficácia não se limita especificamente à apropriação daquelas prestações que podem ser obtidas pelo pagamento em dinheiro ou em bens materiais, estendendose também, e principalmente, às “vantagens simbólicas”, que são favores, bajulações e serviços prestados espontaneamente (ou por “interesse”) aos ricos nesse tipo de capital. Ou seja, “a dominação econômica é acompanhada quase inevitavelmente de uma dominação simbólica” (BOURDIEU, 2004d, p.125 – nota de rodapé).

O capital cultural – do qual o capital jurídico é uma espécie –, por sua vez, tem a característica fundamental de ser um tipo de capital incorporado, consistente na capacidade reconhecida de responder às exigências das “situações definidas” pelos universos culturais específicos. Geralmente o capital cultural é produzido sob a 8

O capital cultural, incorporado, pode ser juridicamente garantido nos casos em que o Direito prevê, por exemplo, a exigência de sua objetivação sob a forma de títulos ou de credenciais (escolares ou estatais) específicos, ou também pela simples exigência de reconhecimento por comissões ou grupos restritos (em “campos autônomos” como o científico), ou ainda pelo grande público (em “campos heterônomos” como o político), e assim por diante; como requisitos para a obtenção do direito de entrada em certos “mercados” ou “jogos” sociais.

“forma discursiva”, para ser conhecido e reconhecido apenas pelos agentes iniciados no campo cultural específico – exatamente como no caso da linguagem jurídica. Nesse sentido, o capital cultural é, ao mesmo tempo, um discurso e um poder, ou melhor, é o discurso do poder acumulado pelo campo.

É no próprio campo de produção cultural, enquanto mercado restrito de bens simbólicos esotéricos, nos quais são depositados os investimentos (“crenças”) dos agentes que nele interagem, que se deve procurar a causa eficiente da produção do “valor simbólico” do capital cultural, de onde provém a autoridade específica – jurídica, por exemplo – dos proprietários desse tipo de capital. “Esta autoridade não é outra coisa senão um crédito junto a um conjunto de agentes que constituem relações tanto mais preciosas quanto maior for o crédito de que eles próprios se beneficiam” (BOUDIEU, 2004b, p.24).

Na própria estrutura do campo – ou, o que quer dizer o mesmo, nas leis que organizam a acumulação do capital simbólico e sua circulação, e não em tal ou qual instância ou em tal agente particular ou, até mesmo, na combinação de fatores singulares (agentes, instrumentos, circunstâncias) – é que residem as condições de possibilidade da alquimia social e da transubstancialização que ela realiza (idem, ibidem, p.162).

A noção de capital social, por seu turno, refere-se aos “recursos constituídos pelas relações personificadas e de reciprocidade” (BOURDIEU apud CORADINI, 1998, p.06), assim, de fidelidade pessoal, de tráfico de influências, de patrimonialismo, etc., e que, teoricamente, seriam decisivas apenas nas sociedades menos desenvolvidas e “desprovidas de mercado auto-regulado” (BOURDIEU, 2004b, p.193), já que as sociedades mais desenvolvidas são estruturadas pela distribuição de “capital econômico” e de “capital cultural” (BOURDIEU, 1996, p.19). No entanto, observa-se que o recrutamento de elites (de médicos, por exemplo) no

Brasil, ainda tem por critério fundamental a apropriação de uma rede de relações de fidelidade pessoal daquele tipo (cf. CORADINI, 1995 e 1998).

Por fim, o capital simbólico é a “forma de que se revestem as diferentes espécies

de

capital

quando

percebidas

e

reconhecidas

como

legítimas”

(BOURDIEU, 2004c, p.154) por categorias de percepção (“habitus”) adaptadas para tanto. Os habitus – que são o produto da interiorização da estrutura desigual de distribuição de capitais – tendem a perceber essa mesma estrutura como evidente ou natural, assim legitimando-a e reproduzindo-a.

Pelo fato de que o capital simbólico não é outra coisa senão o capital econômico ou cultural quando conhecido e reconhecido, quando conhecido segundo as categorias de percepção que ele impõe, as relações de força tendem a reproduzir e reforçar as relações de força que constituem a estrutura do espaço social. Em termos mais concretos, a legitimação da ordem social não é produto, como alguns acreditam, de uma ação deliberadamente orientada de propaganda ou de imposição simbólica; ela resulta do fato de que os agentes aplicam às estruturas objetivas do mundo social estruturas de percepção e apreciação que são provenientes dessas estruturas objetivas e tendem por isso a perceber o mundo como evidente (idem, ibidem, p.163).

Os sistemas de disposições que constituem os habitus podem funcionar como estruturas de percepção que, tendo sido produzidas pelo mundo exterior, não podem percebê-lo senão como realidade necessária ou evidente. A arbitrariedade inerente a uma estrutura de distribuição desigual é, assim, dissimulada. Daí a lógica da legitimação, exprimida pela já citada fórmula de Bourdieu, segundo a qual o desconhecimento da arbitrariedade implica sempre legitimidade da “ordem” (BOURDIEU, 2004b, p.170).

no reconhecimento da

1.1.2.2. Habitus e campo

Neste capítulo, serão estudadas as características gerais dos habitus, assim como dos “campos” restritos do espaço social que produzem os diversos tipos de habitus particulares. Ficou estabelecido até então que os habitus devem o seu “conteúdo” ordenador ao fato de serem o produto da incorporação da estrutura social objetiva e que, por isso, tendem a reproduzi-la na prática, na medida em que os agentes pensam o mundo a partir das mesmas categorias pela qual o mundo se lhes apresenta. Os agentes, acreditando pensar o mundo, foram eles próprios pensados pelo mundo. Tudo isso faz com que a estrutura do mundo social, sempre uma construção arbitrária dentre uma infinidade de configurações possíveis, seja percebida pelos agentes como normal, evidente, natural, inquestionável ou, enfim, como legítima.

Por isso se diz que o habitus é uma “estrutura estruturada e estruturante” (BOURDIEU apud DOMINGUES, 2001, p.59), no sentido de que, sendo o “produto” da incorporação das categorias sociais objetivas, sob a forma de categorias mentais subjetivas; são também, a fortiori, a “causa” da reprodução dessas mesmas categorias objetivas na história. Assim, o habitus funciona como um mecanismo ativo depositado “no corpo humano (e não na “consciência do sujeito”)” (DOMINGUES, ibidem, ibidem) que “fornece regras práticas para sua ação, que se desenrola então em particular, reproduzindo as estruturas sociais” (idem, ibidem, ibidem).

Em suma, os habitus são como os “fatos sociais” de Durkheim. Porém, ao contrário deles, estão no estado incorporado, internalizado. Assim, adaptando a fórmula durkheimiana, pode-se dizer que os habitus são “maneiras de agir, de pensar e de sentir” (DURKHEIM, 2001, p.33) inculcadas no “interior” do sujeito sob a forma de “sistemas de disposições”.

Numa palavra, os habitus são a matriz

subjetiva da estrutura social objetiva.

O problema teórico que a noção de habitus pretende superar é o de pensar que a ação social deva ser ou o produto do arbitrário social (“fato social”) ou o produto das representações conscientes (“sentido visado”) dos agentes. Uma vez que o habitus é um mecanismo “interno”, inconfundível com a realidade externa que o produziu, o “arbitrário social” não pode ser a causa eficiente imediata da ação social, pois essa é necessariamente mediada pelo funcionamento autônomo do habitus.

Por outro lado, a ação social não é, na maioria dos casos, o produto de um cálculo “racional” ou “consciente”, conforme pensava Weber. Desde logo, Bourdieu percebeu que o “habitus está no princípio do encadeamento de “ações” que são objetivamente organizadas como estratégias sem ser de modo algum produto de uma verdadeira intenção estratégica” (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003, p.54).

(...) [Os habitus são] sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente (idem, ibidem, p.53-54).

A intenção teórica do conceito era, portanto, a de “sair da filosofia da consciência sem anular o agente na sua verdade de operador prático” (BOURDIEU, 2004d, p.62). Ainda que se admita que o habitus tenha sido inculcado desde fora, não mais se poderia ignorar nem a autonomia de seu funcionamento, nem tampouco a sua subliminaridade, isto é, o fato de ele localizar-se “abaixo do limiar da percepção”9 ou da consciência e, assim, a realidade inconsciente de seu funcionamento.

Para simplificar o discurso, evitando repetir sempre as mesmas idéias, Bourdieu geralmente

refere os habitus simplesmente como “sistemas de

disposições”; mas, deve-se ter em mente que esses sistemas cumprem uma série de “funções” estruturadas específicas, em razão das quais são o “instrumento” interiorizado e subjetivo da eficácia simbólica (“legitimação social”) e, assim também, da reprodução da estrutura de distribuição social externa e objetiva da qual o habitus é produto.

Assim, pode-se dizer que o habitus opera como um “sistema de esquemas adquiridos, que funciona no nível prático como categorias de percepção e de apreciação, ou como princípios de classificação e simultaneamente como princípios organizadores da ação” (BOURDIEU, 2004c, p.26). Nesse sentido, são “princípios de classificação, de hierarquização, de divisão que são também princípios de visão, em suma, tudo o que permite a cada um de nós distinguir coisas que outros confundem, operar uma diacrisis, um julgamento que separa” (Idem, ibidem, p.22). Desse conceito decorre uma série de corolários, aos quais convém examinar um por um. 9

Sobre o conceito de “subliminar”, vide CABRAL e NICK, 2003, p.302.

Primeiramente, como princípios de “percepção” e de “apreciação” ou “classificação”, os habitus funcionam ao modo de “categorias mentais”, pelas quais o indivíduo pensa e avalia o mundo, constituindo o seu universo de “sentido”. Nos campos específicos o “sentido prático” do jogo é partilhado pelos jogadores (“senso comum”),

pela

homogeneidade

dos

habitus,

ela

própria

decorrente

da

homogeneidade das condições de sua produção, isto é, decorrente da pertença ao mesmo “campo” de produção cultural.

Em conseqüência, o habitus produz práticas e representações que estão disponíveis para a classificação, que são objetivamente diferenciadas; mas elas só são imediatamente percebidas enquanto tal por agentes que possuam o código, os esquemas classificatórios necessários para compreender-lhes o sentido social. Assim, o habitus implica não apenas um sense of one´s place, mas também um sense of other´s place. Por exemplo, a propósito de uma roupa, de um móvel ou de um livro, nós dizemos: “Isso é coisa de pequeno burguês”, ou: “Isso é coisa de intelectual”. Quais as condições sociais de um tal juízo? Em primeiro lugar, isso supõe que o gosto (ou o habitus) enquanto sistema de esquemas de classificação está objetivamente referido, através dos condicionamentos sociais que o produziram, a uma condição social: os agentes se auto-classificam, eles mesmos se expõe à classificação ao escolherem, em conformidade com seus gostos, diferentes atributos, alimentos, bebidas, esportes, amigos, que combinam entre si e combinam com eles, ou, mais exatamente, que convém à sua posição. Isso faz com que nada classifique mais uma pessoa que as suas classificações. Em segundo lugar, um juízo classificatório como “isso é coisa de pequeno burguês” supõe que, enquanto agentes socializados, somos capazes de perceber a relação entre as práticas ou representações e as posições no espaço social (como quando adivinhamos a posição social de uma pessoa pela sua maneira de falar). Assim, através do habitus, temos um mundo de senso comum, um mundo social que parece evidente (BOURDIEU, 2004c, p.158-159).

Todos os conceitos, todas as fórmulas de se pensar o mundo social, as quais se mostram como legítimas, têm por base esquemas de percepção que são o produto da incorporação de “ordens” as quais se apresentam na prática como evidentes, porque são óbvias demais para todos os que possuem o mesmo código cifrador e decifrador. São fórmulas conhecidas e reconhecidas por todos. A “amnésia

histórica” de que se fala (BOURDIEU, 2004d, p.105) não é mais do que esse efeito da perda da dimensão arbitrária das circunstâncias que produziram os esquemas de percepção. Enquanto a arbitrariedade é ignorada, o resultado de deixar-se fazer cúmplice provável aparece como um destino; quando ela é conhecida, ao contrário, ela aparece como uma violência (idem, ibidem, ibidem).

As categorias mentais que compõe os nossos princípios de “classificação” ou de “divisão” correspondem a pares de adjetivos antagônicos (“distinto/vulgar”; “brilhante/apagado” etc.); ou seja, correspondem a “sistemas de diferenças percebidas e apreciadas pelos próprios sujeitos sociais como estrutura de separações diferenciais, de distinções significantes” (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003, p.33). Por isso, as relações entre os grupos tendem a ser relações de oposição, definidas pela “exterioridade mútua” das posições no espaço social e, assim, pela afirmação prática (habitual) da distância entre os universos práticos correspondentes a essas posições. O processo social é uma luta para dizer “quem é quem”; uma “luta de vaidade”.

Os grupos investem inteiramente, com tudo o que opõe uns aos outros, nas palavras comuns em que se exprime a sua identidade, quer dizer, sua diferença. Sob aparente neutralidade, palavras comuns como “prático”, “sóbrio”, “funcional”, “engraçado”, “fino”, “íntimo”, e “distinto” estão divididas contra si mesmas, seja porque as diferentes classes lhes conferem sentidos diferentes, seja porque lhes dão o mesmo sentido mas atribuem valores opostos às coisas nomeadas (...). [Por exemplo, a palavra] “divertido”, cujas conotações sociais – associadas à pronúncia e locução socialmente marcadas, mais para burguesas ou esnobes – entram em contradição com os valores expressos, afastando aqueles que se reconheceriam num equivalente popular a “engraçado” ou “gozado” (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003, p.77-78).

Além disso, tanto o pensamento como a ação, determinados pelo habitus, são adequados às posições e aos jogos fechados (“campos”) no qual os agentes

específicos estão inseridos. Essa adequação, no entanto, não tem por base necessariamente a “intenção consciente” do implemento dos “fins” específicos que são o resultado objetivo do jogo. Os agentes “jogam bem”, sem que tenham em mira o resultado específico de seus atos. O “senso prático”, domínio intuitivo das regras do jogo, “é produto da exposição continuada a condições semelhantes àquelas em que estão colocados”, e faz com que os agentes antecipem intuitivamente “a necessidade imanente ao fluxo do jogo” (BOURDIEU, 2004c, p.23).

A ação comandada pelo “sentido do jogo” tem toda a aparência da ação social racional que representaria um observador imparcial, dotado de toda informação útil e capaz de controlá-la racionalmente. E, no entanto, não tem a razão como princípio. Basta pensar na decisão instantânea do jogador de tênis que sobe à rede fora de tempo para compreender que ela não tem nada em comum com a construção científica que o treinador, depois de uma análise, elabora para explicá-la e para dela extrair lições comunicáveis (idem, ibidem, ibidem).

A descoberta de que o motor prático da ação, em situações práticas reais, não é a representação consciente (“sentido visado”) do agente, põe por terra alguns dos principais fundamentos da “sociologia compreensiva” de Max Weber, pois revela que “nenhum” agente “domina enquanto tal o sistema completo de relações que o intérprete tem de construir para as necessidades do deciframento” (BOURDIEU, 2004c, p.143). O exemplo do “jogador de tênis” é perfeito para demonstrar a ligação que há entre a “prática” e o “inconsciente”, assim como entre a “teoria” e o “consciente”. Aquele que não é teórico de sua ação tende a permanecer inconsciente dos pressupostos da mesma ação, quero dizer, das condições sociais de sua produção.

O tenista é o executor prático do jogo, não o seu teórico. Assim, ele não tem a necessidade de estar consciente das estratégias calculáveis que poderiam servir ao

seu bom desempenho no jogo. “É esse domínio prático que permite sentir e pressentir, fora de qualquer cinismo calculista, “o que há a fazer” e onde fazê-lo e a maneira como e com quem” (BOURDIEU, 2004b, p.57). O “tempo” da prática não permite que ele realize operações desse tipo, exigindo que ele tenha apenas um “senso prático” do jogo, mais intuitivo (“inconsciente”) que verdadeiramente consciente; e que, no entanto, basta à prática. O mesmo acontece, é claro, com as práticas hermenêuticas dos juristas: o raciocinar hermenêutico não é uma atividade teórica; é sim uma atividade essencialmente prática e, portanto, inconsciente de seus pressupostos, conforme veremos. Segundo Bourdieu,

(...) as condutas podem ser orientadas em relação a determinados fins sem ser conscientemente dirigidas a esses fins, dirigidas por esses fins. A noção de habitus foi inventada, digamos, para dar conta desse paradoxo. Do mesmo modo, o fato de as práticas rituais [ou jurídicas] serem produto de um “senso prático”, e não de uma espécie de cálculo inconsciente ou da obediência a uma regra, explica que os ritos [mesmo os jurídicos] sejam coerentes, mas com essa coerência parcial, nunca total, que é a coerência das construções práticas (BOURDIEU, 2004c, p.22).

O senso prático – ou, como dizem os esportistas, o “sentido do jogo” –, proporcionado pelo habitus adaptado para funcionar no jogo que o produziu, faz com que o habitus seja uma “disposição regrada para gerar condutas regradas e regulares, à margem de qualquer referência a regras” (BOURDIEU, 2004c, p.84). Por isso, mesmo quando os habitus funcionam como categorias de avaliação (“divisão”), são também “manejados no estado prático, pré-reflexivo” (idem, ibidem, ibidem), o que impede que os agentes se sintam “responsáveis” pelos efeitos concretos da sua ação. Quer dizer: “a verdade do sistema escapa àqueles que participam de seu funcionamento” (BOURDIEU, 2004b, p.165).

O problema dos “sistemas simbólicos” como “padrões de pensamento” sempre foi tratado pelos “sociólogos” como um capítulo da “sociologia do conhecimento” ou da “comunicação” (MICELI in BOURDIEU, 2004a, p.VIII). Foi Marx quem, através da noção de “ideologia”, possibilitou aproximar, pela primeira vez, os “sistemas simbólicos” da problemática do “poder”. A essa altura é preciso estabelecer como podem decorrer efeitos “políticos” da mecânica do habitus, nas lutas em que está em jogo o “sentido” do mundo social.

Em muitos casos, a referida parcialidade da coerência prática contribui para que as “coisas em jogo” – a luta pela definição do direito às melhores posições sociais – não sejam colocadas como tais. As chamadas de ordem, que classificam tudo e todos, não se percebem como palavras classificadoras. A “falsa clareza é com freqüência obra do discurso dominante, o discurso daqueles que acham tudo óbvio, porque tudo está bem como está” (BOURDIEU, 2004c, p.69).

O mundo social é um lugar de lutas a propósito de palavras que devem sua gravidade – e às vezes sua violência – ao fato de que as palavras fazem as coisas, em grande parte, e ao fato de mudar as palavras e, em termos gerais, as representações (...), já é mudar as coisas. A política é no essencial uma questão de palavras (idem, ibidem, p.71b).

Assim,

práticas sociais

aparentemente

desinteressadas servem

para

reproduzir a estrutura de distribuição desigual do espaço social, numa luta disfarçada em que o que está em jogo é justamente a definição das posições sociais. Os esquemas de classificação servem para reproduzir as classificações (“grupos”) sociais reais, sendo que, na maioria dos casos, os agentes imediatamente responsáveis pelo processo de reprodução não tem a menor consciência de seu funcionamento.

“A lógica do rótulo classificatório é exatamente a mesma do racismo, que estigmatiza, aprisionando numa essência negativa” (BOURDIEU, 2004c, p.41) as classes e os grupos que são objetivamente subordinados, porque os agentes – tanto os que dominam quanto os que são dominados – concebem essas classes e grupos como tais. Por isso, o “dominante é quem possui os meios de impor ao dominado que o perceba como ele quer ser percebido” (BORDIEU, 1983, p.73). Com esse raciocínio, Bourdieu chega solucionar o problema da lógica específica da “dupla estruturação” ou “reprodução” (“dialética da interioridade e da exterioridade”), que é o de saber como o “fato social” objetivo produz o “habitus” subjetivo e vice-versa. Conforme Bourdieu,

(...) a percepção do mundo social é objeto de uma dupla estruturação: do lado objetivo, ela é socialmente estruturada porque as propriedades atribuídas aos agentes e instituições apresentam-se em combinações com probabilidades muito desiguais: assim como os animais com penas têm mais possibilidade de ter asas que os animais com pêlo, assim também os possuidores de um domínio refinado da língua têm mais possibilidade de serem vistos em museus do que aqueles que são desprovidos desse domínio. Do lado subjetivo, ela é estruturada porque os esquemas de percepção e apreciação, em especial os que estão inscritos na linguagem, exprimem o estado das relações de poder simbólico: penso, por exemplo, nos pares de adjetivos pesado/leve, brilhante/apagado, etc., que estruturam o juízo do gosto nos mais diferentes domínios. Esses dois mecanismos concorrem para produzir um mundo comum, um mundo de senso comum, ou, pelo menos, um consenso mínimo sobre o mundo social (BOURDIEU, 2004c, p.160-161).

Assim, o domínio da prática é altamente distintivo de classe, sendo que a ação orientada por habitus classificatórios confirma a distância social entre as classes, reproduzindo as distâncias no espaço social. A escolha da instituição escolar dos filhos (BOURDIEU, 1996, p.36), as estratégias matrimoniais (idem, 2004c, p.93), ou o tratamento não gentil que é dispensado à faxineira (idem, 2004b, p.202) são exemplos de estratégias inconscientes de que se serve o “detentor de

capital econômico ou cultural” (loc. cit.) para assegurar “a perpetuação da relação de dominação que o une objetivamente à sua faxineira e, até mesmo, aos descendentes desta” (loc. cit.). Resumindo: “não se pode deixar de ver que as formas de classificação são formas de dominação” (idem, 2004c, p.37).

Até o momento os habitus foram tratados como disposições vinculadas às posições das diversas classes no espaço social, mas assim se fez apenas para o fim de facilitar a argumentação. Nesse momento é preciso introduzir a idéia de que, no interior do espaço social mais amplo, existem certos universos sociais relativamente restritos (“campos”) – que ocupam posições relativamente dominantes ou dominadas umas em relações às outras, com maior ou menor autonomia relativamente às demais – dentro dos quais se produzem habitus específicos (a exemplo dos habitus profissionais) e que pressupõe a adesão dos participantes às regras de funcionamento desses universos, bem como o seu devotamento ao culto de seus objetos sagrados, isto é, dos “capitais” específicos produzidos pelos campos e com os quais e pelos quais neles se joga.

Segundo o próprio Bourdieu (2004c, p.63) é preciso começar construindo o objeto segundo a lógica específica do universo em questão, para compreender o funcionamento de cada um dos campos específicos. Isso não impede, porém, a possibilidade do desenvolvimento de uma “teoria geral dos campos”, através da definição mais ou menos ampla ou abstrata do conceito de campo, englobando algumas características gerais de seu funcionamento, bem como através do detalhamento de lógicas “típico-ideais” de certas espécies suas. Num esforço para

construir tal “teoria geral”, são arroladas as seguintes características comuns a todos os campos:

a) Todo campo é um espaço social estruturado na forma de um campo de forças (BOURDIEU, 1997, p.57);

b) Todo campo é o lugar de uma luta pela definição dos princípios legítimos de divisão do próprio campo (BORUDIEU, 2004d, p.150), quer dizer, uma luta pela definição de seus próprios princípios de estruturação e de hierarquização.

Por isso, “a história do campo é a história da luta pelo monopólio da imposição

das

categorias

de

percepção

e

apreciação

legítimas”

(BOURDIEU, 2004b, p.88), quer dizer, é a história de uma luta pela inculcação dos habitus; a história de uma luta “simbólica”, nem só de “força”, nem só de “sentido” (MICELI in BOURDIEU, 2004a, p.XIII).

Seja qual for o princípio de estruturação que, num determinando momento da história de um campo, conseguir-se impor como legítimo, este será o seu “capital

específico”

(BOURDIEU,

2004d,

p.134)

naquele

momento

determinado. No caso dos campos em que está em jogo o monopólio de um capital cultural no estado incorporado – como é caso do capital jurídico – este capital específico assumirá a “forma discursiva”, constituindo-se como um discurso oficial do campo ou ortodoxia.

c) Todo campo possui um pólo dominante e um pólo dominado (BOURDIEU, 1983, p.75), correspondentes respectivamente às posições dos ricos e dos pobres no capital específico produzido pelo campo. As estratégias objetivas específicas (“habituais”) de seus participantes, no sentido de conservar ou de subverter essa relação de dominação (BOURDIEU, 1997, p.57), dependem de sua posição respectiva no campo. Essas estratégias podem ser absolutamente inconscientes, quer dizer, “orientadas em relação a fins que podem não ser os fins subjetivamente almejados” (BOURDIEU apud ROCHA, 2005, p.51).

Resumindo: os dominantes tendem a ser conservadores; e os dominados, com maior probabilidade que eles, tendem a ser subversivos. Não obstante, a “consagração” (“reconhecimento pelos pares”) depende em grande medida do respeito ao “núcleo duro” do sentido do jogo, que é o “pedestal das crenças últimas” (BOURDIEU apud ROCHA, 2005, p.50) do campo. Por isso, os novatos, ainda não totalmente “convertidos”, tendem a simular uma obediência “natural” às regras do jogo; sendo que o seu fingimento diminuirá e a naturalidade aumentará na medida em que forem adquirindo o “senso prático” do jogo, isto é, o habitus que permite nele interagir satisfatoriamente.

Essas lutas – “pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer grupos” (BOURDIEU, 2004d, p.113) – respeitam os mecanismos dos habitus enquanto sistemas práticos de classificação. É na luta e pela luta que o campo se estrutura e se reestrutura, reproduzindo na

realidade as divisões sociais que deram origem aos sistemas simbólicos de classificação.

Em As Formas Rudimentares da Vida Religiosa, Durkheim estabeleceu que a primeira classificação socialmente estruturante foi, no plano da religião, a divisão entre o “profano” e o “sagrado” (cf. TIMASHEFF, 1960, p.174-176), isto é, entre aquilo que pode ou não ser tocado pelos agentes alheios ao campo de produção religiosa. Assim também, todos os outros campos de produção cultural respeitam a essa mesma lógica de estruturação, da qual provém a eficácia propriamente simbólica dos discursos oficiais dos diferentes campos.

No caso do Direito, por exemplo, a luta se dá em torno do estabelecimento das divisões entre os problemas que podem ser, ou não, resolvidos pelo Direito (questões jurídicas/questões “metajurídicas”); e, quando os problemas são considerados juridicamente possíveis, as lutas internas vão no sentido de estabelecer sobre o caráter “lícito” ou “ilícito” dos objetos, e assim por diante, de estruturação em estruturação.

A batalha que se trava nos campos tem como motor fundamental a “vaidade” (o mesmo que “honra” ou “libido”) dos agentes, isto é, o seu desejo íntimo de ser “reconhecido” pelos agentes consagrados no campo, de poder privar com eles, de ser aceito por eles, de ser um deles. O investimento nesse sentido faz com que os agentes tenham todo o interesse em acumular o capital específico dos campos, engendrando a lógica específica da concorrência pela apropriação desses capitais e a mecânica de sua produção.

Desse investimento também decorrem todas as estratégias e o próprio “senso prático” do sentido do jogo, que não é nem produto de um cálculo racional, como pensava Weber, nem produto da obediência a regras, como se induzia do pensamento de Durkheim. Essa teoria tem por base uma série de idéias já defendidas anteriormente:

[Em primeiro lugar,] (...) a idéia de que as lutas pelo reconhecimento são uma dimensão fundamental da vida social e de que nelas está em jogo a acumulação de uma forma particular de capital, a honra no sentido de reputação, de prestígio, havendo, portanto, uma lógica específica da acumulação do capital simbólico, como capital fundado no conhecimento e no reconhecimento; [Em segundo lugar,] a idéia de estratégia como orientação da prática, que não é nem consciente nem calculada, nem mecanicamente determinada, mas é produto do senso de honra enquanto senso desse jogo particular que é o jogo da honra; [E por fim,] a idéia de que existe uma lógica da prática, cuja especificidade reside sobretudo em sua estrutura temporal (BOURDIEU, 2004c, p.36).

Descobertos os mecanismos de funcionamento dos campos em geral, é possível verificar a possibilidade da aplicação da teoria desses mecanismos aos casos particulares. Assim, mobilizando esses recursos, Bourdieu descreve “o campo religioso”, por exemplo, como “um espaço no qual agentes que é preciso definir (padre, profeta, feiticeiro, etc.) lutam pela imposição da definição legítima não só do religioso, mas também das diferentes maneiras de desempenhar o papel religioso” (BOURDIEU, 2004c, p.120).

Com isso, Bourdieu reformou a teoria da religião de Max Weber, que concebia a Igreja meramente pelo monopólio dos “bens da salvação” (BOURDIEU, 1996, p.195), sem perceber que a autoridade da mesma devia-se em grande parte aos investimentos depositados pelos clérigos na concorrência (“luta”) pela participação nesse monopólio. Assim, Bourdieu distinguiu a lógica do “campo”, que é a do sentido

engendrado pela própria concorrência, da lógica do “aparelho”, que pressupõe um órgão de imposição de sentido centralizado.

Aplicação semelhante da “teoria dos campos” foi utilizada por Bourdieu para compreender o “campo literário”. Segundo Bourdieu,

(...) o campo literário é simultaneamente um campo de forças e um campo de lutas que visa transformar ou conservar a relação de forças estabelecida: cada um dos agentes investe a força (o capital) que adquiriu pelas lutas anteriores em estratégias que dependem, quanto à orientação, da posição desse agente nas relações de força, isto é de seu capital específico (BOURDIEU, 2004c, p.172).

O conceito de campo evita o erro de imaginar uma contradição insuperável entre o “conflito” e o “consenso”, porque a idéia subjacente ao conceito é precisamente a de que a estrutura do conflito produz o consenso sobre os seus fundamentos. É isso que Bourdieu quer dizer quando insiste que “não há jogo sem crença no jogo”. Bourdieu comenta essa orientação teórica:

Uma das minhas intenções, no uso que faço desses conceitos, é abolir a distinção escolar entre o conflito e o consenso, que nos impede de pensar todas as situações reais em que a submissão consensual se realiza no e pelo conflito (...). Mas, numa certa época, foram tão exaltadas as lutas dos dominados (...) que acabou sendo esquecida uma coisa que todos aqueles que viram de perto sabem perfeitamente, isto é, que os dominados são dominados também em seu cérebro. É isso que quero lembrar quando recorro a noções como reconhecimento e desconhecimento (BOURDIEU, 2004c, p.36).

O desconhecimento da arbitrariedade, das leis de um campo, por exemplo, implica no reconhecimento da legitimidade desse campo. Na medida em que alguém pretende participar de um campo, como o jurídico, por exemplo, deve pagar o “direito de entrada” (BOURDIEU, 2004c, p.174 e BORUDIEU apud ROCHA, 2005, p.50), quero dizer, “deve declarar publicamente o fato de valorizar o jogo e demonstrar

possuir o domínio do capital cultural” (ROCHA, ibidem, ibidem) específico, o “que é feito pela utilização do vocabulário específico do campo, no caso a linguagem jurídica” (idem, ibidem, ibidem – nota de rodapé).

Mas a aquisição desse vocabulário demanda um esforço tal que é muito improvável que alguém invista numa carreira como a jurídica sem incorporar as necessidades internas do campo sob a forma de habitus. Ainda que o agente seja aceito para participar das “lutas” sobre o sentido do Direito, no caso do exemplo, ele tenderá a respeitar os fundamentos do jogo, participando do consenso (“pedestal das crenças”) sobre os seus fundamentos. Tudo se passa como se a concorrência legitimasse o seu objeto para os próprios concorrentes, de modo que nenhum deles ouse colocar em xeque a validade e a existência do campo (ROCHA, 2005, p. 51).

Em todos os campos, os dominantes “estão comprometidos com a continuidade, a identidade, a reprodução” (BOURDIEU, 2004b, p.88) e assim por diante. Os dominados, por sua vez, são como “recém-chegados, que estão interessados na descontinuidade, ruptura, diferença, revolução” (idem, ibidem, ibidem). Sabendo, no entanto, que deverá provar sua competência (“confiabilidade”) para os superiores, que um dia irão promovê-lo, nomeá-lo, aceitá-lo, enfim consagrálo, “o pretendente empenha-se a parecer pretensioso: de fato, tendo que mostrar e demonstrar a legitimidade de suas pretensões, tendo que prestar provas porque não possui todas as credenciais exigidas” (BOURDIEU, 2004b, p.119).

“O jogo dos recém chegados consiste, quase sempre, em romper com certas convenções em vigor” (BOURDIEU, 2004b, p. 121). No entanto, eles tem a intuição

de que as “modificações no campo não podem ultrapassar determinados limites, ou os agentes não poderão manter sua existência. Assim, mesmo que de forma inconsciente, todos os agentes trabalham para esse resultado” (ROCHA, 2005, p.50). Aqueles que, contudo, não se rendem às regras do jogo, são excluídos pelo próprio jogo: eventuais atritos entre os agentes, levados às últimas conseqüências, podem “levar à áspera exclusão dos menos capitalizados ou mesmo à inviabilização de carreiras ou projetos de inclusão nas hierarquias internas” (idem, ibidem, ibidem)10.

Ultrapassado o problema da caracterização geral do funcionamento interno dos campos, pode-se examinar a questão das posições relativas de cada um deles no espaço social mais amplo, no qual todos estam inseridos. Bourdieu chama de “campo do poder” (BOURDIEU, 2004d, p.29) o espaço das relações de força entre as posições mais poderosas dos diversos campos, e que constituem o espaço no qual se pode lutar pelo o monopólio do “poder simbólico” que ordena o espaço como um todo, quero dizer, lutar pelo redimensionamento da taxa de câmbio entre os diversos tipos de capitais específicos.

[O campo do poder são] as relações de forças entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legítima do poder (penso, por 10

Essa análise tem por base o comportamento de magistrados. As estratégias de ascensão profissional dos juizes de instâncias inferiores são prejudicadas quando os magistrados das instâncias superiores, que poderiam nomeálos para a promoção, preferem indicar aos cargos disponíveis aqueles agentes que demonstraram um maior alinhamento em relação às suas próprias tomadas de posições teóricas. Essa tendência fundamenta-se num jogo de vaidade. Explico: ainda que as “teses” dos novatos sejam razoáveis, permanece a tendência de os membros mais antigos do campo de não reconhecerem essas teses como legítimas (heresia), porque elas negam os entendimentos consagrados (ortodoxia). A aceitação desses novatos e de suas teses vanguardistas seria sentida pelos membros mais antigos como um tipo de “renúncia de autoridade”, como se admitissem: “aquele novato sabe mais que eu sobre o meu próprio trabalho”. Mais cômodo e mais fácil é a atitude conservadora, paradigmatizada na postura de “guardião” da indiscutível verdade jurídica. Não é preciso dizer que se trata de uma ilusão (self deception).

exemplo, nos confrontos entre “artistas” e “burgueses” no século XIX) (BOURDIEU, 2004d, p.29).

No campo do poder, os campos de produção cultural (artístico, científico, etc.) ocupam uma posição dominada (BOURDIEU, 2004c, p.174) relativamente às posições ocupadas pelos detentores do poder político e econômico (idem, ibidem, p.175) É com essa condição que se pode compreender o efeito da homologia existente entre as posições das classes populares e as posições dos intelectuais, em razão da qual estes freqüentemente fazem-se “porta-vozes” daqueles, contra o inimigo comum de ambos.

Figura: campo do poder; adaptação detalhada do diagrama original de Bourdieu (1996, p.67).

“A maior parte dos discursos que foram ou são pronunciados em favor do “povo” são obra de produtores que ocupam posições dominadas no campo de produção” (BOURDIEU, 2004c, p.183), até porque o “povo”, simbolicamente dominado (“alienado”), está distante demais das condições que possibilitariam que ele próprio pudesse compreender a sua condição social real. Daí a já referida

necessidade de se refutar a teoria marxista de que o “proletariado” teria “consciência de classe”. Esse tipo de homologia também se observa no campo político, que possui uma esquerda e uma direita, com porta-vozes dos dominados e dos dominantes (BOURDIEU, 2004c, p.201). Temos razões bastantes parar crer que o mesmo fenômeno aconteça no campo jurídico, em que o “direito social” se opõe ao “direito civil”.

Outra questão que uma “teoria geral dos campos” não poderia ignorar é a do “grau” de autonomia relativa dos diversos campos. Um campo pode ser considerado bastante autônomo quando os seus produtores têm por clientes apenas seus concorrentes, os que poderiam empreender em seu lugar a novidade que lhes é apresentada (BOURDIEU, 1997, p.88). Assim, por exemplo, são os campos científico (BOURDIEU, 2004c, p.46) e artístico.

No entanto, cada um dos campos (em regra) pode ser dividido em dois pólos opostos, sendo o primeiro deles o pólo “cultural” ou “puro”, onde ficam os ricos em capital específico, empenhados em garantir a autonomia do campo como um todo, a sua lógica e o seu capital específicos (“os princípios e os valores da profissão”); e o segundo, o pólo “comercial”, onde se situam os produtores mais sensíveis aos poderes externos, políticos e econômicos (BOURDIEU, 1997, p.104). Segundo Bourdieu,

(...) quanto mais um produtor cultural é autônomo, rico em capital específico e exclusivamente voltado para o mercado restrito, no qual se tem por clientes apenas seus próprios concorrentes, mais ele estará inclinado à resistência. Ao contrário, quanto mais ele destina seus produtos ao mercado de grande produção (...), mais está inclinado a colaborar com poderes externos, Estado, Igreja, Partido e, hoje, jornalismo e televisão, a submeterse às suas exigências ou às encomendas (BOURDIEU, 1997, p.90).

A questão de saber se um campo é mais ou menos autônomo que outro é resolvida determinando-se, em cada caso, em que condições a sua lei interna afirma-se ou dobra-se em face de poderes externos. Assim, no campo político, por exemplo, onde se luta “pelo monopólio do uso legítimo dos recursos públicos, objetivados, direito, exército, polícia, finanças públicas, etc.” (BOURDIEU, 2004d, p.174), a autonomia é relativamente pequena.

Ainda que a relação com os “eleitores” não possa ser levada oficialmente para o campo, cuja existência enquanto tal depende da exclusão dos mesmos (ROCHA, 2005, p.53), os agentes do campo não podem deixar de ter em conta o fato de que dependerem “diretamente da legitimação externa: ao final de mandatos limitados no tempo, os parlamentares deverão, obrigatoriamente, submeter-se novamente ao processo eleitoral, para tentar continuar inseridos no campo” (idem, ibidem, p.52). Conforme Bourdieu,

(...) o campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de “consumidores”, devem escolher, com possibilidades de mal-entendidos tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção (BOURDIEU, 2004d, p.164).

Muito mais heterônomo que o “campo político”, o “campo jornalístico” é, por seu turno, diretamente sujeito às pressões comerciais (BOURDIEU, 1997, p.77), que exigem que ele responda “diariamente” às suas exigências, através da lógica do “índice-de-audiência”, que é a mesma “lógica eleitoral”, porém com um ciclo muito mais curto. A pouca autonomia do campo jornalístico faz com que a definição do “capital” jornalístico tenda mais a estar associada ao domínio prático dos modelos de

fazer que repercutam na maior tiragem de mídia impressa ou em maior índice de audiência na televisionada, em detrimento do modelo jornalístico do “objetivismo” e da “imparcialidade”.

Paradoxalmente, este campo muito heterônomo exerce uma forma raríssima de dominação, tendo em vista o seu monopólio “sobre os meios de se exprimir publicamente, de existir publicamente, de ser conhecido, de ter acesso à notoriedade pública” (BOURDIEU, 1997, p.66). O “monopólio” dos meios de divulgação garante ao campo jornalístico um poder estrutural sobre todos os demais campos, os quais devem pagar-lhe tributo maior ou menor, conforme sejam também maiores ou menores as necessidades de se legitimarem externamente através da mídia. Esse monopólio é exatamente a “arma” específica da qual os campos culturais dominados no campo de poder (especialmente o científico) adorariam se servir, não para entregar a sua autonomia, mas para aumentar sua influência sobre o mundo.

Por fim, o campo jurídico é um campo “relativamente autônomo” (BORUDIEU, 2004d, p.211), uma vez que, embora possua uma lógica instituída própria, em razão da qual pode funcionar independentemente das pressões externas, tem sempre necessariamente de trabalhar a partir de um substrato produzido, na maioria das vezes, externamente ao campo jurídico, isto é, no seio do campo político. Voltaremos a esse ponto no capítulo 1.1.3.

1.1.2.3. Poder simbólico

Para Max Weber (1999, p.33), “poder” significa “toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento da probabilidade”. Mas a teoria social de Weber é marcada pela concepção de que apenas aquelas relações sociais das quais se pode conhecer o “sentido subjetivo” seriam passíveis de “compreensão” científica (idem, ibidem, p.06), razão pela qual ela considera o conceito de poder como “sociologicamente amorfo” (idem, ibidem, p.33).

Weber prefere trabalhar com a noção de “dominação”, entendida como “a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, em determinadas pessoas indicáveis” (idem, ibidem, ibidem). Para Weber, o “conteúdo” da ordem deve ser “compreensível subjetivamente”, para que um “grupo determinado” de pessoas, ao qual a ordem se dirige, possa acatá-la e executá-la. Se for assim, é porque esse “grupo” possui o “código” da mensagem, podendo compreendê-la sem mal-entendidos.

No entanto, é notório o fato de que uma ordem possa ser obedecida por uma constelação de motivos indeterminados quaisquer. Portanto, o fenômeno que interessa sociologicamente é apenas o da “dominação legítima”, que ocorre naquelas situações em que há grande probabilidade de que a ordem seja “reconhecida” (idem, ibidem, p.140) como “modelar ou obrigatória” (idem, ibidem, p.19).

O problema que Bourdieu encontra nessa construção de Weber é que ela comete o erro de identificar as causas da “obediência” na própria “representação consciente” do sujeito passivo da ordem, quando, na verdade, o sujeito está freqüentemente inconsciente do conjunto de operações que o intérprete precisa supor a seu respeito para compreender a sua ação (BOURDIEU, 2004c, p.143). Para Weber, o sujeito recebia a ordem como tal, reconhecia a sua autoridade, e cumpria o mandamento. No esquema de Bourdieu, ao contrário, a ordem só é recebida e aceita como legítima porque ela é “ambígua” o suficiente, quanto ao seu sentido, para ocultar o fato de ser uma “ordem”. Nisso consiste a dimensão simbólica da dominação11. A legitimidade da ordem deriva do desconhecimento de sua arbitrariedade (BOURDIEU, 2004b, p.170).

Para dar conta dessa dificuldade teórica, Bourdieu utiliza o conceito de “poder simbólico”, pretendendo referir “um poder que supõe o reconhecimento, isto é, o desconhecimento da violência que se exerce através dele” (BOURDIEU, 2004c, p.194). Para Bourdieu, o poder simbólico “é uma forma transformada, irreconhecível transfigurada e legitimada, das outras formas de poder” (BOURDIEU, 2004d, p.15). Sua eficácia reside no fato de que ele é capaz de realizar essa função “de dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de eufemização) que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objetivamente” (idem, ibidem, ibidem).

11

Em um lapso apenas Weber reconhece a “dimensão simbólica” da ação social: “Em muitos casos, supostos “motivos” e “representações” (isto é, desde logo, motivos não reconhecidos) ocultam ao próprio agente o nexo real da orientação da sua ação, de modo que seus testemunhos subjetivamente sinceros têm valor apenas relativo” (WEBER, 1999, p.07). Nesse trecho, Weber se parece muito com Bourdieu. No entanto, essa maneira de pensar, central no esquema de Bourdieu, é tomada por Weber como “exceção”. Assim, Weber sustenta, em todo o seu sistema, que a ação social é determinada pelo “sentido visado” pelo ator da ação. Para Bourdieu, ao contrário, ela é determinada por um mecanismo (“habitus”) que ele não conhece.

A violência simbólica “é a forma branda e enrustida assumida pela violência quando esta não pode manifestar-se abertamente” (BOURDIEU, 2004b, p. 213). Ela é, enfim, “uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la” (BOURDIEU, 1997, p.22). O poder simbólico pressupõe a posse do capital simbólico, sendo que o Estado tem o “quase” monopólio desse capital, em razão do qual o seu Direito – isto é, o discurso oficial do seu poder – tem a eficácia da “construção dos espíritos” (BOURDIEU, 1996, p.114122).

O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital, físico, econômico, cultural, social), percebida por agentes sociais cujas categorias de percepção [habitus] são tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las, atribuindo-lhes valor (...). Segue-se que o Estado, que dispõe de meios de inculcar princípios de visão e de divisão de acordo com suas próprias estruturas, é o lugar por excelência da concentração e do exercício do poder simbólico (BOURDIEU, 1996, p.107108).

É por isso que as lutas empreendidas no interior dos campos, e que tem por objeto a apropriação do capital simbólico, podem ser definidas como “lutas simbólicas”, entendendo-se por tal as lutas em que está em jogo o “poder sobre um uso particular de uma categoria particular de sinais e, deste modo, sobre a visão e o sentido do mundo natural e social” (BOURDIEU, 2004d, p.72 – nota de rodapé). É pelo fato da ambigüidade da “ordem simbólica” – que tem o duplo sentido de “estrutura de distribuição de capitais” e de “chamado à ordem” – que o objeto último das lutas simbólicas é a definição das categorias de classificação sociais e, assim, a “distinção” entre as categorias sociais, isto é, a afirmação oficial de sua desigualdade. Em uma palavra, o que está em jogo é o valor da pessoa enquanto reduzida socialmente à sua identidade social (idem, ibidem, p.124).

A noção de “luta simbólica”, que define o funcionamento de qualquer campo, vem aclarar o fato de que as relações de “força” ou de “poder” existentes na sociedade não são relações de força “puras”. A tão referida “luta de classes”, por exemplo, não deve denotar a idéia de uma “luta violenta”, “sangrenta”, “armada”, etc. Ela é muito mais como uma “luta de sentido” e que, por isso mesmo, tende a não ser percebida como “luta”.

“Assim como não existem puras relações de força, também não há relações de sentido que não estejam referidas e determinadas por um sistema de dominação” (MICELI in BOURDIEU, 2004a, p.XIII). O que existe são “discursos” estruturantes antagônicos, que definem características valoráveis e posições sociais relativas a essas características. O poder simbólico ou “ideológico” é, nesse sentido, o poder de impor uma definição da sociedade, com suas posições e valores, como legítima.

A eficácia simbólica é justamente aquilo que, ao transmudar a força em sentido, dissimula sua arbitrariedade, reforçando a força enquanto tal e eliminando as resistências que ela teria se assim fosse percebida. (idem, ibidem, ibidem). O sentido das relações sociais de desigualdade é ambivalente, ambíguo, no sentido de que a causa objetiva da dominação não é percebida subjetivamente. Ou, o que dá no mesmo, os agentes ignoram as condições sociais da produção do seu habitus. Ao desconstruir teoricamente o espaço das relações objetivas em que se produzem os habitus, o sociólogo opera ao modo do psicanalista, desvendando “a intenção objetiva escondida por debaixo da intenção declarada, o querer-dizer que é denunciado no que ela declara” (BOURDIEU, 2004d, p.73).

O Direito é considerado por Bourdieu como o discurso por excelência da legitimação da ordem desigual (BOURDIEU, 2004d, p.243), sendo que a principal “arma” da qual ele se utiliza para dissimular a arbitrariedade inerente a essa ordem é a retórica da “universalidade” e da “impessoalidade” (idem, ibidem, p.246), sustentadas pelo discurso das formas (“fórmulas”) jurídicas (idem, 2004c, p.106). Tudo aquilo que o Direito “consagra” como legítimo passa a ser tomado por “evidente” ou por “natural” pelos agentes sujeitos a uma determinada ordem jurídica (ex. títulos escolares ou nobiliárquicos).

As relações objetivas podem tender a se reproduzir nas relações de poder simbólico. Na luta simbólica pela produção do senso comum ou, mais exatamente, pelo monopólio da nominação legítima, os agentes investem o capital simbólico que adquiriram nas lutas anteriores e que pode ser juridicamente garantido. Assim, os títulos de nobreza, bem como os títulos escolares, representam autênticos títulos de propriedade simbólica que dão direito às vantagens do reconhecimento (idem, ibidem, p.163).

No caso dos títulos de competência escolares, deve-se pensar imediatamente no exemplo daqueles possuídos pelo “advogado” ou pelo “médico”, em razão dos quais são imediatamente reconhecidos os “doutores” segundo o habitus vulgar do senso comum. “O desvio das propriedades da posição social em proveito da pessoa só é possível na medida em que é dissimulado: essa é a própria definição de poder simbólico” (idem, ibidem, p.194).

1.1.3. O funcionamento do campo jurídico

A história da formação do campo jurídico, como campo autônomo em relação ao campo da política, deve ser procurada na própria história da consolidação do

Estado moderno. Deve-se situar precisamente o momento histórico da “crise” do sistema feudal e do “ressurgimento” do Estado, quando os príncipes concentraram o poder e recrutaram as suas burocracias. “Para travar batalha contra as ordens, o príncipe buscou apoio nas camadas sociais politicamente disponíveis e não comprometidas com essas tais ordens” (WEBER, 2002, p.78).

Segundo Weber (ibidem, p.78-79), a burocracia estatal foi sendo recrutada, em primeiro lugar, entre os clérigos; depois entre os letrados com formação humanística; depois ainda em meio à nobreza ou ao patriciado; e, por fim, dentre juristas formados em universidades tipicamente ocidentais. A idéia defendida por Hobbes (apud BITTAR, 2002, p.158) de que a atividade do Estado deveria se dar por meio da Lei já continha a essência do princípio de autonomização do Direito.

A distinção entre a “vontade da Lei” e a “vontade do Rei” criou o palco para a luta pela supremacia de uma ou de outra dessas ordens12. Na mesma medida em que

os juristas

ganhavam

autonomia

em

relação ao príncipe, foram-se

desenvolvendo as especialidades jurídicas (BOURDIEU, 2004c, p.55), de modo que cada vez ficava mais difícil ao príncipe decidir sobre as questões legais sem ter de se referir, necessariamente, aos seus assessores jurídicos. Com o tempo, a Lei e o Direito atingiram uma autonomia tal que a figura do príncipe pôde ser absolutamente dispensada13.

12

A tensão entre os poderes legislativo e executivo é representada ideal-tipicamente pelo conflito entre Carlos I e o Parlamento, da qual decorreu a Revolução Inglesa, que “consolidou o governo parlamentar inglês e o império da lei” (PERRY, 2002, p.265). 13 É com essa condição que se pôde conceber a possibilidade de um Estado de Direito republicano.

Na medida em que surge um corpo de profissionais socialmente autorizados para o trabalho de interpretação do Direito, são dadas as condições sociais para o estabelecimento do campo jurídico. Como todo campo, o jurídico se estrutura em torno de um “núcleo duro” de sentido (ROCHA, 2005, p.50), segundo a mesma lógica da ortodoxia da Bíblia (idem, ibidem, p.48), ao qual os agentes devem se devotar “religiosamente”, pois constitui o preço do “direito de entrada” no campo. O “investimento” 14 num campo qualquer é vinculante o bastante para criar as “ilusões” sem as quais o agente não pode funcionar dentro do campo.

O fato de se pertencer a um grupo profissional exerce um efeito de censura que vai muito além das coações institucionais e pessoais: há questões que não são colocadas, que não podem ser colocadas, porque tocam nas crenças fundamentais que estão na base (...) (BOURDIEU, 2004c, p.164).

A concorrência pelo monopólio da competência jurídica pressupõe a fé na existência e no valor dessa competência (“capital jurídico”); e a existência de um campo em que se concorre pela obtenção de posições às quais estão associadas vantagens sociais específicas (no caso do Direito é especialmente forte a tentação de se obter o reconhecimento popular pelos títulos de “doutor” ou de “excelentíssimo senhor”) é o bastante para que os agentes se “interessem” em participar do jogo. Ao pagarem o direito de entrada, passando pelos rituais de passagem específicos do campo (curso de Direito, exame da ordem, concurso para função jurídica pública, etc.) os agentes adquirem o “senso prático” do jogo, em razão do qual podem fazer exatamente o que se espera deles, ainda que não sejam “cínicos” ou “calculistas” (BOURDIEU, 2004b, p.57).

14

Sobre o conceito de “investimento catético” e de illusio, vide capítulo 2.

O campo jurídico é o lugar da concorrência pelo monopólio de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre e autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social (BOURDIEU, 2004d, p.212).

O campo jurídico se estruturou a partir do empenho dos juristas no sentido de criarem um corpo de doutrinas com uma racionalidade e uma linguagem próprias, com a pretensão de autonomia em relação à lógica da política ou da moral (idem, ibidem, p.209). Segundo Rocha (2005, p.48), o treinamento específico dos juristas, e em especial dos juizes, reforça a sua crença “na possibilidade de existência de um espaço social e mental onde se efetive a imparcialidade, aonde não cheguem as pressões externas”, sendo que a tentativa de Hans Kelsen de criar uma “teoria pura do direito” não passa do limite ultra-conseqüente do esforço nesse sentido (BOURDIEU, 2004d, p.209).

A teoria do campo jurídico implica em duas recusas teóricas muito importantes (idem, ibidem, p.209-211), a saber, a do formalismo e a do instrumentalismo. Os juristas em geral são adeptos do “formalismo” e concebem o Direito a partir de seus conceitos e métodos internos (idem, ibidem, ibidem), decorrendo daí a referida “ilusão da pureza” das formas jurídicas (idem, ibidem, p.212). Já os “sociólogos” de tradição marxista são adeptos do “instrumentalismo” e tendem a ver no Direito um “reflexo direto” das relações de força existentes (idem, ibidem, p.210), como se o Direito fosse uma máquina (“superestrutura”) colocada à disposição da “classe dominante” para oprimir a “classe dominada”. Ambas essas leituras ignoram a realidade do “campo jurídico”, como espaço dentro do qual se produz o Direito enquanto “sistema simbólico” e “capital de autoridade” específico.

Assim, ambas as leituras deixam escapar a lógica específica da mecânica de produção do Direito.

Para romper com a ideologia da independência do direito e do corpo judicial, sem cair na visão oposta, é preciso levar em conta aquilo que as duas visões antagonistas, internalista e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência de um universo social [“campo jurídico”] relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que pode combinar com o exercício da violência física (BOURDIEU, 2004d, p.211).

A pertença ao campo jurídico faz com que os agentes adquiram, mais cedo ou mais tarde, os habitus (“sistemas de disposições incorporados”) sem os quais não poderiam “funcionar” no campo. Os habitus jurídicos são como “atitudes comuns, afeiçoadas, na base de experiências familiares semelhantes, por meio de estudos de direito e da prática das profissões jurídicas”, as quais “funcionam como categorias de percepção e de apreciação que estruturam a percepção e a apreciação” (idem, ibidem, p.231) dos problemas que são colocados diante dos juristas. Frente a um problema prático qualquer, os juristas logo tratarão de verificar se o mesmo pode ou não ser colocado em termos jurídicos – se o problema cabe nas “molduras” do “suporte fático” –, “o que faz com que conflitos e argumentos de toda a espécie permaneçam aquém da lei como demasiado triviais, ou fora da lei como exclusivamente morais” (idem, ibidem, p.230).

Essa descrição do habitus jurídico é muito semelhante à concepção de Kelsen do trabalho jurídico, segundo a qual a interpretação do Direito seria “um ato de decisão de um órgão competente, dentro de uma moldura, que é o direito a aplicar” (ANDRADE, 1992, p.51). A concepção de Kelsen exclui absolutamente a

discussão da justiça e da finalidade social das Leis, pretendendo justificar o Direito nele mesmo15, isto é, na “forma jurídica” pura.

Nesse sentido, os habitus jurídicos, afeiçoados ao campo que impõe esses habitus, funcionam conforme a fórmula abstratíssima da “teoria do fato jurídico”, que concebe a norma jurídica em termos puramente lógicos (“formais”), isto é, como “uma preposição através da qual se estabelece que, ocorrendo determinado fato ou conjunto de fatos (=suporte fáctico) a ele devem ser atribuídas certas conseqüências no plano do relacionamento intersubjetivo (=efeitos jurídicos)” (MELLO, 2001, p.19), sem mais. A excelência jurídica, do ponto de vista interno do campo, é o domínio prático dessas “formas” geradas no próprio jogo do campo jurídico, sendo que essa excelência só se adquire pela prática desses jogos. Segundo Legendere (s.a., p.16), a forma dogmática se define por ser um “discurso que diz sempre a verdade”.

Há uma virtude na própria forma. E a maestria cultural é sempre uma maestria das formas. Essa é uma das razões que tornaram a etnologia muito difícil: não se adquire esse domínio cultural em um dia... Todos esses jogos de formalização, os quais, como se vê pelo eufemismo, são igualmente jogos com a regra do jogo e, desse modo, jogos duplos, são obra de virtuoses. Para ficar em regra, é preciso conhecer a regra, os adversários, o jogo como a palma da mão. Se fosse preciso dar uma definição transcultural da excelência, eu diria que ela é o fato de se saber jogar com a regra do jogo até o limite, e mesmo até a transgressão, mantendo-se sempre dentro da regra (BOURDIEU, 2004c, p.99).

A lógica interna do campo jurídico é a mesma lógica de todos os campos bastante autônomos (descrita no ponto 1.1.2.2), definida pela pretensão de fundar

15

Segundo Pepe (in ROCHA e STRECK, 2004, p.142-143), Max Weber defendia um “conceito positivista” da Lei, ao descrever a “legitimidade pela legalidade”. No entanto, essa crítica seria mais bem dirigida a Kelsen, partidário do “positivismo jurídico”, e não a Weber, que apenas “constatou” e “descreveu”, sem jamais defender, o fenômeno de o Direito legitimar-se pela pura obediência às normas jurídicas, elas próprias tidas por legítimas (WEBER, 1999, p.142). Na verdade, Weber tinha grandes reservas quanto ao que ele chamava de “desencantamento do mundo” (ARON, 1999, p.502). “O que ameaçava a dignidade do homem, a seus olhos, era a servidão dos indivíduos com relação a organizações anônimas” (idem, ibidem, p.506) as quais a racionalidade burocrática tendia.

um produto cultural “puro” (Direito, arte, ciência), através de um modus operandi que segue “fórmulas” e “receitas” consideradas “eruditas” ou “doutas”16. Assim, ainda que o campo jurídico não tenha a autonomia do campo da matemática, por exemplo, ele é muito mais autônomo que os campos da política ou do jornalismo.

A autonomia é basicamente definida pela mecânica da “legitimação interna”, enquanto a heteronomia se define pela mecânica da “legitimação externa”. Assim, no caso da matemática, os produtos matemáticos que podem ser aceitos como “matematicamente corretos” são apenas aqueles reconhecidos pelos professores de matemática, de acordo com as categorias próprias do campo, as quais possuem um elevadíssimo grau de “formalização” e de consenso sobre os seus “fundamentos”. No extremo oposto, há o campo jornalístico, no qual os produtos considerados “bons” são aqueles que o “grande público” aceita e consome, e que coincidem com os maiores índices de audiência. No primeiro caso, temos o exemplo ideal de um campo autônomo; e no segundo, de um campo heterônomo.

A legitimidade dos produtos jornalísticos deve ser provada diariamente perante consumidores externos (BOURDIEU, 1997, p.110) à produção jornalística (“os telespectadores não são jornalistas”), razão pela qual o campo jornalístico não consegue estruturar uma racionalidade independente das pressões decorrentes da concorrência pelo índice de audiência (idem, ibidem, p.34). No campo da política, a legitimação deve efetivar-se apenas no período eleitoral (ROCHA, 2005, p.53),

16

A pretensão de que o produto interno do campo seja um produto “puro” não é um privilégio do campo jurídico, repetindo-se em todos os campos que atingiram um elevado grau de autonomia. Nesse sentido, pode-se dizer que a “arte parnasiana” – a técnica pela técnica – está para o “campo artístico” como o “positivismo jurídico” está para o “campo jurídico”.

depois do qual o campo volta a funcionar segundo uma racionalidade relativamente independente.

Mas todo campo, mesmo os mais autônomos, tem dois pólos, sendo um deles mais autônomo (“cultural”) e o outro mais heterônomo (“comercial”). Autônomo é o produtor que produz segundo as fórmulas reconhecidas internamente ao campo, e que tem por consumidores os seus próprios “colegas”. Heterônomo é o produtor que, não possuindo os códigos e os capitais (“habitus”) exigidos pelo campo, busca notoriedade externa como uma forma de se legitimar. Essa tensão é clara na oposição que existe entre a música “erudita” e todas as formas de música comercial; entre a alta costura e a grife de street wear; entre os jornais que produzem views e os jornais que produzem news; entre a arte clássica e a arte de vanguarda; entre o teatro de vanguarda e o teatro de bulevar; entre a vanguarda consagrada e a nova vanguarda; e assim também entre o Direito dogmático e o Direito chamado “alternativo”; entre o direito civil e o direito do trabalho; entre os juizes e os professores; e assim por diante.

Em todos os campos, os dominantes são defensores da autonomia e estão comprometidos com a continuidade da ordem estatuída (BOURDIEU, 2004b, p.88) sobre a qual está assentado o seu poder. Os dominados, por sua vez, são mais subversivos (idem, ibidem, ibidem), chegando muitas vezes a “expor” a verdade intocável do campo, tipicamente, através da mídia (ROCHA, 2002, p.41). Mas a estratégia mais comum é a do “silêncio cúmplice”, em busca do reconhecimento dos superiores, tendo em vista ser aceito entre eles, o que eqüivale à promoção social (idem, 2005, p.50).

Obter e utilizar externamente instrumentos de pressão ou mesmo de abalo das hierarquias internas ao campo significa ser o agente excluído pelos demais, interessados em conservar os mecanismos conhecidos e por eles acessíveis de distribuição do capital do campo. No caso do campo jurídico, a intromissão de pressões externas do campo político, freqüentemente veiculadas via mídia, por exemplo, tende a ser ignorada pelos agentes, pois o acesso ao campo não está disponível para agentes que não disponham das condições exigidas pela lógica interna para reconhecimento e interação, o que significa o mesmo que submeter-se aos interesses e à avaliação pelos integrantes do campo (idem, ibidem, p.49).

Isso significa que a autonomia relativa do campo jurídico permite aos seus agentes ignorarem absolutamente as críticas que sejam feitas a respeito de seu trabalho e que não sejam colocadas em termos jurídicos. Eles só conhecem e reconhecem os ataques contra as suas teses jurídicas “em si” e “por si”, tomando por “inconcebível” a idéia de se colocar o problema da moral nas discussões, por exemplo, de um processo judicial. Para os juristas, o “sentido de equidade dos nãoespecialistas” aparece como “desqualificado” em face de suas construções puras (BOURDIEU, 2004d, p.226). Segundo Bourdieu,

(...) os juristas, para se livrarem da justiça fundada no sentimento de eqüidade (...) devem estabelecer leis formais, gerais, fundadas em princípios gerais explícitos, e enunciadas de modo a fornecer respostas válidas para todos os casos e para todo mundo (para qualquer x) (...). Um direito formal assegura a calculabilidade e a previsibilidade (ao preço de abstrações e simplificações que fazem com que o julgamento formalmente mais conforme às regras formais do direito possa estar em total contradição com os juízos do senso de eqüidade: summum jus summa injuria) (BOURDIEU, 2004c, p.105).

A questão de saber o porquê da tendência “conservadora” dos juristas mais bem colocados dentro do campo deve ter em conta que a ocupação dos melhores postos pressupõe o “engajamento na tarefa de manter e valorizar a força do campo específico” (ROCHA, 2005, p.49). É por isso que “esses agentes não podem ser pessoalmente acessíveis, e suas manifestações serão raras, ambíguas e lacunosas”

(idem, ibidem, ibidem). Os discursos desses agentes, por isso mesmo, devem ser ortodoxos o bastante para se conservarem como “capitais” de autoridade capazes de manter as posições dos agentes que neles se ancoram (idem, ibidem, p.49-50)17.

Para obter essa eficácia, o discurso jurídico deve possuir uma retórica universalidade, da neutralidade e da autonomia (BOURDIEU, 2004d, p.215-216), capaz de empreender “o trabalho coletivo de sublimação destinado a atestar que a decisão exprime não a vontade e a visão do mundo do juiz mas sim a voluntas legis ou legislatoris” (idem, ibidem, p.225). A legitimidade do Direito, produto da interpretação jurídica, deriva do efeito de desconhecimento de sua arbitrariedade (idem, 2004b, p.170), obtido através dessa retórica que lhe é inerente.

O trabalho de racionalização, ao fazer aceder ao estatuto de veredicto uma decisão judicial que deve, sem dúvida, mais às atitudes éticas dos agentes do que às normas puras do direito, confere-lhe a eficácia simbólica exercida por toda a ação quando, ignorada no que têm de arbitrário, é reconhecida como legítima (idem, 2004d, p.225).

Os jogos internos do campo jurídico produzem um Direito a ser aplicado em destinatários externos ao campo, afirmando positivamente a “distinção” de uns e silenciando sobre a “vulgaridade” de outros. A legitimação da realidade social que o Direito opera é uma legitimação “via forma”, na medida em que a forma jurídica

17 O fato de os agentes investirem (no duplo sentido, econômico e psicanalítico) nas carreiras de um campo, cuja lei de ferro é o discurso do “bem comum” ou do “interesse universal”, faz com que eles desconheçam o seu próprio interesse em beneficiar-se dos lucros que o campo reserva aos agentes que nele investem e que, no caso do campo jurídico, manifestam-se não apenas materialmente (sob a forma de recompensas em dinheiro), mas também simbolicamente (como bajulações aos “doutores” e aos “excelentíssimos senhores”). É por isso que já afirmei em outros trabalhos que “motivações práticas inconscientes (...) impelem os juristas a definirem-se a si mesmos como as pessoas mais desinteressadas do mundo, quando na realidade eles estão intimamente interessados (ao nível do subliminar) nos “lucros simbólicos da universalização”, que são as “vantagens do reconhecimento”” (ROCHA e SILVEIRA, 2005, p.167), quando “reconhecimento” significa o mesmo que desconhecimento do que há de arbitrário na ordem que quer-se impor (BOURDIEU, 2004b, p.170). Esse mecanismo é detalhado no capítulo 1.2.

contém uma retórica capaz de fazer ignorar o arbitrário do discurso jurídico, isto é, capaz de fazê-lo reconhecer como legítimo. Segundo Bourdieu,

(...) a forma, a formalização, o formalismo não agem apenas pela sua eficácia específica, propriamente técnica, de clarificação e racionalização. 18 Há uma eficácia intrinsecamente simbólica na forma[ ]. A violência simbólica, cuja realização por excelência certamente é o direito, é uma violência que se exerce, se assim podemos dizer, segundo formas, dando forma. Dar forma significa dar a uma ação ou a um discurso a forma reconhecida como conveniente, legítima, aprovada, vale dizer, uma forma tal que pode ser produzida publicamente, diante de todos, uma vontade ou uma prática que, apresentada de outro modo, seria inaceitável (essa é uma função do eufemismo). A força da forma, esta vis formae de que falam os antigos, é esta força propriamente simbólica que permite à força exercer-se plenamente fazendo-se desconhecer enquanto força e fazendo-se reconhecer, aprovar, aceitar, pelo fato de se apresentar sob uma aparência de universalidade – a da razão ou da moral (BOURDIEU, 2004c, p.106).

É por isso que os agentes tendem a funcionar no campo de maneira tanto mais satisfatória quanto mais tenham adquirido os habitus da profissão, que os leva a acreditar nas pretensas “verdades” que eles são obrigados a propagar para serem aceitos no campo. A retórica da impessoalidade é sustentada, por exemplo, quando os juizes afirmam que o fato de eles decidirem os processos de acordo com as “formas jurídicas” é o bastante para que o seu veredicto seja neutro ou imparcial e, assim, justo.

Na verdade, os atos de jurisprudência só podem distinguir-se dos atos de pura força dos políticos na medida em que se apresentem “como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos” (BOURDIEU, 2004d, p.214). Nesse sentido, a possibilidade de que a decisão decorra de um pensamento jurídico puro, conforme uma lógica subsuntiva, é sem dúvida uma ilusão provocada e reforçada pelo investimento no campo.

Para quem não participe da adesão imediata aos pressupostos inscritos no próprio fundamento do funcionamento do campo que a pertença ao campo implica (illusio), é difícil crer que as construções mais puras do jurista, sem mesmo falar dos atos de jurisprudência, obedeçam à lógica dedutivista que é o “ponto de honra espiritualista” do jurista profissional (BOURDIEU, 2004d, p.222).

A importância de uma ciência que se dedica a destruir as ilusões decorrentes do fato social reside na pretensão de se diminuir a violência simbólica que se exerce na sociedade (BOURDIEU, 1997, p.117), através da revelação dos pressupostos não pensados da ação social (“habitus”). A sociologia pretende, assim, realizar uma tarefa próxima daquela da psicanálise, que é a de diminuir o efeito das perturbações psíquicas através do esforço para trazer à consciência as suas causas reprimidas (“trauma”). Num caso e noutro, os “símbolos” manuseados pela consciência do agente ocultam precisamente aquilo que ele precisaria saber para se emancipar social ou psiquicamente.

No caso específico da “socioanálise” dos agentes do campo jurídico, e das categorias de pensamento (“habitus”) associados à sua ação social, tem-se em vista revelar o funcionamento de uma luta disfarçada em que o que está em jogo é justamente

a

definição

das

posições

sociais.

Conforme



mencionado

anteriormente, os esquemas de classificação utilizados pelos juristas servem para reafirmar as classificações e as divisões sociais, legitimando-as. No campo jurídico, “está em jogo o monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de conhecimento do mundo social, o nomos como princípio universal de

18

Dizer que a forma jurídica tem uma eficácia simbólica, além das eficácias da clarificação (“redução da complexidade”) e da racionalização, é desafiar, ao mesmo tempo, as perspectivas de Luhmann (apud ROCHA e DUTRA in ROCHA e STRECK, 2004, p.293) e de Weber (1999, p.142).

visão e de divisão (nemo significa separar, dividir, distribuir), portanto, de distribuição legítima” (BOURDIEU, 2004d, p.236).

O direito consagra a ordem estabelecida ao consagrar uma visão desta ordem que é uma visão do Estado, garantida pelo Estado. Ele atribui aos agentes uma identidade garantida, um estado civil, e sobretudo poderes (ou capacidades) socialmente reconhecidos, portanto, produtivos, mediante a 19 distribuição dos direitos[ ] de utilizar esses poderes, títulos (escolares, profissionais, etc.), certificados (de aptidão, de doença, de invalidez, etc.), e sanciona todos os processos ligados à aquisição ou à retirada desses poderes (BOURDIEU, 2004d, p.237).

Bourdieu (idem, ibidem, ibidem) explica que essa propriedade do Direito de criar as coisas sociais (como as distâncias entre as classes) faz dele a forma por excelência do poder simbólico. O Direito “cria” as coisas pelo simples fato de nomeálas com autoridade “oficial”. Mas as coisas que o Direito cria não são criações novas; são coisas que já existiam objetivamente e que, no entanto, não se apresentavam à representação consciente. Ao enunciar coisas preexistentes, o Direito cria a consciência

da

existência

dessas

coisas,

tornando-as

“verdades”

oficiais,

“homologando-as”20.

É na medida e só na medida em que os atos simbólicos de nomeação propõe princípios de visão e de divisão objetivamente ajustados às divisões preexistentes de que são o produto, que tais atos têm toda a sua eficácia de 19

Para Max Weber (1999, p.27) os direitos são “possibilidades objeto de apropriação”, no sentido de serem garantidas por um quadro coativo (ibidem, p.21), correspondente, no sentido político, ao Estado (ibidem, p.35). Bourdieu estabelece que essas “possibilidades” são os “trunfos” com os quais se pode jogar nos campos, os quais ele refere como “capitais” (BOURDIEU, 2004d, p.144). Sob essas condições se pode conceber o Estado como o resultado de um processo de concentração das diversas espécies de capital (idem, 1996, p.99). “A concentração de diferentes tipos de capital (que vai junto com a construção dos diversos campos correspondentes) leva, de fato, à emergência de um capital específico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos de capital, especialmente entre as taxas de câmbio entre eles (e, concomitantemente, sobre as relações de força entre seus detentores). Segue-se que a construção do Estado está em pé de igualdade com a construção do campo do poder, entendido como o espaço de jogo no interior do qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam particularmente pelo poder sobre o Estado, isto é, sobre o capital estatal que assegura o poder sobre os diferentes tipos de capital (...)” (idem, ibidem, p.99-100). 20

“O efeito de oficialização identifica-se a um efeito de homologação. Homologar, etimologicamente, significa assegurar que se diz a mesma coisa quando se dizem as mesmas palavras. Significa transformar um esquema prático num código lingüístico de tipo jurídico. Ter um nome ou uma profissão homologada, reconhecida, significa existir oficialmente (...)” (BOURDIEU, 2004c, p.103).

enunciação criadora que, ao consagrar aquilo que enuncia, o coloca num grau de existência superior, plenamente realizado, que é o da instituição instituída (BOURDIEU, 2004d, p.238).

As diferenças sociais que o Estado homologa através do discurso jurídico são diferenças de fato, que passam a funcionar como “distinções oficialmente reconhecidas” (BOURDIEU, 2004b, p.211), isto é, desigualdades de direito. A coerção jurídica opera uma “promoção ontológica” ao “transformar a regularidade (aquilo que se faz regularmente) em regra (aquilo que é de regra fazer), a normalidade de fato em normalidade de direito” (idem, 2004d, p.246-247). As coisas são nomeadas como verdadeiras e assim “naturalizadas”, quando “natural” é tudo “o que não põe a questão de sua legitimidade” (idem, ibidem, p.239).

Determinadas práticas que eram vividas como drama durante todo o tempo em que não havia palavras para dizê-las e pensá-las, dessas palavras oficiais, produzidas por pessoas autorizadas (...), que permitem declará-las, a si mesmo e aos outros, sofrem uma autêntica transmutação ontológica a partir do momento em que sendo conhecidas e reconhecidas publicamente, nomeadas e homologadas, elas se vêem legitimadas e mesmo legalizadas, e podem então se declarar, se mostrar (...) (BOURDIEU, 2004c, p.107).

O exemplo mais óbvio dessas categorias que são tidas como “naturais”, ainda que não passem de “ficções bem fundamentadas” é o caso da “família” (BOURDIEU, 1996, p.126) “Se a família aparece como a mais natural das categorias sociais (...) é porque a categoria familiar funciona, nos habitus, como esquema classificatório e princípio de construção do mundo social e da família como corpo social específico, adquirido no próprio seio da família como ficção social realizada” (idem, ibidem, p.129).

A família é uma “instituição” que “sempre recebe do Estado os meios de existir e subsistir” (idem, ibidem, p.135), mas apenas sob a sua forma legítima.

Assim, por exemplo, a Constituição Federal de 1988 estabelece que a família “tem especial proteção do Estado” (Art. 226), sendo reconhecida, para efeito da proteção, a “união estável entre homem e mulher” (§3o). Desse modo, o “conceito” exclui, de plano, a possibilidade das uniões homossexuais e das pouco prováveis, mas não impensáveis, uniões poligâmicas21.

Positivamente, o Estado condiciona a tutela de um direito a uma circunstância da qual nem todos podem participar com a mesma “facilidade”, e que praticamente corresponde às exigências perante as quais as classes dominantes respondem com maior naturalidade, até porque já se encontram na condição exigida (“familiaridade”). O mesmo acontece em relação à língua, quando o Estado determina que a escola exija um padrão lingüístico “gramatical” muito mais próximo da língua que a classe dominante pratica no ambiente familiar (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003, p.163). Nesse sentido, o Direito é um instrumento de produção de distinções, isto é, “de objetos que podem desempenhar, além de sua função técnica, uma função social de expressão e legitimação das diferenças sociais” (BOURDIEU, 2004b, p.181).

Segundo Bourdieu (2004c, p. 58), uma maneira de se desconstruir as ilusões engendradas pela pertença a um campo de produção cultural é a “historicização” dos seus conceitos mais evidentes. Só assim, os consensos mais arraigados no “senso comum” partilhado pelos agentes de um campo se revelam como o produto da relação de forças atuais e anteriores dentro do próprio campo (idem, ibidem, 21

Não chega a surpreender a freqüência com que ocorre, principalmente nas classes miseráveis, uniões incestuosas, ou casos em que o esposo possui concomitantemente a mulher e a sua irmã ou mesmo a sua própria filha. O Direito, no entanto, coloca essas circunstâncias como ilegítimas, para fins de tutela de direitos, reforçando a dominação de classe dos que podem empreender a condição exigida frente aos que, devido às necessidades do meio, não podem. Seria interessante um levantamento estatístico rigoroso sobre essa questão. Mas infelizmente, as estatísticas de que a sociologia precisaria para demonstrar empiricamente muitas de suas proposições, no Brasil, ainda está para ser feita.

ibidem). Lamentavelmente, diz Bourdieu, “a história que eu precisaria para meu trabalho muitas vezes não existe”.

Ainda que existam vastas coleções bibliográficas sobre a “história do direito”, a história contada pelos historiadores do direito, e que nos está disponível, é meramente uma história do desenvolvimento interno dos conceitos e métodos jurídicos (BOURDIEU, 2004d, p.209), o que demonstra que eles também são tomados pela illusio jurídica. Desse modo, temos poucos registros sobre as “lutas de sentido” pelas quais consagraram-se historicamente certas teses jurídicas em detrimento de outras, “eternizando-se” a tese vencedora. Uma construção desse tipo certamente revelaria o caráter arbitrário de uma “forma” jurídica, que é a realização concreta de “uma” possibilidade dentre mil.

Durkheim, em suas Lições de Sociologia, fornece uma tentativa de sistematização dos processos sociais (“fenomenológicos”) que fizeram com que as instituições do contrato e da propriedade passassem de uma “forma” histórica para outra, constituindo esse material num tipo de bússola para o estudo ulterior. O problema da perspectiva de Durkheim – a da “solidariedade” e do “consenso” (ARON, 1999, p.280) – é que ela ignora a realidade do Direito como um daqueles objetos de “consenso” engendrados pela própria “luta” (BOURDIEU, 2004c, p.57). A essa altura, poderíamos levantar algumas hipóteses – que ainda poderão ser verificadas em aprofundamentos posteriores22 – a partir das preposições de Durkheim, porém adicionando a essas preposições o elemento da “luta” que está na

22

Esse trabalho demandaria a pesquisa em documentos históricos, os quais podem simplesmente não existir, tendo em vista que a pertença ao “campo jurídico” fez com que os agentes, que produziram os registros, simplesmente ignorassem a “estrutura” do campo. Ficamos, por enquanto, com hipóteses relativamente vagas.

realidade das instituições do campo jurídico, enquanto produto da relação de força entre campos e em campos.

Em primeiro lugar, Durkheim coloca o problema da legitimação do regime individual e privado da propriedade, ou seja, o problema da regra que determina o respeito ao direito de propriedade. “A primeira questão é saber quais as causas determinantes do estabelecimento dessa regra” (DURKHEIM, 1983, p.109). Durkheim refere Kant para sugerir a hipótese de que, originariamente, “todos os homens estão de posse legítima do solo” (idem, ibidem, p.117), de modo que “o gênero humano é o proprietário ideal da Terra” (idem, ibidem, p.118). “Enquanto os homens vivem exclusivamente da caça, da pesca e de frutos silvestres, não aflora a questão acerca da apropriação do solo. Admite-se a utilização em comum da terra pela família ou tribo” (VENOSA, 2004, p.170). Essa proposição refere-se ao período do nomadismo e do comunismo primitivo (PERRY, 2002, p.04) e remete a questão de saber como foi possível ao clã apropriar-se do solo que pertencia inicialmente à universalidade.

Segundo Durkheim (apud ARON, 1999, p.316) a sociedade tem uma aptidão para se transformar em divindade. “A verdade é que, num caso determinado, viu-se a sociedade e suas idéias essenciais se transformarem, diretamente e sem transfiguração alguma, no objeto de um verdadeiro culto” (idem, ibidem, ibidem). A primazia da “consciência coletiva” frente à “consciência individual”, característica da sociedade primitiva, fez com que o “ideal do grupo” fosse identificado com o “sagrado”. “E o sagrado é uma força que deriva da coletividade, e superior a todos os indivíduos” (ARON, ibidem, p.316). Portanto, partindo-se dessa ficção inicial, que

foi uma ficção bastante real, pode-se colocar a pergunta: como foi possível a apropriação do solo universal e, portanto, sagrado, pelo clã?

O direito de propriedade consiste, essencialmente, no direito de retirar uma coisa do uso comum. O proprietário usará dela, ou não usará; é secundário. Mas está fundado juridicamente no impedir que outrem dela use e, quase, que nela toque (...). Dessa definição decorre, com efeito, ser a coisa apropriada, coisa separada do domínio comum. Ora, essa característica é, também, a de todas as coisas religiosas ou sagradas. Onde quer que haja religião, o distintivo dos entes sagrados é o serem retirados da circulação comum, o serem apartados. O vulgo não pode fruir deles; nem pode tocá-los. Só podem usálos aqueles portadores de um parentesco com essas espécies de coisas, isto é, sagrados como essas coisas: os sacerdotes, os grandes, os magistrados, lá onde estes últimos têm natureza religiosa. Esses interditos é que estão na base da instituição do tabu (...) (DURKHEIM, 1989 p.130).

Apenas pessoas sagradas podiam tocar o solo sagrado. Para que as pessoas comuns pudessem fruir do solo sagrado, era preciso “profaná-lo” através de um ritual de “barganha sagrada”. Em troca do direito de propriedade, o clã oferecia ao Sagrado (que simbolizava a sociedade) os seus sacrifícios23.

Eis como Siculus Flaccus descrevia a cerimônia: “Aqui está o que faziam nossos avoengos: começavam por cavar uma pequena cova e, erguendo o termo no bordo, coroavam-no de guirlandas de ervas e flores. Depois, ofereciam um sacrifício; imolada a vítima, faziam-lhe correr o sangue na cova, nela deitavam brasas, grãos, bolos, frutos, uma pouca de vinho e de mel. Quando tudo isso se havia consumido na cova, nas cinzas ainda quentes curvava-se a pedra, ou o pedaço de madeira” Esse era o ato sagrado, repetido todo ano (DURKHEIM, 1983, p.137).

Através de rituais como esse, os homens acreditavam que “quitavam” a sua dívida para com o Sagrado, podendo assim cercar a terra, numa outra cerimônia solene. Desse modo, o território da família passa a ser sagrado para ela, sendo o local onde ela enterra seus antepassados sagrados. Do caráter sagrado do solo, por exemplo, surgiu o costume de trazer a noiva carregada, como num ritual expiatório,

23 A “barganha sagrada” é um exemplo legítimo da “troca simbólica”, cujo caráter econômico vem dissimulado pelo sentido ritual.

para dentro do solo da família (idem, ibidem, p.138). Através do ritual, a noiva comunga do caráter sagrado da família e de seu solo. De outro modo, ela cometeria um sacrilégio ao pisar nesse solo (idem, ibidem, ibidem).

Durante muito tempo esses rituais de barganha sagrada eram o fundamento que legitimava a obrigatoriedade do respeito à propriedade. Os profanos não podiam avançar no domínio divino, “senão com a condição de dar, aos deuses, a parte dos deuses, de espiar seu sacrilégio mediante sacrifícios. Graças a essas precauções prévias, puderam substituir-se ao direito dos deuses, pôr-se no lugar dos deuses (idem, ibidem, p.145).

De propriedade universal, o solo apropriado pela família passa a pertencer a essa, que incorpora o sagrado através da figura do pater. A família só existe através do pater e é ele que incorpora o caráter diferenciado da propriedade imobiliária. Ao ser o solo apropriado pelo homem e profanado pelas práticas mundanas, ele perdeu seu caráter sacrossanto.

Estamos a entrever, agora, como a propriedade atual se liga às crenças místicas por nós encontradas na base da instituição. Primitivamente, a propriedade é imobiliária ou, quando menos, os caracteres da propriedade imobiliária se estendem, até, aos móveis, por causa de sua menor importância; e esses caracteres, mercê de sua natureza religiosa, implicam, necessariamente, o comunismo. Esse é o ponto de partida. Depois, (...) [do] processo da propriedade coletiva faz destacar-se a propriedade individual. Por outro lado, a concentração da família, da qual resultou a constituição do poder patrimonial, faz partir da pessoa do chefe da família todas essas virtudes religiosas imanentes aos patrimônios, e que lhes faziam excepcional a situação. Está o homem, por conseguinte, acima das coisas; e é tal homem, em particular, o ocupante dessa situação, isto é, o possuidor. Sistemas de coisas profanas se constituem independentes do domínio familial, libertam-se desse domínio, e assim se tornam objeto de novo direito de propriedade, essencialmente individual (DURKHEIM,1983, p.153).

A explicação de Durkheim é mais fenomenológica que propriamente histórica e não contempla a tentativa de explicar o processo da transmutação do caráter da propriedade – de universal para familial; e de familial para individual – pela estrutura das relações de força da sociedade. “Trata-se de fazer uma história estrutural que em cada estado da estrutura encontre simultaneamente o produto das lutas anteriores (...)” (BOURDIEU, 2004c, p.58).

Assim, quando a propriedade era universal, com certeza não existiam os campos específicos. Ou, dito de outro modo, a sociedade era, ela toda, um grande campo

social

indiferenciado.

O

aparecimento

da

primeira

divisão

social

(sagrado/profano), funda o primeiro dos campos especializados, do qual decorrerão todos os demais campos, o “campo religioso”. Afirma-se a distinção entre os participantes e os não participantes.

Necessidades de outra ordem fazem surgir o campo econômico, e assim o interesse individual aflora. No entanto, faltam dados precisos para demonstrar como foi exatamente a querela entre esses campos; como foi possível que, num dado momento, a sociedade tolerasse a propriedade individual, sem a qual a economia econômica não poderia se ter desenvolvido.

O desenvolvimento do campo político também deve ser relacionado com o desenvolvimento da propriedade, tendo em vista que o regime de apropriação, desde há muito tempo, é tutelado pelo direito do Estado (DURKHEIM, 1989, p. 124). O campo jurídico, que “formaliza” e garante oficialmente um direito já existente, latente, surge muito depois desses processos, na medida em que aparece um corpo

de profissionais especializados numa metodologia própria de administração do Direito, independente dos desígnios do Rei (BOURDIEU, 2004c, p.55).

No entanto, a história da relação entre o surgimento e a evolução da “forma” jurídica da propriedade e o desenvolvimento dos campos específicos ainda está por se fazer. Essa história seria o instrumento ideal para demonstrar, empiricamente, a luta simbólica através da qual a arbitrariedade do instituto da propriedade é dissimulada, enquanto se proclama oficialmente a sua “forma” histórica, que nada mais é do que um “estado” da relação de forças (BOURDIEU, 2004c, p.55) entre os campos específicos e, internamente, dentro do campo jurídico. Por enquanto, retenhamos a esse respeito apenas a reflexão de Rousseau (apud WEFFORT, 1989, p.201): “O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: “Isto é meu”, e encontrou pessoas bastante simples para crê-lo, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”.

Análise semelhante a esta pode ser feita a respeito do contrato. A primeira “forma” de contrato de que se tem notícia é o “contrato real”. Era um costume das tribos antigas abandonar oferendas num local de passagem para que depois viesse um outro agrupamento recolher a dádiva e deixar outros bens em seu lugar. Estes bens seriam buscados mais tarde. “A tradição presente na base do contrato real é conhecida por ser uma tradição real, e é ela que faz o contrato, dá-lhe virtude obrigatória (DURKHEIM, 1983, p.173). Esse tipo de contrato, no seu nascedouro, tem toda a característica de uma “economia dos bens simbólicos” (BOURDIEU, 1996, p.159-165), pois o caráter econômico da troca não é conhecido pelos próprios contratantes. É por isso que a troca é diferida no tempo, não é a vista, nem é na

mesma moeda. Nem sequer os contratantes conhecem a parte contrária da convenção. Há todo um significado ritual (“simbólico”) nessa transação.

Depois, num estágio ulterior da história, o caráter sagrado do contrato foi-se perdendo, sem que, contudo, dispensassem-se as “formalidades” de tipo ritual. Assim surgiu o “contrato solene”, caracterizado pelas “fórmulas estereotipadas, consagradas” (DURKHEIM, 1983, p.74). O próprio Direito Romano é todo marcado por essas formalidades (“fórmulas”), as quais, quando não observadas, tornam o ato jurídico totalmente nulo24.

As relações jurídicas legitimadas pela solenidade, aos poucos, foram banalizando-se, de modo que o apego à formalidade foi-se tornando dispensável. “O caráter cotidiano, a continuidade dessas relações, delas exclui, por força, toda solenidade; e a gente chegou naturalmente, assim, a buscar meios de diminuir o formalismo, de aligeirá-lo ou, até, de acabar com ele” (DURKHEIM,1983, p.175).

Já na modernidade, por ocasião do Estado Liberal, viemos a conhecer o “contrato consensual”, cuja base de legitimidade é a “teoria da autonomia da vontade”. A partir do momento em que a sociedade quis reconhecer a autonomia da vontade livre do indivíduo, só este poderia alienar a sua liberdade, obrigando-se por uma declaração livre de sua vontade.

24

É bastante conhecido o paradigmático caso da videira. Ao que me lembro, num processo judicial romano discutia-se a indenização pelo estrago de uma árvore, mas essa árvore não era uma videira (imaginemos que fosse uma macieira). No entanto, a fórmula consagrada pelo precedente judicial enunciava uma tal “videira”. Assim, ao mencionar a “macieira”, o requerente simplesmente teve o direito à indenização negado, por nenhum motivo a não ser o desrespeito à forma jurídica.

O contrato consensual é, em última análise, como que o remate, o ponto no qual vieram convergir, desenvolvendo-se, o contrato real, de um lado, e o contrato verbal solene, de outro. No contrato real, há tradição de uma coisa, e é essa tradição que engendra a obrigação; por haver recebido tal objeto cedido por vós, torno-me vosso devedor. No contrato solene, não há prestação efetuada; tudo se passa em palavras, acompanhadas geralmente de alguns gestos rituais. Mas, essas palavras são pronunciadas de tal sorte que, mal saídas da boca do promitente, elas se lhe tornam como exteriores; são ipso facto subtraídas a seu arbítrio; o promitente já não tem ação sobre elas; elas são o que são, e ele já não as pode mudar (...); bastava estabelecesse a lei como irrevogável toda declaração de vontade assim apresentada (DURKHEIM, 1983, p.179).

Até hoje, no campo jurídico, ainda predomina uma opinião dominante no sentido de que o “consenso” seja o elemento vinculante da obrigação jurídica. No entanto, essa posição, longe de ser pacífica, encontra séria resistência de teóricos dentro do próprio campo jurídico. Esses teóricos defendem a tese de que a “validade” (“legitimidade” jurídica) dos contratos depende da “justiça objetiva” do próprio contrato. É que a história demonstrou, em muitos casos, que contratos considerados formalmente perfeitos, sem “vícios de vontade”, poderiam ser perfeitamente injustos. A história do Direito do Trabalho e dos direitos sociais em geral se confunde com essa nova sensibilidade. Foi preciso relativizar o discurso do “pacta sunt servanda” e o alcance da validade do “contrato consensual”.

Ora, que semelhantes contratos se nos apresentem como imorais, eis o que não se poderia contestar. Cada vez mais, a fim de os contratos nos parecerem moralmente obrigatórios, exigimos não somente hajam sido consentidos, mas respeitem os direitos dos contratantes. E o primeiro desses direitos é o de não ceder nenhuma coisa, nenhum objeto, nenhum serviço, senão por seu preço. Reprovamos todo contrato leonino, isto é, todo contrato que favoreça indevidamente uma parte em detrimento da outra; por conseguinte, julgamos que a sociedade não está obrigada a fazêlo respeitar tão integralmente quanto se fora eqüitativo, por isso mesmo de 25 não ser digno de respeito, no mesmo grau[ ] (DURKHEIM,1983, p.193).

25

No Direito brasileiro, os exemplos mais evidentes dessa nova maneira de se conceber o critério de validade ou de legitimação da obrigação são representados pela “teoria da boa-fé objetiva” e pelo estabelecimento, na Lei do Consumidor, da nulidade das “clausulas abusivas”.

Quando surgiu o contrato real, havia apenas o “campo religioso”. E a dívida assumida em razão de ter recebido uma dádiva de outro clã tem um caráter mais moral que jurídico. É difícil não supor que o “campo político” tenha-se apropriado, sem resistência, do monopólio de “dar a forma” pela qual o contrato válido dever-seia realizar. Pode-se imaginar um conflito de competências entre os campos religioso e político, porém não existe historiografia nesse sentido, não relativamente a essa fase da história.

No entanto, o surgimento do “contrato consensual” é perfeitamente compreensível à luz da teoria dos campos; pois, coincide com o surgimento do “campo jurídico” e de todos os processos instituidores do Estado e do Direito modernos. Há uma profunda relação entre o processo de autonomização dos procedimentos dos juristas em relação aos do Rei (BOURDIEU, 2004c, p.55) e as demandas políticas da burguesia. Sabe-se da importância dessa classe na constituição do Estado Liberal.

O campo jurídico surgiu e se estruturou em torno do trabalho de produção de um “capital jurídico” sob a forma de um discurso dogmático, que é o discurso dos direitos da nova classe dominante. Na medida em que o campo se autonomiza, dentro dele surge um “pólo de contestação”, dominado em relação ao “pólo de conformação”. Há uma verdadeira homologia entre a posição dos profissionais internos no campo e a posição de sua clientela específica no espaço social global (BOURDIEU, 2004d, p.218). Na posição dominante estão os “civilistas”, em oposição aos profissionais dominados, dedicados ao “direito social”, esses “hereges” adeptos à teoria da “justiça contratual”.

É para conservar a força do campo específico que os agentes mais bem colocados dentro do campo assumem uma postura conservadora (ROCHA, 2005, p.49). Os habitus que eles possuem, e que eles se esforçam para inculcar nos novatos da profissão, são habitus que fazem perceber como “desqualificado” a prática de carreiras jurídicas ligadas ao direito social, direito dominado26. Raramente a história do Direito é contada nesses termos. A pertença ao campo faz os juristas “esquecerem” (BOURDIEU, 2004d, p.105) que o conteúdo de “sentido” do Direito é gerado na própria luta, e depende do estado da relação de forças internas no campo e entre os diferentes campos em cada momento da história. Segundo Bourdieu,

(...) o verdadeiro legislador não é o redator da lei mas sim o conjunto de agentes que, determinados pelos interesses e os constrangimentos específicos associados às suas posições em campos diferentes (campo jurídico, e também campo religioso, campo político, etc.), elaboram aspirações ou reivindicações privadas e oficiosas, as fazem aceder ao estado de “problemas sociais”, organizam as expressões (artigos de imprensa, obras, plataformas de associações ou partidos, etc.) e as pressões (manifestações, petições, diligências etc.) destinadas a “fazê-las avançar”. É todo este trabalho de construção e de formulação das representações que o trabalho jurídico consagra, juntando-lhe o efeito de generalização e de universalização contido na técnica jurídica e nos meios de coerção cuja mobilização esta permite (BOURDIEU, 2004d, p.248).

26

Seria interessante um trabalho de campo para recolher depoimentos de profissionais de áreas diversas do Direito, para ver como cada um refere a si mesmo e aos outros. Pelas observações já realizadas até o momento, parece que um tal trabalho comprovaria a tese de que o “Direito do Trabalho”, dentre os outros direitos sociais, está numa posição dominada dentro do campo jurídico em relação ao “Direito Civil”, ao “Direito Comercial”, etc., o que eqüivale a uma homologia perfeita entre as posições do “operariado” e da “burguesia” no espaço social.

2. A LÓGICA DA LEGITIMAÇÃO SOCIAL: RELAÇÕES CONCEITUAIS ENTRE BOURDIEU E FREUD

Bourdieu (1996, p.139) explica a utilidade da aproximação dos conceitos sociológicos e psicanalíticos, para apreender concretamente o processo pelo qual as necessidades do campo são internalizadas sob a forma de habitus, fazendo com que o agente perceba o arbítrio com a maior naturalidade do mundo (“illusio”), tornando-se o seu cúmplice inconsciente. Para tanto, foi preciso demonstrar a possibilidade de os agentes se interessarem nos universos aparentemente mais desinteressados (como da ciência ou da arte).

Constituiu-se assim toda uma teoria da “economia dos bens simbólicos” (idem, ibidem, p.159-165). Essa economia só pode funcionar se o interesse (econômico) for desconhecido como tal; se o desejo de “reconhecimento” dos “investidores” for desconhecido, sendo vivido como “virtude”. Em uma palavra, a economia dos bens simbólicos é uma economia que só pode funcionar na medida em que seja ignorada como economia econômica. A sua lógica, que não cabe detalhar aqui, funciona ideal-tipicamente tanto na Igreja (idem, ibidem, p.195-197) como na família (idem, ibidem, p.178-179), e em todos os demais espaços sociais marcados pela denegação puramente simbólica do interesse.

Nos próximos capítulos, demonstraremos como é possível aproximar o conceito de interesse ou de illusio aos conceitos de libido, de investimento e de catexia (ponto 2.1). Assim também demonstraremos que a eficácia simbólica do investimento é, tanto na psique como na sociedade, a de ocultar da consciência do próprio agente interessado justamente aquilo que ele precisaria saber para se emancipar, psíquica ou socialmente (ponto 2.2).

2.1. A illusio como “investimento catético”

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que Bourdieu deu um tratamento totalmente novo à noção de “interesse”, diferenciado do uso corrente dos economistas. O interesse de que fala Bourdieu é o “interesse ligado ao fato de se pertencer a um campo” e “está associado a uma forma de conhecimento prático, interessada, que aquele que não faz parte do campo não possui (BOURDIEU, 2004c, p.110). Ou seja, o interesse é o “investimento catético” nos jogos de um campo qualquer, mesmo naqueles que aparentam – segundo o ponto de vista dos espectadores

externos



serem

os

espaços

mais

desinteressados

ou

desinteressantes do mundo. Bourdieu escreve:

Ao contrário do interesse natural, aistórico [sic.] e genérico dos economistas, o interesse é para mim o investimento em um jogo, qualquer que seja ele, que é a condição de entrada nesse jogo. Há, portanto, tantos campos quantas são as formas de interesse. O que explica que os investimentos que alguns fazem em certos jogos, no campo artístico, por exemplo, apareçam, como desinteressados quando percebidos por alguém cujos investimentos, cujos interesses estão aplicados num outro jogo, no campo econômico, por exemplo (esses interesses econômicos podem ser vistos como desinteressantes por aqueles que colocaram seus investimentos no campo artístico)[27]. Em cada caso, é preciso determinar 27

No mesmo sentido, Bourdieu (1996, p.139) explica que, se o agente não tem na cabeça as estruturas que estão presentes no jogo, a querela interna do jogo lhe parecerá fútil ou ridícula. Se, ao contrário, o agente possuir um espírito estruturado de acordo com as estruturas do mundo no qual ele joga, tudo lhe parecerá como evidente e a própria questão de saber se o jogo vale a pena nem sequer será colocada. O sentido e a importância do jogo

empiricamente as condições sociais de produção desse interesse, seu conteúdo específico, etc. (BOURDIEU, 2004c, p.65).

Tendo defendido o seu uso da noção de interesse, Bourdieu sustenta a possibilidade de “substituí-la por noções mais rigorosas, como a de illusio, investimento, ou até libido” (BOURDIEU, 1996, p.139). A essa altura, será possível aproximarmos os conceitos de Freud (“libido” e “cathexis”) e os conceitos de Bourdieu (interesse e “illusio”). O interesse nos jogos do campo, ou a illusio, de que Bourdieu fala, é essa “atribuição de importância” ao jogo – isto é, o próprio conceito freudiano de catexia (BRENNER, 1975, p.34) –, que só pode ocorrer na prática quando dadas as suas condições sociais, quer dizer, quando exista um campo de jogo, que fomente o interesse nesse jogo, que é a condição de existência do jogo.

Em seu famoso Homo ludens, Huizinga observa que, a partir de uma etimologia falsa, illusio, palavra latina que vem da raiz ludus (jogo), poderia significar estar no jogo, estar envolvido no jogo, levar o jogo a sério. A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar. De fato (...) a palavra interesse teria precisamente o significado que atribuí à noção de illusio, isto é, dar importância a um jogo social, perceber que o que se passa aí é importante para os envolvidos, para os que estão nele (...); é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos (...) (BOURDIEU, 1996, p.139).

Quando Freud estudava a mecânica dos processos psíquicos, ele percebeu que a libido poderia se ligar (“ser investida”) à imagem mental de objetos externos (BRENNER, 1975, p.33-34). É exatamente o que acontece quando os agentes investem cateticamente nos jogos de um campo qualquer. Para Bourdieu (1996, p.141), “libido” seria uma palavra inteiramente pertinente para expressar o que ele chamou de illusio ou de investimento.

“apenas existem para as pessoas que, presas ao jogo, e tendo as disposições para reconhecer os alvos que aí estão em jogo, estão prontas para morrer pelos alvos que, inversamente, parecem desprovidos de interesse do ponto de vista daquele que não está preso a este jogo, e que o deixa indiferente” (idem, ibidem, p.140).

Conforme Cabral e Nick (2003, p.181), ao definir a libido, Freud viria a aproximar-se bastante do “conceito energético” defendido por Jung, que considerava a libido como sendo a “energia psíquica”, isto é, a intensidade do processo psíquico ou o seu valor psicológico, definido por certos rendimentos psíquicos. Essa energia psíquica, chamada aqui de libido, é armazenada no id no período anterior ao desenvolvimento do ego (FREUD, 1975b, p.60).

No entanto, Freud (1975a, p.176) alerta ao fato de que é muito difícil saber algo sobre o comportamento da libido no id e no superego, pois tudo o que sabemos sobre ela relaciona-se com o ego, onde ela se concentra já nos primeiros estágios da vida. A libido, enquanto energia psíquica, pode vincular-se a objetos específicos, através de um tipo de canal, assim como, analogamente, as amebas lançam seus “pseudópodos” (FREUD, 1975b, p.79) para englobar as partículas que são o seu alimento.

Figura: aparelho mental (FREUD, 1975b, p.36).

O “vínculo” estabelecido entre a libido (“energia psíquica”) e a imagem de objetos externos contida no ego é chamado por Freud de “catexia”. Quanto mais

forte for a catexia, mais “importante” será o objeto, do ponto de vista psíquico, para o sujeito. Conforme Brenner,

Freud continuou a analogia entre as hipóteses psicológicas e as da física, ao falar do quantum de energia psíquica com o qual um objeto determinado ou determinada pessoa estão investidos. Para esse conceito Freud usou a palavra alemã Besetzung, que foi traduzida para o inglês pela palavra cathexis (Catexia em português – N. do E.). A definição rigorosa de catexia é a quantidade de energia psíquica que se dirige ou se liga à representação mental de uma pessoa ou coisa. Isso quer dizer que o impulso e sua energia são considerados como fenômenos puramente intrapsíquicos. A energia não pode fluir através do espaço e catexizar ou se ligar ao objeto externo diretamente. Aquilo que é catexizado, naturalmente, são as diversas lembranças, pensamentos e fantasias do objeto, que correspondem ao que chamamos suas representações mentais ou psíquicas. Quanto maior a catexia, mais “importante” é o objeto, psicologicamente falando, e vice-versa (BRENNER, 1975, p.33-34).

Segundo Cabral e Nick (2003, p.53), “catexia” significa literalmente “canal”; e remete à idéia de que “determinada pulsão é canalizada para um objeto específico” (idem, ibidem, ibidem). O maior emprego do termo verifica-se na psicanálise, para designar o depósito da libido no próprio ego (“libido narcísea” ou “catexia do ego”) – que corresponde ao processo mais evidente nas crianças, mas que perdura por toda a vida –, bem como o vínculo da libido com a imagem mental de objetos externos (“catexia objetal”) (idem, ibidem, ibidem) – que corresponde ao processo mental típico do adulto desenvolvido.

É nesse ponto que Bourdieu (1996, p.139) pensa ser possível aproximar os conceitos da sociologia com os conceitos da psicanálise. Para ele, além da “libido biológica”, pulsão indiferenciada de que fala Freud, existe também a “libido social”, pulsão específica (idem, ibidem, p.141), que se vincula a jogos sociais específicos. Ao que parece, a libido social é a mesma libido objetal, quando o objeto a que ela se vincula não são meramente “pessoas” (como no caso do “amor” ou da “paixão”, em seu sentido vulgar), nem sequer “objetos” (como o ídolo ou o totem), mas sim os

jogos sociais que se engendram num campo específico. Em última análise, é o investimento catético nos jogos do campo que vai fazer com que o sujeito “incorpore” os habitus que o campo inculca, permitindo que ele reconheça os seus “capitais”, “discursos” e sua ideologia específica, enfim, tudo o que ele precisa para desenvolver o “senso prático” da dinâmica interna do jogo e participar dele satisfatoriamente.

Assim, para uma maior sistematização, poderíamos dizer que a libido assume três formas distintas principais, conforme os diferentes tipos de objetos os quais ela pode catexizar, a saber: (a) a libido narcísea; (b) a libido objetal; e (c) a libido social, conforme o objeto da catexia seja, respectivamente, (a) o próprio ego; (b) imagens mentais de objetos externos ou de pessoas; e (c) imagens mentais dos “jogos” de um “campo” social.

Certamente, Freud não pôde conceber esse terceiro tipo de objeto de investimento libidinal (o “campo”) devido as suas declaradas posições teóricas. Freud dedicou-se a desvendar o funcionamento do “aparelho psíquico”, fundando a psicologia psicanalítica e, certamente, ele estava ocupado demais na empresa de explicar a psicologia profunda dos indivíduos para compreender inteiramente o ponto de vista externo (o do “fato social” ou do “campo social”). Nesse sentido, a intenção teórica de Freud pode ser considerada diametralmente oposta a de Durkhiem28. Um e outro não puderam dar a importância devida às relações existentes entre os processos mentais dos indivíduos (“aparelho mental”) e o peso do social (“fato social” ou “campo social”) em relação a esses mesmos processos, implicado no fato

28

Num sentido semelhante, se pode dizer o mesmo de Weber em relação ao Durkheim (Vide capítulo 1.1.1).

de que o objeto da ciência de ambos, em todo o caso, seja um indivíduo socializado (o que remete a conceitos como “espaço simbólico” e “habitus”).

Freud descreve a relação entre a “libido narcísica” e a “libido objetal”:

Libido narcísica ou libido do ego parece ser o grande reservatório de onde são enviadas as catexias do objeto e para onde são novamente recolhidas; a catexia libidinal narcísica do ego é o estado de coisas original, realizado na primeira infância, sendo meramente abrangido pelas manifestações posteriores da libido, persistindo todavia, atrás delas, em seus elementos essenciais (...). Assim, formamos a idéia de que há uma catexia libidinal do ego, parte da qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com as catexias objetais, assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodos que produz (FREUD, 1975b, p.78).

Por fim, Bourdieu sustenta a possibilidade de se conceber o interesse na participação de um campo qualquer (como o jurídico) como uma manifestação de uma libido diferenciada, a libido social:

Uma das tarefas da sociologia é a de determinar como o mundo social constitui a libido biológica, pulsão indiferenciada, em libido social, específica. De fato, existem tantos tipos de libido quanto de campos: o trabalho de socialização da libido é, precisamente, o que transforma as pulsões em interesses específicos, interesses socialmente constituídos que apenas existem na relação com um espaço social [campo] no interior do qual certas coisas são importantes e outras são indiferentes, para os agentes socializados, constituídos de maneira a criar diferenças correspondentes às diferenças objetivas nesse espaço (BOURDIEU, 1996, p.139).

Bourdieu quer dizer com tudo isso que a pertença a um campo, caracterizada pelo investimento de libido nesse campo, faz com que os agentes incorporem os habitus (“sistemas de disposições”) que funcionam como “categorias de apreciação” do mundo social e que são a matriz subjetiva das estruturas sociais objetivas. Para se dar um exemplo simples, é possível dizer que, se o sujeito investe libido nos jogos gerados por uma sociedade, toda ela dividia em estamentos, e estruturada

pelo critério da profissão29, tudo fará com que ele perceba como “natural” ou “evidente” – portanto, como legítimo – a “superioridade ontológica” das práticas tidas por “distintas” (como o consumo de champanhe ou a prática de equitação), ainda que tais práticas estejam muito distantes de suas condições culturais e econômicas, enquanto membro das classes dominadas. Ao mesmo tempo que os dominados não possuem os habitus associados a essas práticas, eles reconhecem a sua “superioridade ontológica”, porque são dominados também e sobretudo em seus cérebros (BOURDIEU, 2004c, p.36).

2.2. A função simbólica na sociologia e na psicanálise

A legitimação de uma realidade arbitrária é a eficácia propriamente simbólica que só pode ser obtida na medida em que uma visão de mundo, que é a visão de mundo de uma “classe” dominante, seja generalizada, isto é, tomada como sendo a visão de mundo de todas as classes. É a essa idéia simples que Marx pretendia remeter quando sugeria a noção de “ideologia” (ARON, 1999, p.176). Bourdieu, porém, dá um tratamento diferenciado à questão da legitimação das desigualdades sociais. Para Bourdieu, uma chamada à ordem (“isso não é para nós” ou “isso é coisa de burguês”) só é recebida e aceita como legítima porque ela é “ambígua” o suficiente para ocultar o fato de ser uma “chamada à ordem”, consistindo nesse efeito, basicamente, o que chamamos de “dimensão simbólica da dominação”. A fórmula de Bourdieu poderia ser enunciada nos seguintes termos: a legitimidade de uma ordem qualquer deriva do desconhecimento de sua arbitrariedade (BOURDIEU, 2004b, p.170). 29 É o caso da França dos anos 70, que Bourdieu tomou por objeto. No Brasil, fatores como o “clientelismo” e o “patrimonialismo” fazem com que o critério de recrutamento de nossas elites seja diferenciado.

Para explicar esse fenômeno, Bourdieu utiliza o conceito de “poder simbólico”30, um poder desconhecido enquanto tal e, portanto, reconhecido como legítimo (BOURDIEU, 2004c, p.194). Em relação a esse conceito e a tudo que diz respeito às “eficácias simbólicas” descritas por Bourdieu, é possível fazer uma segunda aproximação com conceitos freudianos. Pergunta-se: “em que sentido o “simbolismo” da sociologia de Bourdieu coincide com o “simbolismo” da psicanálise de Freud”?

Em primeiro lugar, Bourdieu tem presente a idéia, tomada de Cassirer31, de que a cultura só existe efetivamente sob a forma de símbolos, isto é, de um conjunto de significantes/significados (MICELI in BOURDIEU, 2004a, p.XIII). Em segundo lugar, a “função” propriamente simbólica, tanto em Freud quanto em Bourdieu, não é meramente

a

função

de

“representação”

dos

objetos

simbolizados,

mas

primordialmente a função de “ocultação” desses mesmos objetos, porque, por algum motivo, é necessário que o indivíduo os desconheça.

Bem no início de seus estudos sobre os sonhos e os sistemas neuróticos, Freud (1900) descobriu que alguns elementos dos sonhos ou dos sintomas tinham um significado relativamente constante de um paciente para o outro, significado diferente do habitualmente aceito, e, mais estranho ainda, desconhecido para o próprio paciente. Por exemplo, duas irmãs quase sempre representavam nos sonhos alguns pensamentos por seios, uma viagem ou ausência significava morte, dinheiro simbolizava fezes, e assim por diante. Era como se houvesse uma linguagem secreta que as pessoas usassem inconscientemente, sem serem capazes de compreendê-la conscientemente; ao vocabulário dessa linguagem, por assim dizer, Freud denominou de símbolos. Em outras palavras, no processo primário dinheiro pode ser empregado como um símbolo, isto é, como equivalente total de 30

Sobre o conceito de “poder simbólico”, vide ponto 1.1.2.3. Cassirer é freqüentemente citado por Bourdieu. Para Cassirer, o que distingue o homem dos outros animais é a sua capacidade de orientar-se em termos simbólicos. Em algum lugar, esse autor escreve que “o homem não deveria ser definido como animal racional, mas sim como animal simbólico”. “O traço distintivo da vida humana (...) é que o homem vive em outra dimensão da realidade, utilizando, na sua adaptação do mundo interior ao mundo exterior, um sistema ´efeitor´ de uma qualidade que não se acha entre os outros animais. É o acesso simbólico ao universo” (CASSIRER apud AUGRAS, 1980, p.11). 31

fezes, viagem pode ser utilizada como morte, etc. Essa é, na verdade, uma situação notável e não é de surpreender que tal descoberta tenha suscitado grande interesse, bem como grande oposição. É possível, certamente, que tanto o interesse quanto à oposição se devessem em grande parte ao fato de muitos objetos e idéias representados simbolicamente serem proibidos, isto é, de natureza sexual ou “suja”[32] (BRENNER, 1975, p.67).

Decorre que os símbolos (tanto em Freud quanto em Bourdieu) têm três características principais: (a) significado estruturado; (b) objeto arbitrário; e (c) ignorância quanto à realidade do objeto.

(a) Os símbolos são estruturados no sentido de que seu significado é constante “de pessoa para pessoa”.

“O símbolo é independente dos

fatores condicionantes individuais. O indivíduo não pode investir no símbolo um significado diferente do que é atribuído por qualquer outra pessoa” (NAGERA, s.a., p.104).

(b) A essência do objeto simbolizado é arbitrária, no sentido de que ela é “diferente da aceita”, “torpe”, “suja”, etc. Essa é uma das razões pelas quais o símbolo precisa dissimular a realidade do seu objeto, para não ferir o ego ou para não tocar nos fundamentos do campo (“núcleo duro”). Na psique, por exemplo, os “mecanismos de defesa”, como a “repressão”, ocultam e fazem esquecer “conteúdos julgados inconvenientes” (AUGURAS, 1980, p.53). A coisa esquecida é representada por símbolos, ocultando desejos recalcados no inconsciente, por não serem aceitos no consciente (idem, ibidem, ibidem). Na sociedade, os símbolos ocultam a verdade arbitrária de

32 Um exemplo dessas resistências, cujo fundamento era mais moral que científico, ocorreu para Freud diante do chamado “caso Dora”. “É por isso que Freud, aliás, se demorou a publicá-lo, pois era difícil para os psiquiatras da época admitir que uma jovem de boa família pudesse apresentar fantasias de felação, de defloração, de parto, etc.” (AUGRAS, 1980, p.51-52).

uma ordem qualquer, fazendo-a reconhecer como legítima (BOURDIEU, 2004b, p.170).

Assim, no caso específico das “formas jurídicas”, temos uma circunstância em que a “forma” realiza uma função de eufemismo, fazendo a força ignorar-se enquanto força; e fazendo-a reconhecer como legítima (BOURDIEU, 2004c, p.106)33. Esse é mais um dos casos em que um objeto desempenha, além de sua função técnica, uma função simbólica (“política”) de legitimar a distância entre as classes (BOURDIEU, 2004b, p.181).

(c) Por fim, o significado dos símbolos é inconsciente, desconhecido pelo próprio sujeito interessado. Os símbolos são usados para “representar na mente consciente conteúdos mentais que, de outro modo, não seria consentido o ingresso na consciência (...). A simbolização é um meio final de expressão do material reprimido” (NAGERA, s.a., p.102).

Na psique, a verdade do objeto simbolizado precisa ser reprimida, porque traumática, isto é, insuportável para o ego. Na sociedade, ela precisa ser dissimulada

33

(“eufemizada”)

porque,

de

outro

modo,

revelaria

os

Já houve ocasiões em que fui contestado quanto à arbitrariedade de alguém realizar uma conduta de acordo com as formas jurídicas. A “ordem jurídica” é sempre arbitrária, ainda que a “dominação simbólica” oculte essa arbitrariedade. Não fosse assim, Weber (1999, p.21) não a teria definido pela existência de um quadro coativo responsável por forçar a sua observação e castigar a sua violação. O próprio Rousseau há muito já havia fornecido os fundamentos filosóficos para a compreensão exata da idéia de que um pacto desigual seja necessariamente nulo, porque arbitrário. “Enfim, é uma convenção vã e contraditória estipular, de um lado, uma autoridade absoluta e, de outro, uma obediência sem limites” (ROUSSEAU apud WEFFORT, 1989, p.216). Em certa medida, toda diferença legítima, reconhecida, é uma violência dissimulada. “Mas não é tudo: a “realidade”, neste caso, é social de parte a parte e as classificações mais “naturais” apoiam-se em características que nada têm de natural e que são, em grande parte, produto de uma imposição arbitrária, quer dizer, de um estado anterior da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima” (BOURDIEU, 2004d, p.115).

fundamentos (BOURDIEU apud ROCHA, 2005, p.50) arbitrários de jogos sociais que dão todo o sentido (“illusio”) da vida dos agentes que neles se envolvem, e que neles buscam satisfação e reconhecimento.

No caso do campo jurídico, a pertença ao campo está associada uma pretensão ou ilusão de “plenitude conceitual” (COPETTI, 2000, p.34) das formas jurídicas, cuja legitimidade repousa na crença de todo o corpo de juristas – crença que a sua formação específica ajuda a inculcar – a respeito da possibilidade da existência de um espaço social e mental, alheio às pressões do campo político, onde se efetive a imparcialidade e a neutralidade (ROCHA, 2005, p.48).

No entanto, a neutralidade proclamada e a aversão altamente professada a respeito da política não excluem, pelo contrário, a adesão dos juristas à ordem estabelecida (BOURDIEU, 2004d, p.242). Os mais bem estabelecidos dentro do campo estão numa relação perfeita de “homologia” com os dominantes no espaço social global (idem, 2004c, p.201). Há uma espécie de “delegação”, que faz com que as posições na hierarquia interna do campo estejam relacionadas à posição da clientela específica no espaço social (idem, 2004d, p.218). Esse fenômeno tem tudo a ver com os “efeitos da ideologia” produzidos pelas superestruturas descritas por Marx (ARON, 1999, p.176).

A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões de mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo [que] o etos dos agentes jurídicos que são invocados tanto para justificar quanto para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão de mundo dos dominantes (BOURDIEU, 2004d, p.242).

Em todo o caso, o trabalho de legitimação da ordem de distribuição social não é percebido pelos próprios responsáveis diretos por esse trabalho; ele está simbolizado, sublimado por uma “retórica do interesse universal” (BOURDIEU, 2004d, p.243), em razão da qual esse trabalho é simbolicamente remunerado com as vantagens do reconhecimento (ROCHA e SILVEIRA, 2005, p.167), embora tudo isso seja denegado simbolicamente34. “Compreende-se que, numa sociedade diferenciada, o efeito de universalização é um dos mecanismos, e sem dúvida dos mais poderosos, por meio dos quais se exerce a dominação simbólica ou, se se prefere, a imposição da legitimidade de uma ordem social”. (BOURDIEU, 2004d, p.246).

A função de manutenção da ordem simbólica que é assegurada pela contribuição do campo jurídico é (...) produto de inúmeras ações que não têm como fim a realização desta função e que podem mesmo inspirar-se em intenções opostas, como os trabalhos subversivos das vanguardas, os quais contribuem, definitivamente, para determinar a adaptação do direito e do campo jurídico ao novo estado das relações sociais e para garantir assim a legitimação da forma estabelecida dessas relações (BOURDIEU, 2004d, p.254).

O processo pelo qual o Estado constrói os espíritos faz com que as “classificações” que o Estado impõe sejam percebidas como “aistóricas” (sic.), como se fossem os produtos de um “transcendental histórico comum” (BOURDIEU, 1996, p.116). Os ritos históricos de instituição das diferenças definitivas devem a sua eficácia ao efeito simbólico do discurso jurídico. É por isso que a “historicização” (idem, 2004c, p.58) – a construção de uma história social dos conceitos – é sempre o melhor método para desfazer as ilusões as quais os sujeitos necessariamente se apegam por pertencerem a campos de produção cultural.

34

Em psicanálise, a negação é o “mecanismo de defesa em que aos fatos ou implicações lógicas da realidade externa é negado reconhecimento, em favor de fantasias internas de concretização de meros desejos” (CABRAL e NICK, 2003, p.205).

CONCLUSÃO

Esse estudo demonstrou, ao menos do ponto de vista teórico, que a produção do Direito funciona segundo a lógica do que Bourdieu chama de “campo de produção cultural”. Em resumo, o discurso jurídico dominante é um “capital” de autoridade reconhecido e perseguido pelos juristas, sendo que as posições mais destacadas dentro do “campo jurídico” são reservadas para os juristas mais ricos nesse tipo de capital.

Os agentes consagrados, ricos no capital específico do campo, tem o poder de nomear aqueles que, dentre os novatos e os pretendentes, poderão ascender a posições distintas como as suas. Por isso, a estratégia dos novatos, geralmente, é a do “silêncio cúmplice”, porque não lhes convém negar o discurso daqueles que lhe são superiores. Engendra-se assim uma lógica de bajulação e de reprodução social, que é mais um “simulacro” de serviço público que uma verdadeira intenção de tratar o Direito como se ele servisse a coletividade. Sob a aparência de discutir assuntos de interesses de todos, os juristas muitas vezes apenas negociam o preço de seus próprios capitais, num jogo que interessa somente a eles mesmos.

Nada leva a supor, porém, que os juristas sejam cínicos ou perversos. Pelo contrário, os habitus da profissão são inculcados nos profissionais mais bem intencionados,

através

de

mecanismos

psicológicos

e

sociais

que

eles

desconhecem. É o que chamamos de “investimento catético nos jogos do campo”.

A questão crítica surge no momento em que se percebe que a forma assumida pelo discurso jurídico é a exata forma de um “discurso retórico”, que oculta tanto dos seus praticantes quanto dos destinatários dos produtos jurídicos o sentido arbitrário das instituições jurídico-sociais.

Desde que esse mecanismo funcione, conceitos arbitrários, que estruturam e hierarquizam a sociedade em castas desiguais, de plebeus e de nobres, são simplesmente tomados como “naturais” ou “evidentes”, quando na verdade são o produto da luta histórica. Assim, por exemplo, a família considerada legítima, heterossexual e monogâmica, a língua correta, o contrato consensual, a propriedade individual privada, etc., enfim, todas essas construções que os juristas acreditam serem tão naturais, apenas o são pela eficácia simbólica empreendida pelo campo.

A razão de ser desse trabalho é a intenção de demonstrar teoricamente o funcionamento desses mecanismos que violentam as pessoas sem que elas percebam, fazendo com que elas aceitem passivamente um status desprestigiado, tudo isso com a chancela do Estado. Outro avanço importante, que talvez sirva para trabalhos futuros, é a demonstração da fluidez e da utilidade da aproximação da psicanálise e da sociologia para desfazer as ilusões criadas por um campo social, seja ele o jurídico ou qualquer outro.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS GRADUAÇÃO EM DIREITO

Gabriel Eidelwein Silveira

A ORDEM JURÍDICA COMO ORDEM SIMBÓLICA: A lógica da legitimação social

São Leopoldo

2005

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