A performatividade da Capoeira e do Aikido/The performativity of Aikido and Capoeira

June 14, 2017 | Autor: Renata Batista | Categoria: Performance Studies, CAPOEIRA, Aikido, Theater
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A performatividade da Capoeira e do Aikido



Inicio minha reflexão sobre performance a partir de duas artes
marciais que são objetos da pesquisa que desenvolvo correntemente no
doutorado. Penso, portanto, que seja conveniente introduzir algumas
informações sobre estas artes, a fim de que consigamos estabelecer as
pontes com a performance.

Tanto o Aikido como a Capoeira são frutos de contextos culturais
específicos e surgiram com o intuito de atenderem algumas necessidades como
de aprimoramento pessoal, social e defesa.

O Aikido, arte marcial japonesa, criado por Morihei Ueshiba,
reflete o pensamento japonês de procurar viver em comunhão consigo mesmo,
com as pessoas à volta e em harmonia com a natureza. A realização de ações
pensando no caráter coletivo e a disciplina são características da cultura
japonesa e que permeiam suas artes marciais.

A Capoeira é considerada pelos pesquisadores e etnógrafos uma arte
marcial brasileira, iniciada no Brasil colônia pelos escravos que
utilizavam esta luta como forma de defesa, manutenção da forma física e
entretenimento. Apesar de não ter sido encontrado indícios da Capoeira na
África, de onde os negros foram trazidos, pesquisadores atribuem o
surgimento da Capoeira aos rituais religiosos e às danças litúrgicas, já
que foram encontrados elementos desta luta nestas práticas.

A partir desta síntese destas duas artes marciais, logo me remeto
ao termo "Comportamento Restaurado" cunhado por Richard Schechner (2007)
quando ele aborda a performance. Este autor explica que as "ações físicas,
verbais ou virtuais, que não são pela primeira vez, que são preparadas ou
ensaiadas" são comportamentos restaurados. Continua dizendo que "uma pessoa
pode não estar ciente que ele ou ela desenvolve uma porção de comportamento
restaurado. Também conhecido como comportamento duas vezes vivenciado.
(2007, p. 3)".







A esse respeito Schechner complementa que:

"O comportamento restaurado é o processo principal de
todos os tipos de performance, seja na vida cotidiana, na
cura, nos ritos, em ações, e nas artes. O comportamento
restaurado está "lá fora", aparte do "eu". Colocando em
palavras próprias, o comportamento restaurado "sou eu me
comportando como se fosse outra pessoa", ou "como me foi
dito para fazer", ou "como aprendi". (2007, p. 8)

Podemos entender então, a partir da síntese apresentada
inicialmente que, o que vemos sendo praticado em dojos de Aikido e em rodas
de Capoeira nas ruas ou em academias, são comportamentos restaurados, umas
vez que se configuram em um conjunto de ações e movimentos que são
reproduzidos, recriados, aprendidos e transferidos de geração a geração, de
mestres a discípulos. E neste conjunto identificamos a ritualidade, com
práticas estruturadas desde o seu começo até o seu término, seguindo regras
indicativas de como os participantes devem proceder, se relacionar e se
vestir. Estes rituais, compostos de hábitos e rotinas bem definidas,
surgiram de um contexto histórico e cultural que foi sendo construído ao
longo de séculos, e anterior ao surgimento dessas artes, mas que as
fundamentaram.

A respeito da estrutura seguida podemos citar alguns exemplos que
elucidam alguns aspectos destas artes. Um treino de Aikido se inicia com o
praticantes em seiza (sentar sobre os joelhos) fazendo reverência ao kamiza
(lugar de maior importância no recinto) onde ficam as imagens do Doshu
Morihei Ueshiba, seu filho e seu neto Moriteru Ueshiba, atual dirigente do
Aikido no mundo. Os praticantes se cumprimentam antes de iniciarem a luta e
ao terminarem, inclinando o tronco na direção do parceiro, como forma de
respeito àquele que está se colocando a sua disposição para seu
aprimoramento pessoal. Os praticantes vestem dogi ou kimono, com a faixa
correspondente a sua graduação e, graduados 1º DAN em diante (graduação
dentro da faixa preta), vestem o hakama sobre o kimono. Na Capoeira a
prática se dá a partir de uma roda que é formada pelos participantes, que
batem palmas (em alguns grupos) enquanto entoam cantigas lideradas por um
dos participantes que normalmente toca o berimbau, principal instrumento da
roda. A dupla se cumprimenta antes de jogar com um toque de mão e, antes de
iniciar o jogo, cumprimenta os instrumentos. As vestimentas são normalmente
calça e camisa com o cordão ou corda que, dependendo do grupo, indica a
graduação pela variação de cores. Esse conjunto de vestimentas se chama
"abadá".

Vemos, portanto, nessa rápida descrição, ações bem definidas e
sequências previamente estruturadas apontando para comportamentos que foram
sendo reproduzidos ao longo dos anos e, cuja autoria, se dispersou no
tempo. Além disso, vemos, nestas artes tão diferentes pela sua origem
cultural, semelhanças como a necessidade de cumprimento inicial a uma
figura (instrumento ou imagem), cumprimento entre os parceiros, vestimenta
específica, dentre outros, remetendo a outros comportamentos presentes em
praticamente todas as sociedades. Todavia, estas não são práticas
engessadas e imutáveis, pois variam e se alteram de acordo com os elementos
envolvidos, como o que aponta Heráclito quando afirma que não pisamos no
mesmo rio duas vezes. Se observarmos um jogo de Capoeira, este se altera de
acordo com o toque do berimbau, da estratégia dos que estão jogando, da
energia de quem está na roda cantando e batendo palma. Em uma demonstração
ou em um treino de Aikido as relações criadas e os movimentos executados
variam de acordo com a energia do ataque, da flexibilidade e da
disponibilidade corporal dos praticantes, do tônus corporal de cada um,
dentre outros fatores. Portanto, existe um comportamento vivido e revivido
a cada prática, mas a cada momento de uma forma diferente. Poderíamos,
então, ver a Capoeira e o Aikido como performances?

Segundo Schechner (2007), tudo, desde ações cotidianas até
apresentações ritualísticas, pode ser visto enquanto performance, mas não
necessariamente é performance. Para este autor algo se configura como
performance, se é considerado como tal dentro de determinado contexto.

Aprofundando o entendimento de performance, Schechner (2007) aponta
outros significados extraídos de pesquisas em dicionários tais como:
"execução, desempenho, façanha, proeza, representação, função, espetáculo,
atuação, capacidade de realizar trabalho rendimento, maneira de reagir ao
estímulo, cumprimento de uma promessa equivalente a competência."

Analisando o Aikido e a Capoeira, não há como negar que a prática
de ambas exige desempenho, proeza, façanha, uma vez que os movimentos
exigem habilidades específicas que variam de fácil à dificílima execução.
Nos praticantes mais graduados vemos um grande virtuosismo que transcende a
questão da luta e do embate físico e vai além. Envolve, dessa forma, uma
plástica e uma estética encontradas em espetáculos de dança e de teatro com
direito a "figurino" e "coreografia". Considerando, portanto, performance
em seu "stricto sensu" tanto a Capoeira como o Aikido podem ser
considerados performáticos.

Além dessa conexão com os significados de performance indicados
acima, Schechner dispõe que as performances "marcam identidades, dobram o
tempo, remodulam e adornam o corpo, e contam estórias. Performances - de
arte, rituais, ou da vida cotidiana" (2007, p. 2). As duas artes aqui
estudadas apontam aspectos de identidade, que atravessam o tempo e marcam o
corpo de uma forma específica. O que vemos, como já foi dito do Aikido,
assim como outras artes marciais japonesas, não é primordialmente uma
defesa pessoal, mas um reflexo da forma do povo japonês se relacionar com o
mundo a sua volta e de agir diante das situações. Da mesma forma, a
Capoeira apresenta características do povo que a criou tendo em vista as
suas necessidades em uma sociedade escravocrata. Embora, não haja mais
escravidão, a prática da Capoeira marca uma identidade e traz para o
presente um passado não tão distante, como uma forma de resistência às
opressões ainda hoje vividas pelos negros. Se pensarmos na remodulação e no
adorno do corpo colocado por Schechner, ao analisarmos os corpos dos
praticantes das duas artes, identificamos características bastante
diferentes no tônus, na postura, no apoio dos pés no chão e no deslocamento
pelo espaço, trazendo para a fisicalidade o que está culturalmente
estabelecido. Ao observamos um aikidoca e um capoeirista, encontramos
contrastantes elementos como força x suavidade, molejo x estabilidade,
musicalidade definindo a movimentação x ausência de musicalidade e assim
por diante. Concluindo a relação da frase citada por Schechner com estas
artes, podemos dizer que as duas "contam histórias" ainda que não seja dito
nada durante o embate e ainda que esteja ausente uma narrativa
aristotélica. Ao assistirmos uma demonstração de Aikido ou um jogo de
Capoeira, vemos relações sendo estabelecidas e diálogos sendo criados com a
movimentação dos corpos e com os elementos presentes à volta.

Quando falamos em corpo, penso que seja apropriado tratarmos de
como o estamos considerando. Marco de Marinis (2012), ao falar de corpo e
corporeidade, traz questões que podem contribuir para pensar o teatro e a
performance. E, para tanto, traz como referência Pitozzi que considera
útil, para a cena contemporânea, "distinguir entre o corpo como uma
categoria universal e a corporeidade como uma experiência singular. Em
outras palavras, a vantagem da adoção do conceito de corporeidade, de
acordo com esse estudioso, está no fato de que ela permitiria uma maior
conscientização, graças a uma abordagem fenomenal para o corpo" (DE
MARINIS, 2012, p. 6). Ainda citando Pitozzi, De Marinis (2012) expõe que
esta abordagem

"foi, de fato, a redescoberta do corpo sensível, isto é,
concreto, considerado não mais pelo externo, mas por
intermédio de um "[...] conhecimento aprofundado de suas
dinâmicas internas" (Pitozzi, s/d, p. 3); ... "um corpo
subtraído, em consequência, para a esfera do simbólico,
por um lado, e para o formal, por outro, e devolvido para
a sua materialidade. Na verdade, de acordo com essa
perspectiva, "[...] não se trata tanto de estudar o corpo
em movimento, mas o movimento no corpo (Pitozzi, s/d, p.
2)". (grifo nosso. DE MARINIS, 2012, p. 6)

Cito estes trechos da obra de De Marinis porque vai de encontro com
a dinâmica trabalhada nas artes marciais citadas aqui e que podem oferecer
contribuições importantes para a cena contemporânea. Quando selecionei
estas duas artes marciais, o fiz pela historia e pelo contexto cultural
presentes não apenas na literatura, mas no corpo e nas relações que ele
cria quando em ação.

Quando vemos dois capoeiristas numa roda se atacando e se
defendendo em movimentos fluidos, muitas vezes mais próximos do chão, com o
uso dos braços como apoio, ao som de uma música que dita o que acontece na
roda, percebemos não apenas movimentos bonitos, mas um estímulo interno que
é fisicalizado. Temos paralelamente a isso, a concepção do `comportamento
restaurado´ onde as pessoas reproduzem o que aprenderam. Mas se pensarmos
nas origens destas artes, o que foi criado originalmente, foi estimulado
por algo que os impelia para este tipo de movimento, ou seja, elas surgiram
de um impulso interno motivador associado a uma materialidade que envolvia
aspectos físicos e sociais. A reprodução disso hoje não traz mais os mesmos
interesses e as mesmas motivações dos praticantes de épocas anteriores, mas
traz outras motivações, ainda conectadas ao que estas artes marciais
propõem. Da mesma forma, quando vemos no Aikido movimentos fluidos e leves,
quase sem deslocamentos do nage (aquele que recebe o primeiro ataque e
contra-ataca), em oposição às quedas, torções e desequilíbrios do uke
(aquele que desfere o primeiro ataque e sofre o contra-ataque), vemos ali
não apenas uma coreografia combinada entre os parceiros, mas uma história,
uma relação se dando entre aquelas pessoas de se ajustar em harmonia às
adversidades à volta, de não resistir pela força e de se envolver com a
energia do parceiro como se fossem um, corroborando a filosofia oriental já
apontada aqui. Quando observamos o movimento no corpo apreendemos
informações para além do que mostra o físico. É principalmente sobre este
ponto que se debruça a pesquisa que desenvolvo, transpondo para a criação
cênica estes elementos trazidos por estas artes.

Seguindo a ideia exposta de que o movimento no corpo tem uma
conexão direta com a dinâmica interna deste, De Marinis expõe que "a
relação teatral coloca em jogo o corpo assim como a mente, os músculos não
menos que o pensamento, os sentidos e os nervos pelo menos tanto quanto a
imaginação e a emoção, e isso tanto para o espectador quanto para o ator ou
para o performer." (DE MARINIS, 2012. p.3)

Como lembra também De Marinis, é nesta conexão físico-psíquico que
se baseia grandes pesquisadores do teatro como Stanislavki, Meyerhold e
Artaud. Segundo esta concepção, não podemos tentar chegar a uma emoção
específica, sem antes termos recorrido ao corpo. É ele que trará os
estímulos necessários para que determinado sentimento aflore. [i] E nesta
relação entre o físico e o psíquico não é possível deixar de mencionar os
sentidos que é o que nos conecta com o mundo externo. É por meio deles que
absorvemos informações e que acabam por "disparar" movimentos internos.
Assim, com movimentos diferentes temos sensações, imagens e emoções
diferentes. Da mesma forma, diferentes emoções causam movimentos diversos.

Neste ponto, faço um aparte, para explicar um aspecto que
desenvolvo na minha pesquisa que é: Que sensações e imagens a Capoeira e o
Aikido trazem? Suas técnicas têm uma especificidade e ao mesmo tempo uma
riqueza de variações que permitem o corpo experimentar diferentes tipos de
sensações. Como isso pode ser direcionado para a construção de uma
dramaturgia? E se esses movimentos foram criados a partir de uma memória,
de um contexto social específico, como pensar esses elementos em relação às
afetações em um corpo contemporâneo, permeado pelas referências de hoje em
dia. A esse respeito, entendo para este projeto como dramaturgia a
concepção exposta por Eugênio Barba que explica a dramaturgia como o ato de
"tecer junto". Segundo este pesquisador, ela não está ligada unicamente a
literatura dramática, nem se refere somente às palavras ou a trama
narrativa. Existe também uma dramaturgia orgânica ou dinâmica, que
orquestra os ritmos e os dinamismos que afetam o espectador a um nível
nervoso, sensorial e sensual. Cada cena, cada ação, cada sequência, cada
fragmento do espetáculo possui uma dramaturgia própria. A dramaturgia é uma
maneira de pensar. É uma técnica que nos permite organizar os materiais
para poder construir, desvelar e entrelaçar relações. É o processo que nos
permite transformar um conjunto de fragmentos em um único organismo no qual
os diferentes elementos não se podem distinguir como objetos ou indivíduos
separados. (cf. BARBA, E. 1995)

Podemos entender, assim, que o corpo, como portador de
sentidos, mobiliza as emoções. Podemos também entender que o movimento é
resultado de dinâmicas internas. Apreende-se, dessa forma que é difícil
estabelecermos uma ordem do que é mais importante e do que deve vir
primeiro no trabalho criativo. E existe essa ordem? Ou estes elementos
estão se atravessando o tempo todo e definindo o que somos e o que fazemos?


Acrescente-se que faz também parte desse corpo as relações que
ele cria com o que está à volta seja vivo ou inanimado. E é neste aspecto
que a Capoeira e o Aikido podem contribuir para o trabalho em cena, pois
são artes que, além de trazer para a materialidade toda a simbologia de uma
cultura, se completa nas relações entre os praticantes durante a luta. A
forma como um reage ao movimento do outro e aos objetos e sons a sua volta
como armas e cantigas, define as particularidades de cada uma destas artes.
Assim, ao observarmos ou praticarmos uma destas duas atividades percebemos
que somos afetados sensorialmente de maneiras diversas, uma vez que os
elementos que estão em jogo são diversos.

A respeito das relações instauradas e de como isto é
consequência da forma como meus sentidos são ativados nesse jogo, De
Marinis coloca que

"para o teatro, além e antes de seres humanos pensantes
... somos ..., também, animais, ou melhor, organismos
vivos ... e, como tais, também nos comportamos. Quando
somos colocados, como espectadores, na presença de outros
organismos vivos, disparam em nós reações físicas e
cognitivas típicas, ausentes em outras situações: a
cinestesia, ou empatia muscular, é uma dessas que,
enquanto produzida – como foi comprovado cientificamente
de modo experimental – somente pelos movimentos biológicos
(aqueles que Ejzenštejn chamou expressivos, como vimos),
reconhecíveis pelos observadores `[...] também na ausência
de qualquer silhueta antropomórfica´ (Pradier, 1994, p.
27)". (2012, p. 53)

A este respeito Espinosa coloca que o ser se revela plenamente
na relação. Portanto, ele não é, mas está sendo a partir das relações que
cria. O corpo tem o poder de afetar e ser afetado, é via, meio, é uma
entidade relacional, pois não tem como se separar de suas relações com o
mundo. (FABIÃO, 2010, p. 238) "O corpo espinosiano não está, e nunca
estará, completamente formado, pois que é permanentemente informado pelo
mundo.... inacabável, provisório, parcial, participante – está,
incessantemente, não apenas se transformando, mas sendo gerado" (FABIÃO,
2010, p. 238).

Considerando que o Aikido e a Capoeira são artes que colocam
como ponto principal a conexão com o parceiro, a recepção e a transformação
do impulso do outro, o diálogo corporal, a relação entre as esferas
pessoais, o olhar alerta o tempo todo, a definição de estratégias no
momento da ação, percebe-se que são artes que possibilitam o estudo
consciente destas relações, não simplesmente como defesa pessoal, mas, como
dito acima, para aprimoramento pessoal. Ao se praticar uma dessas duas
lutas, percebe-se que não se pode praticar sozinho, fazendo-se
imprescindível a conexão com um parceiro. E quanto maior a "escuta" entre
eles, mais harmônico e belo são os movimentos, como se percebe nas
ilustrações abaixo.






Imagem 1 Imagem 2

Morihei Ueshiba praticando Aikido Roda de Capoeira.

A partir do exposto podemos concluir, então, que Aikido e Capoeira
podem ser entendidos "enquanto" performances ou "são" performances?

A respeito da relação entre Aikido e Capoeira e performance,
recorro a algumas colocações de Eleonora Fabião a cerca do assunto.

Esta professora conecta a performance à ativação de experiência e
expõe:


"Em Do Ritual ao Teatro, o antropólogo Victor Turner
entrelaça diferentes linhas etimológicas do vocábulo
"experiência" e esclarece: etimologicamente a palavra
inclui os sentidos e risco, perigo, prova, aprendizagem
por tentativa, rito de passagem. Ou seja, uma experiência,
por definição, determina um antes e um depois, corpo pré e
corpo pós-experiência. Uma experiência é necessariamente
transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma,
literalmente, uma transforma." (FABIÃO, 2008, p. 237)


Isso me faz lembrar alguns depoimentos que tenho colhido ao longo
da minha pesquisa:


"depois do jogo, tenho a impressão que minhas energias foram renovadas"
(Lara, capoerista de Angola)

"a minha relação com meus parceiros dentro do tatame varia de acordo com o
meu estado emocional e de como foi meu dia. Aquele momento de treino é uma
extensão do aconteceu comigo. Se estou mais agressivo, mais tranquilo. A
recepção do estado do outro também me afeta a cada momento de uma maneira
diferente. Quando saio do treino, é como se toda a intensidade da minha
vivência da rua tivesse sido transmutada em uma outra coisa que não sei
explicar o que é. Saio diferente de como cheguei." (Francisco, Aikidoca, 1
DAN)

Nestes depoimentos percebemos que durante o treino ou o jogo o
praticante vivencia uma experiência que o transforma e que é única.
Pensando na Capoeira, esta experiência engloba não somente os que estão
jogando, mas todos os que estão na roda cantando, batendo palma ou tocando
um instrumento. Trata-se, portanto, de uma experiência coletiva. Neste
aspecto, não vemos esta concentração de energia no Aikido, cujos
praticantes se dividem normalmente em duplas e é com seu parceiro que a
experiência se dá. Embora, não possamos ignorar que todo o ritual do
entorno desde o início até o término interfira na qualidade da experiência.
Estes depoimentos reafirmam o que Eleonora Fabião dispõe a respeito do
corpo apresentado como "sistemas relacionais abertos, altamente suscetíveis
e cambiantes". É essa potência dramatúrgica investigada pelo performer
(FABIÃO, 2008, p. 238) que interessa nesta pesquisa.[ii] A esse respeito
Fabião discorre a cerca das tendências dramatúrgicas na performance das
quais destaco três que percebo terem conexão com a prática do Aikido e da
Capoeira: "curto-circuito entre arte e não-arte", "o estreitamento entre
ética e estética" e "a ampliação da presença, da participação e da
contribuição dramatúrgica do espectador". São o Aikido e a Capoeira
esportes, manifestação cultural, arte ou os três ao mesmo tempo? Ambas,
especialmente a Capoeira em razão do uso da musicalidade, tem uma relação
próxima com a dança pela forma como explora o corpo, mas não são dança. São
esportes, mas não entram em competição para não desfigurar a
contextualização histórica e filosófica, então não são vistos como esporte
por alguns. São artes que se situam nessa fronteira entre uma coisa e
outra. A estética que observamos durante a prática delas é diretamente
conectada à contextualização cultural que as originaram. Em relação à
participação do espectador na composição da dramaturgia vemos com a
capoeira uma forte conexão, já que quem não joga, pode participar mantendo
o ritmo, cantando e batendo palma. Estes, momentaneamente espectadores,
interferem diretamente na forma como o jogo se dá. A partir do exposto,
entendo que, nestes aspectos, as duas artes marciais, ora em análise, são
artes performativas.
Ainda falando em performance, é comum pensarmos no risco que o
performer se coloca[iii] ao realizar seu programa[iv]. Se pensarmos que
tanto o Aikido quanto a Capoeira, da forma como são praticados normalmente,
não tem pretensão inicial de risco corporal, então, elas não poderiam se
configurar como performances? Embora seja comum, este quesito não é
essencial para que a performance seja considerada como tal. Completando
este raciocínio e tomando emprestado o mesmo autor que traz a questão do
risco para a performance, Guillermo Del Peña, temos que:


"Tradicionalmente, el cuerpo humano, nuestro cuerpo, y no
el escenario, es nuestro verdadero sitio para la creación
y nuestra verdadera materia prima. Es nuestro lienzo en
blanco, nuestro instrumento musical, y libro abierto;
nuestra carta de navegación y mapa biográfico; es la
vasija para nuestras identidades en perpetua
transformación; el icono central del altar, por decirlo de
alguna manera. Incluso en los casos en que dependemos
demasiado de objetos, locaciones y situaciones, nuestro
cuerpo sigue siendo la matriz de la pieza de arte.
Nuestro cuerpo también es el centro absoluto de nuestro
universo simbólico –un modelo en miniatura de la
humanidad2 (humankind y humanity son la misma palabra en
español: humanidad) – y, al mismo tiempo, es una
metáforadel cuerpo sociopolítico más amplio. Si nosotros
somos capaces de establecer todas estas conexiones frente
a un público, con suerte otros también las reconocerán en
sus propios cuerpos." (PEÑA, 2005, p. 204)


Utilizando esta afirmação para analisarmos os corpos em movimento
dos Capoeiristas e dos Aikidocas, vemos um livro sendo aberto ao público
com a exposição das deficiências e das qualidades, das identidades de cada
um pela forma com que se expõem no jogo com o parceiro, na forma como se
conectam, da historia e do contexto que estão subentendidos em cada golpe
ou defesa executada. Vemos, uma obra de arte sendo desvelada conforme o
jogo acontece e as relações vão sendo desenvolvidas. Quando falo de relação
falo da escuta, da comunhão entre duas pessoas que estão realmente
conectadas em um determinado momento, sem a pretensão de impor ao outro,
mas de propor e de receber na medida em que a "escuta" corporal vai se
dando. A esse respeito, Fabião trata da relação e do corpo relacionável
expondo que:


"Um corpo é sempre uma multidão de relações e, como tal,
está permanentemente deflagrando relações. Corpo em
relação com corpo forma corpo. O entre-lugar da presença é
no nosso corpo o que não está em nós.
Para ativar circuitos relacionais, o ator deve trabalhar
tanto no sentido de aguçar sua criatividade como sua
receptividade. Geralmente a criatividade é privilegiada em
detrimento da receptividade, a força criativa em
detrimento do poder receptivo. Estamos mais habituados a
agir do que a distensionar, a ponto de sermos agidos;
somos treinados para criar e executar movimento, não para
ressoar impulso; ... A busca por um corpo conectivo,
atento e presente é justamente a busca por um corpo
receptivo. A receptividade é essencial para que o ator
possa incorporar factualmente e não apenas
intelectualmente a presença do outro." (2010, p. 323)
Partindo do princípio que a Capoeira traz a proposta de jogo, o que
já pressupõe a necessidade de entrosamento entre os participantes, e de que
o Aikido propõe que o movimento seja realizado a partir do impulso do
outro, assim considerado em sua forma e energia, podemos perceber que estas
duas artes trazem a necessidade da "escuta" com o corpo todo durante sua
prática e da receptividade da proposta do outro para que a "luta" prossiga
sem danos aos praticantes. Se eu como uke desferir um soco contra o nage e,
ao ter esse soco "absorvido" pelo movimento do nage, não me colocar
disponível nesse momento para me relacionar com esta nova proposta,
provavelmente me lesionarei fisicamente. Da mesma forma, na Capoeira, se eu
simplesmente me preocupar em agir, provavelmente não terei tempo de me
preparar para desviar de um chute e preparar uma defesa ou contra-ataque.
Nestes dois casos, o segredo é o corpo conectivo que menciona Fabião
(2010), onde eu não me preocupo apenas em agir, mas em receber o que o
outro disponibiliza no momento do jogo.
Tantas outras questões poderiam ser levantadas sobre esse assunto
para discutir a performatividade da Capoeira e do Aikido como a presença
das vestimentas usadas e a sua simbologia, se ao vesti-las os praticantes
estão representando ou não, e qual seria o nível dessa representação,
pensando na graduação que Michael Kirby coloca[v]. Poderíamos levantar
também a questão da performatividade no fato de vermos duas artes marciais
de origens culturais tão diferentes ressoarem tão fortemente em tantas
pessoas dentro de uma mesma cidade com rotinas semelhantes. Poderíamos
tratar do tipo de presença gerada em cada uma delas. Mas, todos estes
aspectos tomariam muitas páginas, e não sei se nesse início de pesquisa eu
teria competência para desmembrar a fundo a performance, o Aikido e a
Capoeira, relacionando-os adequadamente. Estes aspectos e outros ficam como
elementos para serem melhor conhecidos na medida em que a pesquisa for
sendo aprofundada.
Por fim, ante todo o exposto, podemos concluir que Capoeira e
Aikido podem ser considerados "enquanto" performance, mas que também,
dentro de determinado ponto de vista, reúnem aspectos que podem as
aproximar da arte da performance e que, poderiam (por que não?) serem
considerados como performance, levando-se em consideração as
características de sua prática, o envolvimentos corporal necessário, a
relação com sua história e a conexão de todos os elementos com o resultado
estético e dramatúrgico.


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[i] "A experiência prática dos diretores-pedagogos mostra que o ator, para
chegar a expressar em cena de maneira eficaz em relação aos objetivos do
papel-partitura, ou todavia, da sua performance, não deve começar pelos
sentimentos, mas pelo corpo, isto é, deve começar pelos movimentos, pelos
gestos, pelas ações físicas. Serão aqueles movimentos, aqueles gestos,
aquelas ações físicas a induzir nele as sensações-sentimentos-estados de
ânimo apropriados para a situação. O último Stanislavski (aquele do Método
das Ações Físicas), Meyerhold (Biomecânica) e Artaud (Atletismo afetivo) –
para mencionar apenas três dos mais importantes – se encontram totalmente
reunidos na adoção desse paradigma." (DE MARINIS, 2012, p. 7)

[ii] Dito isto, consideremos algumas tendências dramatúrgicas na
performance:
1) o deslocamento de referências e signos de seus habitats naturais (como
quando a cela
da prisão ocupa o apartamento/studio do artista); 2) a aproximação e
fricção de elementos de distintas naturezas ontológicas (como quando a
cirurgia plástica, o set cirúrgico e o corpo cortado tornam-se públicos e
cênicos); 3) acumulações, exageros e exuberâncias de todos os tipos (como
quando um pote de maionese custa 100 dólares); 4) aguda simplificação de
materiais, formas e idéias num namoro evidente com o minimalismo (como
quando uma barra de gelo e o empurrar são suficientes); 5) a aceleração ou
des-aceleração da experiência de sentido até seu colapso (como quando se
mastiga e se engarrafa um clássico da crítica de arte); 6) a aceleração ou
des-aceleração da noção de identidade até seu colapso (ou até que um
espectador queira fazê-la puxar o gatilho); 7) o desinteresse em performar
personagens fictícios e o interesse em explorar características próprias
(etnia, nacionalidade, gênero, especificidades corporais), em exibir seu
tipo ou estereótipo social (ou convidar transeuntes para que apalpem seus
seios através das cortininhas de uma maquete de palco italiano); 8) o
investimento em dramaturgias pessoais, por vezes biográficas, onde
posicionamentos e reivindicações próprias são publicamente performados
(como o sexo anal com um pênis-barbie); 9) o curto-circuito entre arte e
não-arte (sempre); 10) o estreitamento entre ética e estética (sempre); 11)
a agudez conceitual (muita); 12) o encurtamento ou a distensão da duração
até limites extremos (como quando uma única ação dura um ano inteiro) e a
irrepetibilidade (como quando uma ação única é tudo); 13) a ritualização do
cotidiano e a desmistificação da arte (como quando alguém come um doce,
cheira o mar ou paga uma conta atrasada a pedido de um exilado e exibe
fotos dessas ações numa galeria); 14) a ampliação dos limites psicofísicos
do performer (seja se desfigurando ao feder abjetamente em espaços
públicos, ou subindo uma escada de laminosos degraus); 15) a ampliação da
presença, da participação e da contribuição dramatúrgica do espectador
(que por vezes se vê diretamente implicado na ação). (FABIÃO, 2008, p. 239)

[iii] Aunque los artistas de performance siempre estamos arriesgando
nuestras vidas y nuestra integridad física en nombre del arte, rara vez nos
suicidamos o perdemos la vida por obra de un accidente causado por el
performance y definitivamente nunca asesinamos a nadie. En veinte años de
rolar y trabajar con artistas de performance, nunca he conocido un
homicida; solamente três colegas se han suicidado y dos más perdieron sus
vidas debido a fallas de cálculo durante un performance. En el proceso de
encontrar las verdaderas dimensiones y posibilidades de una nueva pieza,
algunos de nosotros, de manera estúpida, hemos corrido riesgos innecesarios
y en ocasiones hemos puesto en riesgo a nuestro público, pero
afortunadamente, nada grave ha ocurrido aún. (GOMES PEÑA, Guillermo, 2005,
p. 13)

[iv] Programa é o termo utilizado por Eleonora Fabião para designar
planejamento dos eventos durante a performance.
"Chamo as ações performativas programas, pois, neste momento, esta me
parece a palavra mais apropriada para descrever um tipo de ação
metodicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige extrema
tenacidade para ser levada a cabo, e que se aproxima do improvisacional
exclusivamente na medida em que não seja previamente ensaiada. Performar
programas é fundamentalmente diferente de lançar-se em jogos
improvisacionais." (FABIÃO, 2008, p. 227)

[v] Michael Kirby (1995) apresenta as graduações da representação, desde a
ausência de autuação até a atuação complexa. Para isso criou a seguinte
linha de evolução de complexidade em relação a representação:

NOT ACTING

ACTING

Nonmatrixed - Symbolized - Received
- Simple - Complex
Performing Matrix
Acting Acting Acting

Kirby explica essa evolução a partir dos elementos incluídos no trabalho do
ator ou do performer e do contexto em que ele está. De acordo com este
autor, o performer pode lançar mão de figurinos e adereços, que podem
representar alguma outra coisa ou não. Se não representarem, como no caso
do Kurombu, assistentes de palco do teatro No, estão no início da linha
(nonmatrixed). Se estes objetos e figurinos representarem algo, mas ainda
não há atuação, estão no segundo nível da linha (Symboleized Matrix).
Quando o ator ou performer começa a atuar, ou seja, se ele se colocar em um
nível de ficção, como outra pessoa que não ele próprio, começa a se
deslocar nessa linha de acordo com a complexidade de sua atuação (simple
acting - complex acting). Por exemplo, se em uma atuação vemos envolvido
elementos físicos, psicológicos, e emocionais, começamos a ver uma atuação
complexa (Complex Acting). Cabe esclarecer, todavia, que Kirby, quando
trata desses aspectos, não leva em consideração a qualidade da atuação, ou
seja, se a atuação é boa ou não, mas apenas a quantidade de elementos
envolvidos nesse processo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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contemporânea. In: Revista Sala Preta, Ppgac/USP, v. 8, n 1, 2008

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Eletrônica, Vol. 10 - n. 3 - p. 321-326 / set-dez, 2010

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GOMES-PEÑA, Guillermo. En Defensa del arte del performance. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 199-226, jul/dez. 2005
KIRBY, Michael. On Acting and not acting. In: Acting (re) considered.
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SCHECHNER, Richard. What is performance? In Performance Studies: An
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do Corpo na Capoeira, Campinas: UNICAMP, 2008


SILVA, Eusébio Lôbo da. O Corpo em Ação na Capoeira Vol. 4, Campinas:
UNICAMP, 2008

UESHIBA, Kisshomaru. O Espírito do Aikido. Trad. Euclides Luiz Calloni, 6ª
ed., São Paulo: Cultrix, 2006

UESHIBA, Moriteru. The Aikido Máster Course. Best Aikido 2. Trad. para
inglês John Stevens. Tokyo: Kodansha International, 2003

WESTBROOK, Adele e RATTI, Oscar. Aikido e a Esfera Dinâmica. Trad. Carina
de Souza Lucindo. São Paulo: Madra, 2006



Paper realizado como conclusão da disciplina "Performance- teorias e
práticas" ministrada pela Profa. Elizabeth Lopes no segundo semestre de
2013.

Aluna: Renata Mazzei Batista
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