A pele e a espessura do desenho – AMÉLIE BOUVIER, NAZARENO, PAULO CLIMACHASKA, RENATO LEAL E SOFIA PIDWELL

June 8, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Estética, Estetica, Arte, Arte contemporáneo, Desenho, Arte efémera
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A pele e a espessura do desenho – AMÉLIE BOUVIER, NAZARENO, PAULO CLIMACHASKA, RENATO LEAL E SOFIA PIDWELL

A mostra de desenho reúne trabalhos de cinco artistas atuais: Amélie Bouvier (PRT), Nazareno (BR), Paulo Climachauska (BR), Renato Leal (BR) e Sofia Pidwell (PRT). Compartilham um projeto de itinerância, agora iniciado em Lisboa e a prolongar durante 2016. A apresentação conjunta das obras mostra as afinidades e contrapontos num diálogo desenvolvido entre todos. Ao longo de dois anos, entre Lisboa, São Paulo e Bruxelas, as conversas decorreram, a partir de uma ideia que surgiu quase apenas por um acaso feliz. Renato Leal conheceu – através do Facebook – a obra de desenho de Sofia Pidwell e o contato foi estabelecido. Por coincidência, estando eu, por alguns meses, em São Paulo tive o gosto em aceitar a curadoria do projeto. Ao conhecer, mais profundamente, as obras de Renato Leal e Sofia Pidwell, tornaram-se-me evidentes as aproximações a mais outros dois artistas brasileiros e a uma desenhista portuguesa de ascendência francesa a viver entre Lisboa, Bruxelas e Cracóvia. O projeto estava destinado a partilhar mundos e distâncias. A adesão ao projeto A pele e espessura do desenho por parte de Nazareno, Paulo Climachauska e Amélie Bouvier veio expandir e ramificar as consignações manifestas no denominador comum entre os cinco. Num primeiro momento assinale-se o que designei por “unidade/sinal” gráfico. A unidade/sinal gráfico, predominante e residindo na produção dos cinco artistas, resultará de uma ação compulsiva que se traduz no acúmulo gráfico que progride na composição, como parte e para o todo. Tal unidade – que é sinal evidenciador - consiste na representação gráfica de uma partícula ou célula, peculiares a Amélie Bouvier, Nazareno, Paulo Climachauska, Sofia Pidwell e Renato Leal. Mediante a um exercício de Gestalt, a imagem percetiva é aproximatória , reveladora de afinidades eletivas (parafraseando Goethe) aos 5 desenhistas. As configurações, resultantes dos respetivos impulsos para o acumulo de unidades ou, no caso de Paulo Climachauska a sua subtração, instituem uma nota volitiva que é comum, ainda que dirigida sob auspícios singulares. As afinidades formais, o que se vê e é visto nos desenhos, obtêm diversidade identitária atendendo às poéticas carateriais dos desenhos, revelando as suas condições únicas. Também a relação ao espaço, que alberga e faz nascer os desenhos, revela sentidos e atitudes centríptos ou centrífugos. As obras, pensadas para esta mostra, experimentam diferentes técnicas, formatos e suportes, adequando-se ao espaço expositivo, procurando-lhe uma flexibilidade percecional e física. No caso de Amélie Bouvier, Sofia Pidwell e Nazareno, as obras vão ser realizadas diretamente no próprio espaço, durante as semanas que antecedem a inauguração. Assim, os 3 artistas induzem o público a pensar na efemeridade da criação artística, plasmando a sua generosidade e consciência da precariedade do ato, da vida humana e da obra que, essa sim, persistirá, não somente nos registros mas na memória de todos que a visitem em estado de privilégio. É uma estética de radicação antropológica que revalida a condição primordial do desenho como matriz do humano, transportando para atualidade a pregnância das forças pulsionais em cumplicidade ao pensamento crítico.

As unidades gráficas de Amélie Bouvier possuem similitude a favos de uma colmeia, em Nazareno assemelham-se a escamas; em Renato Leal dominam círculos (quase estanques e fechados); em Sofia Pidwell, presidem os semi-círculos. Coincidem na razão do acumulo… Aparente similitude entre as 5 diretrizes gráficas reúne-se numa mostra onde, mais nitidamente se apercebem as correspondentes identidades, sem restringir as particularidades, antes expandindo-as ao agregar-lhes as sinergias desenvolvidas. Gera-se um cenário compósito, onde o visitante mergulha, pela sinuosidade gráfica, numa distensão morosa que revela o espaço em assimetrias, dissonâncias, tanto quanto em harmonias e proporções. Acredita-se que nas salas de exposição da Fundação Portuguesa das Comunicações se estenda uma itinerância interior, por assim designar. Ou seja, que o visitante possa entranhar-se nos caminhos ramificados, densos, translúcidos, opacos e quase transparentes consoante as malhas do desenho respiram. A atitude entranhada e pessoal de cada um dos artistas, oscila entre: a concentração compulsiva e a demora exacerbada da acuidade visual (Amélie Bouvier), o primado da sensibilidade e intuição (Nazareno); a configuração de uma arquitetura conceitual decorrente da subtração sequenciada (Paulo Climachauska); a perceção do tempo (em duração) estendendo-se na concentração reclusa no ato (Renato Leal); a consciencialização corporal do pensamento e ato de desenhar para a uma genuína apropriação do espaço (Sofia Pidwell). Entre o pensamento e a obra em si, circula (porventura) no artista a decisão de atingir os níveis do quase minúsculo, exigindo a si próprio uma cumplicidade feita de precisão, rigor e meticulosidade, para assim atingir a ansiada praxis de desenho dirigido. Carateriza-se esta intencionalidade por evidências e conteúdos estéticos denotativos dos campos matemático e geométrico. Aplica-se esta consignação a produtos cuja pele e espessura - linhas definidas na superfície, direcionadas quer na vertical, quer na horizontal, quer na oblíqua – explicitam configurações singulares, às quais subjazem diretrizes diferenciadas, sob desígnio predominante de iluminação, proporcionalidade/proporção e organicidades. O que, curiosamente, é pontuado por uma analogia que evoca as três principais vertentes da Estética Medieval, seguindo Umberto Eco. A primazia do desenho, no cenário artístico da atualidade, é um fato irrevogável, de persistência e qualidade que contempla uma pluralidade de aceções e definições. Celebra-se a convicção de que o desenho, cujo movimento se revela pelo traço, é sempre infindo e possível, simbolizando o próprio movimento e transposição do homem na vida; revelando equilíbrio e estabilidade, significando proporção estética e conveniência ética. Em Portugal, no séc. XX, as ideias de Almada Negreiros relativas ao desenho confirmaram-lhe a precedência entre as expressões artístico-visuais. O autor de textos fragmentados de estética, compilados sob título de Ver, convocou o desenho para explicitar a matemática e geometria sagrada da criação, assinalando a acuidade e lição advindas do pensamento de Francisco de Holanda, comunicado em Da Pintura Antiga: "... o qual desenho, como digo, tem toda a sustancia e ossos da pintura, antes é a mesma pintura porque n'elle está ajuntado a idea ou invenção, a proporção ou symetria, o decoro[1] ou decencia, a graça e a venustidade, a compartição e a fermosura, das quaes é formada esta sciencia."[2]

O desenho foi entendido como uma das realizações mais árduas ao homem: "...não ha hoje este dia debaxo das strellas cousa mais deficil e ardua que o desenhar."[3] Arte profunda, a que maior engenho exigia, era, curiosamente, aquela de que se achava menos capaz, dada a sua complexidade, reconhecendo-a como a mais presente e necessária em tudo no mundo. Por outro lado, e lendo (também) a contemporaneidade, Tania Kovaks assinala que: “Drawing is often thought of as a very private activity, many drawings are made and never meant to be seen, erotic sketchbooks, exorcising, the night’s thoughts or demons.”[4] O desenho, de forma simbólica, é o próprio homem quando os traços e as linhas do desenho que configuram o corpo, encerram em si "…o fim da arte porque a strimidade havia de cercar a si mesma e acabar em modo que prometa haver da outra banda outra cousa, e que mostre também aquilo que se esconde."[5] A ideia que em Holanda configura a relevância do desenho, quanto às potencialidades intrínsecas que o constituem e pelas quais se expressa, surgindo por afinidade, quer em Leon-Battista Alberti, quer no próprio Leonardo da Vinci.[6] Afinidade e razão presidem a uma efabulada organização dos desenhos dos cinco artistas, como se num ápice, os respetivos trabalhos se sobrepusessem e fizessem um todo compósito, onde as pessoalidades, todavia, continuassem percetíveis… A necessidade das viagens destes desenhos e intervenções diretas in loco exprime-se na convicção, e através da cumplicidade dos 5 artistas de 2 continentes que ao longo de quase já 2 anos têm regularmente comunicado entre si, pulando por cima do oceano que une mais do que divide – de Lisboa a São Paulo…muitas águas, nuvens e profundezas a delinear.

Maria de Fátima Lambert SP junho 2013/LX maio 2015

[1]A concepção de decoro provém de Cícero e santo Agostinho, tendo sido igualmente tomada pelos árabes Avicena e Algazel, que a tomaram provavelmente dos gregos. Cf. Edgar de Bruyne, La Estetica de la Edad Media, pp.39-41 [2]Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Capitolo XVI "Em que consiste a força da Pintura", p.99. As qualidades, consideradas por Holanda, indispensáveis à boa pintura eram: a invenção, a proporção e o decoro. A acepção de Francisco de Holanda mostra afinidade à de Leon Battista-Alberti in De Pictura. Considere-se, ainda foi a abordagem de Lorenzo Ghiberti, Comentarii (1447) explicitando uma “Teori del disegno”, que lhe foi anterior, portanto. [3]Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Capitolo XVI "Em que consiste a força da Pintura", p.100 [4] Tania Kovats, “Traces of Thought and Intimacy”, The Drawing Book – a survey of drawing: the primary means of expression, p. 9 [5]"E em tanto ponho o desenho, que me atreverei a mostrar como tudo o que se faz em este mundo é desenhar; e fallando com os pimtores, tambem me atrevo a provar-lhes e fazer-lhes bom que val mais um só risco ou borrão dado pola mestria de um valente desenhador, que não ja uma pintura muito limpa e lisa e dourada e chea de muitas personagens feitas de incerta pintura e sem a gravidade do desenho." Cf. Francisco de Holanda, Op. Cit., pp.100-101 [6] Vide Alberti in De Pictura, cf. pp.110 a 114, quando se referiu à importância da pintura, para o exercício das outras artes e indicando-lhe qualidades relacionadas aos domínios do desenho. Mas seria ao pensamento de Leonardo que mais se aproximava, segundo Angel González Garcia, vide notas à versão portuguesa. Cf. Francisco de Holanda, Op. Cit., p.101

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