A paciência no trabalho analítico.

July 23, 2017 | Autor: Ernani Chaves | Categoria: Filosofia e psicanalise
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5 Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, no 147, 5-11

A paciência no trabalho analítico Ernani Chaves

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os chamados “escritos técnicos” de Freud, publicados entre 1911 e 1915, chama a atenção a questão, evocada algumas vezes e em situações estratégicas importantes, da paciência. Dirigindo-se aos jovens iniciantes na prática analítica, Freud procura mostrar o quanto a paciência do jovem analista é colocada duramente à prova, em especial durante o processo da “(per) laboração”. Ao mesmo tempo, num confronto que o próprio Freud define com o uso constante de metáforas bélicas, é necessário desenvolver e exercitar a paciência do paciente.

Palavras-chave: Paciência, prudência, (per)laboração, resistência

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n Freud’s so-called “writings on technique”, published between 1911 and 1915, the subject of patience requires special attention, for it is sometimes evoked in important strategic situations. Addressing young psychoanalysts, Freud shows how often the patience of young analysts is put to the test, especially during the process of working-through. At the same time, in confrontation that Freud defines with the frequent use of warlike metaphors, the patient’s own patience must be developed and exercised. Key words: Patience, prudence, working-through, resistance

á uma idéia e uma questão bastante instigantes, que aparecem com certa freqüência nos escritos de Freud sobre a técnica psicanalítica, objeto de sua atenção entre os anos de 1911 e 1915. Trata-se da idéia e da questão da “paciência” (Geduld). Ora da paciência do analista, ora do aprendizado da paciência que o analista, de certo modo, precisa incentivar no analisante. Deixemos de lado a conjuntura na qual esses textos foram escritos, já suficientemente explicitada na bibliografia especializada, qual seja, a das grandes disputas internas ao movimento psicanalítico, em franca expansão na época, em especial a querela e a dissidência com Jung, para nos aprofundarmos um pouco neste tema. Comecemos pelas linhas finais de “Lembrar, repetir, (per)laborar”, de 1914:

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Essa (per) laboração das resistências pode tornar-se, na prática, uma dolorosa tarefa para os analisantes (Analysierten) e uma prova de paciência (Geduldprobe) para o médico. Mas é essa parte do trabalho que tem os maiores efeitos modificadores nos pacientes (Patienten) e isto diferencia o tratamento analítico de qualquer influência da sugestão. Teoricamente, pode-se compará-la à Ab-reação das cargas afetivas enclausuradas através do recalque, sem a qual o tratamento hipnótico permanecia inoperante. (Freud, 1992: 95)

Vimos que no texto Freud diz, explicitamente, que a (per) laboração por parte do paciente é uma “prova de paciência” para o médico. O entendimento desta prova de paciência começa quando lembramos que, no parágrafo imediatamente

anterior, Freud, usando não apenas a sua autoridade de pai-fundador, mas também sua larga experiência, dirige-se aos “iniciantes em análise”, ou seja, aos que iniciam seu trabalho como analistas, para adverti-los, para “aconselhá-los”, diz ele, no que tange à euforia inicial do médico quando seu paciente consegue superar as resistências. Isto não significa, de modo algum, “cura”. Freqüentemente, diz Freud, o jovem iniciante desanima quando, apesar de constatada a superação das resistências, o paciente, volta e meia, não apresenta nenhuma mudança. Freud completa dizendo que o tratamento não termina aí, que é necessário deixar que o paciente “(per) labore”, conheça e se aprofunde nas suas resistências, para poder superá-las. Ou seja: num outro nível, com outra determinação, o trabalho analítico continua. Freud afirma que o paciente precisa de tempo para a árdua tarefa da (per) laboração. Mas... de quanto tempo? É aqui que a “prova de paciência” do analista ganha seu sentido pleno: uma vez que as resistências foram superadas, resta o trabalho conjunto de (per) laboração, cujo tempo cronológico não pode, de antemão, ser delimitado. Gostaria de chamar a atenção para o imbricamento entre paciência e tempo. Falamos muito de “paciência” no nosso cotidiano. Mas, em geral, pela negativa: “não tenho paciência!” Podemos dizer ainda que nós, brasileiros, “sofremos” de impaciência. Basta lembrarmos das filas que temos de enfrentar no banco, no supermercado, no cinema, nos guichês das repartições públicas, das longas ho-

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ras de espera nos engarrafamentos, nos aeroportos. Estamos sempre apressados, embora repitamos, com insistência, que “a pressa é inimiga da perfeição”. Somos impacientes porque não temos tempo, porque não podemos perder tempo, porque nosso tempo é rigorosamente cronometrado. Em outras palavras, acompanhamos o tempo da máquina, o tempo da produção, o tempo do trabalho. Tempo marcado pelo relógio, que corre fuido, sempre para a frente, indiferente ao que ficou para trás. Dificilmente a paciência pode encontrar um lugar nessa temporalidade do relógio. Por que? Porque a paciência, ao contrário da impaciência, não sucumbe à temporalidade cronológica, a esse escoar em direção ao infinito. Ao contrário, ela introduz no tempo cronológico uma outra temporalidade. Que não é mais “homogênea e vazia”, linear e contínua, mas que intercepta, impõe uma cesura, que exige uma interrupção. O tempo da paciência estabelece em relação às formas gerais do tempo – o passado, o presente e o futuro – uma relação na qual esses três elementos continuamente se entrecruzam. Pode-se dizer, então, que a idéia de paciência conforma-se à idéia de temporalidade vigente em Freud. Uma idéia que, ao escapar das determinações da cronologia, contradiz a idéia de uma temporalidade progressiva a qualquer preço, que sacrifica o passado no altar santificado do que está por vir. As relações entre passado e presente, como se sabe, indicam a importância dos

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acontecimentos infantis na vida adulta, das formas “primitivas” de vida nas formas “civilizadas”, acontecimentos estes que, travestidos, “retornam” das mais variadas formas, interferindo de modo decisivo no presente. Por outro lado, o presente está sempre reportado a este passado que não morreu, a esse passado que queremos enterrar sem compreender, mas que, como um morto-vivo, ressurge das profundezas para desestabilizar nossas mais aferradas convicções. Se pensarmos que a “(per) laboração” é o momento em que o futuro está sendo gestado, entendemos seu caráter doloroso para o paciente e a extrema paciência de que o analista precisa. Doloroso, porque o passado não está morto, como se supunha com ingênua confiança, mas é sua ressignificação que está sendo exigida. Doloroso porque, ainda uma vez, corrói a fantasia da ajuda, que alimenta todo aquele que pisa pela primeira vez em um consultório. Sim, agora o paciente já “sabe” muitas coisas. Mas isso não é suficiente. É preciso “trabalhar através” (significado literal de Durcharbeiten) disso que é dado como “sabido” à luz dessa outra gramática, dessa outra lógica que se abre na medida em que os escolhos da resistência foram superados. A paciência do analista encontra, neste ponto, sua mais dura prova. Isto porque, segundo Freud, o analista nada pode fazer a não ser esperar. Não pode impedir que resistências apareçam novamente, nem pode apressar o processo de

(per) laboração. É na raiz desta paciência infinita que se pode reencontrar uma antiga figura da ética ocidental, uma das virtudes mais exaltadas pelos gregos: a prudência (phronesis). Paciência e prudência caminham juntas: a paciência de esperar e a prudência em não querer precipitar as coisas evitarão os constrangimentos e a decepção, nos quais, freqüentemente, os iniciantes naufragam. Nos textos deste período, ligados à questão da técnica, duas outras imagens usadas por Freud para caracterizar a psicanálise, estão ligadas ao exercício da paciência. A primeira se encontra em “A dinâmica da transferência” (1912) e a segunda em “Introdução ao tratamento” (1913). A primeira imagem – que, talvez não por acaso, retorna no final do texto – é a da “luta” (Kampf) que, no interior do fenômeno da transferência, se estabelece entre “médico e paciente, intelecto e vida pulsional, conhecer e querer agir (Freud, 1992a: 47). Esta imagem guerreira se desdobra, ainda no mesmo texto, em mais duas: a de “campo de batalha” (Feld) e a de “vitória” (Sieg). A inimiga nesta guerra é a neurose e sua prodigiosa força. Vencê-la é o compromisso e o dever do analista, apesar das “grandes dificuldades” que ele deve enfrentar. Ora, nesta guerra, o analista torna-se também um “estrategista” e, nesta estratégia, a paciência ocupa um lugar central. No campo da transferência, considerado um campo de batalha, paciência e prudência precisam ser, a todo momento, exercitadas e mobilizadas pelo

analista, na sua luta. A segunda imagem é a do “jogo de xadrez”, situada exatamente no começo do “Introdução ao tratamento”, e que é utilizada para definir a psicanálise”. Quem quer aprender pelos livros o nobre jogo de xadrez, cedo saberá que é permitida uma exposição completa e sistemática do início e do fim do jogo, enquanto que da sua imensa complexidade, após o início do jogo, é recusada toda exposição. Apenas o estudo zeloso das partidas, nas quais os mestres lutaram entre si, podem preencher as lacunas de sua instrução. Semelhantes determinações sujeitam totalmente as regras que se pode dar para o exercício do tratamento psicanalítico. (Freud, 1992b: 63)

Ora, que jogo é mais desafiador da nossa paciência do que o de xadrez? É a sua especificidade, qual seja, a de que suas regras não são expostas para o iniciante na sua totalidade, que exige o “zeloso estudo”, o exercício da paciência a partir do estudo das partidas “nas quais os mestres lutaram entre si”. A imagem da “luta”, como vimos, reaparece em um outro contexto. Certamente que Freud evoca para si o título de Mestre. Os escritos técnicos, no seu conjunto, trazem a marca inconfundível que Freud quer imprimir neles: a marca do Mestre. Mas, em que consiste ser Mestre? Eu diria, mais uma vez retomando antigas figuras do pensamento ocidental, que o Mestre não é nem o “sábio”, nem o “sofista”. Nem sábio, pois isto suporia que ele já sabe tudo e que nada precisa mais aprender; nem sofista, pois não se utiliza dos

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ardis da oratória e da retórica para convencer quem quer que seja. Como também não é nem o “adivinho”, pois nada prediz; nem o “poeta”, pois não transmite o passado primordial pela “inspiração” das musas (Vernant, 1990: 359 sg.) . Assim, como Mestre, está próximo da imagem do “filósofo” construída por Platão, da qual Sócrates é o modelo e para onde convergem um conjunto de temas e atitudes encontrados não apenas na Grécia arcaica dos “mestres da verdade”, mas também entre os povos do Oriente, com quem os gregos estiveram em contato. Próximo do “filósofo” (proximidade que o próprio Freud sempre recusou), na medida em que, ao revés de uma concepção de ciência em vários pontos ainda enraizada no solo cientificista do século XIX, Freud provoca tantos abalos no seu próprio pensamento, tantas retomadas, tantas modificações, que podemos dizer que ele é movido por esse “desejo de saber”, que implica não apenas o questionamento do saber aparente que se acredita possuir, mas também o questionar a si mesmo e aos valores que dirigem a sua própria vida (Hadot, 1999: 55 sg.) . Mas Mestre também – e aqui com a marca própria à psicanálise – porque se tornou Mestre por ter exercitado, como o aprendiz de xadrez, a paciência. A paciência da escuta. Em pelo menos um texto desta época, em “Conselhos para o médico durante o tratamento psicanalítico”, de 1912, Freud refere-se à paciência do analisan-

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te, no interior de uma problemática bem interessante: a que envolve a “atividade intelectual” do analisante, ou melhor, a sua “cooperação intelectual” (Freud, 1992c: 59) . Freud diz que não há uma resposta geral para isso e que o analista deve ser “prudente”. Como já dissemos, paciência e prudência se recobrem. A figura da prudência pode, então, ser melhor explicitada. Ela possui, de fato, um duplo significado: é tanto evitar “dirigir” o paciente para isso ou para aquilo, nesta ou naquela direção, seja dizendo que ele precisa reunir suas lembranças, seja pedindo que se lembre de um determinado período de sua vida ou, então, de assinalar a todo momento, que o que resolve o enigma da neurose não é nem o esforço de compreensão intelectual, nem o esforço cansativo de concentrar sua atenção neste ou naquele ponto. Ao invés disso, trata-se de mostrar que o enigma só se desfaz “através da paciente observância da regra psicanalítica, que ordena eliminar a crítica diante do inconsciente e seus derivados”. É preciso evitar que o paciente se refugie no “intelectual”, que comente longa e seguidamente o seu estado e, com isso, desvie-se do esforço de curar-se. “É por esta razão” – continua Freud – “que desaconselho aos meus pacientes a leitura de obras psicanalíticas, exijo que se instruam por sua experiência pessoal e certifico-lhes que podem, dessa maneira, aprender mais e melhor do que toda a literatura psicanalítica poderia lhes ensinar”.

Diríamos então que, deste ponto de vista, se o analista ensina alguma coisa ao paciente, uma dessas coisas é a paciência. O exemplo de Freud é, entretanto, aos nossos olhos de hoje, muito restrito. Trata-se do paciente intelectual, letrado, que quer fazer intervir suas leituras ou seu conhecimento da teoria psicanalítica, durante o tratamento. Entretanto, por outro lado, a figura do intelectual é bastante emblemática no contexto do tema tratado aqui. Sua descrição pode ser aproximada daquela do impaciente, daquele que parte da presunção de que o entendimento “intelectual” pode lhe bastar ou ser invocado para explicar isso ou aquilo. Assim, em vez de submeter-se à regra da “associação livre”, ele quer argumentar ou, em outras palavras, mostrar que é “sabido”. A paciência do analista para escutar se desdobra e se prolonga no aprendizado do paciente em, com paciência, submeter-se às regras do tratamento. Neste momento, a figura do Mestre ganha pleno significado, pois trata-se, como sempre, de um confronto, de uma luta, e manejar a impaciência do paciente é, para o analista, não apenas um exercício de paciência, mas também, de um certo modo, um ensino da paciência. Como no jogo de xadrez. Em um texto tardio, “Análise terminável e interminável” (1937), não por acaso incluído na edição alemã que utilizo, entre os “escritos técnicos”, todos estes te-

mas reaparecem, mesmo quando não explicitamente mencionados. Fiz, até aqui, referência aos escritos chamados “técnicos”. Entretanto, para finalizar, peço licença para recuar até um texto anterior, um dos textos fundadores da psicanálise, “O caso Dora”. Por que a história de Dora? Porque nele, Freud, no início do relato, refere-se à idéia da paciência, recorrendo a uma citação do “Fausto”, de Goethe, a quem muito admirava: Não somente ciência e arte, A paciência da obra quer fazer parte1 O que é, no mínimo, curioso nesta citação de Goethe? Sabemos que Dora abandonou o tratamento. Sabemos também que Freud torna esse fracasso um fracasso exemplar, isto é, que ele tirou do abandono de Dora lições importantíssimas para a continuidade da psicanálise, ao enfatizar, pela primeira vez positivamente, a questão da transferência que, de resistência e obstáculo, torna-se auxílio imprescindível ao tratamento. Sabemos, além disso, que mesmo Dora tendo sido paciente de Freud até dezembro de 1900 e Freud tenha redigido sua história clínica imediatamente após o abandono, só veio a publicá-lo em 1905. Supõe-se, com razão, que entre a redação inicial e a versão final, a que foi publicada, o manuscrito passou por uma per(laboração). O que o torna, então, “curioso”, “engraçado”, com todos os

1. “Nicht Kunst und Wissenschaft allein,/ Geduld will bei dem Werk sein”.

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efeitos desestabilizadores do “chiste”? É que Freud fala de paciência, justamente em uma situação onde não a teve, onde a pressa revelou-se inimiga da perfeição. Se é verdade que a Dora, a psicanálise deve, em grande parte, sua constituição, também é verdade que a ela, a psicanálise deve a lição da paciência. Se os escritos técnicos têm, muitas vezes, o tom de uma preleção, de uma aula, nos moldes da cátedra, se Freud não hesita em se colocar no papel de Mestre, é porque ele próprio já havia experimentado, com agudeza sem igual, a impaciência e a imp. 95. prudência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS F REUD , S. Erinnern, Wiederholung und Durcharbeiten. In Behandlungstechnische Schriften. Frankfurt: Fischer, 1992. ____ . Zur Dinamik der Übertragung. Op. cit., 1992a. ____ . Zur Einleitung der Behandlung. Op. cit., 1992b. ____ . Ratschläge für den Artz bei der psichoanalytischen Behandlung. Op. cit., 1992c. HADOT, P. O que é a filosofia antiga? São Paulo: Loyola, 1999. VERNANT, J-P. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

Artigo recebido em abril/2001 Revisão final recebida em junho/2001

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Os 10 mais vendidos em maio/2001 1o Hysteria Christopher Bollas 2o A conversa infinita – 1 Maurice Blanchot 3o A invenção do psicológico Luís Claudio Figueiredo 4o Culpa Urania T. Peres (org.) 5o A morte de Sócrates Zeferino Rocha 6o Estados-da-alma da psicanálise Jacques Derrida 7o Avatares da transmissão psíquica geracional Olga B. Ruiz Correa (org.) 8o Ética e técnica em psicanálise Luís Claudio Figueiredo e Nelson Coelhor Junior 9o As árvores de conhecimentos Pierre Levy e Michel Authier 10o O olhar do engano Lia Ribeiro Fernandes

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