A percepção da dor na leishmaniose cutânea

October 10, 2017 | Autor: Silvia Cangussu | Categoria: Leishmaniose, Nocicepção, Dor Inflamatória
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saúde pública

AdaPercepção Dor na Leishmaniose Cutânea

Ausência desse desconforto na doença sugere interferência capaz de atrasar a procura de tratamento adequado. Por Silvia Dantas Cangussú, Carolina Carvalho de Souza e Rosa Maria Esteves Arantes

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Silvia Dantas Cangussú é professora de biologia celular, histologia geral e histologia dos sistemas na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e desenvolve pesquisas nas áreas de dor inflamatória e neuroinflamação, imunopatologia das leishmanioses e microelementos, imunopatologia da doença de Chagas. Carolina Carvalho de Souza é professora de patologia na FASF, pós-doutoranda em patologia das leishmanioses na UFMG e desenvolve pesquisas nas áreas de dor inflamatória e neuroinflamação, imunopatologia das leishmanioses e microelementos. Rosa Maria Esteves Arantes é professora do departamento de patologia/ICB na UFMG, pesquisadora CNPq nível II, e desenvolve pesquisas nas áreas de neuropatologia experimental, relação parasito-hospedeiro, sistema nervoso entérico, gnotobiologia, patologia das doenças tropicais.

dor está associada a diversas doenças e provoca uma resposta sensorial e motora de proteção, benéfica por alertar que algo está prejudicando o organismo. Esse sintoma é um alarme contra danos de tecidos, um importante ganho evolutivo.

Relatos de feridas indolores na leishmaniose cutânea humana sugerem interferência da doença na percepção da dor. Infecção com Leishmania major em diferentes linhagens de camundongos provoca diferentes respostas a estímulos dolorosos, diferenças na densidade da inervação e nos níveis locais de citocinas proinflamatórias. Essas modificações sugerem influência das citocinas na inervação e, por sua vez, nas variações de dor. Nossos dados em camundongos podem explicar o fato de que feridas grandes, observadas em algumas formas da leishmaniose cutânea humana, são favorecidas pela menor percepção da dor em pacientes que chegam para o diagnóstico e tratamento tardiamente. Quando sentimos dor, é muito difícil expressarmos para alguém a intensidade dessa situação, por ela ser subjetiva, com reações muito individuais e de difícil expressão verbal. A intensidade da dor em cada pessoa depende da sua experiência anterior com essa sensação, tornando o estudo dessa experiência um tema de enorme complexidade. Em animais a dor pode ser estimada apenas pela análise de suas reações a estímulos químicos, físicos ou térmicos, e é ainda mais complexa. As terminações nervosas livres presentes na pele são prove-

nientes de corpos de neurônios pseudounipolares, de onde partem prolongamentos únicos que logo se dividem em dois ramos. Os neurônios pseudounipolares se encontram em gânglios nervosos (conjunto de corpos de neurônios situados fora do sistema nervoso central). Por ação de estímulos inflamatórios os neurônios e outras células produzem mediadores químicos, como prostaglandinas e aminas simpáticas, que agem nas terminações nervosas. Sob a ação desses mediadores, as terminações nervosas tornam-se sensíveis a estímulos térmicos, mecânicos ou químicos de baixa intensidade, que normalmente não provocariam dor. Apesar de a inflamação ser uma reação do organismo à infecção ou lesão do tecido, e importante para impedir o avanço dos agentes agressores, mediadores químicos liberados durante o processo inflamatório também podem provocar dor. A dor está frequentemente associada a diversas doenças e provoca uma resposta sensorial e motora de proteção extremamente fundamental para alertar que algo está prejudicando o corpo. Assim, este sintoma pode ser considerado um sistema de alarme contra danos teciduais, sendo um importante ganho evolutivo.

EM SÍNTESE Relatos de feridas indolores na leishmaniose cutânea humana sugerem interferência dessa doença na percepção da dor. A intensidade da dor depende de uma experiência anterior com essa sensação, tornando o es-

tudo dessa experiência um tema de enorme complexidade. Já as leishmanioses formam um conjunto de doenças provocadas por parasitos do gênero Leishmania, caracterizadas pela Organização Mundial da Saúde

(OMS) como uma das seis doenças infecciosas mais importantes do mundo. São endêmicas em 88 países, 66 deles no Oriente e 22 nas Américas. No Brasil, a leishmaniose ocorre em todos os estados da federação.

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CICLO BIOLÓGICO

Como a Doença se Propaga As amastigotas são liberadas no intestino do vetor, transformando-se em promastigotas

O hospedeiro é infectado durante alimentação sanguínea do vetor

As formas promastigotas penetram em células macrófagas, transformam-se em amastigotas e se reproduzem por divisão binária

O vetor ingere macrófagos infectados quando se alimenta

Macrófago

Entre os mediadores químicos liberados no processo da inflamação, as citocinas, proteínas que modulam a função celular na resposta imune, fazem conexão entre os sistemas imune e nervoso, e estão envolvidas com a dor. A liberação das prostaglandinas e aminas simpáticas, que provocam a dor, depende da liberação anterior de uma cascata de citocinas induzidas pelo processo inflamatório. Numerosos estudos experimentais de inflamação mostraram que citocinas proinflamatórias, além de induzirem dor, estimulam o sistema imune favorecendo a inflamação e eliminação de patógenos intracelulares. Exemplos dessas citocinas são as interleucinas IL-6 e IL-8, a quimiocina denominada KC em camundongos e correspondente à IL-8 de humanos e o fator de necrose tumoral (TNF-α). Mas citocinas anti-inflamatórias como IL-4 e IL-10 também liberadas durante o processo inflamatório, reduzem a dor e são importantes na produção de anticorpos. Conhecer o papel e os mecanismos de ação dessas citocinas nas diversas doenças é a base científica para o desenvolvimento de medicamentos que bloqueiam ou inibem a dor e outros fenômenos indesejáveis da inflamação. As leishmanioses formam um conjunto de doenças provocadas por parasitos do gênero Leishmania e foram caracterizadas pela Organização Mundial da Saúde como uma das seis doen-

ças infecciosas mais importantes do mundo. São endêmicas (ocorrem em determinada região e com certa frequência) em 88 países, 66 no Oriente e 22 nas Américas. No Brasil a leishmaniose está presente em todos os estados. A transmissão da doença se dá pela picada da fêmea infectada do mosquito flebótomo, do gênero Lutzomyia, popularmente conhecido como mosquito-palha. É uma zoonose, isto é, o mosquito só transmite a Leishmania para o homem se picar um animal infectado, sem transmissão direta de uma pessoa a outra. A infecção natural da leishmaniose se apresenta sob duas formas principais: a visceral, conhecida como calazar e quase sempre fatal quando não tratada, e a tegumentar, que pode apresentar várias manifestações clínicas, uma delas a leishmaniose cutânea, também conhecida como “ferida brava” ou “úlcera de Bauru”, iniciada por uma ferida na parte do corpo em que o mosquito picou. A ferida pode cessar de crescer ou evoluir e formar uma úlcera que se caracteriza por uma ferida com borda elevada e região central mais profunda com a forma de um vulcão com cratera central. A evolução da ferida de leishmaniose depende de uma associação complexa entre a resposta imune do paciente e a virulência da espécie de Leishmania que o infecta, e é capaz de curar-se espontaneamente.

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EXPERIMENTOS EM LABORATÓRIO inoculam parasito na orelha de cobaias para investigação da progressão da infecção: acima, ratos brancos com 10 semanas de inoculação e, abaixo, período de 12 semanas evidencia úlcera típica

Simulação de infecção

para estudo da leishmaniose cutânea utilizamos o modelo semelhante à infecção natural, com inoculação de baixa dose do parasito (100 a 1.000) na orelha de camundongos, com injeção na derme, tecido conjuntivo abaixo do epitélio da pele. Acredita-se que a injeção de 100 a 1.000 parasitos seja a dose semelhante à inoculada pelo inseto vetor na infecção natural. Além disso, seu aparelho bucal chega apenas até a derme. A ferida provocada nesse modelo de infecção com baixa dose é parecida com aquela provocada pela infecção natural. Utilizamos a espécie Leishmania major para as infecções em duas linhagens de camundongos. Com ela, o camundongo de

A úlcera típica da leishmaniose cutânea humana é indolor, segundo muitos autores. Mas alguns pacientes fazem referência a essa sensação. pelagem escura C57BL/6 é resistente à infecção, desenvolve uma ferida que se limita ao local da injeção do parasito, tende à cura e apresenta expressão predominante de citocinas proinflamatórias, que induzem dor. Os camundongos de pelagem branca BALB/c, ao contrário, desenvolvem feridas graves e descontroladas, com expressão predominante de citocinas anti-inflamatórias, que podem inibir dor, ou mesmo não estarem associadas ao fenômeno da dor.

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A úlcera típica da leishmaniose cutânea humana é descrita pela maioria dos autores como indolor. Mas há controvérsias, pois alguns pacientes relataram dor nessa doença. Além disso, também é controverso o envolvimento de nervos periféricos na ausência ou presença da dor na leishmaniose cutânea, tanto em humanos quanto em camundongos de laboratório. Esses fatores são uma oportunidade para estudo e compreensão dos fenômenos dolorosos observados na leishmaniose cutânea.

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Analisamos a reação à dor nos camundongos utilizando estímulo térmico (sensibilidade térmica), com um aparelho simples adaptado para esse fim. Quando o estimulo térmico é aplicado, as terminações nervosas na orelha se sensibilizam e o camundongo demonstra fisicamente a sua percepção à dor, afastando-se do estímulo. Observamos que no camundongo branco houve diminuição da sensibilidade térmica a partir de nove semanas após infecção. Neste caso, os animais demoravam para responder ao teste térmico quando comparados aos animais não infectados (grupo controle). O camundongo escuro apresentou variação da sensibilidade térmica em relação ao grupo controle apenas na segunda semana, quando os animais foram mais sensíveis ao teste térmico. As diferenças observadas na sensibilidade térmica entre as linhagens de camundongos escuros e brancos podem estar relacionadas às variações no grau de lesão dos nervos periféricos. A observação ao microscópio mostrou, nas feridas do camundongo branco, que os nervos permaneceram intactos e bem corados, durante todo o período de observação, apesar de estarem imersos nas grandes lesões teciduais na fase crônica da inflamação. No camundongo escuro, fibras nervosas mal coradas foram observadas na segunda semana após infecção, com sinais de degeneração dos nervos e presença de células inflamatórias no perineuro (tecido conjuntivo que reveste pequenos feixes nervosos). Essa lesão dos nervos periféricos coincidiu com o período em que os animais estiveram mais sensíveis ao teste térmico. Depois de duas semanas houve retorno da coloração normal dos nervos do camundongo escuro.

ANTES DE EVOLUIR para um estágio que pode ser dramático, a infecção apresenta uma forma semelhante ao cone de um vulcão

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sensibilidade e grau de lesão

os resultados apresentados até o momento demonstram que as variações na sensibilidade térmica dos camundongos infectados com L. major estão relacionadas ao grau de lesão dos nervos periféricos. Quando analisamos as variações dos níveis de citocinas nos animais, observamos que no camundongo branco houve diminuição da citocina proinflamatória IL-6 após 12 semanas de infecção, período de menor sensibilidade térmica neste animal. Os níveis das citocinas proinflamatórias IL-6, TNF-α e KC aumentaram no camundongo escuro durante a segunda semana após infecção, período de maior sensibilidade térmica neste animal. A relação entre aumento de citocinas proinflamatórias e da dor reforça o papel dessas citocinas na sensibilização das terminações nervosas do camundongo escuro. O estudo das citocinas na dor inflamatória é importante devido à complexidade dos mecanismos envolvidos nessa sensação. Apresentamos aqui um modelo para estudo da dor inflamatória em camundongos que reforça o papel das citocinas proinflamatórias na lesão de nervos e consequentemente na maior sensibilidade à dor. Nosso trabalho reúne a complexidade da dor em uma condição infecciosa importante para a saúde pública, com os mecanismos da resposta imune induzida pelo parasito, além da relação entre agentes inflamatórios, anti-inflamatórios, sensibilização do nervo e dano tecidual. Esses fatores ampliam nossos interesses de pesquisa sobre aspectos estruturais dos elementos

nervosos através da histopatologia, em modelos de dor ou analgesia (menor percepção de dor ou sua ausência a estímulos dolorosos), além de aspectos funcionais como, por exemplo, as diferenças na liberação dos vários neurotransmissores − substâncias químicas produzidas pelos neurônios − nas respostas inflamatórias diferentes das duas linhagens de camundongos. Por outro lado, este tipo de pesquisa experimental pode ajudar a explicar o fato de que feridas grandes e muito destrutivas vistas em algumas formas clínicas da leishmaniose cutânea são em parte favorecidas pela menor percepção da dor em pacientes que só chegam para o diagnóstico clínico e tratamento bem tarde no desenvolvimento da doença.  PA R A C O N H E C E R M A I S

The endogenous cytokines profile and nerve fibers density in mouse ear Leishmania major-induced lesions relate to nociceptive thresholds. Cangussú SD, Souza CC, Castro MS., Vieira LQ, Cunha FQ, Afonso LCC, Arantes RME. Experimental Parasitology. v. 133, p. 193-200, 2013. Assay of therapeutic ultrasound induced-antinociception in experimental trigeminal neuropathic pain. Savernini A, Savernini N, Amaral FA, Romero TRL, Duarte IDG, Castro MAS. J. Neurosci. Res. v.90, p. 1639-1645, 2012. Histopathology of Leishmania major infection: revisiting L. major histopathology in the ear dermis infection model. Cangussú SD, Souza CC, Campos CF, Vieira LQ, Afonso LCC, Arantes RME.. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. v. 104, p. 918 922, 2009.

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