A percepção do espaço ibérico nas Viagens de Coelho de Carvalho (1888)

July 3, 2017 | Autor: S. Cerqueira Pascoal | Categoria: Travel Literature, InterCultural Studies, Geography of perception
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VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010

A percepção do espaço ibérico nas Viagens de Coelho de Carvalho (1988) Sara Cerqueira Pascoal Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto Instituto Politécnico do Porto

Abstract: Em 1888, Coelho de Carvalho, publica as suas “Viagens: Madrid, Barcelona, Nice, Mónaco”. Obra saída dos prelos lisboetas de António Maria Pereira, as Viagens de Coelho de Carvalho são um registo de notas e apontamentos, ilustrados com esquiços do próprio autor, onde o seu olhar confronta as culturas estrangeiras com a cultura nacional, à luz de estudos de história de arte e história política. Com o subtítulo de Cartas e notas destinadas a Cesário Verde, a estrutura da obra de Coelho de Carvalho oscila entre a memorialística, o diário sob a forma epistolar e a crónica jornalística, representando um exemplo emblemático deste género — a literatura de viagens — permanentemente situada nos confins da narrativa com outras formas de escrita na primeira pessoa. No seu itinerário através de Castela, Aragão e Catalunha, o viajante Coelho de Carvalho escreve ao seu amigo longas cartas, anotando, como ele próprio declara já no final da obra, “das paizagens, dos costumes, dos effeitos da luz e dos aspectos moraes dos paizes e das sociedades a través de que vou passando.” (p. 276). Este é o tropo que transforma o livro num olhar total que abarca caracteres, cultura, personagens, costumes e paisagens, tendo talvez em mente a inclinação para a “descrição completa”.

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Os objectivos perseguidos por este estudo – que se situa na charneira entre a Literatura Comparada a História da Cultura e a Geografia – prendem-se com a dilucidação da percepção e da reconstrução do espaço ibérico que são levados a cabo pelo diplomata português. A metodologia usada para esta pesquisa consistiu numa análise desconstrutivista do discurso de Coelho de Carvalho, plasmando uma metódica reconstituição quantitativa dos topónimos por este autor referidos, com uma arqueologia cuidadosa dos principais elementos da paisagem, cruzados com as referências literárias que pudemos isolar. Esta análise e o levantamento a que procedemos, permitiu-nos elaborar a cartografia temática que serviu de base a este estudo. A viagem pela paisagem humana e real será, por conseguinte, leitmotiv de profundas reflexões de Coelho de Carvalho fonte geográfica, literária e cultural de inesgotável interesse que – será nosso escopo demonstrar – testemunha uma visão perceptiva do espaço vivido, mas também do espaço rememorado.

A percepção do espaço ibérico nas “Viagens. Madrid, Barcelona, Nice, Mónaco. Cartas e notas destinadas a Cesário Verde” de Coelho de Carvalho (1888) Sara Cerqueira Pascoal Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto Instituto Politécnico do Porto [email protected]

Em 1888, Coelho de Carvalho, publica as suas Viagens: Madrid, Barcelona, Nice, Mónaco. Obra saída dos prelos lisboetas de António Maria Pereira, as Viagens de

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Coelho de Carvalho são um registo de notas e apontamentos, ilustrados com esquiços do próprio autor, onde o seu olhar confronta as culturas estrangeiras com a cultura nacional, à luz de estudos de história de arte e história política. Com o subtítulo de Cartas e notas destinadas a Cesário Verde, a estrutura da obra de Coelho de Carvalho oscila entre a memorialística, o diário sob a forma epistolar e a crónica jornalística, representando um exemplo emblemático deste género — a literatura de viagens — permanentemente situada nos confins da narrativa com outras formas de escrita na primeira pessoa. No seu itinerário através de Castela, Aragão e Catalunha, o viajante Coelho de Carvalho escreve ao seu amigo longas cartas, anotando, como ele próprio declara já no final da obra “impressões fugitivas” e “sem critica” “das paizagens, dos costumes, dos effeitos da luz e dos aspectos moraes dos paizes e das sociedades a través de que vou passando.” (p. 276). Este é o tropos que transforma o livro num olhar total que abarca caracteres, cultura, personagens, costumes e paisagens, tendo talvez em mente a inclinação para a “descrição completa”. Tal como os outros viajantes oitocentistas, cujas obras compulsámos, Coelho de Carvalho patenteia um aprofundado conhecimento da natureza, que resulta numa particular atenção votada à paisagem, amiúde simbiose entre pessoas e factos, o que resulta numa obra de forte pendor analítico, sociológico e histórico-político. Os objectivos perseguidos por este estudo – que se situa na charneira entre a Literatura Comparada os Estudos Culturais e a Geografia – prendem-se com a dilucidação da percepção e da reconstrução do espaço ibérico que são levados a cabo pelo diplomata português. A metodologia usada para esta pesquisa consistiu numa análise desconstrutivista do discurso de Coelho de Carvalho, plasmando uma metódica reconstituição quantitativa dos topónimos por este autor referidos, com uma arqueologia

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cuidadosa dos principais elementos da paisagem, cruzados com as referências literárias que pudemos isolar. Esta análise e o levantamento a que procedemos, permitiu-nos elaborar a cartografia temática que serviu de base a este estudo. A viagem pela paisagem humana e real será, por conseguinte, leitmotiv de profundas reflexões de Coelho de Carvalho fonte geográfica, literária e cultural de inesgotável interesse que – será nosso escopo demonstrar – testemunha uma visão perceptiva do espaço vivido, mas também do espaço rememorado. Coelho de Carvalho nasceu em Tavira em 1855 e morreu em 1934, em Portimão, na fortaleza do Arade, que adquiriu e transformou em residência familiar 1 . Esta longevidade permitiu-lhe desenvolver múltiplas e variadas actividades e funções. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, de que viria a ser reitor, foi igualmente um jurista de renome, com banca de advogado em Lisboa, sócio e presidente da Academia das Ciências e diplomata, não obstante a sua carreira intermitente, investido em representações consulares de Xangai a Huelva, esta última missão entre 1919 e 1922. Desde a História à Poesia, passando evidentemente pelos Relatos de Viagem, e terminando na Dramaturgia, Coelho de Carvalho desenvolve uma obra extensa e plural, injustamente esquecida nos dias de hoje. A sua poesia denuncia uma proximidade muito forte com Cesário Verde – pela notação flagrante e impressionista – autor que admirava profundamente a quem estes apontamentos de Viagem – subintitulados cartas, são dirigidos, como já tivemos ocasião de afirmar e que serão publicados um ano após a morte do seu destinatário, em 1888, não obstante a viagem tenha decorrido em 1884. Em Janeiro de 1884, Coelho de Carvalho será investido de uma representação diplomática em Xangai. No Portugal oitocentista, viajar em direcção ao Oriente,

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Cf. AA.VV, (1990), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, Lisboa

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significava ter obrigatoriamente de percorrer um longo itinerário, de modo a apanhar o navio em direcção à China. Durante a viagem, Coelho de Carvalho aproveita o tempo para conhecer os locais do itinerário e para os dar a conhecer ao seu amigo Cesário Verde. Em termos cronológicos, o relato de viagem começa em Janeiro de 1884, embora sem a precisão do dia, e arrastar-se-á durante um mês aproximadamente, coincidindo a última notação temporal com a visita ao casino de Monte Carlo, no dia 27 de Fevereiro. Este mês de viagem será a ocasião para Coelho de Carvalho dirigir ao amigo e poeta, estes apontamentos sobre a forma de cartas. A nós interessa-nos sobremaneira esta notação das paisagens e espaços, mormente o quadro natural em que se desenvolve a viagem, bem como a dilucidação do que esse quadro tem de construído, lugar de rememoração ou de reconhecimento de memórias livrescas.

1. O Espaço vivido: de Lisboa ao Mónaco Coelho de Carvalho parte de comboio em Janeiro de 1884, através do ramal de Cáceres, inaugurado em 1880, e que tornara mais rápida a viagem Lisboa – Madrid, encurtando a distância em cerca de 200 Km 2 . Efectivamente, enquanto uma década antes, Luciano Cordeiro ou Manuel Pinheiro Chagas, percorrendo a linha de Badajoz, 2

Como refere Maria Fernanda Alegria, ao contrário do que aconteceu noutros países europeus os dois países ibéricos não conseguiram desenvolver um sistema de transportes alternativo ao caminho-de-ferro. O terreno acidentado afectou não só a sua construção, como a sua conservação. Por outro lado, a construção de canais não se adaptava ao tipo de relevo ou, noutras regiões, com o regime de precipitações que impossibilitava a sua utilização durante grande parte do ano. O transporte por cabotagem não solucionava, por seu turno, as relações com o interior. O início relativamente tardio da rede ferroviária portuguesa – que só pode tornar-se efectivo com a Regeneração (a partir de 1851) – contribui para explicar a dependência do seu traçado para com outros países, sobretudo a rede espanhola, mas também com a de França. Em 1855, ainda não existia em Portugal nenhum troço de caminho-de-ferro explorado e em Espanha já se havia construído 143Km.Como a construção da via ferre que unia Madrid a Badajoz já estava adiantada, preferiu-se em Portugal aproveitar esta ligação para criar a primeira linha internacional lusa, em detrimento das ligações internas, nomeadamente Lisboa – Porto. No entanto, será somente em 1863 que a Companhia Real dos Caminhos-de-ferro portugueses termina a ligação Lisboa – Elvas – Badajoz, concluindo apenas em 1866, a ligação ferroviária até Madrid. Só em 1880 se inaugura o ramal de Cáceres, que tornará a viagem entre as duas capitais ibéricas muito mais rápida. (ALEGRIA, 1983:5,6)

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demorariam cerca de um dia e meio, isto é cerca de 36 horas, a chegar à capital espanhola, a viagem de Coelho de Carvalho até Madrid leva aproximadamente 19 horas, o que nos deixa intuir da fantástica evolução dos transportes ferroviários em finais do século. O nosso diplomata assinala a cronologia com algum rigor, fazendo referência à hora de chegada do trem: “Enfim, às 3 horas da tarde, distinguem-se no horizonte algumas torres e zimbórios. É Madrid.” (p. 13) permitindo-nos deduzir a hora de partida para cerca das 8 horas da noite, hora a que estava estipulada a partida do trem para Madrid e que se corrobora com a marcação da hora em que o trem retoma o contacto com o Tejo, logo depois do Entroncamento: “Eram onze horas da noite quando de novo marginámos o Tejo sobre uma trincheira alta” (p.5). A viagem pela Europa que a Figura 1 pretende ilustrar permite-nos visualizar o itinerário objecto desta narrativa. Passada a fronteira do Marvão e chegado a Madrid, prossegue a viagem na linha de caminho de ferro que liga Madrid a Barcelona, passando por Saragoça. Da capital catalã, sai, novamente em trem, agora, no ramal que liga Barcelona à França, linha de comboio paralela à costa, que sobe até Aragão, atravessando a fronteira francesa. Chegado a terras gaulesas, Coelho de Carvalho muda de trem, continuando o percurso, primeiro através dos Pirinéus e logo ladeando a “estrada que ia costeando as praias do Mediterrâneo” (p.190) até Marselha, onde previra apanhar um dos paquetes da companhia Messageries Maritimes, que, na época, efectuava a viagem até à China. Em Marselha, acompanhado do cônsul Português descobre que o paquete que deveria partir no dia seguinte, partira já dois dias antes e só daí a treze dias sairia o Yangtse para Xangai. Nestas circunstâncias, Coelho de Carvalho prefere não ficar em Marselha e parte de visita a Nice, onde aproveitará para participar dos festejos de Carnaval, tencionando voltar mais tarde a Marselha, a tempo de apanhar o Yangtse. Passado o Entrudo, a 26 de Fevereiro, os planos de Coelho de Carvalho

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alteram-se bruscamente. Opta por não regressar a Marselha e continuar viagem em direcção a Xangai desde Itália, partindo até Roma e apanhando o barco em Nápoles: “Não voltei pois a Marseille, como tencionava; e eis-me a caminho da cidade eterna. Tomarei portanto em Nápoles a mala da China.” (p. 252) A narrativa termina com uma última carta a Cesário Verde escrita desde o Mónaco. A justificação para esta paragem é imediatamente avançada:

“Parei em Mónaco para te escrever; e creio que o governo do Terreiro do Paço não levará a mal esta paragem, porque o Mónaco é um principado, e uma casa de jogo, e por consequência uma corte, logar decente, e um centro de interesses, que um cônsul portuguez, que vae para a China deve visitar para se instruir. Como sabes Sua Magestade El Rei D. Luiz tem, fazendo parte da sua vasta monarchia, uma casa de jogo no extremo-oriente, a famosa cidade de Macau. É pelo cofre de Macau que são pagos os vencimentos do cônsul portuguez na China. (…) Zelar pelo desenvolvimento do jogo como fonte de rendimento é, portanto, dever de todo funcionário portuguez na China” (p. 252)

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N

Viagem de Coelho de Carvalho Fronteira Cidades de passagem 0

Marselha Saragoç Barcelona

234 Km

Mónaco Nice Roma Nápoles

Marvão Madrid Lisboa

Fonte: © Christos Nussli 2002, www.euroatlas.net

Figura 1 -Viagem de Coelho de Carvalho no caminho-de-ferro europeu (1884)

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1.2 A Espanha: É na transição entre os dois países, na travessia da fronteira, que Coelho de Carvalho deixa escapar algumas ideias claramente hispanófobas, que distinguem este relato de viagem de todos os outros que compulsámos. Apesar da viagem decorrer de noite, o diplomata luso não é alheio à paisagem que percorre e a “noite sem luar, mas clara” permite-lhe destacar não só o momento em que a linha férrea acompanha o Tejo, como também a magnificência e o “pitoresco edade-media” do castelo de Almorol. A partir de Abrantes, quando a linha de caminho de ferro se afasta do Tejo, Coelho de Carvalho adormece, só despertando passada já a fronteira, em Valência de Alcântara, sob o olhar ameaçador dos carabineiros e o colorido bulício de uma estação cheia de “vendilhões” que apregoavam cochillhas e punhais de Toledo ou de arrieros. “Caras velhacas, de duros perfis secos e morenos”. Era esta realmente a trágica Castela”! (p. 9)

Saragoça

Barcelona

Madrid

Marvão

Cáceres

Viagem de Coelho de Carvalho

Lisboa

Caminho-de-ferro Fronteira Cidades de passagem

0

100 Km

Fonte: Mappa dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, 1898, Esc. 1:2000000 ( a partir de Maria Fernanda Alegria).

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Figura 2 – Viagem de Coelho de Carvalho no caminho-de-ferro ibérico (1884)

Neste contexto, uso da metonímia é deveras esclarecedor. A “trágica Castela” a que acabara de chegar o cônsul português é a Castela histórica e dominadora, cuja força centrípeta se manifestara muito cedo e que acabaria por reunificar grande parte dos reinos ibéricos, e a que Portugal escapara após o domínio filipino. Essa é aliás a nação que inspira a desconfiança e a fobia a Coelho de Carvalho, que claramente identifica a Espanha com o antigo reino de Castela, individualizando, em contrapartida, outras regiões, como a Catalunha, e distinguindo esta província do resto da Espanha e do conjunto ibérico e atribuindo-lhe um papel preponderante na reorganização social da Espanha e até mesmo de toda a Península (p.168). A razão dessa primazia reside, para o cônsul português, na influência constante das ideias francesas, que orienta “numa direcção moderna o espírito e o sentimento da Catalunha” (p. 168). Não é, de facto, “a trágica Castela”, mas sim a Estremadura, a província que agora atravessa e dentro do quadro natural desenhado pela percepção do diplomata português, perpassa nitidamente uma filtragem de teor emocional, afectivo e psicológico. “Passou-se a fronteira hespanhola, e o mais desprevenido viajante, que não soubesse que a havia transposto, exclamaria logo, ao dar os primeiros passos, ao encontrar os primeiros homens: - Este é outro povo! Que extraordinária e poderosa diferenciação foi esta dos dois povos da península, que conserva há tantos séculos em constante affirmação as respectivas individualidades; que apoz sessenta annos

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de submissão d’um ao outro, revelou-se mais vivaz e mais completa.” (p. 10) 3 O quadro natural da viagem é, em Coelho de Carvalho, a expressão do gosto estético tipicamente romântico da paisagem, da descoberta da biodiversidade, e da valoração do exótico e do arabizante, aliás traço comum com os outros relatos de viagem que compulsámos, e que contribuem para a formação dessa imagem arquetípica da Espanha. Talvez por isso os factores geográficos mais mencionados por Coelho de Carvalho na sua construção do quadro natural da viagem sejam o tipo de paisagem, o povoamento, e o tipo de vegetação. Da Estremadura realça a monotonia e a pobreza da paisagem: “A paisagem é chata; campos e campos de cerrado matagal de urzes e estevas; de longe em longe quadrados de fracas searas de centeio; e aqui e acolá erguem-se as trituradas envergaduras de algum souto de sobreiros. (…) A paisagem é triste. (…) Depois a immensa monotonia fatigante de uma campina árida e deserta.” (p. 11) “Algumas cidades e villas que se avistam da linha, apresentam-se escuras, cor de terra no seu tom geral.” (p.13)

Diplomata de carreira, advogado de formação, literato por paixão, Coelho de Carvalho é sensível ao gosto romântico da paisagem e, muito embora escreva já em finais do século, comunga, a par com outros viajantes de horizontes geográficos diversos, da noção de paisagismo romântico de carácter artístico (literário e gráfico), em

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Compare-se, de facto, esta percepção com a de Luciano Cordeiro, Pinheiro Chagas, Oliveira Martins, entre outros.

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contraponto com o paisagismo geográfico de cunho humboldtiano, propalado sobretudo por Élysée Reclus na obra “Nouvelle Géographie Universelle”, editada em 1876 4 . Viajando de Inverno, entre Janeiro e Fevereiro, as Cartas que Coelho de Carvalho dirige ao seu amigo Cesário Verde, distinguem-se, de facto, da maioria das narrativas compulsadas, por esboçarem um quadro paisagístico em tons de invernais. De facto, em comparação com as restantes obras rastreadas, o relato de viagem em apreço dá claramente maior relevo aos espaços interiores, em detrimento da paisagem exterior, uma vez que o clima chuvoso e o frio que se faz sentir nos meses de Janeiro e Fevereiro, faz recolher o autor-viajante em espaços como Museus, Teatros, Livrarias e Cafés. Mesmo quando o viajante nos descreve espaços exteriores, a focalização é na maioria das vezes efectuada a partir do interior, sobretudo durante as viagens de trem. O contrário, a descrição de espaços que percorre em passeio, só acontece muito amiúde e quando o clima permite, como é o caso de Barcelona.

1.1.Madrid. Em trânsito para Oriente, a estadia de Coelho de Carvalho na capital espanhola, deixa, todavia, reconhecer alguns dos pontos turísticos mais emblemáticos do Madrid de finais do século XIX, além de nos oferecer um enquadramento político-cultural de importância fundamental, perspectivado pela atenta perspicácia do diplomata português. Coelho de Carvalho, como os restantes viajantes portugueses de Oitocentos, alojase na Puerta del Sol, mais precisamente no Hotel Paris. A partir do centro da cidade, e recorrentemente, os percursos do nosso viajante incluem os monumentos e as avenidas mais célebres de Madrid, com particular destaque para o Museu do Prado. Com efeito, dos nove capítulos que dedica ao relato da sua estadia na capital espanhola, quatro são

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Ver ORTEGA CANTERO e GARCIA ALVAREZ (2006)

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exclusivamente votados à análise minuciosa das colecções representadas no Museu do Prado, com abordagem intensiva e extensiva da história e pintores da escolas espanholas. Muito contribui para esse facto não só o interesse artístico do diplomata, como também o tempo chuvoso e frio que pontualmente se vai percebendo assola a capital espanhola.

N Paseo de la Castellana

Calle de Alcalá

Teatro Real (Opera)

Calle Mayor

Puerta del Sol

Puerta de Alcalá

Teatro Español

Carrera de San Jeronimo

Museu del Prado

Perímetro urbano

Passeo del Prado

Fonte: Plano de Madrid, (1877), Charles Lassailly, Biblioteca Nacional de España

Figura 3 – Madrid vivenciado por Coelho de Carvalho (1888)

Mesmo sabendo que o objectivo último da sua viagem é o porto de Marseille, não nos pode deixar indiferente o facto de a estadia de Coelho de Carvalho ser algo prolongada, sobretudo se a esta premissa aliarmos a sua hispanofobia declarada. “Há quinze dias, pois, que vivo nos séculos XVI e XVII, epocha do crescimento e da idade

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áurea das artes em Hespanha” (p. 64), mas esta permanência prolongada parece não ser suficiente “para estudar conscienciosamente todas as escholas de pintura aqui representadas. Depois não basta ver; é necessário ler as biographias dos pintores, precisa-se recordar a historia da epocha em que cada um deles viveu, estudando as velhas chronicas e memorias…” (p. 63)

Para além desta longa incursão pelo museu madrileno, os roteiros percorridos são bastante reduzidos a um perímetro que não ultrapassa a famosa Rua de Alcalà que conduz aos passeios do Prado e da Castelhana, como se pode constatar pelo Mapa da Figura 3, sobrepujando da sua análise um imenso vazio. Podemos reduzir os percursos urbanos de Coelho de Carvalho a um vai-e-vem da Puerta del Sol pela Rua de Alcalà, até ao Prado e Castelhana, com um único desvio para assistir ao teatro, no magnífico edifício do Teatro Espanhol, a qual se acede pela bonita Carrera de San Jerónimo. Apesar de, em finais do século XIX, Madrid ser uma capital ainda muito rural, cujo perímetro urbano coincidia com os limites do jardim do Buen Retiro a Este e o Campo del Moro a Oeste, Coelho de Carvalho não se aventura para além dos percursos sociais e turísticos mais célebres, acabando mesmo por se perder no regresso do Teatro Real. A este facto não serão também alheias, como já referimos, as condições climatéricas que obstam à permanência no exterior. Coelho de Carvalho chega a relatar que a “chuva forte obrigava a multidão, que ia pelas ruas, a correr patinhando uma lama fina, alvadia, chapinhante” (p.14)

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1.2.De Madrid a Barcelona O trajecto de trem efectuado entre Madrid e Barcelona, percurso de aproximadamente 500 Km, leva uma noite e um dia, tal como Coelho de Carvalho escreve ao seu amigo Cesário Verde, já chegado à capital da Catalunha: “Sahi antehontem de Madrid, já de noite” (p. 145) e “enfim ao pôr do sol, chegamos a Barcelona” e, de novo, acompanhado pelo mau tempo, “debaixo d’uma tempestade”(p. 154). Coelho de Carvalho explica esta demora no percurso, porque em Espanha é preciso não contar com “a rapidez do trem, cuja velocidade máxima nunca passa além dos 35 kilometros por hora” (p. 149). Compartilha a carruagem com um catalão – José Utrillo – e os primeiros momentos da viagem são dedicados à explanação curiosa, entre um português e um catalão da famosa Questão Ibérica. Depois de uma calorosa discussão, Coelho de Carvalho adormece e a descrição da paisagem surgirá já com sol nado, em plena província de Aragão. A metáfora que aplica à paisagem aragonesa indicia as teses cientifistas muito propaladas durante todo o Oitocentos da permeabilidade das características da paisagem na personalidade dos seus habitantes, que Coelho de Carvalho estende inclusive aos animais. “ A paisagem é dura; a raça, que habita este solo rude, não cede de certo a nenhuma outra em soberba e altivez. Os animaes do paiz teem o mesmo carater fogozo e áspero dos seus donos. (…) Os toiros, os cavallos e os muares que por esses campos encontramos, são curtos, reforçados, de músculos salientes e nervosos, de pelagem escura, serdosa e áspera, faiscante, de refluxos metallicos; olhar fundo e duro…” (p.150)

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Até chegar a Barcelona, Coelho de Carvalho destaca ainda algumas”cidades e villas notáveis” do percurso: Saragoça, Lérida, onde o trem faz uma paragem, provavelmente para almoço, continua por Cervera e avista finalmente Monserrate, às portas de Barcelona.

1.3.Barcelona

Passeig de Gràcia

N Plaça de Catalunya

La R a m Lice bl Carrer de Sant Pau u a La R a m bl a

Castelo de Montjuic

Catedral Calle de Ferran Ajuntament Plaça Reial

Parroquia Santa Maria del Mar

Passeig de Colon Estatua del Marques de Comillas

Perímetro urbano (Cidade Velha)

Plaça de les Drassanes

Ronda Litoral

Fonte: Biblioteca Nacional de España.

Figura 4: Barcelona vivenciado por Coelho de Carvalho (1888)

Em plena capital da Catalunha, Coelho de Carvalho hospeda-se “no Hotel de las Cuatro Naciones, o melhor da cidade” (p. 151), situado no coração da Ramblas, nº 40, bem no centro da Rambla das Flores, conhecida também por Rambla de , Neste hotel,

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haviam-se já hospedado alguns dos mais ilustres viajantes e literatos oitocentistas. Da galeria de hóspedes célebres constam, a título de exemplo, os nomes de Charles Nodier (1832), Liszt, Stanley (1863), George Sand e Chopin (1838) ou Sentdhal (1837). É, por isso, local de revisitação de um espaço convocado por leituras que o público também partilha. A primeira incursão do nosso viajante, durante a manhã, leva-o, não muito longe, à descoberta da Rambla onde se situa o Hotel de las Cuatro Naciones – a Rambla das Flores. Durante o século XIX, este era o único lugar de Barcelona em que se vendiam flores, e onde se formavam tertúlias em redor das floristas de enorme beleza. Coelho de Carvalho descreve-nos assim este espaço: “Que magnificência! Que actividade! Que vida de negocio n’essa rua! D’um lado e outro magníficos edifícios, theatros, hotéis, cafés, livrarias, armazéns de modas e lojas de todos os géneros. Só casas de cambio contei dezesseis. Mas de tudo o mais gracioso, o mais surprhendente, é o mercado das flores. Cada vendedeira dispõe d’uma meza de mármore branco e pollido, pequena, de forma oval com o seu étagère de ferro, colocada symetricamente entre duas arvores. É encantador este pedaço da avenida, Rambla de las Flores, mudado em álea de jardim de sebes orvalhadas, onde por detraz de cada pyramide de variados matizes e perfumes, nos sorriem e nos fallam as esbeltas catalans, altivas e pytorescas nos seus trajes nacionaes.” (p. 156)

Depois do almoço, com o catalão José Utrillo, seu companheiro de viagem, como guia, Coelho de Carvalho embrenha-se em Barcelona: “tomamos uma sege e fomos ver a cidade e visitar os seus principaes monumentos”. (p.157)

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Sobem ambos, desta feita, a Rambla, passando para a Rambla de los Estudios, o bairro da Universidade, nome dado devido ao edifício construído em meados do séc. XV – o Estudo Geral ou Universidade. Esta Universidade foi suprimida por Filipe V e o edifício foi convertido em quartel. Acabou derrubado em 1843. Fora há cerca de 20 anos que Barcelona rompera o cerco das suas muralhas, e deixara de ser o hexágono do recinto do século XV. A Barcelona oitocentista podia então

“alargar-se

e

engrandecer-se,

e

em

cada

anno

embellezar-se

consideralvelmente” (p.157) Coelho de Carvalho deslumbra-se com a modernidade e o cosmopolitismo de uma cidade que quatro anos mais tarde, em 1888, iria receber a Exposição Universal e, seria doravante, o baluarte do modernismo. A próxima paragem é, de facto, uma das partes modernas de Barcelona, já fora da antiga muralha, o Paseo de Gracia, que lembra a Coelho de Carvalho a Avenida da Liberdade em Lisboa, mas rapidamente se inverte o sentido, para descobrir, em contraste, os bairros medievais, “a velha cidade com as suas ruas estreitas, tortuosas, um tanto sombrias, e onde os numerosos monumentos attestam as grandezas passadas da velha capital da Catalunha” (p. 158). O itinerário é de resto uma visita que se cirscunscreve pontos turísticos de Barcelona, coincidindo com os limites da capital catalã, que começava a expandir-se. Do Paseo de Gracia, seguem pela Rua de Obispo até à Catedral, para em seguida rumarem ao Ayuntamiento. Ainda dentro do bairro gótico, visitam a bela Igreja de Santa Maria del Mar e continuam em digressão até à avenida marítima, passando pelas Galerias de Xifré, “onde a maior parte das agencias marítimas teem os seus escriptorios” (p. 160) e chegam a uma grandiosa praça, donde a vista descobre o “grandioso boulevard, El Paseo de Cólon. Nesta praça levanta-se a estátua de D. António Lopez, Marquez de Comillas, o audaz armador que fundou a formidável Companhia Transatlântica” (p.160).

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Desde o Paseo de Cólon, a “linha de aterro vae correndo à beira mar até ao sopé d’um morro, sobre o qual a fortaleza de Montjuic se levanta como uma sentinella que, sempre alerta, vigia ao mesmo tempo o porto e a cidade.” (p. 160) Regressam “quasi de noite, para a Rambla, pela Praça Real e por uma passagem envidraçada.” (p. 162) O sol, já se pôs e a multidão enche as ruas da Rambla, sobretudo os operários e operárias. Aproveitam também para “passeandar” pela Rambla e entrar em algumas livrarias. Após o jantar, o diplomata vai ao teatro lírico, recentemente construído, o Liceu, onde se cantava o Baile de Máscaras. Coelho de Carvalho permanece ainda mais dois dias em Barcelona, mas o tempo invernal e as tempestades não lhe permitem passear mais pela cidade. Dedica-se, nesses dias que lhe restam, a visitar as livrarias, a conversar sobre literatura e a conhecer os catalães. As cartas dirigidas a Cesário Verde tecem agora longas reflexões sobre o papel que a Catalunha terá de desempenhar na reorganização social da Espanha e da Península. Coelho de Carvalho relembra ao amigo elementos de superioridade da Catalunha em relação a Castela (direcção moderna, espírito e sentimento, influência íntima e constante das ideias francesas), o que o leva a concluir que “o renovamento só pelo elemento catalão se poderá vir a effectuar”

1.4.De Barcelona a Marseille: a paisagem mediterrânica

“ Nada há mais agradável, decerto, do que a amenidade desta paisagem, depois de se ter atravessado os adustos sertões da Península, pelas áridas campinas da Estremadura e de Castella, e de se

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ter galgado pelas gargantas das ásperas montanhas de Aragão” (p. 187)

Saindo de Barcelona no dia 18 de Fevereiro, no trem das duas horas da tarde, enceta o nosso diplomata a derradeira parte da viagem em solo espanhol e o confronto da amenidade do litoral mediterrânico com a monótona aridez da paisagem castelhana e estremenha ou a rudeza das cordilheiras aragonesas não poderão deixá-lo indiferente. Não obstante não faça qualquer referência toponímica, e apenas refira vagamente uma povoação, laivos da sua sensibilidade romântica incontinente – patentes, por exemplo, na sua obra poética - afloram na descrição da paisagem que o acompanha a sua viagem de trem: “Agora, à nossa direita, estende-se o mar, e que mar! D’um azul de anil, com a doçura delicada do cetim, arfa n’uma palpitação suave, vindo sacudir, brancas como flocos d’arminho, as delgadas espumas da sua pequena e branda rebentação, quazi sobre os rails do caminho. Nas praias, grandes barcaças de pesca, pintadas de cores vivas, umas brancas com grandes olhos de um e de outro lado, à proa, outras todas negras, jazem sobre a areia, como peixes monstruosos, arrastados para terra, ao abrigo da tempestade dos dias anteriores. Os pescadores consertavam as redes estendidas sobre a areia. Do outro lado, começavam as terras da vinha, dispostas em socalcos nas primeiras elevações do terreno, que sobe mais além em montanhas verdadeiras. Antes de anoitecer já havíamos galgado a cordilheira e corríamos por entre verdadeiras florestas de castanheiros, carvalheiras e azinheiros; cortávamos lagoas e passávamos torrentes, em plena região dos

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Pirenéus, alumiados por uma luz difusa, d’um tom único, entre alimonado e pardo” (p. 188)

A descrição da paisagem é claramente subsidiária da estética romântica. Coelho de Carvalho não se limita a descrever uma realidade e um espaço referenciais que observa, como também um espaço filtrado pela sua percepção, onde intervém por um lado o gosto romântico, mas igualmente a rememoração de uma paisagem que lhe é familiar e querida, porque semelhante à do Algarve, sua terra natal. Se a descrição do espaço vivido é filtrada por valores afectivos, ideológicos e psicológicos, não deixamos de nela poder descortinar uma caracterização do quadro natural. Dos factores naturais caracterizadores da paisagem podemos destacar a menção detalhada do Clima – que como vimos influencia nitidamente a viagem do autor -, o Relevo, o Povoamento, as principais Actividades económicas e a, finalmente aos domínios bio-geográficos dominantes, como por exemplo a predominância de azinheiras, castanheiros e carvalheiras ao longo da cordilheira dos Pirinéus.

2. O Espaço Ficcionado De facto, e como afirma A. Lopez Ontiveros, “la ciudad para el viajero romántico es sobre todo un teatro en el que, según los casos, se recrean ensoñaciones y se forjan proyecciones” (LOPEZ ONTIVEROS, 1888:32). Os relatos de viagem oscilam entre referencialidade e subjectividade, recriando um imaginário espacial, mas esboçando simultaneamente uma monografia de cariz geográfico, com detalhes como o relevo, o clima, a vegetação o povoamento ou ainda as actividades económicas. Este espaço imaginário, a que chamamos – espaço ficcionado – coloca o relato de viagens, mormente o livro de Coelho de Carvalho, na charneira entre literatura e

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geografia. O Espaço percorrido que o autor-viajante vai partilhando com o leitor é simultaneamente Espaço Ficcionado. O espaço vivido deixa-se, por conseguinte, contaminar com um espaço ficcionado. Espaço de rememoração literária, de convocação dos textos fundadores do género, ou simplesmente de apelo a um imaginário colectivo, construído com base em imagens partilhadas, quer pelo autorviajante, quer pelo público leitor. N’As Viagens de Coelho de Carvalho são numerosos os exemplos que podemos arrolar destes espaços ficcionados que se plasmam na convocação de leituras partilhadas com o leitor, em tropos literários fundadores do género ou simplesmente na valorização ou preferência por certos espaços muito ao gosto romântico. Conformam-se com esta última afirmação a atracção pelo medievalismo, a preferência pelas paisagens melancólicas e nocturnas e a fusão entre os sentimentos e emoções do escritor com a natureza, que caracterizam as descrições das paisagens, tal como atesta o seguinte excerto: “essa noite sem lua condizia com o estado do meu espírito, e me recordava a profunda melancolia saudosa d’uma alma que tristíssima ficasse na fria soledade da viuve.” (p. 7). Outro denominador comum entre a obra de Coelho de Carvalho e a dos demais escritores-viajantes que percorreram a Espanha prende-se com a referência constante ao contraste entre províncias e regiões espanholas, não aprofundando estas diferenças em rigorosos conhecimentos naturalistas ou científicos e, numa perspectiva muito reducionista, assimilando frequentemente a Espanha à Andaluzia ou a Castela. Denunciando ainda outro lugar-comum com os relatos de viagens a Espanha, Coelho de Carvalho aponta as diversas contradições e alternâncias de comportamento dos espanhóis, que viajantes anteriores, como Richard Ford, Alexandre Dumas ou Téophile Gautier intitularam de “coisas de Espanha”. No maior palco da sociabilidade

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oitocentista, o teatro, o nosso diplomata surpreende-se com os paradoxos do comportamento espanhol, “esse ar vaporosamente cismador da sala d’um teatro em Espanha, no paiz alegríssimo do salero, do barulho violento do pandeiro, das explosões sanguíneas do entusiasmo, no paiz em que se ama os rápidos combates da força e da destreza em que a alma se abre toda ao ardente sol peninsular, vermelha e brilhante como um cacto real” (p. 22).

A descrição da paisagem espanhola também se vaza em mais um tropos literário, plasmando-se a descrição numa visão panorâmica da paisagem, um “tour d’horizon”estético, não se conseguindo isolar na descrição critérios científicos ou de índole explicativa. Registe-se a título de exemplo a monotonia das estepes castelhanas, transversal a todos os escritores que percorreram a Espanha, de Gautier a Dumas, de Ford a Davillier, passando, como é óbvio, pelos portugueses, mesmo os que por formação deveriam ser menos permeáveis à contaminação de leituras, como é o caso de Luciano Cordeiro. 5 Esta descrição denuncia ainda algumas pervivências românticas de um certo visualismo abstracto, isto é, uma visão ainda não realista, ancorada num certo esteticismo e pitoresco.

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Compare-se por exemplo a descrição de Luciano Cordeiro: “Esta Mancha tem uma triste reputação de feia, árida e monótona e realmente os seus horizontes incendiados não nos pareceram primar pela variedade, as suas planícies arenosas e solitárias não devem ficar exactamente debaixo da cornucópia da Abundância e enfim as penedias caleinadas e nuas não são um deleite óptico. Parece que dardeja ali eternamente a cólera dos Deuses e que o fogo que vem de cima encontra a reçumar por entre os fraguedos o fogo da cólera titânica que arde, impotente e condenada debaixo. Os riachos que cortam aquella crusta ardente e os asinheiros que cobrem com os galhos quasi nus as calvas penhascosas, dão à paisagem às vezes um tom de sombrio sarcasmo. Foste bem posto n’este theatro oh velho e bom D. Quixote. Tu também és um Titã condenado desde que os Panças são os Deuses.” (idem, p. 17) com a de Téophile Gautier : « Les rochers ne laissent plus que la place du chemin tout juste et l’on arrive à un endroit où deux grandes masses granitiques, penchées l’une vers l’autre, simulent l’arche d’un pont gigantesque que l’on aurait coupé par le milieu, pour fermer le passage à une armée de Titans » (GAUTIER, 1981 :60)

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Mas é na célebre Questão ibérica que vemos Coelho de Carvalho afastar-se mais de todos os viajantes portugueses em trajecto pelo país vizinho. O federalismo é, aliás, reflexão transversal a todos os relatos de viagem por nós rastreados, fruto do confronto com o Outro. Num contexto histórico marcado, por um lado, pelo princípio de autodeterminação dos povos e, por outro, pela teoria dos grandes estados e das grandes nacionalidades – corporizada na unificação da Itália (1870) e da Alemanha (1871) – o pensamento filosófico progressista defendido por Proudhon, Auguste Comte e Herbert Spencer , preferia o princípio de unificação das nações, e a união de Portugal a Espanha é assunto que animou periódicos portugueses e castelhanos. Não há, no entanto, uma opinião tão declaradamente hispanófoba quanto a de Coelho de Carvalho. De facto, o diplomata não perde nenhuma oportunidade para atacar a menor insinuação de união ibérica, rejeitando qualquer pretensão anexionista, e declarando que “a união ibérica teria consequências fataes para a excelente raça portugueza, cujo sangue sadio se perderia” (p.91). Não perde igualmente o ensejo, tal como outros viajantes, para encontrar algo da presença portuguesa no país visitado, relembrando a origem portuguesa de alguns dos mais notáveis espanhóis, como Velásquez ou Quevedo ou simplesmente reconhecendo semelhanças no espaço visitado com Lisboa ou o seu Algarve natal. Finalmente, o espaço viajado é lugar de reconhecimento, para o viajante como para o leitor, de imagens de uma memória livresca que Coelho de Carvalho recordará a cada passo, no contacto com cada rua, cada monumento. Os autores convocados são mais uma vez os franceses, nomeadamente Dumas, Gautier ou Taine – cuja Viagem a Itália cita directamente – mas também Zola, Victor Hugo, George Sand, Lamartine ou Lord Byron, enquanto os espanhóis referenciados são Garcilaso e Lope de Vega.

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3. Conclusão Sylvie Requemora, num estudo exemplar sobre o espaço na literatura de viagem, aponta três tipos de leitura passíveis de serem isoladas no género vático “strictu sensu”, isto é, o género “odepórico”, termo cunhado por Luigi Monga 6 , a saber:

“1. un discours viatique sur l’espace : comment les voyageurs rendent compte de l’espace, le représentent, l’appréhendent, le circonscrivent, pour esquisser une axiologie et une taxinomie de l’espace . 2. Un imaginaire de l’espace : comment ils arrivent à mettre en place une poétique de l’espace qui a un véritable impact sur les autres genres littéraires. 3. Une symbolique de l’espace : comment les voyageurs interprètent l’espace inconnu en lui construisant un sens inséparable de leur espace connu d’origine » (REQUEMORA, 2002 : 251)

A nossa proposta de análise d’As Viagens de Coelho de Carvalho, através da leitura e da cartografia que efectuámos, vai precisamente de encontro a esta metodologia, visando a reconstrução, num primeiro momento, desse discurso viático sobre o espaço, onde se descreve com precisão o itinerário deveras percorrido pelos escritores que dele dão conta. Num segundo momento, pretendemos distinguir, nesse discurso viático, o que ele apresenta de simbólico e de imaginário colectivamente reconstruído e partilhado.

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MONGA, Luigi (1996), L'Odeporica/hodoeporics: On Travel Literature, University of North Carolina

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Este teor preconceituoso eivado de um forte pendor sentimentalista e nacionalista da obra foi aliás apontado criticamente por alguns contemporâneos de Coelho de Carvalho, que denunciam por um lado a sua insatisfação, como é o caso de Fialho de Almeida que numa recensão esclarecida confessa “as Viagens de Coelho de Carvalho não satisfizeram este desejo cupido da minha grande afeição pelo seu talento” (Fialho de Almeida, 1890: 239). Ou, por outro, tal como acontece com Fidelino de Figueiredo, relevam o que na obra parece perdurar desse vetusto imaginário sobre a Espanha, sublinhando que “as páginas espanholas de Coelho de Carvalho são dominadas pelos prejuízos tradicionais que formaram a Lenda Negra” (Fidelino de Figueiredo, 1944:426) Se Coelho de Carvalho, como a maioria dos escritores-viajantes que se deslocaram a Espanha, manifesta um conjunto de imagens comuns, preconceitos sobre o país visitado 7 num processo remissivo para leituras consagradas, as suas descrições minuciosas das paisagens não devem ser subestimadas, constituindo uma fonte preciosa para o conhecimento da paisagem espanhola da segunda metade do século XIX.

FONTES: - CARVALHO, Coelho de, (1988) Viagens. Madrid, Barcelona, Nice, Mónaco. Cartas e notas destinadas a Cesário Verde, Lisboa, Livraria de António Maria Pereira

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Como reconhece Téophile Gautier "Encore quelques tours de roue, je vais peut-être perdre une de mes illusions, et voir s'envoler l'Espagne de mes rêves, l'Espagne du Romancero, des ballades de Victor Hugo, des nouvelles de Mérimée et des contes d'Alfred Musset. En franchissant la ligne de démarcation, je me souviens de ce que le bon et spirituel Henri Heine me disait au concert de Liszt, avec son accent allemand plein d'humour et de malice : "Comment ferez-vous pour parler de l'Espagne quand vous y serez allé ?" (GAUTIER, 1981: 43) "

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CARTOGRAFIA :

- Carta de España con las Líneas de Ferrocarriles que formaban la red en 1º de Enero de 1866 y todas las apoyadas en la información pública abierta con motivo del plan, escala 1: 2 000 – 000,1867

- Christos Nussli, www.euroatlas.net, 2002

- Plano de Madrid, Carles Lassailly, 1877, Biblioteca Nacional de España

- Plano de Barcelona, Biblioteca Nacional de España

ESTUDOS:

- AA.VV, (1990), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, Lisboa

- ALEGRIA, Maria Fernanda (1983) O desenvolvimento da rede ferroviária portuguesa e as relações com Espanha no século XIX, Lisboa, Centro de Estudos Geográficos;

- ALMEIDA, Fialho (1890), Pasquinadas: jornal d'um vagabundo, Porto, Livraria Chardron

- CANTERO, Nicolas Ortega, ALVAREZ Jacobo Garcia (2006), “La Visión de España en la obra de Élysée Reclus: imagen geográfica y proyección política y cultural”, in Eria, nº 69, pp.35-56

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- CHEVALIER, Michel (2001), Géographie et Littérature, La Géographie. Acta Geographica - revue trimestrielle, Paris, Société de Géographie, Hors Série (nº 1500)

- FIGUEIREDO, Fidelino (1944), História literária de Portugal (séculos XII-XX), Lisboa, Edição de Nobel

- KALL, Maria (2006), Cataluña y los catalanes en la Literatura de Viajes del siglo XVIII, Tesis de Master, Universidade de Tartu

-LÓPEZ ONTIVEROS, A. (1888) “El paisage de Andalucia através de los viajeros românticos: creacion y pervivencia del mito andaluz desde una perspectiva geográfica”, in AA.VV. Viajeros y paisaje, Madrid, Allianza Editorial, pp. 31-65

- MARTIN, Pere Sunyer (1992) “La idea de ciudad en la literatura española del siglo XIX. Las ciudades españolas en la obra de Pedro Antonio de Alarcón (1833-1891)” in Capel, H., López Piñero, J.M. y Pardo, J.: Ciencia e Ideología en la ciudad (vol.II). I Coloquio interdepartamental, Valencia, 1991. Generalitat valenciana, Conselleria d'Obres Públiques, Urbanisme i Transports, Valencia, 1992, págs. 139-150.

-

MONTALBETTI, Christine, « Entre écriture du monde et réécriture de la

bibliothèque : conflit de la référence et de l’intertextualité dans le récit de voyage au XIXe siècle », dans Sophie Linon-Chipon, Véronique Magri-Mourgues et Sarga Moussa (éds.), Miroirs de textes. Récits de voyages et intertextualité, Nice, Publications de la Faculté des Lettres, Arts et Sciences humaines de Nice (Nouvelle série, n° 49), 1998, p. 3-16.

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- OUTEIRINHO, Maria de Fátima (2000), “Representação do Outro e Identidade: Um Estudo de Imagens na Narrativa de Viagem. II – Um estudo de caso: a narrativa de viagem oitocentista”, in Cadernos de Literatura Comparada – Para uma crítica do discurso crítico. Narrativa Literária e Identidade, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, Porto, Granito Editores e Livreiros; (2002), A Viagem a Espanha. Em torno de alguns relatos de viagem oitocentistas, sep. da Revista da Faculdade de Letras do Porto. Línguas e Literaturas. (2003), O Folhetim em Portugal no Século XIX: uma nova janela no mundo das letras, dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, especialmente “A crónica de viagem”, pp.166-209 (2003), “Representações do Outro na narrativa de viagem oitocentista”, Cadernos de Literatura Comparada 8/9:Literatura e identidades, Orgs. Ana Luísa Amaral, Gonçalo Vilas-Boas, Marinela Freitas, Rosa Maria Martelo, Porto:Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, 2003, pp. 67-76

- REQUEMORA, Sylvie (2002), « L’espace dans la littérature de voyages », in Revue Études littéraires,

Volume 34, numéros 1-2, « Espaces classiques », pp. 249-276,

consultado em http://www.erudit.org/revue/etudlitt/2002/v34/n1-2/007566ar.html

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