“A orquestra do Titanic”: a falência da Varig no relato dos comissários de bordo

June 13, 2017 | Autor: Carolina Castellitti | Categoria: Anthropology, Bifurcation, Antropología del trabajo
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O trabalho de campo que sustenta esta pesquisa, iniciado "rigorosamente" a começos de 2015, consiste principalmente em entrevistas de tipo biográfico realizadas com pessoas que foram aeromoças e comissários de bordo da Varig até a falência desta companhia, em agosto de 2006. Embora meu foco esteja colocado nas trajetórias de mulheres, também tive oportunidade de entrevistar alguns homens cujas narrativas incluo neste ensaio. Digo rigorosamente porque, previamente a esta aproximação heurística, desde minha chegada no Rio para fazer o mestrado em 2012, eu mantenho um vínculo de afeto e familiaridade com algumas destas pessoas. Além disso, tenho realizado uma pesquisa exploratória "de escritório" na hemeroteca da Biblioteca Nacional (consultando jornais e revistas antigos) e em diversas fontes disponíveis na Internet (facebook, blogs, sites dos SNA –Sindicato Nacional dos Aeronautas– e FENTAC/CUT –Federação Nacional dos Trabalhadores da Aviação Civil da Central Única dos Trabalhadores). Também tive a oportunidade de participar de atividades mais coletivas como um debate proposto pela CVT –Comissão de Viação e Transportes– sobre a PL 8255/14, que propõe uma Nova Lei do Aeronauta; uma comemoração coletiva de aniversários de ex-tripulantes da Varig no restaurante de uma ex-comissária no centro da cidade; uma Missa organizada pelos aposentados e pensionistas do AERUS em agradecimento por uma decisão judicial que garantiu alguns dos pagos atrasados; entre outras.
Associação de Comissários da Varig.
Evidencia disso são as imagens da balança na sala da Chefa de Comissários, mencionada em relatos biográficos como o da ex-comissária Claudia Vasconcelos (2011), e também recuperada em filmes e seriados como o Pan Am, produzido pela Sony Pictures Television e apresentado pelo Canal ABC entre 2011 e 2012. A Varig, especificamente, manteve um programa chamado "Vigilantes do Peso", mencionado por algumas das minhas interlocutoras, que visava à reeducação alimentar, a prática de atividades físicas e as mudanças comportamentais para a criação de "hábitos mais saudáveis".
Para uma das minhas interlocutoras, uma manifestação clara disso foi ter que fazer um voo para Paris sem ter vinho para servir a bordo. Mas também me foi mencionado o incerto estado de manutenção das aeronaves, sendo que os técnicos responsáveis também ficaram alguns meses sem receber salários.
Fundo de pensão dos trabalhadores da Varig, Cruzeiro e Transbrasil. Afetado pela falência da Varig foi intervido pelo Governo Federal e se encontra até hoje em liquidação extrajudicial. O histórico e presente jurídico desta entidade é muito complexo, mas para entender a situação de estas pessoas tal vez baste considerar que somente aqueles que tinham conseguido se aposentar até a falência estão conseguindo receber algum pago, mas sua situação depende de medidas judiciais que são objeto de reivindicações e lutas até hoje. Aqueles que não conseguiram se aposentar antes da falência, hoje praticamente dão por perdidos os quase 20 anos de contribuição, que dependendo do plano podem representar mais de 200 mil reais "da época", como eles mesmos me relataram.
Tradução própria do original em francês.
Levando em conta a quantidade de relatos biográficos ou de ficção, em forma de livros, blogs e filmes, realizados por comissários de bordo, tenho a sensação que essa vontade de falar não se restringe ao grupo selecionado para esta investigação.
TÍTULO: "A orquestra do Titanic": a falência da Varig no relato dos comissários de bordo
AUTOR: Carolina Castellitti (doutoranda PPGAS/MN)
ORIENTADOR: Luiz Fernando Dias Duarte

RESUMO:
Nesta comunicação pretendo abordar as narrativas dos ex-comissários da Varig relativas à falência da companhia, em agosto de 2006. A partir dos relatos de vida de mulheres e homens que ainda estavam "na ativa" quando a companhia fechou suas portas, após mais de 20 anos de dedicação "incondicional", procurarei recuperar o significado desse evento disruptivo em suas vidas. São pessoas que tinham entre 40 e 50 anos na época da falência, que se constituíram profissionalmente num mundo de relações empregatícias descrito por elas como "ideal", e que repentinamente se viram jogadas num mercado de trabalho que desvalorizava não somente sua trajetória e conhecimentos, mas também seus corpos envelhecidos. A partir deste quadro, algumas das perguntas que me coloco são: é possível entender a falência como uma bifurcação? Quais foram as diferentes formas de lidar com a falência e as estratégias utilizadas para se reinserir profissionalmente? Ao longo deste exercício, também pretendo refletir sobre alguns aspectos vinculados à construção de uma biografia ou relato de vida como trabalho de memória, de leitura de si e de produção de si como um valor social em determinado contexto.

Palavras chave: trabalho; Varig; bifurcação.
Nome do GT ao qual se destina: GT 6, Desenvolvimento, trabalho e ambiente.




Este trabalho surge de um interesse mais geral em processos de autonomização feminina em contextos urbanos contemporâneos, colocando uma ênfase especial na dimensão da profissionalização. Foi esta inquietação que me levou a refletir sobre a profissão de aeromoça, que me parecia constituir um tipo muito particular de carreira pelo fato de impor um estilo de vida extremamente desenraizado (geográfica e socialmente). Até um ano atrás, todo o que eu sabia sobre essa profissão provinha do contato, desde minha chegada no Rio, com uma mulher que foi comissária da Varig durante grande parte da sua vida. Foi ela quem me advertiu que, se o que me interessava era a profissão de aeromoça, tal vez seria melhor estudar outros casos que não os dos comissários da Varig, pois nestes, ela tinha certeza, o drama da falência da empresa acabaria ocupando um espaço superlativo em seus relatos, abafando o resto das experiências vivenciadas durante a carreira. Tendo um limitado conhecimento do significado desse evento para ela própria, decidi manter esse recorte etnográfico assumindo a tarefa de apreender e interpretar o drama da falência. Este trabalho é um primeiro investimento nessa direção.
Como colocam Bessin, Bidart e Grossetti (2010) num recente trabalho em torno da noção de bifurcação, a sociologia durkheimiana se fundou em grande parte contra a explicação de fenômenos históricos a partir de eventos ou contingências. Com o objetivo de legitimar o caráter científico da nascente disciplina, os durkheimianos conseguiram erradicar tudo aquilo entendido como "elemento individual ou contingente" (Simiand apud Bessin et al, 2010: 24) da ação social. Na sociologia alemã, em cambio, a concepção da disciplina como ciência histórica, privilegiando a compreensão, não teve as mesmas consequências. As singularidades históricas foram trazidas para o centro da disciplina, embora tenham sido raramente analisadas do ponto de vista da dinâmica eventual. É por esta via que podemos traçar, a partir da influencia de Simmel na Escola de Chicago, uma maior preocupação destes pesquisadores em relação às carreiras e os giros (turnings) da existência. Por outro lado, é importante considerar que o aumento crescente do interesse pela contingência, os eventos e as bifurcações está relacionado paralelamente a mudanças do mundo social. Neste sentido, Giddens aponta que a aceleração do ritmo das mudanças sociais e a expansão da sua abrangência geográfica, a partir da supressão das barreiras da comunicação, são duas das principais características da modernidade radicalizada ou reflexiva (Giddens, 1993).
Neste marco, a aposta do citado livro é a de considerar as bifurcações como processos sociais, o que implica assumir que situações que apresentam uma parte importante de imprevisibilidade para o analista, podem ter conseqüências em dimensões consideradas estáveis ou regulares –"estruturais"– do mundo social (Bessin et al, 2010: 27). Se o enfoque proposto pelos autores nos apela por seu caráter inovador, acredito que, pelo menos na direção das perguntas que aqui me coloco, seu potencial heurístico radica principalmente nas ferramentas que habilita para pensar as conseqüências desses eventos, e principalmente seu caráter irreversível, antes que as incertezas que o precedem, ou seu caráter imprevisível. Em outras palavras, a hipótese que gostaria de adiantar propõe que, por mais surpreendente e radical que tenha sido a falência da Varig para seus funcionários, o acontecimento não era imprevisível, nem pros altos comandos da empresa, nem pros funcionários –eles mesmos afirmam isso, segundo mostrarei a seguir. Na verdade, acho que se for possível falar em despreparo, comoção, "baque", tais sentimentos tem mais a ver com uma incapacidade dos sujeitos de ser conseqüentes com o que a falência significava, antes que uma impossibilidade de prevê-la. De qualquer modo, para entendermos o significado da falência, antes é necessário considerar brevemente as condições de exercício da profissão de comissário de bordo na Varig.

Durante a segunda metade do século XX a aviação comercial brasileira cresceu e se consolidou no mercado internacional. Uma das principais empresas deste período foi a Varig – Empresa de Viação Aérea Rio-Grandense –, que durante as décadas de 1960 e 1970 cresceu em termos de frota, rotas e funcionários, alcançando uma posição de liderança expressiva nos mercados nacional e internacional (América do Norte, Europa, Ásia e, posteriormente, África). Essa consolidação foi alcançada através de estratégias que envolveram a constante articulação com o poder público, como ocorreu emblematicamente na negociação junto ao Governo Federal da rota Rio de Janeiro - Nova Iorque, inaugurada em 1955. Como argumenta Monteiro (2011), para essa concessão o então presidente da Varig, Ruben Berta, se beneficiou da condição de colaborador da campanha para o segundo governo de Getulio Vargas. Foi neste contexto de crescimento e reestruturação que a Varig precisou adquirir novas aeronaves e decidiu, pela primeira vez, admitir mulheres como parte da tripulação (as primeiras aeromoças).
Durante esse período de expansão e até os anos 1990, as pessoas que queriam tentar uma vaga na Escola de Comissários da Varig, deviam passar por uma variedade de observações e provas. Para ter direito a uma entrevista, deviam pelo menos ter o segundo grau completo, algum conhecimento de língua estrangeira, "um peso coerente com a altura" e um belo sorriso. Depois do ingresso e de alguns meses de um exigente curso de preparação, começavam uma "carreira" que lhes prometia um bom salário, um atrativo sistema de promoções e a oportunidade de "conhecer o mundo inteiro".
A noção de carreira recebeu um tratamento empírico e uma discussão analítica importante nas pesquisas da Escola de Chicago, primeiramente nos trabalhos de Everett Hughes sobre ocupação e sistema de emprego, e um tempo depois por meio de noções como carreira desviante de Becker (2010) e carreira de doente mental de Goffman (1994). Segundo Becker (2010), interessado pelo destino do indivíduo nas organizações ocupacionais, Hughes definiu a carreira objetivamente, como uma sequência de hierarquias e cargos claramente definidos, produto de uma posição, com determinadas responsabilidades e metas; e subjetivamente, como a perspectiva móvel a partir da qual o indivíduo observa sua própria vida como um todo e interpreta o significado dos seus diversos atributos, ações e acontecimentos. É essa seqüência de hierarquias e cargos que aparece com destaque nos discursos dos meus interlocutores, de forma altamente valorizada, como observamos no seguinte trecho da entrevista com Gisela:
O legal disso, das promoções, é que te davam aquela... vontade de continuar no trabalho. Você sabia que sempre ia crescer. A impressão que a gente tinha na Varig é que quando chegasse ao 747 Senior tu já estavas para te aposentar, era o tope de carreira! Então criou essa sensação de que tu estavas sempre sendo reconhecido, de que tu subirias na tua carreira. Existia uma carreira, exatamente, um quadro de carreira, e isso era bem legal. (Gisela, 50 anos, casada, 20 anos "voando" pela Varig. Atualmente é comissária em voos executivos).
"Quadro de carreira", reconhecimento, oportunidades de formação constante (cursos de línguas, sommelier e atendimento), bom salário, pernoites e baseamentos "em diferentes cantos do mundo" com diárias em dólares, infraestrutura (creche e outros benefícios familiares), são alguns dos componentes de narrativas que refletem uma absoluta adesão e identificação dos funcionários com a empresa. O incentivo e a possibilidade de desenvolver uma carreira permitiam uma perspectiva de futuro, de crescimento. Mas para pensar no futuro também era fundamental a sensação de estabilidade; por mais rígida que a empresa fosse, "ninguém ia pra rua", como Gisela me disse, "era a famosa estatal –que nunca foi– dos sonos". Uma mistura de relações de trabalho e condições salariais –nas que certamente tiveram uma importância significativa as articulações da Fundação Ruben Berta com a ACVAR– descritas como ideais faziam da aviação um tipo de trabalho tão bom que era como uma adição: não era fácil, mas uma vez dentro era impossível de deixar.
Era natural, né? [por vir duma família de tripulantes]. Uma família de advogados, uma família de médicos. Era natural. A pesar que eu lutava um pouco contra o voo. Eu lutava muito, não queria. Eu queria uma coisa mais fácil pra mim. No final foi aquela coisa, uma cachaça. No final você vai ficando, quando vê passou um ano, quando vê... Nas feiras você viaja... E a minha vida lá dentro era muito boa! Por conta desse diferencial [saber falar japonês] eu fazia a rota a Los Angeles, fazia três voos por mês. Três voos por mês, entre um voo e outro eu ia pra Fernando de Noronha! Pra praia... Entendeu? Eu entrei querendo sair. Eu entrei assim, não querendo ficar, querendo fazer minha carreira como psicóloga. Mas, eu fui ficando, fui ficando, e é boa a aviação, não é? Hoje meu filho é tripulante da Tam. (Thereza, 50 anos, casada, 21 anos voando para a Varig. Hoje ela é psicóloga).
Toda a rigorosidade da empresa em relação à apresentação pessoal (e ao corpo diretamente), o uniforme, a disciplina e o atendimento ao cliente, adota um significado altamente positivo na memória dos meus interlocutores. Ainda quando eu insistia em tentar recuperar os desafios ou aspectos negativos da profissão, eles menosprezavam as dificuldades com afirmações do tipo "eu me dava bem com a hierarquia", "nunca tive problemas de disciplina", etc. O uniforme aparece assim como o depositário de tudo aquilo que fazia ao "glamour" da profissão; as "chefias" eram rigorosas, mas também protetoras e compreensivas, como uma "mãe"; se as cartas de desaprovação eram temidas e podiam acarretar punições, também existiam cartas de aprovação e reconhecimento. Para as mulheres que foram mães, talvez a maior dificuldade foi a de ter que deixar os filhos pequenos em casa, com a avó ou uma baba, durante voos que podiam durar vários dias. No entanto, nenhuma delas optou por abrir mão das rotas internacionais e permanecer na ponte aérea, o que elas mesmas descrevem como uma decisão frequente para aquelas que queriam ter uma "rotina mais ordenada", voltando à casa todos os dias. Reconhecem que a deles não era "uma vida normal", que os laços sociais eram distendidos pela ausência em datas importantes e que sua vida dependia da escala de voos, mas tudo isso era compensado pelas grandes oportunidades que oferecia esse emprego, para eles mesmos e seus familiares, pelo orgulho e pelos laços criados dentro da aviação.
Somente uma idealização tão profunda das condições de emprego numa empresa pode nos permitir compreender a dimensão do "trauma" que representou seu final. Refiro-me a idealização no sentido dado por Bourdieu (1986) ao componente ilusório de toda reconstrução biográfica. No entanto, não me parece que a ideia de reconstrução remeta aqui a algum tipo de artificialidade, mas ao caráter transitivo, provisório e, mais em geral, subjetivo, de todo exercício de memória (Pollak, 1992). O cansaço, a distancia, os desencontros com colegas e superiores, o maltrato dos passageiros, tudo isso deixou de importar após a falência. Porque se o trabalho na Varig não era fácil, todo o que veio depois foi muito mais difícil.
A Varig fechou suas portas depois de alguns meses de voos feitos em condições precárias, com meses de salários atrasados e sem cumprir com as devidas rescisões de contratos. A situação foi especialmente complexa para as pessoas na faixa etária dos meus interlocutores, que na época tinham entre 40 e 50 anos, idade considerada avançada para se reinserir no mercado de trabalho. Estes trabalhadores podiam ser de grande valor para a empresa, no entanto fora da aviação tinham poucas possibilidades de reconverter seus capitais culturais e sociais (exceto os que conseguiram fazer uma graduação enquanto trabalhavam). No espaço da aviação, embora alguns tenham conseguido uma vaga nas nascentes empresas (Tam e Gol), todos afirmaram que os receios dos colegas e diretivos para com os comissários da Varig era forte. De alguma forma, o status alcançado alguma vez pela companhia se voltava assim contra eles. A situação econômica era em muitos casos extrema, principalmente para aqueles que não tinham com quem contar: os separados/divorciados, os viúvos, ou aqueles casais em que ambos os cônjuges eram tripulantes da empresa. Para piorar o panorama, muitos não tinham alcançado a idade necessária para se aposentar e, com a intervenção do AERUS, perderam todo o dinheiro destinado durante anos ao fundo complementar de aposentadoria.
A forma da demissão, criticada por seu carater absolutamente impessoal, também não ajudou: feita por meio de um telegrama que, nas palavras de Cristina, deu a esse final a sensação de "relacionamento mal resolvido". Segundo ela, além de ser um "empregaço", do "amor" pelo trabalho e da "companhia", ninguém acreditava realmente nesse final. Duas metáforas são muito expressivas do sentido que teve esse evento para as pessoas com as que eu venho conversando para minha pesquisa: nas palavras de Cristina "a gente morreu na praia"; para outros, foi como se eles estivessem tocando na orquestra do Titanic enquanto este afundava:
(Eu) Agora queria que você me contasse um pouco sobre a falência.
(Janine) É. Isso foi um baque para todo o mundo, né? Engraçado que assim, eu me peguei, quando recebi o telegrama da Varig. Aliás, eu estava numa assembléia, porque nós estávamos lutando de todo e qualquer jeito para a empresa não fechar. Nos estávamos numa assembléia quando uma pessoa, eh, interrompeu, um comissário interrompeu a assembléia e disse assim "acabei de receber um telefonema da minha mulher, dizendo que chegou um telegrama lá em casa, e ela recebeu, esta exatamente escrito assim 'a empresa lhe agradece pelo trabalho realizado, mas infelizmente você já não faz parte do quadro'". Eu tenho até esse telegrama, poderia até ter trazido. Eu não lembro as palavras, mas eu tenho esse telegrama guardado. (...) E aí eu cheguei em casa, cheguei na portaria do meu prédio e perguntei pra meu porteiro "seu Jorge chegou algum telegrama pra mim", e ele disse "chegou". Olha, eu tive uma descarga elétrica, assim, sabe? E aí eu entrei e peguei o telegrama, abri o telegrama, sentei em casa. Foi o único dia que eu chorei muito. Eu nunca mais derramei uma lágrima sobre isso. Mas eu chorei muito nesse dia, porque eu não acreditava. Eu estava... eu estava exatamente no Titanic, eu era a própria pessoa daquela orquestra, enquanto ele afundava eu estava ali tocando, entendeu? Eu afundei junto com ela sem eu saber. Quer dizer, vendo algo vindo, mas... querendo ignorar um pouco aquilo. (Janine, 49 anos, solteira, 20 anos voando para a Varig. No momento da entrevista ela era comissária na Gol, mas estava de licencia devido a um problema no joelho).
Michel Grossetti define a bifurcação como "um processo no qual uma sequência de ação que comporta uma parte de imprevisibilidade produze irreversibilidades que concernem as sequências ulteriores" (2010: 147). No caso que aqui estou analisando, o sentimento expressado por Janine, de "não querer acreditar", vendo o que estava acontecendo, "continuar tocando" enquanto o barco afundava, leva-me a pensar que o evento da falência não foi destruidor por seu caráter imprevisível. Em todo caso, era ininteligível porque era impossível ser consequente com o que esse final significava; foi terrível quando se tornou irreversível, pois já não havia nada que eles pudessem fazer.
É comum ouvir dos ex-trabalhadores da Varig que após a falência muitas pessoas ficaram depressivas, desenvolveram "cânceres de angustia", algumas chegando a se suicidar. Como já mencionei, economicamente a situação para muitos foi alarmante: Gisela e seu marido eram ambos comissários, e tinham duas filhas em idade escolar; Cristina tinha acabado de convencer seu marido de abandonar seu emprego, que ela considerava perigoso, pois seu salário era suficiente para arcar com as despesas da família; Claudia tinha decidido reformar seu apartamento, e inclusive foi o pedreiro quem recebeu o telegrama da demissão, etc. Para piorar, a liquidação do AERUS pôs fim às suas expectativas de uma "velhice tranquila". Se, como aponta Bessin, a bifurcação constitui também um desafio subjetivo (a noção é do Martuccelli, citado por Bessin), que põe a prova as faculdades para enfrentar a flexibilidade e instabilidade do mundo social (2010: 318), no caso que aqui nos interessa essas faculdades podem ser apreciadas em termos de capitais culturais, mas também em termos afetivos. Enquanto ao capital cultural, algumas pessoas, como Thereza, depois de superar o trauma e sair adiante, conseguiram fazer uso de um diploma de graduação para começar, embora tardiamente, aquela profissão deixada de lado por muito tempo pela aviação (no seu caso, ela tinha conseguido fazer uma graduação em psicologia). Apesar dessa ser uma situação relativamente comum, é importante reconhecer que aqueles que tiveram sucesso nessa reconversão profissional contaram em geral com um cônjuge ou familiar numa posição econômica mais estável, que pudesse ajudar até eles conseguir "ganhar dinheiro" com a nova carreira.
Outros decidiram, e em alguns casos conseguiram, ficar na aviação e tentar uma vaga em outras companhias, principalmente a Tam e a Gol. Mas, vários dos que conseguiram a vaga não ficaram no emprego muito tempo. Em primeiro lugar, deviam recomeçar a carreira desde "o final da fila", isso é, fazendo voos domésticos e regionais para somente alguns anos depois ter a oportunidade de fazer uma rota internacional. A relação com os novos colegas também não era a melhor: muitos ficavam receosos pelo "complexo de superioridade" dos comissários da Varig. De forma mais geral, a aviação tinha mudado demasiado: as estadias nos lugares de destino eram curtas, o tempo para descansar muito pouco, menos folgas e salários também menores. Assim, das seis pessoas que entrevistei que conseguiram continuar na aviação, somente três continuam "voando" na atualidade, e em geral afirmam fazê-lo por "necessidade".
Finalmente, entrevistei algumas pessoas que, ou deixaram de trabalhar, ou começaram a ter empregos menos estáveis, principalmente na área de serviços (como secretarias, síndicos, gerente de um café, taxista, etc.). Se o capital cultural foi importante na direção e sucesso dessa reinserção profissional, o desafio subjetivo também se deu no plano das emoções. Como muitos deles colocam, todo o mundo ficou mal, afetado, até depressivo; no entanto, para sair adiante foi necessário aceitar a perda, a dor, "se adaptar" e sair adiante. As pessoas que não conseguiram se conformar são, segundo meus interlocutores, aquelas que "ficam o dia inteiro se lamentando" no facebook, não conseguem encontrar os colegas, e não fazem mais nada da vida.
Durante muitos anos, o presente destas pessoas foi garantido pela "estabilidade" do emprego numa empresa com o porte e importância Varig; e seu futuro, pela perspectiva de crescer e fazer uma "carreira" nessa companhia, para depois parar de trabalhar recebendo uma boa aposentadoria. Considerando isso, a forte adesão dos sujeitos à função que desenvolviam e à empresa que representavam, podemos entender a ruptura que significou a falência em suas vidas. Eles estavam "adaptados" a essa vida, o que, como aponta Meccia (2011: 42), de um ponto de vista fenomenológico quer dizer que eles interpretavam e orientavam-se nessa cotidianidade de uma forma pré-reflexiva, "a mão". A falência quebrou esse quadro (nos termos de Goffman) de interpretação da realidade, essa forma de organizar a experiência. Além disso, recuperando agora a advertência que me foi feita no começo da pesquisa, sobre a vontade das pessoas de "falar" da falência, podemos interpretar que a falência foi um evento biográfico importante porque constituiu paralelamente o desencadeante e o objeto da narrativa. Em palavras de Leclerc-Olive,
Os eventos marcantes são os pontos nodais da experiência biográfica: é nos momentos em que as representações incorporadas de si, da sociedade e do mundo são desestabilizadas que o sujeito se interroga, interpreta, procura produzir um sentido, novas representações. [...] Um evento marcante cria múltiplas dissonâncias: cognitivas –faz pensar–, afetivas (até mesmo físicas) –pode fazer sofrer– e morais –nos perguntamos pela justiça da situação. [...] São os momentos privilegiados de elaboração dos fatos e significações, irremediavelmente intrincados. (LECLERC-OLIVE, 2010: 334)
Narrar a própria trajetória, falar e escrever sobre o antes e o depois da falência, constituem assim estratégias para dotar de sentido uma experiência de vida que foi radicalmente abalada por essa ruptura. Se a noção de carreira é indissociável daquela de turning point –que, segundo os autores que venho citando, é irmã da noção de bifurcação– precisamos prestar mais atenção não somente ao antes e o depois desses deslocamentos, às mudanças de status, práticas e discursos, mas também à forma como esses eventos são vividos, narrados e incorporados à memória, às emoções que são evocadas para expressá-los, os vínculos que são resgatados e aqueles descartados. Após a falência da Varig, a imagem que perdurou foi a do "drama": da perda de rumo, da queda afetiva e material, da depressão, dos processos judiciais e da necessidade de lutar pelos direitos salariais. No entanto, antes desse drama existiu uma vida de dedicação, trabalho e sucesso, que era motivo de orgulho e satisfação para aqueles que a protagonizavam. É essa vida de conforto material, viagens, vanguarda,"glamour" e sucesso, de dedicação a uma companhia que para muitos cumpriu o lugar de uma "família", que procura ser resgatada nesta narrativa de si, que não quer saber de pesares porque todos os pesares vieram depois. E é essa vida também a que nos permite entender que a pesar dos sinais de crise, ninguém tenha sido capaz de se preparar para o que estava por vir; era previsível, mas era "impossível de acreditar".


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