A PERDA E A POSSE: Funções Sistêmicas e a Rede Sígnica

July 24, 2017 | Autor: Gil Nuno Vaz | Categoria: Semiotica
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A Perda e a Posse: Funções Sistêmicas e a Rede Sígnica.

Gil Nuno Vaz

Resumo Para garantir sua permanência no mundo, os sistemas desenvolvem funções que permitem sentir e interpretar o ambiente, adequando-se a novas condições e exigências impostas por perturbações e mudanças. Tais funções resultam de (ou provocam) um jogo interativo no qual a percepção de uma perda, em relação a estados anteriores do sistema, é correspondida por uma posse (ou captura) de elementos que compensem a perda sofrida, ou que restabeleçam, ainda que parcialmente, o equilíbrio anterior. O jogo entre a perda e a posse ocorre em estágios crescentes de complexidade, progressão que pode ser representada por uma rede sígnica, a qual define a capacidade semiósica do sistema. A classificação de signos formulada por Charles Sanders Peirce oferece uma representação bastante abrangente, aplicável às mais variadas configurações sistêmicas, concretas ou conceituais.

Abstract To assure its continuity on the world, a system develops functions which allow it to feel and interpreter the environment, in order to face and fit new conditions and requirements outcoming from disturbances and changes. Such functions are ruled by (or command) an interactive play. First, there is a perception of a loss as to a previous status. Second, there is a corresponding reaction of possess (capture) of elements that can counterbalance undergone losses or reestablish, though partially, the previous balance. The play between the loss and the possess runs in growing complexity phases, a progression that can be figured out by a sign net which defines the semiosic ability of the system. The classification of signs by Charles Sanders Peirce is suitable for a large variety of system configurations, concrete or conceptual.

VAZ, Gil Nuno. A Perda e a Posse: Funções Sistêmicas e a Rede Sígnica. Ensaio desenvolvido para o curso de Ciências da Informação, ministrado pelo Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no 2º Semestre de 1997.

Introdução

Este estudo pretende estabelecer uma aproximação entre funções sistêmicas e classes de signo, conceitos de a Teoria Geral dos Sistemas e a Teoria Geral dos Signos, a partir das formulações iniciais de Bertalanffy e Peirce, respectivamente, maconforme formula a partir do corpo teórico da Semiótica1, que a busca da permanência sistêmica (a luta pela sobrevivência, em nosso linguajar mais imediato) é um processo interativo em que o sistema percebe uma perda e desenvolve uma reação compensatória de posse ou captura de elementos que contrabalancem a perda experimentada. Esse processo se dá pelo desenvolvimento de determinadas funções sistêmicas, que tornam progressivamente mais complexa a rede sígnica do sistema. Em outras palavras: cada passo rumo à complexidade é comandado pela emergência de uma função sistêmica, e envolve um signo de perda (que equivale à metonímia, expansão do conhecimento da realidade através de uma cadeia sintagmática de signos) e outro signo correspondente de posse (equivalendo este à metáfora, uma expansão do conhecimento da realidade através do estabelecimento de paradigmas). Para desenvolver tal propósito, o estudo estabelece, em Preliminares, alguns pressupostos iniciais quanto a conceitos e relações entre sistema, conhecimento, semiose, função sistêmica e rede sígnica. A Secção 1 apresenta os conceitos de Perda e de Posse. A Secção 2 mostra como se desenrola o processo de Perda e de Posse na Rede Sígnica Básica, representada pelas 10 classes principais de signos propostas por Charles Sanders Peirce. A Secção 3 apresenta as Funções Sistêmicas que geram a Rede Sígnica Básica, detalhando os níveis consequentes de Perda e de Posse experimentados, a partir da representação de cada classe de signos no Espaço de Estados. A Secção 4 resume esse processo básico, mostrando as Trilhas da Perda e da Posse e apontando as lacunas que exigem aprofundamento da Rede Sígnica Básica, e que levaram Peirce a pensar em um conjunto mais amplo de classes de signos, atingindo 66 classes (Rede Sígnica Expandida). A Secção 5 apresenta as Funções Sistêmicas que geram a Rede Sígnica Expandida, detalhando níveis mais específicos do processo de Perda e de Posse. 1

VAZ, Gil Nuno. A Perda e a Posse: Funções Sistêmicas e a Rede Sígnica. Ensaio desenvolvido para o curso de Ciências da Informação, ministrado pelo Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no 2º Semestre de 1997.

Na Conclusão, o ensaio afirma que o desenvolvimento de funções sistêmicas expande a Rede Sígnica, cuja configuração define o nível de complexidade, a capacidade e habilidades perceptivas e interpretativas do sistema. Busca, enfim, extrair um encaminhamento de pesquisa a ser seguido e aprofundado. 1

Preliminares – PRESSUPOSTOS INICIAIS

Este estudo toma como ponto de partida os seguintes pressupostos e conceitos basilares: 1. A realidade é sistêmica. Adotamos aqui a hipótese ontológica utilizada em Vieira (1994:11), amparada nos conceitos básicos de Bunge (1979:3-16; 245-249). 2. Os sistemas buscam a permanência. Conforme hierarquia proposta por Vieira 1994:124, a permanência ocupa a primeira posição entre as leis sistêmicas. 3. A permanência depende do conhecimento que o sistema possui sobre si e sobre o meio-ambiente. "Conhecimento é função vital, é condição de permanência", segundo Vieira 1994:111. 4. O conhecimento resulta de semioses instauradas dentro do sistema e entre o sistema e o meio-ambiente, cuja ocorrência depende do desenvolvimento de determinadas Funções Sistêmicas. Ainda segundo Vieira 1994:111, "a vida só é possível, do ponto de vista sistêmico, através de sua sensibilidade ao meio ambiente, estocagem de informação dele provinda e do interior sistêmico... e pela sua capacidade de elaborar essa informação". 5. A complexidade de um sistema depende da capacidade de conhecimento que o sistema possui, e pode ser descrita pela configuração de sua Rede Sígnica, isto é, pelas classes de signos que o sistema está apto a assimilar e interpretar, desenvolvendo trocas semiósicas. Para essa finalidade, serão utilizadas as classes de signo propostas por Charles Sanders Peirce2.

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Observação – Tendo em vista as limitações de porte recomendado para um ensaio desta natureza, e para não extrapolar tais balizas, não foram incluídos aqui demonstrativos sobre a disposição das 66 classes de signo, além de aspectos subjacentes, como as dez tricotomias, planos e modos de manifestação dos correlatos do signo, e outros itens. Esta solução foi motivo de uma consulta prévia ao Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira (em 18/11/97), uma vez que não haveria fontes a referenciar. Aceita a proposta, o autor procurou fornecer breves indicações de como estabeleceu suas bases de raciocínio, em relação aos referidos assuntos.

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Secção 1. A Perda e a Posse – Conceitos

A Perda

O conceito de Interpretante, formulado por Charles Sanders Peirce em sua doutrina dos signos, contém a idéia de um processo infinito de significação. Neste, cada signo gera outro indefinidamente em busca do Objeto que desencadeou o próprio processo de significação, ao ser representado incompletamente por um Fundamento. Toda semiose, a ação desenvolvida pelos signos, busca no fundo encontrar ou explicar esse elemento gerador, que pertence a um ambiente anterior à emergência do Fundamento, o ambiente do qual surgiu o Fundamento inaugural. Algumas das questões que a semiose pretende responder dizem respeito à natureza e à motivação do fator que deu causa ao signo. As investigações que procuram respostas para tais questões, entretanto, tendem a deparar com indícios de que, assim como a semiose desliza continuamente de um significado incompleto para outro significado incompleto, o elemento inaugural da semiose é, ele próprio, uma incompletude. Os dois textos abaixo transcritos são bastante elucidativos a respeito:

"...na superfície de um país que tem uma linha de fronteira única (...) está um mapa do mesmo país (...) que representa cada parte do país delimitada pela linha de fronteira como está no mapa, e que a cada ponto do país corresponde um ponto no mapa. (...) Uma vez que todas as coisas da superfície do país estão representadas no mapa, e que o mapa ele próprio se encontra nessa superfície, ele será também retratado no mapa, e neste mapa do mapa todas as coisas na superfície do país são discerníveis, incluindo o próprio mapa com o mapa do mapa dentro de sua fronteira. Assim existirá, dentro do mapa, um mapa do mapa, e dentro deste um mapa do mapa do mapa, e assim por diante, ad infinitum. Existindo cada um dos mapas dentro do mapa anterior na série, haverá um ponto que está contido em todos, e que será o mapa ele próprio. Cada mapa que, direta ou indiretamente, representa o país é por sua vez mapeado no mapa seguinte; isto é, é representado no mapa seguinte como sendo mapa do país. Por outras palavras, cada mapa é interpretado como tal no mapa seguinte. Podemos, portanto, dizer que cada um deles é uma representação do país para o mapa seguinte; e que aquele ponto que está em todos os mapas é em si próprio a representação de si próprio para si próprio e nada mais. É portanto o análogo preciso da autoconsciência. Como tal é auto-suficiente. Salva-se de ser insuficiente, de não ser representação, devido à circunstância de não-ser toda-suficiente, quer dizer, não é uma representação completa, mas apenas um ponto sobre um mapa contínuo." (Peirce CP 5:71) "O Todo é insuficiente." (Morin 1996:263)

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Essa incompletude pode ser, de certa forma, considerada uma espécie de falha no ambiente original, da qual o sujeito só se dá conta através de uma perda inaugural, que é traduzida pelo choque da alteridade, a consciência do outro, a resistência imposta pelo ambiente. E a perda, refletindo-se na estrutura do signo, reflete-se por sua vez no conjunto do sistema, como rede de signos. Existe perda, assim, quando uma perturbação altera as condições de equilíbrio de um sistema, provocando uma mudança no seu estado. Qualquer perturbação em um sistema, colocando em assimetria alguns de seus elementos, representa uma falha e provoca a perda da condição anterior. Há, portanto, uma posição de equilíbrio, de repouso, que é rompida. A perda é a instabilidade introduzida numa trajetória de estabilidade. A noção de perda é comum a vários campos da natureza, sendo encontrada em diversos níveis: físico, químico, biológico, psíquico, social. A perda representa sempre a privação de algo, e determina a sensação de uma carência. O nascimento é a perda do ambiente interno do organismo materno.

Um outro tipo de perda, de caráter cultural, pode ser exemplificado pelo que Sedlmayr denomina a "Perda do Centro" (Verlust der Mitte, título de uma obra do autor), referindo-se à perda do conceito da centralidade experimentado pela cultura germânica, que é muito forte no imaginário humano, equivalendo a uma posição dominadora, privilegiada (Dorfles 1986:95). Equiparando-a à perda, em escala mais ampla, da posição geocêntrica, a perda desse conceito, para o autor citado, estende-se "à perda de todo o equilíbrio, de todo o fundamento. É como dizer que, sem centralidade, sem um sólido ponto de apoio, acaba por faltar, tanto para a arte como para a cultura, a base de toda a evolução possível."

Antropologicamente, há ainda a questão do "elo perdido", preocupação constante nos estudos de paleontologia que buscam o tronco de ligação do Homo Sapiens na grande árvore genealógica do universo (Ekeland 1987). Enfim, a ocorrência de uma perda parece ser condição contingente da semiose, mesmo quando nos referimos a sistemas inorgânicos. Autores como Benjamin Gal-Or (1975:220-223) e Ivar Ekeland (1987:91), por exemplo, usam esse termo para indicar diferenças entre níveis de energia. Numa visão cosmogênica especulativa, pode-se imaginar o Grande Estrondo (Big Bang), marco inicial do nosso modelo de universo concebido atualmente, como resultante de um possível desequilíbrio que desencadeou a sua expansão. Uma falha inaugural da fonte, uma perda original.

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A Posse

A semiose, a partir da ausência provocada pela perda, torna-se a tentativa de preenchimento da lacuna aberta pela privação de parte do ambiente original. O que significa a busca da ipseidade (Passos 1986:15), ou seja, o reconhecimento de semelhanças, de redundâncias, de repetições. Todo o processo de semiose, iniciado aí, é o rastreamento de um curso com inúmeras bifurcações e variantes: as trilhas da perda original. O objetivo perseguido pelos sistemas que percorrem os cursos dessas trilhas é recuperar a posse desse elemento perdido, como se fosse uma peça destacada do todo. Preencher a lacuna. Completar. É a busca do tesouro, que se assinala no mapa, caminho perseguido. É a recuperação da posição de estabilidade quebrada pela mudança de estado, criando tensão no sistema e uma correspondente ação de retomada de uma outra posição estável, obrigando o sistema a adaptar-se à nova situação. A alegação de que a Posse é uma reação praticamente automática, compulsiva por assim dizer, em relação à Perda, pode ser amparada em afirmações como a que segue, encontrada em Vieira (1994:15):

PERDA- "... observar o mundo é notar e registrar diferenças, ler as mesmas, utilizá-las como índices que exprimem o comportamento deste..."

POSSE- "... buscar então uma adequação a essa leitura que seja eficiente ou pelo menos promissora para garantir nossa permanência como sistemas vivos."

Secção 2. A Perda e a Posse na Rede Sígnica Básica

Em 1867, ao definir suas dez classes principais de signos, Peirce salientou que "as afinidades entre as dez classes evidenciam-se através de um arranjo (...) no quadro triangular abaixo, no qual os quadrados adjacentes separados por traços acentuados referem-se a classes semelhantes em apenas um aspecto. Todos os demais quadrados adjacentes pertencem a classes semelhantes sob dois aspectos. Quadrados não adjacentes pertencem a classes semelhantes em apenas um aspecto, exceto o fato de que cada um dos três quadrados dos vértices do triângulo pertencem a uma classe que difere, sob todos os três aspectos das classes às quais se referem os quadrados do lado oposto do triângulo". (Peirce CP 2:264).

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Fig. 1 - Triângulo das Classes (conf. Peirce CP 2:264)

A disposição em formato triangular dos quadrados representativos de cada signo, conforme mostra a Fig. 1, permite indicar interações possíveis entre os signos. Um signo da Classe VII, por exemplo, pode ter como suportes diretos signos das Classes III, IV ou VI, que são adjacentes, podendo ser ele próprio suporte para um signo da Classe IX. As dez classes principais de signo, em síntese, resultam do cruzamento das três categorias da natureza (Primeiridade, Segundidade e Terceiridade) com os três correlatos do signo (Fundamento, Objeto e Interpretante). Em seu desenho, Peirce indicou os signos no interior dos quadrados com os nomes das três tricotomias (o cruzamento correlato/categoria: Qualisigno Icônico Remático, Sinsigno Icônico Remático etc). O desenho na Fig. 1 assinala essas classes com números em algarismos romanos. Tal numeração segue a ordem sequencial das classes indicada pelo autor nos parágrafos que antecedem o referido desenho. Em 1904, Peirce voltou a relacionar as dez classes principais de signo que havia estabelecido em 1867, dispondo-as entretanto em outra sequência (Peirce, CP 8:340), conforme Quadro 1. As dez classes constituem uma escala progressiva de estágios da percepção dos fenômenos da natureza e do pensamento. Tem início na percepção mais elementar, representada pela Classe I, até a percepção mais complexa, a Classe X, que é a percepção de um processo de comprovação ou auto-explicação. A esse propósito, a seqüência formulada em 1867, pode ser interpretada como uma Seqüência Gerativa, no sentido da classe mais baixa para a mais alta, ou Degenerativa, no sentido inverso (Merrell 1995:108). De certo modo, correspondem também, respectivamente, às leituras Gerativa (de Noam Chomsky) e Analítica (de Jean Piaget), conforme abordado por Vieira (1994:44-46).

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CLASSE n.

seqüência

Nome

formulada

em 1867

em 1904

I

Qualisigno Ícone Rema

1

1

II

Sinsigno Ícone Rema

2

2

III

Sinsigno Índice Rema

3

4

IV

Sinsigno Índice Dicente

4

7

V

Legisigno Ícone Rema

5

3

VI

Legisigno Índice Rema

6

5

VII

Legisigno Índice Dicente

7

8

VIII

Legisigno Símbolo Rema

8

6

IX

Legisigno Símbolo Dicente

9

9

X

Legisigno Símbolo Argumento

10

10

Quadro 1 - Comparação das duas sequências das classes de signos

A seqüência formulada em 1904, entretanto, coloca outros aspectos sob apreciação. É justamente a partir dessa segunda seqüência que se pode detectar o processo de Perda e de Posse na Rede Sígnica, entendida como uma espécie de espectro básico dos signos, e representando níveis intercalados de capacidade perceptiva, numa dupla e diferente direção de leitura que deixa margem a algumas considerações sobre a estruturação da percepção em eixos de absorção e interpretação de signos. Para a investigação dessa possibilidade, o triângulo das classes vai sofrer uma pequena alteração, conforme Fig. 2, um deslocamento para cima das Classes de signos V, VIII e X, que no desenho original situavam-se na mesma posição, em linha horizontal.

Fig. 2- Triângulo das Classes com formato alterado, destacando as direções (orientações) de leitura da Perda e da Posse.

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Em conseqüência dessa alteração, o alinhamento das Classes I, II, III e IV teve o seu ângulo de deslocamento alterado (diminuido), de tal modo que a Classe IV passou a ficar alinhada verticalmente com a Classe X, enquanto no desenho original estava na posição inferior da figura, em situação intermediária entre as Classes I e X. A modificação tem o objetivo de caracterizar graficamente de modo mais acentuado a Classe I (Primeiridade genuína, com todos os correlatos nessa categoria) como ponto de partida tanto da Segundidade genuína (Classe IV, com todos os correlatos nessa categoria, no final do deslocamento para baixo) quanto da Terceiridade genuína (Classe X, com todos os correlatos na respectiva categoria, no final do deslocamento para cima). Os correlatos do signo na seqüência I-II-III-IV deslizam de Primeiridade para Segundidade, sem presença de Terceiridade, enquanto na seqüência I-V-VIII-X os correlatos vão de Primeiridade até Terceiridade, sem presença da Segundidade. Na alteração procedida, o triângulo da classe de signos ganhou a forma geométrica perfeita do triângulo (o que não acontece na representação de Peirce), de modo a que se tenha uma melhor visualização da estrutura da percepção em eixos de absorção e interpretação de signos.

Secção 3. As Funções Sistêmicas na Rede Sígnica Básica

A Rede Sígnica Básica vai ser representada, a seguir, com base no conceito de Espaço de Estados3. As classes de signos, até aqui referidas por algarismos romanos ou pelas classificações tricotômicas, vão doravante receber denominações especiais, com o que assumimos o risco inevitável de desvios semânticos4. A Rede Sígnica representa para um dado sistema a capacidade de articulação semiósica desse sistema. Se um sistema avança através dessa rede, conquistando novos níveis de decifração do mundo, é sinal de que o sistema desenvolveu determinadas funções que permitiram essa interpretação em patamares mais complexos.

Função Transferência

A entrada do sistema é assinalada pela Função Transferência. (Vieira 1994:3335), que desemboca na percepção de um signo em estado de Primeiridade, na

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terminologia de Peirce, um signo de Latência5 (Classe I), estabelecido por um mero sentimento no limiar da experiência, "uma qualidade qualquer, na medida em que for um signo" (Peirce CP 2:254) .

Fig. 3- Representação da Rede Sígnica Básica no Espaço de Estados

A Fig. 3 representa-o como um Espaço de Estados em formação, em processo de delineamento na percepção do observador. A eventual ocorrência de um ponto nesse espaço ainda não consegue se destacar do fundo. Peirce (CP 1:303) refere-se a esse estado como o torpor de uma sonolência, em que se tem "um sentimento muito vago, de um sabor salgado, de uma dor, de um desgosto, ou de uma nota musical prolongada. Isto constituiria aproximadamente um estado de sensibilidade monádico": no espaço vazio, um ser estar constituindo-se em signo. Disponibilidade. Canal aberto. O olho ante(s d)a luz. O tato pré-toque. Suspenso. Subpenso. O espaço no curso do tempo, do curvo espaço-tempo.

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A captação é a primeira capacidade que um sistema desenvolve, consistindo na constituição de uma sensibilidade ao meio-ambiente. É um estágio de atenção, desconsiderada ainda a possibilidade de uma retenção de informação, não se tratando inclusive de uma atenção objetiva, concentrada no objeto, mas antes um estado latente de atenção, uma disponibilidade para sentir.

Função Memória Sintática

A capacidade imediatamente seguinte que um sistema desenvolve é a retenção dos signos captados, o armazenamento de informações. É a Função Memória, que se desenvolve quando o evento captado pela Função Transferência torna-se uma Ocorrência (Classe II) e é inscrito no sistema, permanecendo como um tipo referencial, como um Padrão (Classe V). A Fig. 3 representa a Ocorrência, no Espaço de Estados, como um ponto que surge no campo perceptivo do sistema. É a detecção, pura e simples, de um evento. O ato, o momento em que se dá a vibração do contato com aquilo que provoca a sensação. Pode ser um evento físico, mas também um evento mental, o momento da imaginação. É o momento em que a existência se impõe através das limitações do espaço e do tempo. É a perda experimentada: o ponto toca o vazio. O ponto, a parte, irrompe. Para que o jogo semiótico se complete, o sistema desenvolve uma reação de posse, que tem como característica a percepção de um padrão de informação. O ponto (a Ocorrência) detectada é registrada pelo sistema e inserida em um conjunto de pontos com elementos em comum, uma semelhança de qualidades, formando um Padrão. A Fig. 3 representa o Padrão, no Espaço de Estados, como a ocorrência de um signo cujo comportamento segue algum tipo de lei. Pode ser um impulso elétrico cuja energia uma placa retém (Vieira 1997), ou um dado de nossa percepção que fica gravada no inconsciente, mesmo que não tenhamos consciência da informação. Memória aqui não significa, portanto, o mecanismo de recordação ou de lembrança, mas a capacidade de registrar signos. A Função Memória, neste estágio de percepção, é chamada Memória Sintática, uma vez que a Ocorrência e o Padrão não surgem vinculados a alguma determinação externa, mas apenas representam a constatação de uma lei, que garante coesão ao sistema.

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Função Memória Semântica

Quando um evento, ao ser percebido, provoca no sistema uma reação orientada para a fonte do signo, inicia-se o processo semântico, de conferir significado ao evento, da atribuição de um sentido, direção ou valor ao evento. Temos aí então a atuação da Função Memória em escala semântica, de coerência entre o signo e o conjunto de signos que o contextualizam. A Função Memória Semântica é marcada, então, por um signo de Recorrência (Classe III), isto é, um signo que representa um vestígio da origem e propósito do evento, embora sem permitir constatar a relação causa/efeito, a relação signo/fonte. Provoca uma reação de busca, curiosidade, investigação. Implica uma volta de atenção em direção a algum objeto para identificá-lo. Um grito espontâneo, que chama a atenção sobre si, embora não ofereça elementos que expliquem o que ocorreu, é o exemplo fornecido por Peirce (CP 2:256) Chamariz. A Fig. 3 representa a Recorrência, no Espaço de Estados, como um ponto que remete, através do sentido de uma flecha, para o passado, o que aconteceu antes, o que provocou o evento. De onde vem o ponto? Quem o enviou? Por quê? Com que intenção? Como reação sistêmica, o mecanismo de posse busca identificar o contexto de eventos daquele signo, vale dizer, o seu Espaço de Estados concebível e legaliforme (Vieira, 1994:71-72), o que dará coerência ao evento e, portanto, significado semântico (Vieira, 1994:49). A Fig. 3 representa esta reação, que é o signo de Acepção (Classe VIII), no Espaço de Estados, como um campo que contém todos os eventos daquele tipo. A oitava classe é o signo da atribuição de sentido, que classifica o Objeto dentro de uma determinada categoria, qualificando-o. Para atingir esse estágio, entretanto, o sistema opera, intermediariamente, uma nova passagem sígnica, ao nível da Função Memória Sintática. O mecanismo sistêmico de posse atribui uma Marca (Classe VI) ao evento, representando o registro deixado pelo autor do signo, algo como a concepção da "assinatura das coisas" (Santaella 1992). A Fig. 3 representa a Marca, no Espaço de Estados, como um ponto escuro, que o diferencia de um ponto branco, por exemplo. É a nomeação do autor do evento, através do vestígio que deixou de sua criação. Para chegar à Acepção (Classe VIII), o sistema estabelece relações entre o Padrão (Classe V) e a Marca (Classe VI). 11

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Função Tendência

Uma vez desenvolvida a Função Memória em escala sintática e semântica, o sistema tem condições de avaliar o seu comportamento, o seu passado. O sistema observa o processo de geração do signo, estabelecendo relações de causa e efeito, compreendendo a decorrência dos fatos. Isso, entretanto, não permite ao sistema estabelecer considerações acerca dos acontecimentos futuros. Para tanto, o sistema precisa ainda desenvolver uma outra Função, denominada Tendência, isto é, a capacidade de projetar os dados colhidos e armazenados para o futuro, oferecendo algum grau de certeza com relação a eventos que deverão acontecer. Isso acontece quando o sistema percebe uma relação de causa e efeito entre dois signos, relação que é um signo de Decorrência (Classe IV), ou seja, a indicação da fonte que produziu o evento. A Fig. 3 representa a Decorrência, no Espaço de Estados, como um ponto na direção de uma flecha iniciada em um ponto anterior, sua origem. No exemplo citado por Peirce (CP 2:257), o ponto anterior seria o signo do vento e o catavento o signo da Decorrência. A reação de posse do sistema é, então, a busca de uma Inferência (Classe X) que lhe permita prever os eventos futuros, a partir do conhecimento das relações de causa e efeito, a partir do conhecimento dos fatos passados, e também a comprovação da validade formal do conceito, a exegese da afirmação, o procedimento através do qual procuramos nos assegurar de que não estamos incorrendo em erro, em que procuramos nos garantir do acerto de nossa acepção e delimitação do Objeto. A Fig. 3 representa a Inferência, no Espaço de Estados, com uma seta que atravessa todos os pontos, indicando as posições futuras dos novos pontos da série. Entretanto, para atingir a Inferência, o sistema precisa passar por estágios intermediários de posse. A primeira delas, ainda ao nível da Função Memória Sintática, é a Identificação (Classe VII), signo que reconhece o Padrão e a Marca, qualificando o Objeto. O pregão de um mascate, que se torna o seu som característico, e que o identifica junto aos compradores, citado por Peirce (CP 2:260). A Fig. 3 representa a Identificação, no Espaço de Estados, como um signo que é equiparado a outro, indicando-o como pertencente à série. Ao nível da Função Memória Semântica, a posse procura uma Delimitação (Classe X) do significado, uma proposição que busque estabelecer a verdade a partir das 12

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acepções, que pode ser verificada e, eventualmente, refutada. Um signo cuja característica é a definição de um conceito, uma asserção a respeito do Objeto, que procura expressar os limites desse Objeto. A Fig. 3 representa a Delimitação, no Espaço de Estados, como um campo conceitual (um círculo) envolvendo a série. Secção 4. As Trilhas da Perda e da Posse na Rede Sígnica Básica

Voltamos agora à representação triangular da rede sígnica do sistema, para assinalar as trilhas da perda e da posse que a percorrem. Esse processo revela a existência de relações e propriedades dinâmicas entre as classes (Queiroz 1997a:10), que podem ser apontadas por setas, à maneira de operadores (Merrell 1995:135-165) ou, no caso presente, através das direções orientadas de leitura correspondentes à Perda e à Posse.

As Trilhas da Perda e da Posse.

Como mostra a Fig. 4, a Perda é assinalada através de quatro trilhas, no sentido da esquerda para a direita, do ângulo à esquerda do triângulo (Primeiridade) para o ângulo inferior (Segundidade), abrangendo nessa trajetória diagonal as Classes I a IV. Entretanto, as demais classes que se erguem sobre cada uma dessas quatro são afetadas também pelas respectivas perdas. A direção descendente de leitura do triângulo resulta, assim, nas trilhas da Perda, compreendendo a primeira a Classe I a segunda as Classes II e V, a terceira as Classes III, VI e VIII, e a quarta as Classes IV, VII, IX e X. As trilhas da Perda indicam como a realidade se manifesta através do objeto, como a representação deste vai mostrando a complexidade crescente da realidade. São denominadas, aqui, respectivamente, Disposição, Situação, Direção e Atuação. As três últimas são denominadas a partir da classificação de Signos Locais, Direcionais e Atuantes, encontrada em Vieira 1994:119. Como mostra também a Fig. 4, a Posse é assinalada igualmente através de quatro trilhas, que seguem o sentido de baixo para cima, do ângulo inferior do triângulo (Segundidade) para o ângulo superior (Terceiridade). Essa direção ascendente de leitura do triângulo compreende: a primeira trilha as Classes I a IV, a segunda as Classes V, VI e VII, a terceira as Classes VIII e IX, e a quarta a Classe X. As trilhas da Posse indicam como o sujeito se apodera da realidade, na recuperação da Perda, e são denominadas

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respectivamente Detecção, Apreensão, Compreensão e Depreensão. Mostram como a complexidade crescente do conhecimento se reflete no sujeito.

Fig. 4- Funções Sistêmicas que geram as dez classes de signos e as trilhas da Perda e da Posse.

Resumindo a secção anterior, numa volta à rede sígnica, mostramos a seguir como as funções sistêmicas geram as trilhas da Perda e da Posse. A Função Transferência, sensibilidade desenvolvida pelo sistema para captar o ambiente que o cerca, gera a trilha da Disposição, em que o sistema sente a Perda de um estado de independência, ao perceber que é passível à influência do ambiente, que depende de sua interação com o ambiente para permanecer. A primeira trilha refere-se ao estágio do limiar da sensação, em que não existe ainda a possibilidade de perceber uma posição. O evento está apenas disponível à percepção. A perda em si é acusada por uma classe de signo que fica numa tênue região limite entre o ser do mundo e o estar no mundo. É a perda do Absoluto. Nem Criador, nem Criatura. A reação consequente de Posse é dada pelo sentido de Detecção do mundo, a recepção e interpretação dos signos percebidos. Observando o texto de Peirce sobre as dez classes de signos, é possível notar que, para as Classes I a IV (trilha da Detecção), refere-se sempre a signos que são "objetos da experiência" (CP 2:255-257).

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Ao desenvolver a Função Memória, ainda ao nível sintático, ou seja, de mera ligação entre percepções, o sistema percorre uma nova trilha, da Situação, em que o sentimento da Perda é dado pela constatação bruta de eventos exteriores, localizados em outros pontos do espaço, não coincidentes com o espaço ocupado pelo sistema. É o momento em que um evento é percebido posicionalmente. O sistema se dá conta de que está localizado em um espaço-tempo, de que não é onipresente. A reação compensatória de Posse acontece com a emergência de uma nova trilha, da Apreensão, em que o sistema, após detectar o signo, classifica-o e, assim fazendo, apreende-o. Observando o texto de Peirce sobre as dez classes de signos, é possível notar que, para as Classes V a VII (trilha da Apreensão), refere-se sempre a signos que são "tipos ou leis gerais" (CP 2:258-260). O passo seguinte, da Função Memória Semântica, gera a trilha da Direção, quando a perda acontece ao nível da percepção de uma fonte autora do signo e, portanto, a existência de um criador externo ao sistema. É o momento em que um evento é percebido perspectivamente (numa visão voltada para a sua procedência e intencionalidade), na acepção que congrega as palavras Direção e Sentido, como empregada por Vieira (1994:95). O sistema percebe, através dos signos que remetem a uma fonte-autor, que não é onipotente, que sua existência depende de forças alheias. A trilha correspondente de Posse, criada por esta função, é a Compreensão, em que o sistema estabelece uma forma de explicar o signo e o evento percebidos. Observando o texto de Peirce sobre as dez classes de signos, é possível notar que, para as Classes VIII e IX, refere-se sempre a signos que são "associação de idéias" (CP 2:261-262). Finalmente, a Função Tendência desencadeia a constituição de uma nova trilha da Perda, a Atuação, pelo momento em que um evento é percebido processualmente, em que se rastreia o procedimento obedecido pelo evento como resultante da ação de uma fonte. O sistema percebe que desconhece grande parte da realidade, que não é onisciente, que precisa intuir e aprender, para saber. A reação compensatória de Posse a esta sensação de Perda é dada pela trilha da Depreensão, quando o sistema busca, a partir da percepção do processo, estabelecer trajetórias futuras do evento. Peirce refere-se a esta classe de signos como alusiva a algo que é ulterior ao momento presente (CP 2:263).

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Voltando à distribuição triangular dos signos, é importante ressaltar que o ângulo no lado esquerdo da figura representa a Primeiridade, que a Perda está representada pelo sentido descendente, em direção à Segundidade, e a Posse pelo movimento ascendente que se ergue a partir do lado inferior. A Primeiridade é o presente, o momento inalcançável do tempo. A Segundidade é o passado, aquilo que transcorreu, que foi percebido. E Terceiridade é o futuro, a percepção que permite antever o que ocorrerá, ainda que como probabilidade ou mera possibilidade:

"O ser in futuro aparece em formas mentais, intenções e expectativas. A memória fornece-nos um conhecimento do passado através de uma espécie de força bruta, uma ação bem binária, sem nenhum raciocinar. Mas, todo o nosso conhecimento do futuro é obtido através de alguma outra coisa. (...) Todo o nosso conhecimento das leis da natureza é análogo ao conhecimento do futuro, na medida em que não há nenhum modo direto pelo qual as leis tornam-se por nós conhecidas." (Peirce CP 5:85)

Essas quatro funções são básicas, e não traduzem toda a

complexidade

funcional de um sistema. Tal foi a percepção de Peirce, ao entender que as dez classes principais de signos deveriam ser desmembradas em maior número, sendo seu cálculo de um conjunto de 66 classes de signos. Para chegar a essa conclusão, Peirce baseou-se na constatação de que as diversas circunstâncias de significação contingenciam os signos de tal modo que os seus correlatos podem apresentar estados não genuínos de manifestação, ou seja, estados em que uma categoria influencia outra. Assim, a Primeiridade de um correlato pode estar afetada por aspectos de sua Segundidade ou Terceiridade. Para designar essas situações em que a condição genuína de uma categoria é "afetada" por outra categoria, Peirce usou termos como "signos degenerados" ou

afixos como "hipo" (hipoícone,

hipoíndice), além de outros, como "imagem", "diagrama", "metáfora", "símbolo singular" e "símbolo abstrato" (Peirce CP 2:274-294). Esse desvirtuamento do signo levou Peirce a ensaiar, em 1908, um alargamento das dez classes principais de signo, incluindo classes intermediárias na sequência básica da escala progressiva de percepções. Foi justamente a partir dessas interferências que se tornou possível identificar, no interior das 10 classes principais (formadas por signos genuínos), o seu desdobramento em 66 classes mais específicas de signo. Após alguns estudos, não aprofundados, Peirce descortinou uma possibilidade de mais 56 classes, que constituiriam

posições intermediárias entre as dez classes

principais (Peirce CP 8:344). Na realidade, as 66 classes constituem uma visão mais

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detalhada dos graus de percepção. Embora a analogia seja imprecisa, é como se estivéssemos subindo por uma escada de 10 degraus e, de repente, fossem colocados 56 degraus intermediários. Ou seja, os 10 degraus principais são assinalados pela passagem de 10 das 66 classes de signo. A constituição dessas 66 classes deriva da consideração de mais dois aspectos da rede sígnica. Primeiro, a existência de planos distintos de significação, denominados planos Imediato, Dinâmico e Final (Peirce CP 8:344). Em segundo lugar, deriva da consideração de modos diversos de manifestação dos signos, através dos quais Peirce expandiu as três tricotomias básicas, incorporando mais sete outras tricotomias (Peirce CP 8:344). As dez tricotomias, assim estabelecidas, geram 66 classes de signos. Com isso, o triângulo da rede sígnica adquire a configuração mostrada pela Fig. 5.

Fig. 5- A Rede Sígnica Expandida: as 66 classes de signo enquadradas nas 10 classes principais.

Observa-se que a numeração das classes obedece à sequência cardinal, inicialmente, no sentido do ângulo à esquerda para o ângulo inferior do triângulo. Ao

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retomar a sequência no patamar imediatamente superior, a numeração apresenta outro direcionamento, interrompendo o sentido anterior para passar logo ao próximo patamar e, daí por diante,a numeração vai sendo preenchida por blocos6 de signos dentro da rede. A disposição das classes na figura ganha, então, um arranjo indicador da existência de grupos de classes. Cada grupo representa um determinado aspecto da classe principal e, dentro do grupo, as classes representam por sua vez determinados aspectos do grupo. E as 66 classes são inseridas, assim, na mesma divisão triangular das 10 classes principais. As classes sombreadas (1, 2, 5, 11, 12, 18, 34, 39, 55 e 66) correspondem às 10 classes principais.

Secção 5. As Funções Sistêmicas e a Rede Sígnica Expandida A Fig. 6 apresenta as funções sistêmicas responsáveis por níveis mais específicos de perda e de posse (aumento de quatro para onze trilhas do conhecimento), que geram o conjunto das 66 classes de signos. Esta secção retoma, assim, as duas precedentes para ampliar, trazendo a nível mais específico, a relação entre as Funções Sistêmicas e a Rede Sígnica, pela criação de novas trilhas da Perda e da Posse.

Função Transferência e as Primeiras Trilhas da Perda e da Posse

A Função Transferência opera pela captação de um signo de Qualidade, uma representação em estado praticamente virtual de algo distinto do sistema, mas que este ainda não consegue perceber como algo destacado de si. Junto com essa qualidade que se apresenta ao sistema, forma-se no sistema uma representação, também praticamente virtual, de algo que acontece, um Evento. O signo neste nível perceptivo situa-se no limiar entre o ser e o estar, uma condição pendente entre a essência e a existência, entre o interior e o exterior. Uma sensibilidade perfeita ao meio-ambiente, que não apresente qualquer interferência entre o signo gerado e o signo recebido, é representada pela Função Resolução e, em tal condição, o sistema não teria memória (Vieira 1994:33-35). Não desenvolveria a percepção.

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Fig. 6- Funções sistêmicas determinantes das 66 classes de signos e 11 trilhas da Perda e da Posse.

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Função Memória Sintática e as Segundas Trilhas da Perda e da Posse

No conjunto das 66 classes, a Função Memória Sintática opera pelo registro, inscrição ou cadastramento de uma Sensação, que é a representação de uma perda, ao trazer a separação entre o sistema receptor e a realidade (o ambiente). O sistema procura então recuperar a perda produzindo um signo de Evento, que se torna a primeira apropriação sistêmica da realidade, o primeiro conhecimento.

Função Inter-Correlação Sintática e as Terceiras Trilhas da Perda e da Posse

A Função de Inter-Correlação (Vieira 1994:53 e 1997) é o procedimento sistêmico de avaliação do grau de dependência entre um signo e outro, da intensidade com que um afeta ou pode ser relacionado a outro. Na busca de coesão, o sistema apura então uma Distinção entre uma Sensação e outra, por aspectos de defasagem temporal, espacial ou outra condição. Com isso, estabelece uma conexão diferencial entre as mesmas, seja de características físicas ou conceituais, que lhe impõe a Perda do sentido do uno, da igualdade, ao trazer o contato com algo que é diverso. A reação de Posse cria um signo de Vínculo, que define uma oposição entre o sistema e o signo apreendido: maior/menor, quente/frio, alto/baixo etc.

Função Auto-Correlação Sintática e as Quartas Trilhas da Perda e da Posse

A Função de Auto-Correlação (Vieira 1994:53-55 e 1997) é o procedimento de auto-reconhecimento do sistema, avaliando até que ponto uma trajetória de signos continua sendo reconhecida como representação do sistema. Após uma comparação de sensações a partir de elementos distintivos, o sistema desenvolve uma capacidade de alinhar condições de semelhança, de identificar redundâncias de eventos, buscando similitudes. O sistema elabora seus dados através de agrupamentos por características comuns ou aproximativas. Percebe um Caráter possuído por vários signos detectados. Esta trilha representa a perda da identidade total, uma vez que o sistema não permanece igual, mudando a cada momento. A resposta compensatória de Posse é a percepção de que as distinções apresentam aproximações de forma com outros sistemas ou condições sistêmicas, de tal 20

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modo que constituem condições compartilhadas por todos. Surge então a trilha da Partilha, que opera por aproximação, por junções (ler, a propósito, Vieira 1994:117 e 131). Após o desenvolvimento das funções anteriores, que ocorre ao nível da coesão sistêmica, onde se desenrola a sintaxe de seus componentes, o sistema pode evoluir para um estágio de coerência sistêmica (Vieira 1994:48-49), incorporando uma concepção semântica de si e do meio ambiente, do sistema e do ambiente que gerou o sistema. Semântica é, assim, o mapa, construído com a rede sígnica, do modelo disponível, em tal rede, do sistema que gerou a rede, o texto sígnico.

Função Memória Semântica e as Quintas Trilhas da Perda e da Posse

A primeira etapa do estágio semântico é também a Função Memória. Só que, ao invés do registro de sensações, estímulos, diferenças e semelhantes, a memória passa a catalogar atribuições e propriedades de seus componentes, no contexto de sua realidade sistêmica. A trilha da Perda resultante dessa função é a Sensação com conteúdo semântico, isto é, o registro identificado como pertencente ou causado pela fonte que originou o signo. Impõe a perda da autoria, a dependência de algo externo, a não-suficiência. Como reação de Posse, o sistema desenvolve um Tipo, também de conteúdo semântico, que corresponde ao sentido primário atribuido ao signo. Palavras que resumem a natureza desta trilha são Propriedade, Denotação, Intensidade, Atributo.

Função Inter-Correlação Semântica e as Sextas Trilhas da Perda e da Posse

No estágio seguinte, o sistema inter-correlaciona suas atribuições com as atribuições de outros componentes, outros sistemas, configurando as categorias a que pertencem os diversos componentes. Funciona como um distribuidor de significados, derivando propriedades em múltiplas variações que, embora não coincidentes, constituem um conjunto com elementos em comum. É uma função que opera por estratificações das propriedades. Sua trilha de Perda correspondente é a Distinção semântica, e a trilha consequente de Posse é o Vínculo semântico. Palavras que resumem a natureza desta trilha são Conotação, Extensão, Derivação, Ambiente.

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Função Auto-Correlação Semântica e as Sétimas Trilhas da Perda e da Posse

É a função que desempenha o papel de atrator (Coveney 1993:321), de núcleo e polarização de todas as concepções semânticas derivadas de um atributo inicial, e para o qual todas convergem. Opera assim por aglutinação de propriedades em torno de um polo, de uma força modelar, interligadora de estratos e categorias através de um elemento comum. Sua trilha de Perda é o Caráter semântico, e a trilha correspondente de Posse é a Partilha. Palavras que resumem a natureza desta trilha são Núcleo, Aglutinação, Polo, Atrator.

Função Relaxação e as Oitavas Trilhas da Perda e da Posse

Sempre que uma perturbação ocorre no sistema, este reage procurando uma nova posição que acomode a configuração resultante em uma nova ordem ou organização. Piaget usou especificamente o termo "acomodação" para o comportamento de conformação a uma nova situação. É a função de foco, de comando, que estabelece valores e práticas. A trilha da Perda resultante desta função é o signo da Origem, que impõe a dependência do sistema a um ambiente externo, que provoca as coisas. Como contrapartida, o sistema desenvolve a trilha da Providência, que é a reação de Posse correspondente, onde estão os signos que definem a solução sistêmica para lidar com o signo dessa perda. Adaptação é uma palavra que também retrata a natureza desta trilha.

Função Alerta e as Nonas Trilhas da Perda e da Posse

Quando irrompe uma perturbação no sistema, uma Função Alerta procura reconhecer a mudança provocada no sistema, identificando onde está a geração da carência, da falha, da privação imposta ao sistema. Essa função diz respeito à geração de desequilíbrios e, portanto, de necessidades compensatórias, validando a ação de resposta, e promovendo mecanismos de busca de novas condições. Corresponde, no âmbito do sistema humano, ao conceito de "assimilação" utilizado por Piaget para a absorção de mudanças e reformulação de hábitos.

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A trilha da Perda neste nível traz o signo da Motivação, do propósito que levou a fonte a originar tal signo. O sistema responde com a trilha da Contingência7, em que o sistema toma Posse sígnica do impulso original que o levou inexoravelmente à percepção daquele signo.

Função Tendência e as Décimas Trilhas da Perda e da Posse

Sistemas cuja elaboração das funções mencionadas não atende à necessidade especulativa de prever acontecimentos acabam desenvolvendo uma função tendência. Esta consiste em mecanismos de antecipação do futuro, através de formulações que buscam prognosticar eventos possíveis, prováveis, previsíveis, necessários e certos, em diferentes gradações. É uma função de perscrutação estocástica, de elaboração e comprovação de hipóteses. A trilha da Perda correspondente à Função Tendência é o esforço que é obrigado a desenvolver, para acessar o conhecimento de como as coisas funcionam, ainda que numa Intuição do Processo (Vieira 1994: 47-49), um mecanismo internalizado dessa percepção. A trilha consequente da Posse é a Projeção, capacidade que o sistema desenvolve de prever, através de aproximações e previsões, os acontecimentos futuros. Palavras que resumem a natureza desta trilha são Probabilidade, Previsibilidade, Possibilidade, Perscrutação, Inquirição, Investigação.

Função Determinação e as Undécimas Trilhas da Perda e da Posse

Esta função busca, através de artifícios lógicos e demonstráveis, obter completo domínio sobre os eventos futuros, no sentido de fornecer uma determinação infalível dos fatos por acontecer. É o campo das formulações matemáticas, do rigor do raciocínio. A palavra que denomina a função é aqui utilizada no sentido, inclusive, em que se aplica a uma distribuição do tipo caótico determinista. Gera, como percepção de Perda, a mesma necessidade da trilha anterior, de desenvolver um esforço para acessar o conhecimento de como as coisas funcionam, só que num estágio de Aprendizado do Processo, um mecanismo que vem da observação dos signos e do acúmulo da experiência. A trilha consequente da Posse é a Certeza, capacidade que o sistema desenvolve de se assegurar de um acontecimento futuro, a

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partir dos dados colhidos no aprendizado. Palavras que também dizem respeito à natureza desta trilha são Reflexão e Certificação.

Conclusão. As idéias e demonstrações apresentadas neste ensaio buscaram evidenciar que:

„

O mecanismo de funcionamento das operações sistêmicas de Perda e Posse

(sensação de privação e resposta compensatória) está na raiz do desenvolvimento das funções sistêmicas;

„

A capacidade semiósica de um sistema pode ser visualizada através das classes

de signos propostas por Charles Sanders Peirce.

A partir de tal entendimento, deduz-se que a capacidade semiósica de um dado sistema terá uma configuração mais ou menos completa, na medida do conjunto de capacidades de decodificação do ambiente que o sistema apresentar. Um sistema que tenha uma rede sígnica completa pode ser descrito como tendo percepção ao nível das 10 Classes de signos e, em uma representação mais detalhada, das 66 classes de signos. Já um sistema de menor acuidade perceptiva apresentará lacunas em algumas classes de signos. Para ilustrar essa afirmativa, a Fig. 7 representa como seriam, hipoteticamente, dois sistemas incompletos em sua rede sígnica. Imaginamos que a rede sígnica A seja um sistema inorgânico, e o sistema B um sistema orgânico primitivo.

Fig. 7- Redes sígnicas hipotéticas de dois sistemas em níveis diversos de semiose.

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O escopo de comprovar a exatidão das representações acima, entretanto, não está contido nos objetivos deste estudo. O propósito desta colocação final é deixar em aberto possibilidades de avançar nos estudos e aprofundar as conclusões aqui extraídas.

z NOTAS

1. A abordagem deste estudo privilegia a Semiótica enquanto Teoria do Conhecimento, estatuto que apenas recentemente tem merecido. Em Hessem 1970, por exemplo, que oferece, numa apresentação didática abrangente, uma visão das diversas correntes históricas de pensamento que buscaram respostas para as questões básicas sobre o conhecimento, não existe qualquer menção a respeito. É sabido, entretanto, que são remotas as pesquisas do conhecimento a partir da realidade comunicacional, mais precisamente sob o ponto de vista da semiose, isto é, a ação dos signos. Embora com muita antecedência histórica, tais estudos eclodiram no Século XIX e ganharam intenso desenvolvimento no Século XX. Em Nöth (1995 e 1996), há um retrospecto e caracterização básica desses ramos mais recentes da Teoria do Conhecimento. 2. As citações de Charles Sanders Peirce, embora transcritas a partir das indicações dos Collected Papers (CP), são extraídas de livros de seleção de textos, comentários ou organizações, conforme relacionado na bibliografia. 3. O espaço de estados representa o mapeamento de um signo, posicionado em relação a variáveis previamente determinadas. Por exemplo, um som pode ser medido com base na frequência (altura), na amplitude (intensidade) e duração do sinal, para destacar apenas três de uma multiplicidade de variáveis possíveis. A medição periódica do som emitido por uma determinada fonte sonora vai indicar, no espaço de estados, o comportamento desse som ao longo do tempo. A concepção do espaço de estados é uma ampliação da técnica cartesiana de registrar o comportamento de um objeto no tempo, com base em uma variável, ou de registrar localização de objetos no espaço, com base nas dimensões altura, extensão e profundidade (ver também Vieira 1994:61-68). 4. A decisão de adotar uma terminologia própria, tanto para as classes de signos como para as trilhas da Perda e da Posse e, em alguns casos, das funções sistêmicas, partiu do pressuposto, implícito no próprio conceito de pragmatismo, de que o uso pode conferir significado aos termos, sendo nesse caso utilizadas denominações mais concisas, sempre que possível. Nesse sentido, em um ou outro momento, foram usados alguns termos escolhidos por Peirce, ainda que para contexto diverso, como Ocorrência ou Acepção (este também Aceptação, CP 8:184). A propósito, o uso dos termos Perda e Posse, implicam, o primeiro, a percepção da alteridade em níveis crescentes de in-ter-dependência do sistema com o ambiente e, o segundo, a percepção das forças que definem as regras dessa interação entre sistema e ambiente. 5. O termo Latência é usado não apenas no sentido psicogênico em que "o lactente não manifesta qualquer índice de uma consciência de seu eu, nem de uma fronteira estável entre dados do mundo interior e do universo externo" (Piaget 1975:133). Expande-se para além da percepção orgânica, como quando o raciocínio de Piaget parece aproximar-se da mente interpretante de Peirce, ao afirmar que "o conhecimento não procede, em suas origens, nem de um sujeito consciente de si mesmo nem de objetos já constituídos (do ponto de vista do sujeito) que a ele se imporiam", mas de "interações que se produzem a meio caminho entre os dois, dependendo, portanto, dos dois ao mesmo tempo, mas em decorrência de uma indiferenciação completa e não de intercâmbio entre formas distintas. De outro lado e, por conseguinte, se não há, no início, nem sujeito, no sentido epistemológico do termo, nem objetos concebidos como tais, nem, sobretudo, invariantes de troca, o problema inicial do conhecimento será pois o de elaborar tais mediadores." (Piaget 1975:132)

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6. A configuração desses blocos resulta da análise de como as categorias de correlatos progridem nas 66 classes, obtidas a partir das dez tricotomias. O seu enquadramento deriva das posições ocupadas pelas sete tricotomias adicionais, que ficam entre as três tricotomias principais. Estas, numa sequência de 1 a 10, ocupam as posições 1, 4 e 9. Para a definição da sequência das 10 tricotomias, foram observados estudos de Houser 1991, Santaella 1995 e Peirce 1978. Por outro lado, a hierarquia das categorias é comandada pelo conceito de "prescisão", ou "prescindibilidade", método de abstração que é abordado e desenvolvido por Queiroz (1997a e 1997b:62). Ver Fig. 8 na página seguinte. 7. O termo Contingência é utilizado no sentido da condição que é colocada de forma inapelável para um sistema, numa concepção que remonta, no limite, à idéia de um universo contingente, conforme abordado por Wiener (1968).

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Fig. 8 - Enquadramento das 66 classes de signos nas 10 classes principais, conforme critério de hierarquia que obedece à sequência Correlato/Plano/Modo/Categoria.

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