A periferia é o centro: juventudes, políticas públicas e cultura digital em São Paulo (págs 37-58)

May 23, 2017 | Autor: Harika Maia | Categoria: Youth Studies, Digital Culture, Políticas Públicas, Juventude, Periferia
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Parte 1

POLÍTICAS E PRÁTICAS CULTURAIS PARA A CIDADE DE SÃO PAULO Organização Maria Amelia Jundurian Corá

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

Organização Maria Amelia Jundurian Corá

COORDENAÇÃO EDITORIAL Luan Maitan CAPA E PROJETO GRÁFICO Aline Maya DIAGRAMAÇÃO Robson Santos IMAGENS DA CAPA Mariana Jundurian Corá PREPARAÇÃO Richard Sanches REVISÃO Stéphanie Roque EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Tikinet Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP C787 Corá, Maria Amelia Jundurian, Org. Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo / Organização de Maria Amelia Jundurian Corá – São Paulo: TikiBooks, 2016. 146 p.; Il.

ISBN 978-85-66241-09-9

1. Cultura. 2. Política Cultural. 3. Cultura Urbana. 4. Antropologia da Cultura. 5. Sociologia da Cultura. 6. Gestão Cultural. 7. Práticas Culturais. 8. Mediação Cultural. 8. Cultura Digital. 10. Cidade de São Paulo. I. Título II. Corá, Maria Amelia Jundurian, Organizadora. CDU 316.7 CDD 306

Ficha Catalográfica elaborada por Ruth Simão Paulino

Rua Santanésia, 528, 1o andar – Vila Pirajussara CEP: 05580-050 – São Paulo – SP Tel.: (11) 2361-1808/1809 www.tikinet.com.br

Sumário Apresentação 6 Maria Amelia Jundurian Corá

Políticas culturais: está na hora de ocupar para poder transformar

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Maria Amelia Jundurian Corá

Cultura, Direito e políticas culturais: a necessidade de uma perspectiva democrática e transdisciplinar

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Luis Manuel Fonseca Pires

Espaços improváveis: ressignificação cultural em “vazios” da metrópole paulistana

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Guilherme Nascimento Nafalski

A periferia é o centro: juventudes, políticas públicas e cultura digital em São Paulo

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Rita de Cássia Alves Oliveira Harika Maia

Espaços inusitados para música

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Edson Natale

A cultura como estratégia de resgate do patrimônio histórico: a experiência do Projeto Fontes de São Paulo

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Patrícia Huelsen Marcelo Augusto Vieira Graglia

Aplicativo de visita a espaço museológico cemiterial: tecnologia em prol da educação e cultura

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Roberto Sanches Padula Maria Amelia Jundurian Corá

Discutindo a morte na escola: o papel da literatura infantojuvenil – relato de experiência

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Ana Luiza Santos Galvão Bueno

Responsabilidade cultural – conceitos e implicações Américo Córdula

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Apresentação Este livro tem como objetivo apresentar alguns textos que refletem as angústias e discussões daqueles que vêm pensando e praticando a cultura nas cidades, em especial na cidade de São Paulo. Essa preocupação está presente em centros de pesquisa das universidades e, em especial, tem sido um tema de debates recorrentes no Núcleo de Estudos Avançados do Terceiro Setor (Neats) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. No Neats temos atuado na área da cultura tanto em pesquisa quanto em ensino e extensão, destacando projetos de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso, monografias de especialização, dissertações e teses, quanto no oferecimento do curso de extensão em Gestão Cultural pelo Cogeae e a disciplina de gestão cultural como optativa do curso de graduação em Administração. No campo da extensão desenvolvemos dois projetos importantes, sendo eles um convênio com a Secretaria Municipal da Cultura para elaboração do Plano Municipal de Cultura de São Paulo e um convênio com o Serviço Funerário do Município de São Paulo para o fomento do Cemitério da Consolação como espaço museológico. A partir dessas experiências, sentimos necessidade de sistemar o conhecimento adquirido, bem como de trazer novas temáticas para o debate. Por isso, convidamos algumas pessoas para desenvolver textos que pudéssemos utilizar em nossas reflexões de pesquisadores e como instrumento nas salas de aula, sempre tendo a cidade de São Paulo como pano de fundo de nossas discussões. Este livro só foi possível graças ao Edital PIPEq Publicação de Livros 2016, em que fomos contemplados. Boa leitura. Maria Amelia Jundurian Corá

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Parte 1

Políticas culturais: está na hora de ocupar para poder transformar Maria Amelia Jundurian Corá1

A cultura vem ganhando espaço como alternativa de busca de um desenvolvimento que contemple as dimensões local, regional e global, permitindo uma reorganização da agenda da política pública do Estado. Assim, amplia-se a necessidade das políticas públicas desempenharem um papel proativo acerca das questões sociais, culturais e ambientais. Para compreender o que é política pública cultural, partimos da concepção de Falcão (1984, p. 17), que a considera o “conjunto articulado e fundamentado de decisões, projetos, programas, recursos e instituições, a partir da iniciativa do Estado”. Indo um pouco mais além, Coelho (2004) inclui programas de intervenções realizados pelo Estado, as instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo comum de satisfazer às necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas. Los estudios recientes tienden a incluir bajo este concepto al conjunto de intervenciones realizadas por el estado, las instituciones civiles y los grupos comunitarios organizados a fin de orientar el desarrollo simbólico, satisfacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o transformación social. Pero esta manera de caracterizar el ámbito de las políticas culturales necesita ser ampliado teniendo en cuenta el carácter transnacional de los procesos simbólicos y materiales en la actualidad. (CANCLINI, 2005, p. 78, apud RUBIM, 2007, p. 13)

1 Professora doutora do Departamento de Administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Avançados em Terceiro Setor (Neats).

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Políticas culturais

Complementando a definição de Canclini, Rubim (2007, p. 13) sintetiza que falar em políticas culturais implica, entre outros requisitos, pelo menos, intervenções conjuntas e sistemáticas e atores coletivos e metas. Assim, como toda política pública, aquela que foca a cultura tem que levar em consideração diferentes grupos de atores que a influenciam e possuem interesses divergentes, que devem ser considerados na arena política das tomadas de decisões a respeito dos desenhos das ações desenvolvidas pelo Estado no âmbito cultural: grupos, associações, fontes de financiamentos, agentes culturais, público, entre tantos outros atores. Para Durand (2001), há uma pluralidade de interesses na área cultural marcada por qualificações intelectuais, estéticas, políticas e administrativas divergentes que faz pontos de vista distintos se confrontarem em espaços sociais independentes. Dessa forma, cada interesse é representado por um ator que encampa seu entendimento de cultura, procurando suprir uma necessidade e um ponto de vista defendido por seu grupo de representação. Uma arena política é montada, e nela as disputas de poder se tornam fundamentais para a delimitação do que é ou não cultura e do que deve ou não ser investido como cultura. A política cultural no Brasil pode ser considerada recente se levarmos em conta a própria autonomia do Ministério da Cultura, que surgiu apenas em 1985. Foi necessário que ela ganhasse consistência nos debates acerca das direções tomadas pelo Ministério e secretarias de Cultura, enquanto se fortalecia uma estrutura institucionalizada em que houvesse uma integração das ações desenvolvidas nos diversos âmbitos. Dessa forma seria possível responder às expectativas dos artistas, intermediários culturais, Estado e público, ou melhor, cidadãos, pois a cultura, quando pensada de forma ampliada, deixa de ser apenas espetáculo e passa a ser pensada na dinâmica da cidadania. A universidade desempenha um papel importante no fortalecimento das políticas culturais, por meio de pesquisa que auxiliam na elaboração de diagnósticos e indicadores de desempenho. Nesse sentido, Durand (2001) considera que a gestão da cultura como política pública ainda é pouco explorada. Um exemplo disso é a falta de conhecimento estruturado no que se refere às secretarias municipais e estaduais de cultura, ou como as cidades tratam os assuntos culturais nas secretarias de educação, esportes e turismo, ou outra qualquer. 8

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

Para ampliar essa sistematização do conhecimento no âmbito da política cultural, deve ser estimulada a realização de mapeamentos das ações do Estado em suas diversas esferas. O mapeamento de tais ações deve ter como foco os âmbitos da produção, da circulação e do consumo culturais (CABRALE, 2007). Uma vez que o Estado precisa fazer escolhas entre as ações nas quais ele irá alocar recursos, também caberia a ele desenvolver pesquisas sobre as ações culturais. Assim, ele consolidaria uma base de informações que lhe daria suporte em sua tomada de decisões a respeito dos investimentos públicos. As universidades e a sociedade civil auxiliam o Estado a definir melhor seu papel de atuação, pois não cabe a ele determinar o valor da cultura, mas determinar as ações que serão contempladas pelos recursos públicos. Os órgãos governamentais, desse modo, acabam fazendo escolhas sobre as áreas de atuações que serão privilegiadas naquele momento. O esforço deve ser no sentido de contemplar a pluralidade das culturas e sua autonomia de criação. Para Miceli e Gouveia (1985), por exemplo, o governo sempre foi responsável por abrigar e proteger a arte erudita no Brasil, sobretudo nos casos em que não há interesse no mercado em consumi-los. Porém, hoje se percebe que a ênfase é dada à valorização tanto das expressões eruditas quanto das expressões populares. Isso faz que a atuação do Estado promova o multiculturalismo, além de ter uma maior preocupação com a atuação da indústria cultural e sua influência nas práticas culturais. Deve-se também atentar ao fato de que muitas das atividades promovidas pelo governo são voltadas para uma parcela muito restrita da população, restringindo seus impactos a poucos, o que coloca em dúvida se de fato tais ações deveriam ser de responsabilidade estatal. Citando o caso americano, Durand (2001) pontua que lá os investimentos culturais seguem o princípio da responsabilização (accountability), em que o projeto deve considerar a melhoria do acesso, a ampliação do público, modificação em sua composição social para estratos menos favorecidos, ou melhoria de repertórios de gosto. No Brasil, uma experiência interessante para se pensar a política cultural foi a implementada por Marilena Chauí, na Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo, entre 1988 e 1992. Ela desenvolveu as diretrizes da chamada Cidadania Cultural, em que a cultura foi considerada como direito dos cidadãos. Para Chauí (1986) os direitos a serem afirmados são: 9

Políticas culturais









Direito de acesso aos bens culturais e de sua fruição por meio de serviços culturais, enfatizando o direito à informação (bibliotecas, arquivos históricos, escolas de artes, oficinas, gratuidade em espetáculos e exposições, publicação de livros etc.); Direito à criação cultural, sendo a cultura um trabalho complexo que compreende as dimensões da sensibilidade, da imaginação, da inteligência, da reflexão, da memória, nas quais indivíduos, grupos e classes sociais se reconhecem como sujeitos da própria história e, portanto, como sujeitos culturais; Direito a se reconhecer como sujeito cultural, ampliando o sentido da cultura e criando espaços de discussões, troca de experiências, apropriação de conhecimentos para assegurar a autonomia dos sujeitos culturais; Direito à participação nas decisões públicas sobre a cultura, por meio de conselhos e fóruns deliberativos nos quais todos os atores – associações artísticas e intelectuais, grupos criadores de cultura e os movimentos culturais – sejam representados para garantir uma política cultural distante do clientelismo.

Esse projeto de Cidadania Cultural procurava, por meio da democratização do debate político na cultura, garantir a fruição, experimentação, informação, memória e participação de todos, permitindo uma nova perspectiva no pensamento da política cultural. Uma perspectiva como essa tem como ênfase a diversidade cultural e a valorização do trabalho relacionado à cultura e à arte. Ela contrapõe a visão clientelista e elitista da cultura a partir da participação e discussão dos agentes e beneficiários dos projetos culturais para criar uma política que de fato incorpore todos no processo de tomada de decisão. Uma questão que deve ser pontuada é o processo de “espetacularização” da cultura para alcançar um público, que não iria a um evento cultural, mas que passa a ir por conta da sua transformação em espetáculo proporcionada por campanhas publicitárias, midiáticas e de marketing fortíssimas para patrocinar os eventos culturais. A mídia passa influenciar o hábito cultural fazendo que haja, além de um processo de espetacularização, também um processo de massificação, 10

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

no qual a cultura se torna um produto a ser consumido, sem que muitas vezes haja uma crítica sobre o que se está consumindo.2 É assim que se criou o neologismo “espetacularização”, para dar conta da carga de “efeitos especiais” com que se reveste a manifestação artística, a fim de torná-la “acontecimento memorável”. É sempre bom que se atraia o maior público possível, ao invés de deixar salas às moscas; todavia – como reiteradamente mostram as pesquisas –, a maior parte das pessoas levadas a um evento “espetacularizado” só voltará a eventos subsequentes se atraída por igualmente custosa parafernália promocional. Para transformar um frequentador ocasional em apreciador regular de cultura, é preciso pensar a prazo mais longo. E dar-lhe educação artística. (DURAND, 2001, p. 67-68)

Pensar a política pública cultural em uma perspectiva de educação artística é considerar a cultura muito além do que apenas espetáculos ou manifestações culturais. É concebê-la como uma intervenção que promove o desenvolvimento da cidadania, estruturando as políticas culturais de forma integrada com a educação, turismo, desenvolvimento regional, artesanato, cooperação internacional, saúde, entre outras intervenções. Com isso, a cultura se fortalece, o público se torna mais presente, e os artistas e comunidades que promovem cultura popular conseguem fazer da cultura um modo de vida e, dessa forma, conseguem se sustentar por seu trabalho cultural e artístico. Para Durand (2001), o público só se enriquece e se diversifica no longo prazo, a partir de processos de aprendizado e transmissão que ampliam o repertorio de gosto e a sensibilidade artística, permitindo o surgimento de novas expressões artísticas e culturais. As autoridades governamentais devem atuar em lógicas diferentes para atender a cultura erudita, a indústria cultural e as culturas 2 Esse processo de massificação cultura recordou-me uma situação vivida. Em uma data festiva do calendário paulistano, haveria comemorações no Museu da Independência com shows gratuitos. Nessa ocasião, o show de encerramento era do Naná Vasconcelos. Uma pessoa próxima comentou que iria ao show ver a Naná, que sua voz era sensacional e que ela era uma das maiores cantoras brasileiras. No momento do show, entra o Naná, homem, percursionista… Essa pessoa ficou assustada – nunca tinha imaginado que Naná era homem – mas estava lá graças aos investimentos grandiosos de propaganda para divulgação do evento.

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Políticas culturais

populares. Em cada linha de atuação deve haver diretrizes claras, justificativas para o financiamento direto, fomento indireto, necessidade de estímulo, ajuda ou intervenção (DURAND, 2001). A crescente busca pela educação artística visa o desenvolvimento do gosto pela arte, a adesão a novos estilos de vida, o lazer, a ampliação de público etc. compreende que a gestão cultural vai além de promover eventos e restaurar sítios históricos. Ela também deve promover o desenvolvimento e a cidadania por meio de criação de empregos, estímulo ao turismo, reestruturação de áreas urbanas deterioradas, inclusão social, reconciliação de raças e religiões, contenção de violência, entre outros. Nessa perspectiva, a política cultural se aproxima do que Yúdice considera ser a já mencionada cultura de conveniência, na qual “a cultura está sendo crescentemente dirigida como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica, ou seja, para aumentar sua participação nessa era de envolvimento político decadente, de conflitos acerca da cidadania e do surgimento do capitalismo cultural” (YÚDICE, 2004, p. 26).

OCUPAÇÃO PARA TRANSFORMAÇÃO CULTURAL Quando se fala em espaço urbano, Leite (2007) sugere a interatividade entre os agentes envolvidos na construção social do seu espaço, mantendo relações ainda pouco integradas. Já o espaço público ampliaria a noção de espaço juntamente com a sociabilidade pública, ou seja, práticas interativas da vida cotidiana. O conjunto de sentidos por relações sociais diferentes e desiguais e suas assimétricas modalidades de interação pode, assim, constituir-se em lugares políticos na medida em que a sua especializada e conflitante formação precipita e expressa as relações de poder, tensões e disputas que caracterizam a vida social, qualificando e diferenciando certos espaços da vida urbana cotidiana em espaços públicos. (LEITE, 2007, p. 25)

Assim, o processo de interação da ação na esfera pública com o espaço urbano resulta na convergência de práticas de sociabilidade, de

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Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

poder e de cotidiano que transformam o espaço público e sua percepção em relação a ele. A cidade ganha dimensão cada vez mais destacada no debate do cotidiano das pessoas, mas com um enfoque cada vez mais específico dentro das cidades, ou seja, quando nos referimos a algum espaço urbano, pensamos em lugares específicos. Por exemplo, ouvimos as pessoas dizerem “ontem fui a um lugar inesquecível” ou “como chama mesmo aquele lugar que vende material de construção”. Para Leite (2007) a noção de lugar é menos genérica e abrangente que a de espaço, onde se entende o lugar como demarcação física e simbólica no espaço, cujos usos o qualificam e lhe atribuem sentido de pertencimento, orientando ações sociais. Os lugares não são demarcações com fronteiras rígidas de separação, mas uma estreita relação de apropriação da dinâmica social dos aspectos da vida como passado ou identidades comuns. Assim, a apropriação dos atores sociais é necessária para a definição e significação do lugar no cotidiano das pessoas. Para Harvey (1992), nas práticas cotidianas os indivíduos são considerados agentes movidos por um propósito, engajados em projetos que absorvem tempo através do movimento no espaço, construindo e identificando o lugar. Os lugares são redes de relações e experiências e entendimentos sociais que se constroem na prática cotidiana. Pode ser uma rua, região ou praça de referência da comunidade. (LEITE, 2007, p. 285)

O lugar se torna um tipo de demarcação, física ou simbólica, que qualifica o espaço pela atribuição de sentidos e significados que orientam as ações sociais compartilhadas ali desenvolvidas. Assim, para Guattari (1985), o lugar é sempre um espaço de representação, cuja singularidade é construída pela “territorialidade subjetivada” mediante práticas sociais e usos semelhantes. Leite (2007) considera que os lugares não resultam de consensos, mas de possibilidades de entendimento. Significa dizer que eles não são produtos originais resultantes de ações sociais que se tornam consensuais, mas processos de interação e qualificação simbólica convergentes que antecedem formas consensuais mais abrangentes.

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Políticas culturais

Pensar na dinâmica da cidade é fundamental para planejar intervenções urbanas que propiciem uma ressignificação de espaços, que vão deixando de ser notados como lugares na correria do dia a dia e passam a ser apenas lembranças ou não lugares.3 Dessa forma, os espaços urbanos onde se pratica a ocupação cultural tornam-se novamente lugares devido à construção simbólica facilitada pelo patrimônio cultural reaproriado pelos moradores, sendo firmados sentidos na experiência urbana. Lefebvre (2004, p. 29) considera a rua como lugar do encontro, um espaço de comunicação sem o qual não existem outros encontros possíveis nos lugares determinados (cafés, teatros, salas diversas), criando identidades e identificações espaciais. Quando a passagem na rua é apenas obrigatória e reprimida, torna-se corredor, um não lugar, que faz que se perca o sentido do encontro, convertendo a rua em uma transição ou uma rede organizada pelo ou para o consumo. Considerando ainda Lefebvre (2004), a organização neocapitalista do consumo mostra sua força na rua, por meio de vitrinas (exposição do objeto à venda), onde a mercadoria é acompanhada de uma contemplação (passiva) que adquire o aspecto e a importância de uma estética e de uma ética. A uniformização do cenário, visível na modernização das ruas antigas, reserva aos objetos (mercadorias) os efeitos de cores e formas que os tornam atraentes. Trata-se de uma aparência caricata de apropriação e de reapropriação do espaço na realização de eventos nas ruas: carnaval, bailes, festivais. Quanto à verdadeira apropriação, a da “manifestação” efetiva, é combatida pelas forças repressivas, que comandam o silêncio e o esquecimento (LEFEBVRE, 2004) A abordagem defendida por Lefebvre e os usos particulares, principalmente mercadológicos, têm sido marca comum na reapropriação das ruas, que se tornam espaços de consumo, de trocas econômicas, marcadas pela significação social e cultural permitida pela apropriação de espaços tradicionais, de lembranças e memórias da cidade.

3 A expressão “não lugar” tem como referência o livro de Marc Augé.

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Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

POLÍTICAS CULTURAIS NA CIDADE: AONDE QUEREMOS CHEGAR? A complexidade das políticas culturais torna este campo um espaço de disputas e interesses de diversos atores, como os gestores públicos, gestores da cultura, ativistas, artistas, público interessado e sociedade civil em geral. Nesse sentido, debater as política culturais nestas diversas perspectivas é fundamental para garantir o direito e a democratização do acesso à cultura. O que temos observado em São Paulo nos últimos anos é um movimento de difusão da cultura em seus multiformatos, procurando ocupar espaços públicos e espaços ociosos para a prática de cultura e artes. Ações e eventos culturais nas ruas e praças acabaram por ressignificar esses locais como novos usos de espaços públicos. Eventos culturais como Virada Cultural, carnaval de rua, feiras de arte, festas no centro da cidade, ruas de lazer – destacando a abertura da Avenida Paulista aos domingos – entre outros, mostram a necessidade de se repensar os territórios da cidade a partir da cultura. Nesse sentido, os territórios têm que ser compreendidos com suas especificidades, em sua relação com os moradores e com os que promovem as ações culturais. Esse trabalho é, portanto, contínuo e não se esgota ao findar uma prática cultural. Ele se reinicia e demanda das políticas culturais um papel de orquestramento desses espaços, interesses e atores a fim de planejar, gerir e avaliar os impactos para a cidade e seus cidadãos. A participação social se torna fundamental para garantir que os instrumentos das políticas públicas implantados sejam monitorados e acompanhados para se adaptarem à dinâmica da cidade e, com isso, buscar sempre a democratização do acesso à cultura, valorizando as manifestações culturais, artes, patrimônios culturais e memórias.

REFERÊNCIAS AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. CABRALE, L. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: ENCONTRO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES EM CULTURA, 3., 2007, Salvador. Anais… Salvador: UFBA, 2007.

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Políticas culturais

CHAUÍ, M. S. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. COELHO, T. J. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras, 2004. DURAND, J. C. G. Cultura como objeto de política pública. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 66-72, abr./jun. 2001. FALCÃO, J. A. Política cultural e democracia: a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. In: MICELI, S. (Org.). Estado e cultura no Brasil. São Paulo: Difusão, 1984. GUATTARI, F. Espaço e poder: a criação de territórios na cidade. Espaço e Debates, São Paulo, v. 5, n. 16, 1985. HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992. LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, 2004. LEITE, R. P. Contrausos da cidade: lugares e espaços públicos na experiência urbana contemporânea. Campinas: Unicamp, 2007. MICELI, S.; GOUVEIA, M. A. M. Política cultural comparada. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. RUBIM, A. A. Políticas culturais do governo Lula/Gil: desafios e enfrentamentos. In: ENCONTRO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES EM CULTURA, 3., 2007, Salvador. Anais... Salvador: UFBA, 2007. YÚDICE, G. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

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Parte 1

Cultura, Direito e políticas culturais: a necessidade de uma perspectiva democrática e transdisciplinar Luis Manuel Fonseca Pires1

INTRODUÇÃO Proponho algumas ideias sobre a necessidade de uma perspectiva democrática e transdisciplinar, fundamental, a meu ver, à compreensão da relação entre a cultura e o Direito, especialmente na medida em que compete ao Estado, nos termos do art. 215 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais. Há muitos comprometimentos jurídicos em relação à cultura, e de ordem constitucional. O Estado brasileiro deve promover, ainda conforme o art. 215, §3º, I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV democratização do acesso aos bens de cultura; V valorização da diversidade étnica e regional,

além de outras obrigações delineadas no art. 216 e, antes ainda, enquanto competências legislativas e administrativas, entre os arts. 21 a 30 do texto constitucional. Definitivamente, não há como o Direito (a ciência jurídica) alcançar o conteúdo de políticas culturais sem promover a participação popular e ainda se valer de outras áreas de conhecimento que lhe permitam compreender e conferir significados aos signos jurídicos que devem orientar as decisões administrativas dos entes públicos. 1 Doutor e mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), professor de Direito Administrativo na graduação e na pós-graduação lato sensu da PUC-SP e Juiz de Direito no estado de São Paulo.

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Cultura, Direito e políticas culturais

Por isso, além de espaços nos quais os diversos segmentos da sociedade civil possam manifestar-se, o recurso ao conhecimento transdisciplinar é imperativo, pois, como diz Edgar Morin, todo conhecimento atua pela seleção de dados que são significativos e a rejeição daqueles que não o são. Por disjunções, reduções e abstrações, vive-se sob o “paradigma de simplificação”. Uma “inteligência cega”, nas palavras desse pensador, que “destrói os conjuntos e as totalidades, isola todos os seus objetos do seu meio ambiente” (MORIN, 2011, p. 12). Daí a necessidade de um “pensamento complexo”: O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza… Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar… Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus; e efetivamente, como eu o indiquei, elas nos deixam cegos. (Ibid., p. 13-14)

Ao incorporar as incertezas e indeterminações, o pensamento complexo propõe-se a superar o paradigma simplificador: um paradigma que põe ordem no universo, expulsa dele a desordem. A ordem se reduz a uma lei, a um princípio. A simplicidade vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. (Ibid., p. 59)

O pensamento complexo idealiza a completude. Um pensamento complexo é necessário ao Direito para se lidar com projetos culturais: I. ao assumir o dever de diversidade das expressões culturais; II. para a universalização do acesso aos bens e serviços culturais; III. para 18

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

o fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; IV. para a cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; V. para a integração e interação na execução de políticas, programas, projetos e das ações desenvolvidas – enfim, todos os deveres contidos no art. 216-A da Constituição Federal (BRASIL, 1988), entre outras expectativas que são constituídas como diretrizes (obrigatórias) constitucionais. O que pretendo aqui é compartilhar a dificuldade de se definir a cultura e, ao mesmo tempo – e também por essa razão –, a necessidade de o Direito interpretá-la ao legislar, ao serem anunciadas as políticas públicas culturais, ao serem emitidos atos administrativos por parte da Administração Pública antes de se comprometer a entender o fenômeno que pretende disciplinar (a cultura) sob a diversidade e a complexidade que a caracterizam, o que impõe ao Estado o dever de efetivamente dialogar com a sociedade e as outras ciências humanas.

CULTURA: UM PERCURSO Terry Eagleton, filósofo e crítico literário britânico, em sua obra A ideia de cultura, expõe as diversas significações que a palavra recebeu no decorrer dos tempos, tendo suas origens na agricultura: Cultura é considerada uma das duas ou três palavras mais complexas de nossa língua, e ao termo que é por vezes considerado seu oposto – “natureza” – é comumente conferida a honra de ser o mais complexo de todos. No entanto, embora esteja atualmente em moda considerar a natureza como um derivado da cultura, o conceito de cultura, etimologicamente falando, é um conceito derivado da natureza. Um de seus significados originais é “lavoura” ou “cultivo agrícola”, o cultivo do que cresce naturalmente. […] Nossa palavra para a mais nobre das atividades humanas, assim, é derivada de trabalho e agricultura, colheita e cultivo. […] “Cultura”, aqui, significa uma atividade, e passou-se muito tempo até que a palavra viesse a denotar uma entidade. Mesmo então, provavelmente não foi senão com Matthew Arnold que a palavra desligou-se de adjetivos como “moral” e “intelectual” e tornou-se apenas “cultura”, uma abstração em si mesma. (EAGLETON, 2008, p. 9-10)

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Cultura, Direito e políticas culturais

Com o fenômeno da urbanização e o gradual êxodo rural ocorrido ao longo da história, o termo “cultura” transformou-se, sofisticou-se e foi apartado de seu significado original, relacionado ao trabalho na terra, porque a cidade desligou o homem de sua atividade agrária: “Cultura” denotava de início um processo completamente material, que foi depois metaforicamente transferido para questões do espírito. A palavra, assim, mapeia em seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do lavrar o solo à divisão do átomo. […] Mas essa mudança semântica é também paradoxal: são os habitantes urbanos que são “cultos”, e aqueles que realmente vivem lavrando o solo não o são. Aqueles que cultivam a terra são menos capazes de cultivar a si mesmos. A agricultura não deixa lazer algum para a cultura. (Ibid., p. 10)

Nota-se uma inversão de sentidos. Aqueles que de fato ocupavam-se com a cultura do campo tornaram-se os incultos. Com a expansão marítima e o nascimento do capitalismo comercial, o termo novamente sofreu transformações: A raiz latina da palavra “cultura” é colere, o que pode significar qualquer coisa, desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu significado de “habitar” evolui do latim colonus para o contemporâneo “colonialismo”, de modo que títulos como Cultura e colonialismo são, de novo, um tanto tautológicos. Mas colere também desemboca, via o latim cultus, no termo religioso “culto”, assim como a própria ideia de cultura vem da Idade Moderna a colocar-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e transcendência. (loc. cit.)

Com a modernidade, “cultura” e “civilização” se tornaram então quase sinônimos, isto é, só se podia considerar como cultura os costumes e tradições de um povo que fosse civilizado nos padrões europeus, fenômeno decorrente dos próprios processos de colonização: Raymond Williams investigou parte da complexa história da palavra “cultura”, distinguindo três sentidos modernos principais da palavra. Com base em suas raízes etimológicas no trabalho rural, a palavra

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Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

primeiro significa algo como “civilidade”; depois, no século XVIII, torna-se mais ou menos sinônima de “civilização”, no sentido de um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material. Na qualidade de ideia, civilização equipara significativamente costumes e moral: ser civilizado inclui não cuspir no tapete assim como não decapitar seus prisioneiros de guerra. A própria palavra implica uma correlação dúbia entre conduta polida e comportamento ético, que na Inglaterra também pode ser encontrada na palavra gentleman. Como sinônimo de “civilização”, “cultura” pertencia ao espírito geral do iluminismo, com o seu culto do autodesenvolvimento secular e progressivo. Civilização era em grande parte uma noção francesa – então, como regra, supunha-se que os franceses tivessem o monopólio de ser civilizados – e nomeava tanto o processo gradual de refinamento social como o télos utópico rumo ao qual se estava desenvolvendo. Todavia, ao passo que a “civilização” francesa incluía tipicamente a vida política, econômica e técnica, a “cultura” germânica tinha uma referência mais estreitamente religiosa, artística e intelectual. Podia também significar o refinamento intelectual de um grupo ou indivíduo, em vez da sociedade em sua totalidade. A “civilização” minimizava as diferenças nacionais, ao passo que a “cultura” as realçava. A tensão entre “cultura” e “civilização” teve relação muito forte com a rivalidade entre Alemanha e França. (Ibid., p. 19-20)

O sociólogo Zygmunt Bauman, igualmente renomado intelectual, também aborda a correlação entre os significantes “cultura” e “civilização” nesse momento histórico, e afirma que “o conceito de ‘civilisation’ entrou no discurso erudito do Ocidente como sinônimo de uma cruzada proselitista consciente empreendida por homens de conhecimento, tendo em vista extirpar os vestígios de culturas selvagens – modos de vida e padrões de coabitação locais vinculados pela tradição” (BAUMAN, 2010, p. 133). E acrescenta: Nas palavras de Bénéton, o conceito [de civilisation] era marcado por três traços: otimismo (crença na maleabilidade ilimitada das características humanas), universalismo (crença num ideal aplicável a todas as nações, lugares e tempos) e etnocentrismo (crença de que o

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Cultura, Direito e políticas culturais

ideal formado na Europa do século XVIII representava o ápice da perfeição humana, que outras partes do mundo teriam e gostariam de imitar). “Cultura e civilização”, Bénéton concluía em sua pesquisa, “são mots de combat que assumem uma função política”. (Ibid., p. 135)

Nos últimos tempos, no entanto, a relação entre “cultura” e “civilização” inverteu-se e o conceito de cultura pareceu flexibilizar-se. De volta a Eagleton (2008, p. 25): Num gesto prefigurativo do pós-modernismo (ele próprio, entre outras coisas, uma variedade do pensamento romântico tardio), Herder propõe pluralizar o termo “cultura”, falando das culturas de diferentes nações e períodos, bem como de diferentes culturas sociais e econômicas dentro da própria nação. É este sentido da palavra que tentativamente criará raízes em meados do século XIX, mas que não se estabelecerá decididamente até o início do século XX. Embora as palavras “civilização” e “cultura” continuem sendo usadas de modo intercambiável, em especial por antropólogos, cultura é agora também quase o oposto de civilidade. Ela é mais tribal do que cosmopolita, uma realidade vivida em um nível instintivo muito mais profundo do que a mente e, assim, fechada para a crítica racional. Ironicamente, ela é agora mais um modo de descrever as formas de vida de “selvagens” do que um termo para os civilizados. Numa inversão curiosa, os selvagens agora são cultos, mas os civilizados, não.

O autor classifica como “guerras culturais” essas mudanças de paradigmas, que se dariam em três frentes: “entre cultura como civilidade, cultura como identidade e cultura como algo comercial ou pós-moderna” (Ibid., p. 96). Daí a complexidade de conceituar o termo “cultura” para então classificar certos costumes e tradições como culturais ou não. Mas apesar das sucessivas mutações sofridas pelo signo “cultura” com relação a seus significados, mesmo ao se reconhecer que se trata de um termo com expressiva vagueza, isso não confere o arbítrio a sua significação. “Cultura” não pode representar o que cada um, muito particularmente, quer que ela signifique. O Estado – seja ele o legislativo ou a administração pública – não pode escolher como quer significar a “cultura” para então definir o que pretende promover ou quem fomentar. 22

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

A DEMOCRATIZAÇÃO DAS DEFINIÇÕES JURÍDICAS DE “CULTURA” Não pode o Estado querer apoderar-se do termo “cultura” para emprestar-lhe arbitrariamente um sentido que não corresponde à possível significação encontrada na sociedade de seu tempo. Pois as políticas culturais não são para si, para um Estado como se fosse um ser abstrato, apartado da sociedade, mas para o povo, titular do poder (art. 1o, parágrafo único, da Constituição Federal), em nome de quem age a administração pública. Se o termo “cultura” recebeu diversas leituras ao longo da história, nenhuma significação atribuída ocorreu aleatoriamente. Tal como Eagleton (2008, p. 54) conclui, “a cultura pode ser aproximadamente resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico”. O espectro significativo das políticas culturais deve ser o povo (art. o 1 , parágrafo único, da Constituição Federal), e por isso a História, a Antropologia, a Sociologia, a Psicanálise e todas as formas de saberes que contribuem para perceber e refletir os significados culturais devem interagir, sob uma relação dialógica, com o Direito de modo que as escolhas e metas de ações políticas do Estado perfaçam os sentidos mais plurais e contemporâneos de uma ideia, a “cultura”, que não pode ser aprisionada por esta ou aquela seara do conhecimento humano. As referências normativas, sobretudo as prescritas pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) não podem ser desprezadas, é claro. Compete à União, estados, Distrito Federal e aos municípios proporcionar os meios de acesso à cultura (art. 22, V). Compete ao Estado brasileiro proteger e realizar a cultura, cuja importância reconhecida levou-a a contar com seção própria na Constituição Federal (art. 215 e seguintes). Sobre o tratamento normativo da cultura na Constituição Federal, José Afonso da Silva (2007, p. 784) afirma: A Constituição de 1988 deu relevante importância à cultura – tomado esse termo em sentido abrangente da formação educacional do povo, expressão criadora da pessoa e das projeções do espírito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

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Cultura, Direito e políticas culturais

formadores da sociedade brasileira, que se exprimem por vários de seus artigos (arts. 5o, IX, 23, III-V, 24, VII-IX, 30, IX, e 205-217).

Afirma o jurista que o legislador constituinte optou por adotar uma concepção antropológica para entender a cultura, conjugada a uma concepção semiótica, que explica: A mais difundida é a concepção antropológica, que a tem como “conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e várias outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. Melhor assim, porque retira do conceito aquela impressão de que cultura seria um conglomerado de objetos, utensílios, artefatos, crenças etc., pois o que a caracteriza é a ideia de conexão e complementariedade dos traços que a integram. […] Finalmente, cumpre referir a concepção semiótica da cultura, que Clifford Geertz formula com o fundamento de que o homem é um animal inserido em tramas de significações que ele mesmo tece, e a cultura é essa urdidura; e sua análise há de ser, portanto, não uma ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa em busca de significações. Entendida assim como sistemas em interações de signos interpretáveis – afirma o autor, mais adiante –, a cultura não é uma entidade, algo a que se podem atribuir de maneira causal acontecimentos sociais, modos de conduta, instituições ou processos sociais; a cultura é um contexto dentro do qual se podem descobrir todos esses fenômenos de maneira tangível, isto é, densa. A compreensão constitucional da cultura se enriquecerá com essa visão semiótica da cultura. (Ibid., p. 802-804, grifos nossos)

Essa é a “cultura” de nossos tempos, em nosso país: plural, rica em diversidades, mas sempre remetida a quem a compõe em tantos significados no curso da história, o povo brasileiro. Portanto, a “cultura” não pode ser – para fins de políticas públicas de fomento – o que arbitrariamente o Estado queira lhe significar. De volta a Silva (2007, p. 804-805): O direito à cultura é um direito constitucional que exige ação positiva do Estado, cuja realização efetiva postula uma política cultural oficial.

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A ação cultural do Estado há de ser ação afirmativa que busque realizar a igualização dos socialmente desiguais, para que todos, igualmente, aufiram os benefícios da cultura. Em suma, trata-se de democratização da cultura que represente a formulação política e sociológica de uma concepção estética que seja o seguimento lógico e natural da Democracia social que inscreva o direito à cultura no rol dos bens auferíveis por todos, igualmente; democratização, enfim, que seja o instrumento e o resultado da extensão dos meios de difusão artística e a promoção de lazer da massa da população, a fim de que possa efetivamente ter acesso à cultura.

A realização de processos de licitação para o financiamento de projetos culturais, ou quaisquer outras políticas públicas relacionadas com o espectro cultural do povo brasileiro, os programas possíveis no âmbito cultural, em atuação direta ou por meio de fomento da sociedade civil, são ações públicas as mais variadas que devem ser abarcadas pela democratização da cultura. Isto é, projetos culturais, em políticas públicas, devem ser formados e destinados a partir da sociedade e para ela. Para concluir, Não se trata de proteger juridicamente todas as manifestações culturais, mas apenas os bens de natureza material e imaterial que sejam “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. […] Quer isso dizer que os bens que devem constituir o patrimônio cultural brasileiro hão de ser aqueles bens que sejam referenciais para definir a essência da identidade, ou da ação ou da memória dos mencionados grupos. Usamos, aqui, as alternativas, porque não é necessário que a referência seja um vetor do conjunto desses objetos. Basta que seja pertinente a um apenas: identidade, ou ação ou memória. (Ibid., p. 810-811, grifo nosso)

CONCLUSÕES: A NECESSIDADE DE UM INTÉRPRETE DAS POLÍTICAS CULTURAIS

ESTADO

Se o signo “cultura” e, por conseguinte, o conceito de “políticas culturais” são indiscutivelmente porosos, difusos, indeterminados, se essas 25

Cultura, Direito e políticas culturais

expressões acolhem perspectivas históricas plurais que se densificam por leituras as mais diversas articuladas pela História, Antropologia, Sociologia, Psicanálise, então o Estado deve, antes de concretizar programas de governo de fomento ou de realização de projetos culturais, dialogar com a sociedade e discutir criticamente com outras áreas dos conhecimentos humanos, de modo a procurar alcançar uma leitura contemporânea e sensível à realidade do povo brasileiro dos sentidos possíveis dos “direitos culturais”, das “fontes da cultura nacional”, e do que deve guardar prioridade quanto à “difusão das manifestações culturais” (art. 215 da Constituição Federal). O mundo contemporâneo não comporta mais a imprópria figura do intelectual – acrescento: do administrador público – como “legislador”, tal como adverte Bauman (2010, p. 196), pois o Estado não pode se encastelar no microcosmo do Direito, livre de qualquer comprometimento com outros interlocutores, crente da suficiência da linguagem jurídica. O Estado deve assumir o “papel de intérprete” – ainda em referência a Bauman –, de quem deve ditar menos que buscar compreender a vida que o cerca, da sociedade que o constitui, única razão de sua existência. O pluralismo é irreversível, há uma escalada mundial das múltiplas e diversificadas “visões de mundo”, e a comunicação entre as diversas tradições se torna um dos maiores desafios de nossos tempos (Ibid., p. 170). Há necessidade premente de “especialistas em tradução entre tradições culturais” (Ibid., p. 197). Diante dessa fragorosa realidade, a atuação do administrador público deve deixar de ser a de “legislador” do interesse público e, no caso em particular, de quem anuncia, unilateral e secamente, as “políticas culturais”. A insuficiência da razão instrumental, constatação feita no curso do século XX, exige uma mudança de postura, de paradigmas a respeito do exercício dos poderes – jurídico e político. De longa data, Karl Loewenstein (1976, p. 37) alerta para o cuidado que se deve ter com alguns detentores do poder que são “invisíveis, não oficiais e não legítimos” e cuja influência sobre os detentores oficiais do poder ocorre, via de regra, no “anonimato irresponsável”. Semelhante a Loewenstein, Agustín Gordillo preocupa-se com as motivações ocultas que rondam o poder do Estado. Diz o jurista argentino que a administração pública apresenta dupla moral, uma do sistema formal, outra do parassistema, o que significa que “o sistema não deve ser cumprido fiel nem integralmente, que ele carece de sentido; é o parassistema que dá então realidade e sentido obrigacional às condutas individuais” (GORDILLO, 1997, p. 19). 26

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Por conseguinte, “o sistema está presente como a ameaça de coação para quem transgrida o parassistema, caso no qual se aplicam as sanções não pela violação do que importa (do parassistema), mas por violação do que não importa (o sistema)” (Ibid., p. 8). O isolamento do Direito – da sociedade, de outras esferas e interlocutores de formações distintas – franqueia um sistema paralelo, um Estado no qual as políticas culturais são gestadas com propósitos não poucas vezes “invisíveis, não oficiais e não legítimos”. Em síntese, a democratização das “políticas culturais” significa o Estado assumir o compromisso de menos prescrever e deitar unilateralmente os conteúdos possíveis de “cultura” – como se fosse bastante o Direito anunciar o que bem quisesse – e de mais ser interlocutor comprometido em traduzir e realizar as aspirações e as necessidades tão díspares, paradoxais e fundamentais, das múltiplas comunidades e seus cenários, em um processo dialógico no qual a sociedade e as ciências humanas compartilhem as buscas por seus significados.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. Legisladores e intérpretes. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2016. EAGLETON, T. A ideia de cultura. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2008. GORDILLO, A. La administración paralela. Madrid: Civitas, 1997. LOEWENSTEIN, K. Teoria de la Constitución. Tradução Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1976. MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Tradução Eliane Lisboa. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011. SILVA, J. A. da. Comentário contextual à Constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

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Espaços improváveis

Parte 1

Espaços improváveis: ressignificação cultural em “vazios” da metrópole paulistana Guilherme Nascimento Nafalski1

INTRODUÇÃO A cidade de São Paulo cresceu muito rapidamente. Seu desenvolvimento – em uma perspectiva histórica, tomando como ponto inicial mudanças significativas na constituição da cidade central do estado, nos idos de 1890, passando por sua consolidação enquanto metrópole na década de 1970 (ABDAL, 2009), até o presente momento – é marcado pela segregação (CALDEIRA, 2011; MARINS, 2010; VILLAÇA, 2001). A cidade se formou de maneira polarizada, com um centro que escorreu sentido sudoeste, onde vivem as elites e a classe média alta, onde há grande investimento em infraestrutura e que concentra a aplicação dos determinantes legais, em contraposição a uma periferia construída à margem da lei por seus moradores (BONDUKI, 2013), invisível por muito tempo aos olhos dos governantes e que cerca a mancha mais rica. O regramento e a regulamentação dessa mancha sempre foram acompanhados de perto, não apenas pelos residentes, transeuntes e trabalhadores, na forma de um controle social, mas também pelo conjunto da população, que vê na grande imprensa esse recorte como a cidade. Desde muito cedo foram estabelecidos códigos de obras e regramentos sanitários, objetivando o controle sobre as populações residentes (MARINS, 2010). Regraram-se as culturas populares (GUIMARÃES, 2002), ainda em meados do século passado, quando, para utilizar um conhecido exemplo, o carnaval, manifestação espontânea das ruas, foi retificado e inserido em uma avenida artificial, tal qual os rios, com sua liberdade de suas reentrâncias e saliências, de encher e esvaziar naturalmente, foram premidos entre as vias de transporte da cidade. 1 Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorando no Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É secretário executivo da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU) (2015-16) e foi coordenador de cultura da Subprefeitura de Pinheiros (2013), pertencente à Prefeitura Municipal de São Paulo.

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Essa cidade retilínea, prática, útil, um sistema que deve funcionar de forma espacial e temporalmente previsível, cede em suas normas apenas para as determinações de seu principal condutor, o capital. É ele que empurra e determina as centralidades econômicas (FIX, 2011), que apresenta e modifica as arquiteturas, no compasso das modas (MARINS, 2010), que desenha as marginalidades e as aloca, bem como enclausura os relacionamentos em enclaves fortificados, ilhas de perfeição em meio ao caos metropolitano (CALDEIRA, 2000; ROLNIK; FRÚGULI JÚNIOR, 2001). Pela heterogeneidade em sua composição, a metrópole é ambiente de disputa, de uma contínua luta por sua significação (HARVEY, 2014). Cotidiana e múltipla, essa disputa resulta nas transformações cotidianas do modo de ser na cidade, que podem ser subjetivadas, constituindo valores, ou aparentes, expressas fisicamente. Por sua recorrência, algumas se tornam blasé (SIMMEL, 2005), como a convivência com a pobreza e as desigualdades, marca fundacional da metrópole paulistana. Outras dividem as elites, gerando debates, conflitando valores, como a contemporânea disputa pela rua, em que pedestres, ciclistas, motoristas particulares e profissionais e usuários de transporte público se chocam, por vezes de forma literal, pelo seu uso. E há as disputas invisíveis, por espaços improváveis, objeto deste artigo. Em comum, elas carregam a possibilidade latente de transformarem o sentido do público na cidade.

EMPENAS, PILARES, POSTES: OCUPAÇÃO, TRANSGRESSÃO, ARTE E COMÉRCIO Manifestação de contracultura tipicamente metropolitana, a pichação – ou a possibilidade de inscrever em paredes mensagens, símbolos, marcas – é realidade da metrópole paulistana ao menos desde a resistência à ditadura, nas décadas de 1960 e 1970, em que as paredes tornavam públicas, de forma anônima, mensagens proibidas. Nos anos 1980, com a abertura democrática e a importação de uma economia da contracultura, comum em metrópoles estrangeiras, notadamente o movimento punk, as mensagens inscritas deixaram motivar a pichação, que passou a ser valorizada esteticamente como uma mensagem transgressora. O ato e a marca 29

Espaços improváveis

passaram a ser valorizados em detrimento do conteúdo, e a transgressão alcançou seus status marginal, ao ser textual e legalmente proibido.2 A proibição estimula o debate e a disputa pela ocupação visual do espaço público. As divisões no movimento contracultural estimulam a discussão da prática de ocupação visual pública da cidade. De um lado, a adrenalina originada pela proibição, o ato contraventor, defendidos por alguns grupos. De outro, a ocupação estética, artística daqueles que buscavam fugir à marginalidade e ter seus traços reconhecidos. Os primeiros consumidores de insumos artísticos, anônimos aos transeuntes que desconhecem sua linguagem específica, os segundos, vanguarda de uma nova economia cultural, agregam valor à paisagem e buscam em sua expressão artística o reconhecimento público, transformando sua assinatura em grife. Nessa vertente, muitos são contratados por grupos de investidores para revalorizar espaços degradados. Inseridos no campo de uma ética própria do grupo, os respeitos e desrespeitos a cada uma das expressões garantem sua coexistência. Mas apresentam-se de forma diferente ao poder público e à sociedade: os pichadores, dentro de uma proposta marginal, e os grafiteiros, inserindo-se no mercado das artes. Esteticamente controversa, mas regulamentada pelo poder público, a publicidade formal de estabelecimentos e produtos é parte integrante de qualquer cidade, e na metrópole, por suas proporções, destaca-se. Com o objetivo formal de expor os produtos ao público, a publicidade aperfeiçoou-se ao longo do tempo. Em sua expressão pública, os produtos eram ofertados aos transeuntes nas mais diferentes formas, na exposição da marca em mobiliário público, como os bancos de praça, as paredes de estabelecimentos comerciais, pinturas em empenas cegas de edifícios3 e, com o desenvolvimento tecnológico, em outdoors, luminosos e projeções em fachadas. Conseguiam maior exposição os estabelecimentos com maior fachada, e era estimulada uma economia de exposição, em que eram ofertados os melhores pontos, em ambientes com maior circulação. São marcos emblemáticos as propagandas nas empenas cegas de edifícios no Minhocão, via de ligação automotiva entre a zona oeste e o centro da cidade, a sequência de outdoors no muro da raia olímpica da Universidade de São Paulo (USP), na Marginal do Rio Pinheiros, bem como o relógio do Conjunto 2 Como referências ao debate sobre pichação e grafite: Pereira (2005), Paixão (2011), Georges (2016). 3 Paredes lisas, sem janelas, de edifícios.

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Nacional, na avenida Paulista. Os casos são inúmeros, como seria em qualquer metrópole. As imagens da Avenida Broadway, em Nova York, ou do centro de Tóquio, ilustram as possibilidades desse tipo de exposição publicitária. Em São Paulo, diferente das metrópoles citadas, essa disputa pela exposição das marcas no espaço público foi acolhida pela prefeitura na forma da restrição ao estímulo contínuo proporcionado pela exposição de propagandas, na forma da Lei Cidade Limpa (SÃO PAULO, 2006), que proibiu a publicidade no espaço público e regrou as excepcionalidades. O impacto imediato com a sanção da lei, além da reclamação dos publicitários, foi a reaparição de estruturas arquitetônicas dos edifícios, muitas vezes completamente descaracterizadas em função da instalação de painéis de propaganda. Com uma fiscalização ostensiva e penalidades de grande valor financeiro, proporcional ao tamanho da exposição, a lei cumpriu seu objetivo inicial e baniu a exposição pública de publicidade, ao menos na cidade legal, o centro expandido. O novo regramento forçou o mercado publicitário a se reinventar na cidade. A propaganda passou a ser interna, em estabelecimentos comerciais, em ambientes fechados, indoor, ao menos em um primeiro momento. Também represada dentro de marcos bastante restritivos, a publicidade, expressão pública do capital, passou a tencionar a lei, apresentando possibilidades de exposição, seja em eventos públicos, seja em mensagens indiretas, marcadas por palavras, cores ou objetos que remetam à marca de forma não explícita, seja por parcerias com o poder público através de instrumentos específicos, como os termos de cooperação. Neste último caso podem ser enquadradas as praças e os canteiros adotados por determinada empresa, bem como os pontos de ônibus, os relógios públicos, entre outros. A anuência à exposição de marcas e a liberação de inserções artísticas que impactem a cidade são fornecidas pela Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU), órgão colegiado da prefeitura.4 Os dois caminhos seguidos, apesar de antitéticos, encontram-se atualmente questionando os limites da arte e de sua exposição pública. O marketing de guerrilha, estratégia publicitária mundial, metropolitana e direcionada a nichos específicos de mercado, passou a colonizar o grafite, travestindo de arte suas campanhas. A disputa pelos restritos espaços de exposição criou uma economia que precifica empenas, paredes e pilares, na incessante busca pela exposição da marca. Grafiteiros renomados são 4 Informações sobre a CPPU podem ser encontradas em .

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contratados para criar, nesses espaços, painéis que remetam aos produtos. Essa economia diminui o impacto positivo do grafite. Forma regulamentada e aceita pelo poder público de expressão artística, ele compõe a cidade, preenchendo vazios de concreto e colorindo fachadas. Artistas com grande habilidade em tal tipo de projeto passaram da marginalidade ao reconhecimento, no que se convencionou chamar de arte pública, ou street art. São Paulo é hoje um museu a céu aberto. E a arte não se restringe aos becos e vielas, ambiente pioneiro desse estilo em função da sua marginalidade, mas se faz notar também em grandes muros e empenas cegas, consolidando um percurso turístico oficial específico5. O grafite, enquanto manifestação artística, arte pública, street art, possibilita o avesso do proposto por Simmel, pois estimula o olhar a ambientes invisíveis. O poste é blasé, mas o desenho nele chama atenção. Os prédios durante um trajeto são inúmeros, mas neles se destacam a flor, o peixe, ou qualquer elemento que o transforme em reflexão, muitas vezes fugaz, já que na rua são vistos por observadores em movimento. O pilar, que deveria apenas sustentar o viaduto, é espaço de contemplação. Essa possibilidade de tornar visível o recorrente, de suscitar a reflexão onde há o óbvio e de criar novos estímulos em uma rotina reumaniza a cidade e age contra a retilinidade, a funcionalidade, questionando e recriando o ambiente urbano.

A MORTE, AS MEMÓRIAS, O ESPAÇO PÚBLICO: MUROS QUE APARTAM OS MUNDOS “Fúnebres”, “tétricos” e “frios” são adjetivos que negativam os cemitérios, espaços públicos dedicados à morte. A morte, como passagem para o desconhecido, como fim de uma existência, como a certeza que se busca esconder, permite que seja construída em torno de si ambientes de negação. Assim eram entendidos os cemitérios da cidade de São Paulo. Espaços de visita pontual, de momentos de tristeza, de enlutamento por aqueles que um dia irradiaram felicidade, mas que agora jazem quietos. O olhar para a morte e os ambientes de sepultamento somente dessa forma os esvaziam. 5 O roteiro de arte urbana é um dos oito roteiros autoguiados oferecidos pela São Paulo Turismo S/A (SPTuris), e está disponível no site www.cidadedesaopaulo.com/sp.

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Relegam a eles o afastamento e o esquecimento. Enquanto espaços públicos constituídos, presentes na malha urbana da cidade, essas grandes glebas de terra têm potencial para transformarem-se em grandes parque públicos dedicados à memória daqueles que possuíram diferentes histórias e, com elas, fizeram parte de diversas vidas e compuseram a cidade. Uma proposta de visibilidade a esse espaço invisível é sua ocupação cultural, na acepção do termo mais próxima à arte, mas sem negar, com isso, os valores da sociedade na qual se insere. Criar oportunidades para que os cidadãos adentrem e olhem os cemitérios em datas não necessariamente fúnebres realoca o lugar do cemitério enquanto equipamento público.6 Há uma infinidade de obras de arte elaboradas por artistas renomados em diversos túmulos, mas há algumas restrições ao seu acesso e manutenção: os muros altos, que as escondem; a relação de propriedade, confusa por se tratar de arte privada em espaço público e por conta da indefinição legal das responsabilidades de cada um; e a dificuldade de gestões intersecretariais de equipamentos públicos, que faz que ou o cemitério atue nos sepultamentos e enterros, de responsabilidade de uma secretaria, ou faça a manutenção de suas peças, como um museu, responsabilidade de outra. Um dos impactos da presença da cultura nos cemitérios paulistanos, como projetos já vêm demonstrando, é a ampliação de seu leque de frequentadores, que diversifica os olhares sobre o espaço e permite suas ressignificações – seja ao aproveitar (e por vezes tematizar) o espaço em peças teatrais, seja ao possibilitar que a música enlace os visitantes, ou mesmo ao permitir que simplesmente se esteja ali, em um o cinema ao ar livre ou em uma meditação. Porém, a abertura desse espaço, que é público, a outros indivíduos, para atividades que não são as tradicionais, fúnebres, cria resistências. Famílias reclamam do desvio de função, vizinhos queixam-se do movimento, erguendo, assim, mais alguns muros que separam olhares distintos acerca do conjunto representado pelo cemitério: memória viva da cidade, fragmentos de histórias universais, propriedade pública do conjunto da sociedade. Grupos disputam os cemitérios. Famílias que possuem jazigos, memórias, buscam preservá-los distantes do olhar de estranhos, tomando 6 Permitir aos transeuntes que observem a riqueza artística da arte tumular, por exemplo (TIMPANARO, 2006).

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Espaços improváveis

medidas para o fechamento do ambiente. Um público mais amplo, de passantes e interessados, que vivem aquele ambiente, seja em contemplação, em brincadeiras, como os costumeiros jogadores de RPG,7 ou até mesmo aqueles que praticam seus cultos, em um uso público salutar. Há os que aproveitam os altos muros para atos ilícitos, prejudicando sua abertura e, muitas vezes, dilapidando o patrimônio. A abertura, a injeção de novos grupos, a diversificação das atividades realizadas no ambiente, verdadeiros parques verdes dignos de uma gestão específica, valorizam e requalificam seus públicos e afastam as ações predatórias, já que permitem que o controle social se amplie. No sentido amplo do conceito de cultura, o convívio com os jazigos, com os túmulos, com a morte, permite a reflexão sobre a única inevitabilidade da vida. Cada cultura traz consigo um olhar sobre o que é morrer, se é o fim, se é transcender, se é passar para a outra vida, reencarnar… e uma metrópole cosmopolita e complexa como São Paulo não precisa se deter em apenas uma interpretação. Pelo contrário, respeitadas as diferentes crenças, a convivência das culturas da morte pode criar outras, novas, que permitam um convívio maior dos vivos em ambientes com mortos, com memórias, histórias.

GESTÃO PÚBLICA E ARTE: RESTRIÇÕES, AÇÕES E INTERESSES A gestão de uma cidade complexa como São Paulo esbarra em diversas dificuldades. A primeira delas é a emergência de um grande número de assuntos, todos prementes, imediatos, que cria a necessidade de priorização. Serviços como a saúde, a educação, e a manutenção e zeladoria das ruas, por lidarem com questões imediatas, atingindo um grande número de cidadãos, acabam por ofuscar a gestão de processos em ambientes sem grande interesse econômico. A estes a invisibilidade pública e do Poder Público. Este opta por não ver e, ao fazê-lo, impede que seja visto. Nem mesmo seus regramentos precisam ser claros, já que não há olhos interessados em transformá-los. Esse é o caso de como era

7 Role-Playing Game [jogo de interpretação de papéis]. No caso em questão, é comum grupos que se fantasiam de zumbis, monstros ou mortos e utilizam o cemitério como cenário.

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Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

tratado o serviço funerário na cidade. Um espaço enterrado na administração, sepultado em regramentos obsoletos e invisível ao público. Tétrico. A articulação de interesses sobre esses espaços públicos, grandes, arborizados, cheio de obras de arte e ricos em histórias, permitiu ampliar os olhos sobre eles. Recuperou a disputa sobre o ambiente, multiplicou os atores. A reapropriação do ambiente pela sociedade permite a criação de novas economias, o que pode seduzir o motor da transformação urbana, o capital, aos cemitérios, restaurando e preservando (mas modificando) sua lógica na cultura metropolitana. Colorir esses espaços, hoje invisíveis, não seria diferente do que o grafite possibilitou em sua disputa com a pichação. Fora dos muros que cercam os cemitérios, mas também neles, por serem expostos aos transeuntes, as experiências artísticas se sucedem, apresentando cada canto, nesga, quina, poste que possa ser colorido, conduzindo uma dinâmica intermitente de estímulos. Estes já sob o olhar e a sede do capital, que transmuta suas marcas e seus produtos em tintas, fazendo que a gestão busque limites a sua atuação. Opostos em seus sentidos e no interesse imediato do capital, esses exemplos permitem discutir a relação da gestão pública com seus espaços invisíveis e, ao torná-los visíveis, como impedir que se ofusquem a si mesmos. Quais são os incentivos e os limites ao tratar da exposição daquilo que deve ser visto, posto que é parte da cidade e da sua cultura, mas que não precisa, por isso, tornar-se mercadoria. O equilíbrio necessário ao gestor no regramento e em suas excepcionalidades, para garantir o acesso e o direito ao bem público sem transformá-lo em qualquer coisa, em mais uma coisa, em coisificá-lo.

REFERÊNCIAS ABDAL, A. São Paulo, desenvolvimento e espaço: a formação da macrometrópole paulista. São Paulo: Papagaio, 2009. BONDUKI, N. G. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 2013. CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de muros. São Paulo: Edusp, 2011. FIX, M. de A. B. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil. 2011, 288 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econô35

Espaços improváveis

mico) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011. GEORGES, V. A. B. Mapeamento de políticas públicas de apoio ao grafite no município de São Paulo. 2016. 46 f. Relatório final (Iniciação Científica) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2016. GUIMARÃES, A. S. A. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. HARVEY, D. Cidades rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2014. MARINS, P. C. G. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras. In: NOVAES, F. A. (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 3: República: da Belle Époque à Era do Rádio. PAIXÃO, S. J. C. O meio é a paisagem: pixação e grafite como intervenções em São Paulo. 2011. 218 f. Dissertação (Mestrado em Estética e História da Arte) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. PEREIRA, A. B. De rolê pela cidade: os pixadores em São Paulo. 2005. 127 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. ROLNIK, R; FRUGULI JÚNIOR, H. Reestruturação urbana da metrópole paulistana: a Zona Leste como território de rupturas e permanências. Cadernos da Metrópole, São Paulo, n. 6, p. 43-66, 2001. SÃO PAULO (Cidade). Lei nº 14.223, de 26 de setembro de 2006. São Paulo, 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2016. SCANDIUCCI, G. Um muro para a alma: a cidade de São Paulo e suas pixações à luz da psicologia arquetípica. 2014. 249 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito. Maná, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 577-591, 2005.

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Parte 1

A periferia é o centro: juventudes, políticas públicas e cultura digital em São Paulo Rita de Cássia Alves Oliveira1 Harika Maia2

INTRODUÇÃO Nas últimas décadas temos presenciado a apropriação da cidade de São Paulo por incontáveis grupos juvenis e de várias formas. Passados os anos de chumbo da ditadura, os espaços urbanos transformam-se nos pontos de encontro e sociabilidade juvenis, tornam-se os suportes de suas expressões e, aos poucos, se redefinem pelo interesse cultural e político que despertam na juventude. Os jovens desenvolvem uma relação muito particular com as cidades: deixam suas marcas, exercitam suas sensibilidades, ocupam as ruas e esquinas. Eles também se relacionam de forma especial com as tecnologias. A cultura digital permeia seu cotidiano de modo marcante, assim como estrutura suas sociabilidades e seus afetos, lhes oferece as ferramentas e conteúdos para construção de identidades e pertencimentos, e alavanca a transformação dos processos cognitivos, de percepção e de representação de si mesmos. Esses e outros aspectos de suas vidas articulam-se por meio das plataformas e ferramentas digitais de produção, apropriação e 1 Doutora em Antropologia, faz parte do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e ao Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui pós-doutorado realizado junto ao Programa Postdoctoral de Investigación en Ciencias Sociales, Niñez y Juventud promovido pelo Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales (Clacso). 2 Cientista social e mestre em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Desde 2007 participa da equipe gestora do Programa VAI da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, atuando nos último anos como coordenadora do programa.

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distribuição de cultura. Os jovens estão plenamente adaptados à lógica digital da cultura contemporânea; a cultura digital é, ao mesmo tempo, o cenário e a estrutura por meio dos quais a vida juvenil se desenvolve na atualidade. Por outro lado, sabemos que o acesso às tecnologias digitais de comunicação é extremamente desigual. Mesmo nas metrópoles brasileiras, onde supostamente a vida digital é mais acessível, vemos a precariedade das periferias em relação à internet e seus usos. Tomando esses pressupostos como ponto de partida, algumas questões se impõem: qual é a relação entre os jovens, a cidade e a cultura digital que eles constroem e da qual participam? Como essas ferramentas digitais são utilizadas e apropriadas por eles em suas práticas e ações coletivas? Como os jovens das periferias participam desse processo? Quais políticas públicas têm favorecido a participação dos destes últimos na cultura digital? Este artigo está estruturado em três partes. Começa por abordar as culturas juvenis das periferias de São Paulo, especialmente em suas práticas culturais e coletivas. Então, em um segundo momento, trata da relação entre os jovens e as tecnologias, dando ênfase às apropriações que eles e alguns grupos periféricos fazem da internet. Por fim, na terceira parte, apresentam-se algumas políticas públicas implantadas no município de São Paulo com vistas a apoiar e estimular projetos culturais propostos por jovens das bordas da cidade e na interface com a cultura digital.

A FORÇA DAS CULTURAS DAS PERIFERIAS 3 O trabalho dos grupos artístico-culturais das periferias de São Paulo, no formato como conhecemos hoje, acentua-se ao longo da década de 1990 em paralelo ao processo de estigmatização da própria periferia e da construção de sua imagem pública vinculada à violência, à discriminação e a um crescente processo de segregação social. Fato emblemático do período foi a publicação da pesquisa elaborada pela ONU em 1996, a qual informava que o Jardim Ângela (zona 3 Esta seção deriva de recente pesquisa e dissertação de mestrado de Harika M. Maia (2014).

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sul) era o distrito mais violento do mundo, compondo, juntamente com o Jardim São Luís e Capão Redondo, o então conhecido “triângulo da morte”, cuja população que mais sofria os impactos dessa realidade era a juventude. Enquanto o estado investia em ações de segurança pública, muitas ONGs surgidas naquele momento desenvolviam projetos sociais. Por parte da sociedade civil e suas múltiplas frentes de militância, foram elaborados trabalhos no sentido de estabelecer novas relações com os moradores dessas regiões e lhes apresentar outras perspectivas de vida. Além dos trabalhos de assistência social, buscou-se também valorizar a periferia e seus moradores, salientando suas qualidades e promovendo uma imagem positivada a seu respeito. A repercussão do grupo de rap Racionais MC’s nos anos 1990 e a multiplicação de saraus pelos bares pela região, já no início dos anos 2000, foram cruciais para essa retomada simbólica e construção de referenciais afirmativos por meio das produções de artistas locais. Foram resgatados nomes de personagens esquecidos pela história que representavam a luta popular por meio da arte ou da política, como os poetas Solano Trindade (1908-1974) e Carolina de Jesus (1914-1977), hoje conhecidos e reverenciados em qualquer sarau periférico de São Paulo. Tal conjunto de referências colaborou para estabelecer uma história comum das periferias, a composição de uma cultura na qual todos os “periféricos” pudessem se reconhecer, que fizesse ponte entre o passado e o presente e lhes desse um sentido coerente, que fosse capaz de projetar um outro horizonte futuro, extrapolando as narrativas dominantes. Agier (2011, p. 155-156) discorre sobre o sentido social nos movimentos de afirmação identitária: Para serem reconhecidos como plenamente humanos e cidadãos, simultaneamente, devem procurar por si próprios quem são, e o fazem de acordo com métodos às vezes tortuosos e nômades contornando os estigmas. […] Com esses rodeios e esse trabalho cultural eles expressam uma identidade com os meios que encontram: a memória, a aprendizagem e a imaginação trabalham juntas na formação dessas novas “comunidades” mais próximas de cada indivíduo que a inacessível comunidade nacional.

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Alguns se referem a esse período como a “virada cultural paulistana” (NASCIMENTO, 2006), momento em que indivíduos e grupos tornam cada vez mais visíveis suas produções culturais e passam a circular pela cidade, fomentando outros grupos e estabelecendo circuitos e redes periféricas. É o momento da efervescência dos movimentos musicais (como o rap, o rock e o pagode), do graffiti e da pichação, das companhias de teatro popular, movimentos sociais, políticos ou religiosos com alguma ação cultural. Institucionalmente, surgem os primeiros programas da prefeitura de São Paulo, especificamente de iniciação artística, voltados às periferias: implantação dos Centros Educacionais Unificados (CEUs, criados em 2002) e de políticas como o Programa Vocacional (criado em 2005), Programa VAI (iniciado em 2004), além da ação de ONGs. Havia, portanto, uma cena cultural ativa, ainda que pouco articulada e visível, em que a dificuldade de manutenção e estruturação dos grupos era maior. É conhecida a falta de espaços onde os grupos pudessem se apresentar. Até a virada do milênio havia as Casas de Cultura, os teatros municipais e o Centro Cultural São Paulo como equipamentos públicos direcionados a esse tipo de atividade. A implantação dos CEUs na cidade 4 ampliou as possibilidades não só de espaços para apresentações, mas também de formação cultural. A relevância desse processo está na acentuação da percepção e ocupação dos espaços públicos da cidade, na formação de senso crítico e da politização por meio da possibilidade de expressão – coletiva ou não – e, principalmente, na aproximação e convivência com outros jovens e o decorrente potencial para a constituição de grupos. Ele acentua a dimensão da cidade como dispositivo cultural per se, que possibilita a produção de grupos e lugares, a coexistência (ainda que nem sempre pacífica) de uma pluralidade de culturas e identidades. Ao politizar o fazer artístico e ter como seus pares pessoas que compartilham de uma mesma realidade social, os envolvidos acabaram por estabelecer conexões mais estreitas com o território e participar de um movimento cultural presente em quase todas as periferias da cidade – curiosamente composto em sua maioria por jovens.

4 Foram criadas 21 unidades do CEU nas regiões periféricas do município entre 2002 e 2004. Cf. .

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Os grupos e coletivos juvenis passam a ser importantes mecanismos de distinção social, sociabilidade e proteção múltipla (física e subjetiva) – é onde estão os “meus”, os “brothers”, os “manos”, a família e a turma. Caracterizam-se como importante instância de socialização coletiva, que dá forma e conteúdo para a distinção de todo um grupo etário, autorreconhecimento para si e para a sociedade, e, no caso dos coletivos estudados, apresentam-se como um espaço criativo e de questionamentos múltiplos. O grupo é aquele espaço de acolhimento e segurança que a comunidade pode representar. Entretanto, na exploração das características dos coletivos periféricos, observou-se que a individualidade não é suprimida pela coletividade, podendo haver múltiplas conexões com outros grupos, inclusive migrações e conflitos internos. Constitui-se um “nós” heterogêneo de sujeitos livres que se contrapõem aos valores e estilos de vida construídos e/ou promovidos pela sociedade em geral, marcada por múltiplas contradições, como a relação entre público e privado, governo e sociedade civil, ilogismo e racionalidade, prazer e trabalho, dia útil e fim de semana, ação política e cotidiano, entre outras. A experiência periférica geralmente é vista como matéria-prima legítima para as práticas artísticas e culturais, com ênfase nos acontecimentos cotidianos, na extensão social da arte e em uma postura combativa em relação à visão da população pobre e trabalhadora, não detentora dos meios de produção, porém, como um objeto passivo, sem qualquer energia criativa própria e sempre determinada pelas estruturas hegemônicas. Através da ação cultural, abre-se uma possibilidade para se questionar os aparatos de dominação e desenvolver espaços de produção de conhecimento e relações diferenciadas e coletivas, apesar de os impactos das intervenções serem viáveis apenas no plano local. Em conjunto, essas práticas locais produzem complexas redes de apoio que estão interligadas e mobilizadas.5 A partir delas, os grupos se fortalecem e tornam-se mais conhecidos. Forma-se um “coletivo de coletivos”, verdadeiro movimento-rede de agentes e grupos que se organizam em ações e turmas distintas e misturadas que não se restringem ao seu projeto, mas permitem-se participar de “projetos parceiros”, criando redes de grupos conectados e 5 Essas redes são formadas por outros grupos e por parceiros institucionais. Sua principal forma de mobilização são a internet e a vivência comunitária, além do intercâmbio de atividades.

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(comumente) representados por uma nomenclatura. Sua principal característica é a elaboração de um projeto coletivo no qual são discutidos e explicitados os objetivos e estratégias de ação. Há sempre um objeto em disputa. Nem sempre é uma rede coesa e de adesão limitada, mas o pertencimento ou não a ela é de conhecimento de seus integrantes. O coletivo de coletivos é uma forma de organização que extrapola o campo de atuação do grupo, com maior representatividade e força política. O critério de adesão é a convergência de causas motivadoras da ação e mesma orientação política. Além dessas redes com nomes próprios e de caráter mais representativo, ou os coletivos de coletivos, há também as redes informais voltadas especialmente à troca e à circulação de pessoas, informações e produções, com a finalidade de reforçar os elos e consolidar cenas culturais. É comum que grupos participem de mais de um “coletivo de coletivos” e integrem uma “rede de circulação”. Daí a importância da circulação e articulação pela cidade e entre agrupamentos, facilitadas pelo desenvolvimento da tecnologia e da comunicação e atreladas a um contexto no qual se percebe a relevância das ações conjuntas entre periferias (categoria agregadora) para pressionar o poder público. Nos levantamentos realizados, percebeu-se que, nos movimentos passados, havia uma concentração de energia na ação local, com pouca interação em rede – evidente que essa característica também dependeria do perfil do movimento, mas foi algo recorrente na bibliografia levantada sobre o tema (CALDEIRA, 1984; 2011; FELTRAN, 2011; GOHN, 1997; SADER, 1988). Nos anos 1970 e em boa parte dos anos 1980, embora existissem pessoas que participavam de vários movimentos sociais ao mesmo tempo, a articulação só ocorria em grandes eventos ou por acontecimentos excepcionais, como na solidariedade diante da morte (GOHN, 1997, p. 237). Essa rede promove canais de solidariedade e parcerias entre indivíduos e grupos. Torna mais forte a cena local e estabelece relações com ações mais distantes geograficamente, mas que contêm algum tipo de similaridade. Apesar de a ação ser considerada local, as formas de divulgação se dão essencialmente pela internet e a circulação dos integrantes dos grupos em outros eventos. Fazendo interagir a cultura popular tradicional e a cultura urbana, observa-se a importância dos aparelhos móveis para registro, produção e compartilhamentos de conteúdos processados no cotidiano do agente 43

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cultural. Percebeu-se em diversos casos que, entre um e outro afazer do dia, as pessoas produziam textos ou pensamentos que seriam expostos posteriormente. É frequente a utilização dos telefones celulares pelos poetas nos saraus para a leitura de seus poemas, escritos entre idas e vindas no transporte público, ou em momentos de espera em filas. Com a popularização da internet e das redes sociais, há uma maior capacidade de circulação de informação e saberes que independem da posição social ou localização geográfica. Elas produzem contatos entre realidades diferentes, evidenciando ainda mais os contrastes e a possibilidade de encontro entre iguais.

A CULTURA DIGITAL NO COTIDIANO JUVENIL Os jovens desenvolvem uma relação especial com as tecnicidades desde o início da humanidade. Para Edgar Morin (1975; 1997), quem esteve à frente dos avanços técnicos da pré-história foram os jovens; foram eles que se aventuraram na caça nas savanas; e possivelmente também foram eles que descobriram as artimanhas do controle do fogo. Com a modernidade, a juventude emerge como a grande força cultural que embala o consumo, a indústria cultural e as novas identidades emergentes. Os meios de comunicação de massa se constituíram na relação com os jovens, seja como produtores ou como receptores. Nos últimos anos, o desenvolvimento dos aparatos tecnológicos de comunicação inaugurou um novo capítulo nas relações humanas: a cultura digital. Essa nova dimensão da cultura permeia o cotidiano juvenil de modo particular, estrutura as sociabilidades e os afetos, oferece as ferramentas e conteúdos para construção das identidades e pertencimentos, alavanca a transformação dos modos de produção de conhecimento, de percepção e de representação dos jovens contemporâneos. E é na relação com a cultura digital que os jovens contemporâneos expressam seu inconformismo e indignação; é por meio da internet que denunciam as injustiças e questionam as práticas e valores contemporâneos; nas redes sociais on-line, encontram as ferramentas e o espaço ideal para divulgarem suas causas e encontrarem parceiros para suas ações. As tecnologias digitais articulam possibilidades de ressignificá-las em favor de propósitos coletivos. Segundo Jesús Martín-Barbero (2004, p. 177), as tecnologias de comunicação devem ser pensadas a partir de “sus modos de acceso, de aquisición, de uso: desplazamiento de su incidencia en 44

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abstracto a los procesos de imposición y dependencia, de dominación pero también de resistencia, de resemantización y resiseno”. A chave da análise está, portanto, nos usos das tecnologias por parte desses jovens. Como já apontou Castells (2003), toda tecnologia se desenvolve em suas apropriações no dia a dia, os usuários também ajudam a moldar as ferramentas em suas apropriações criativas, inovadoras e inéditas, que atribuem, assim, novos sentidos e usos às técnicas e tecnologias. Em 2011, a Primavera Árabe trouxe as ocupações das praças na Turquia, Egito e outros países da região; pela primeira vez vimos a potência do uso das redes sociais on-line na comunicação entre movimentos sociais de várias partes do mundo e na construção de algo novo e inédito. Em poucos meses, a mobilização global ganhou os espaços públicos de várias partes do mundo: as praças da Espanha foram ocupadas pelos Indignados; em Nova York, houve o Occupy Wall Street; e, em São Paulo, o Ocupa Sampa. Milhares de jovens estavam conectados pelo Facebook e pelo Twitter e, apesar das imensas diferenças culturais e políticas, estavam conectados por ideias e sonhos comuns e uma incontrolável vontade de mudança da ordem mundial. Naquele momento ganharam fama as hashtags, o símbolo de cerquilha (#) usado nas redes sociais on-line que precede uma palavra ou conjunto de palavras encadeadas e que assinala grupos ou temas em discussão; #ArabSpring, #OccupyWallStreet e #SpanishRevolution aproximaram ativistas espalhados pelo mundo, mas unidos na rede (FEIXA, 2014; GALINDO; OLIVEIRA, 2015). As tecnologias digitais de comunicação pautam a vida juvenil, dando forte ênfase à sociabilidade, mas também o emergente ativismo on-line, por sua vez, passou a organizar algumas ações juvenis, como as discussões sobre o uso do espaço urbano e as atividades colaborativas em prol de softwares abertos, internet livre e compartilhamento de arquivos gratuitos. A visibilidade das culturas juvenis das periferias das grandes cidades foi ampliada, reconfigurando o espaço social por meio da produção cultural desses jovens (BORELLI et al., 2010). Esse processo recoloca e amplifica a característica das comunidades on-line que constituíram a cultura da internet: o valor da comunicação livre e horizontal e “a formação autônoma de redes como instrumento de organização, ação coletiva e construção de significado” (CASTELLS, 2003, p. 48). Nessas narrativas digitais, esses jovens são agentes e sujeitos que atuam de 45

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forma a moldar estruturas sociais. São simultaneamente consumidores/receptores e produtores/emissores de ideias, sentidos, estéticas, formas e conteúdos. A partir dessas reflexões realizamos, entre 2010 e 2012, um mapeamento de blogs e páginas de grupos juvenis de São Paulo, com vistas a compreender as tecnologias a partir do lugar desses grupos juvenis, observando seus modos de apropriação e usos dessas ferramentas digitais (BORELLI et al., 2010). Ficou evidente o propósito de intervenção cultural (e política) local nos bairros a que pertenciam os jovens e seus coletivos.6 O grupo Quilombaque,7 por exemplo, atua na periferia oeste de São Paulo e evidencia em seu blog que busca “ampliar a consciência política e ambiental e o desenvolvimento local sustentável através da economia da cultura”. Também da zona oeste, o Sarau Elo da Corrente8 afirma: “chegamos pra somar na luta de vários guerreiros que fazem mil corres pra melhorar a autoestima e o valor da periferia”. O Becos & Vielas,9 grupo que exibe filmes na periferia sul da cidade, deixa claro que tem como objetivo “levantar discussões e soluções para os problemas da periferia”. Todos esses são grupos que atuam politicamente por meio de suas produções artísticas, mas deixam explícito, por meio de seus manifestos e objetivos publicados em seus blogs e perfis nas redes sociais, que visam a interferir em seus bairros e regiões, na maioria das vezes periféricos, violentos e com poucas oportunidades de lazer e consumo cultural. Caracterizam-se pela ação artística e cultural em bairros de periferia, mas com o objetivo expresso de atuar na região, no bairro. Buscam utilizar a arte para a transformação do meio social, especialmente o território onde atuam e vivem; buscam produzir o debate crítico em regiões com altos índices de criminalidade, pobreza e mortalidade juvenil. Conscientes de sua responsabilidade social, esses grupos assumem o papel de agentes transformadores. Realizam oficinas, debates e shows; 6 Aqui listados: Becos & Vielas, Coletivo 5 Zonas, Coletivo Artístico Dialéticas Sensoriais – CADS, CICAS, Coletivo Culturas Baobá, Coletivo Griots, Correspondência Poética, Maloca Espaço Cultural, Panorama Arte na Periferia, POVO, Comunidade Cultural Quilombaque, Sarau Elo da Corrente, Sarau Poesia na Brasa, Sinfonia de Cães, Tenda Literária, Cultura de Garagem, FACA, Movimento Cultural dos Guaianás, Projeto 2emente2. 7

Comunidade Cultural Quilombaque: ; .

8 Sarau Elo da Corrente: . 9 Becos & Vielas: .

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ocupam e revitalizam espaços públicos e estimulam sentimentos comunitários por meio da poesia, música, graffiti e cinema. Como coletivos juvenis, utilizam as ferramentas digitais de comunicação para a apropriação e intervenção nas regiões onde vivem: buscam promover ações comunitárias, artísticas e culturais que modifiquem a vida na periferia, promovam o encontro e criem alternativas culturais nesses bairros; são militâncias articuladas à ação local e artística. A arte, além de ser a finalidade desses grupos, também é o meio de ação política; as tecnologias digitais somam-se às ferramentas artísticas. Os coletivos se colocam como produtores e criadores, e não apenas como consumidores ou reprodutores da cultura midiática; assumem e ultrapassam o papel de “prossumidores” (KERCKHOVE, 1997): promovem atividades e reflexões que vão além das questões artísticas, envolvem-se em questões de habitação, saúde, educação, violência e saneamento básico da região. Eles reconstroem identidades étnicas ao mesmo tempo que afirmam a identidade suburbana, periférica. Tentam mudar a periferia e não mais se mudar da periferia; nas mãos desses jovens, as periferias visibilizam-se como espaços praticados, o território transforma-se em lugar da existência, o espaço habitado e a cidade passam a ser lugares de construção da cidadania (SANTOS, 2008; 2007). Segundo Raquel Recuero (2009, p. 81), “a cooperação pode ser gerada pelos interesses individuais, pelo capital social envolvido e pelas finalidades do grupo. Entretanto é essencial para a compreensão das ações coletivas dos atores que compõem a rede social”. Essas páginas juvenis na internet são territórios virtuais constituídos essencialmente para o encontro, a aproximação, a troca de saberes e o trabalho coletivo. Nesta pesquisa, realizada no início dos anos 2010, buscamos inicialmente por grupos e coletivos juvenis na internet e, por meio desses blogs e perfis coletivos, encontramos a periferia de São Paulo. A máxima do ciberativismo “a periferia é o centro” faz todo sentido nesse caso.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS E CULTURA DIGITAL NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Na virada do milênio, assistiu-se a uma série de iniciativas globais que realizaram balanços sobre a situação econômica, política e social que 47

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o mundo atravessava. Entre as mais expressivas, destaca-se o pacto realizado entre governos, entidades privadas e sociedade civil para cumprir os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” elaborados pela ONU. A inclusão digital despontava como a última prioridade das metas, estando vinculada à área de desenvolvimento econômico e tecnológico. Tratava-se de “formular e executar estratégias que ofereçam aos jovens um trabalho digno e produtivo. Tornar acessíveis os benefícios das novas tecnologias, em especial de informação e de comunicações” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015). A questão da inserção digital passou a fazer parte dos temas das políticas públicas nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, uma vez que é elemento estratégico para sua modernização social, econômica e cultural. A maior parte desses países ainda contava com um número muito baixo de cidadãos com computador doméstico e menor ainda era a quantidade daqueles que tinham acesso à internet. A porta de entrada para essa inserção seria, então, disponibilizar o acesso a um computador conectado à rede e treinamentos para utilizar os programas. O acesso livre e amplo à Internet é um fator importante para a construção e ampliação da cidadania, acesso ao mundo de informações e serviços disponíveis no ciberespaço, além de promover o acesso a outras culturas e ampliar o multiculturalismo. A inserção mundial estratégica e cidadã dos países emergentes passa pela promoção da inclusão digital como forma de diminuir o distanciamento entre os segmentos sociais na apropriação das riquezas. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC, 2014, p. 13)

No hall dessas discussões, foi implantada no início dos anos 2000 a primeira política pública de inclusão digital no Brasil, os Telecentros: espaços públicos ou comunitários que disponibilizam gratuitamente aos cidadãos o acesso a computadores, impressoras, internet (com navegação livre ou assistida) e formações. Quando de sua implantação, a cidade de São Paulo tinha 90% de sua população sem acesso à rede. Passada mais de uma década, a inclusão digital já não é o maior dilema do município. Com o avanço das tecnologias móveis e internet de banda larga e compartilhável, há maior disponibilidade de ferramentas 48

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necessárias para acessar a rede (computador, telefones e tablets), e o manuseio intuitivo permite a rápida adaptação do usuário às interfaces dos diferentes programas e aplicativos (também fáceis de baixar). A Coordenadoria de Conectividade e Convergência Digital da Prefeitura de São Paulo, incumbida da gestão dos Telecentros, também foi responsável por projeto das Praças Digitais (WiFi Livre SP), pelo Edital Redes e Ruas (junto à Secretaria de Cultura e de Direitos Humanos) e pelo FabLab Livre SP.10 Em comum, essas iniciativas têm como proposta a intensificação do uso da cidade por seus habitantes por meio de ações agregadoras e geradoras de novos processos de significados para os espaços públicos. O projeto das praças digitais, por exemplo, integra o Plano de Ocupação do Espaço Público pela Cidadania, que preconiza o “direito de estar e criar a cidade, o direito de permanecer e ocupar os espaços públicos e o direito de reinventar formas de usos e fluxos no espaço urbano” (SÃO PAULO, 2015, p. 32). O projeto do WiFi Livre SP tem como objetivo disponibilizar em praça pública o acesso gratuito e irrestrito à internet para qualquer cidadão, a qualquer hora e sem cadastro prévio. Por conta dessa iniciativa, houve também investimento no sistema de segurança e iluminação nesses espaços. A instalação de WiFi nas praças ajuda a promover a reocupação dos espaços urbanos pela população. Uma praça limpa, bem iluminada e com conectividade torna-se atrativa para que as pessoas saiam de casa e aproveitem melhor o que a cidade tem de bom a oferecer. (Ibid., p. 28)

Pesquisa realizada pela Prefeitura de São Paulo em parceria com a Universidade Federal do ABC mostra que, em 2014, foram realizados mensalmente 2,5 milhões de acessos nas Praças Digitais, dos quais a maioria era feito por mulheres, população autodeclarada parda ou preta e 52,8% com idade entre quinze e 29 anos. Conectar-se à internet a partir de um espaço público e gratuitamente tem forte impacto na juventude, sobretudo nas periferias. Para a população com baixa renda familiar, ter acesso à internet nem sempre é uma condição contínua ao longo do dia ou da semana. Em uma 10 Fab Lab Livre SP: www.fablablivresp.art.br.

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realidade na qual estamos todos conectados o tempo inteiro, essa instabilidade de conexão resulta também no descompasso desse jovem em relação aos demais no que diz respeito ao acompanhamento dos acontecimentos, das trocas de mensagens entre seus pares, ou seja, na desatualização do que se passa nas comunidades on-line (WhatsApp, Facebook e Instagram, entre outras redes sociais). É muito comum encontrar grupos de jovens sentados nas praças do projeto WiFi Livre SP jogando, acessando as redes sociais, escutando músicas, fazendo ligações, tirando e postando fotos, entre outras atividades recreativas. Já em 2004, o “Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais” (VAI, Secretaria Municipal de Cultura) apresentava projetos que tinham como eixo de sua ação a inclusão digital. O VAI é uma política pública de cultura para a juventude que apoia projetos culturais de coletivos juvenis que realizam atividades em regiões periféricas da cidade. Foi a primeira política pública no Brasil a investir em projetos de jovens com recursos transferidos diretamente em suas contas correntes, sem mediadores. Nas primeiras edições, os projetos que abordavam o tema da cultura digital eram bastante escassos e tratavam de ações complementares a alguma outra atuação, como a criação de blogs reunindo as atividades desenvolvidas ou mapeadas pelo coletivo ao longo do projeto. Destaca-se, em 2006, o projeto “Consolidação do Guia da Cultura Jovem na Cidade de São Paulo”, desenvolvido pelo coletivo “Arte Urbana”, que tinha como objetivo “proporcionar visibilidade às inúmeras iniciativas culturais empreendidas por jovens de todos os cantos da cidade”, disponibilizando o guia em formato impresso e no portal virtual. “Desta forma, amplia consideravelmente o acesso à legítima cultura desenvolvida por milhares de jovens e que, geralmente, é desconsiderada nas ‘coberturas’ da chamada ‘grande cultura’.”11 Hoje, após treze anos de sua implantação, os projetos de cultura digital no Programa VAI ainda não são suficientes para dar conta da demanda crescente, entretanto apresentam maior diversidade e, em alguns casos, são o objetivo final da própria ação. Em 2016, foram aprovados projetos de audiocontos (podcasts para internet) ou de uso de QrCodes pela cidade (propondo que, a partir de símbolos gráficos e de um smartphone, as pessoas possam acessar 11 Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2016.

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conteúdos específicos pensados para aquele espaço). Criação de sites e disponibilização de material on-line já fazem parte da rotina de produção cultural da maioria dos grupos juvenis. Por estarem incorporadas às suas práticas, essas ações não são consideradas projetos de “cultura digital” pelo Programa VAI. Com o amadurecimento das políticas de fomento a projetos culturais e a consolidação de políticas públicas de inclusão digital, foi publicado, em 2014, o Edital Redes e Ruas, como uma ação intersecretarial que fez convergir os direitos à cultura e à cidade. Ele surgiu como resultado de demandas da própria sociedade civil expressas no evento aberto #ExisteDialogoemSP, promovido pela Prefeitura no início da gestão. O edital é uma forma de fomento voltada à Pessoa Física e Jurídica, com alocação de recursos entre R$ 36 mil (PF) e R$ 140 mil (PJ sem fins lucrativos) por projeto. É considerado o “maior edital de cultura digital do Brasil”. São cinco seus eixos de atuação: formação, produção artístico-cultural, comunicação, desenvolvimento tecnológico e ocupação de espaço público. O Edital apoiará ações já existentes ou novas propostas, tendo em vista o aprimoramento de processos criativos, estéticos, de promoção da cidadania, da inclusão e da cultura digital, por meio da ocupação de espaços públicos e do uso de tecnologia digital e da internet. Os projetos deverão compreender, dentre o conjunto de atividades, ações a serem desenvolvidas em Telecentros, Praças do Programa WiFi Livre SP e/ou em parceria com os Pontos de Cultura da cidade de São Paulo. (SÃO PAULO, 2014d)

Listamos aqui os tipos de atividades realizadas pelos projetos contemplados no Edital Redes e Ruas (por ordem de ocorrência, do maior para o menor): oficina/curso/seminário; apresentação (teatro, circo, outros); debate/roda de conversa; encontros/ocupação; intervenção/instalação; projeção/exibição (cinema, cineclubes, filmes); mostras; shows; desenvolvimento (app, site, blog, mídias sociais, Dvd, fanzine, livro, jogo); pesquisa, intercâmbio artístico; captação de imagens; performance; WebRadio e sarau. Os coletivos contemplados privilegiaram o espaço público para sua atuação, especialmente as praças do projeto WiFi Livre SP; em segundo 51

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lugar, aparecem os Telecentros. As praças constituem lugares com códigos de comportamento mais abertos e sem regras rígidas para uso. Ocupar a cidade também faz parte do projeto político dos coletivos culturais das periferias (MAIA, 2014). Quando o ponto de partida para a realização de qualquer ação cultural é uma cidade excludente como São Paulo, fazer parte da vida citadina, da urbanidade, discutir segregações e alternativas de enfrentamento são tópicos comuns a estes grupos. Segundo Beá Tibiriçá, “cidade ocupada é cidade libertada e ressignificada” (SÃO PAULO, 2015, p. 23). No Redes e Ruas a Casa Ecoativa [nome do grupo] desenvolveu o projeto Ecolab Digital. Em três territórios, Grajaú, Parelheiros e Bororé, a ideia foi de formar jovens comunicadores, os chamados repórteres da quebrada. Esses jovens tiveram formação com ferramentas de internet e de comunicação para, entendendo o seu papel de jovem morador de uma área de manancial, tentar transformar o seu território através do jornalismo independente e comunitário. (Ibid., p. 78)

Dentre as novas políticas de inclusão digital destaca-se também o Programa para a Valorização de Iniciativas Tecnológicas (VAI TEC), que foi pensado junto à Política de Desenvolvimento Econômico Sustentável do Município de São Paulo (Id., 2014c) e é ligado à Política Tech Sampa. Voltado para apoiar financeiramente atividades inovadoras, especialmente aquelas ligadas à área de TIC [Tecnologia da Informação e Comunicação], desempenhadas principalmente pela população jovem de baixa renda. (Id., 2014a)

Sua legislação é semelhante à do Programa VAI, mas permite a possibilidade de participação de Pessoas Jurídicas ou Físicas (maiores de catorze anos). São objetivos do VAI TEC: i. Estimular a criação, o acesso, a formação e a participação do pequeno empreendedor e criador no desenvolvimento tecnológico da cidade; ii. Promover a pesquisa, a difusão de tecnologias e a inovação;

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iii. Promover a estruturação e desenvolvimento de cadeias produtivas formadas por micro, pequenas e médias empresas e cooperativas; iv. Contribuir para a redução das desigualdades regionais dentro do Município, ampliando a oferta de emprego e renda nas regiões nas quais a relação entre oferta de empregos e a densidade demográfica é mais acentuada. (Id., 2013a)

Ressalta-se que as propostas a serem desenvolvidas pelos projetos devem vincular-se a situações cotidianas da cidade, com vistas a solucionar seus problemas e desafios, sendo subsidiadas ações de desenvolvimento de produtos, processos, aplicativos, jogos, técnicas e metodologias.12 Entre as propostas selecionadas, é possível notar a variedade de formas e conteúdos contemplados, como a realização de encontros formativos (virtuais ou presenciais), produção de portais que conectam conteúdos e agentes; observatórios de direitos; intervenções plásticas e visuais na cidade; desenvolvimento de plataformas colaborativas para uso em aparelhos móveis; projetos voltados à economia solidária e economia da cultura; utilização de ferramentas tecnológicas para a educação (podcasts, recursos visuais para letramento e manutenção de viveiros em escolas, produção de informações gráficas para a comunidade escolar, entre outros); tecnologias sustentáveis; transporte e mobilidade urbana (carona solidária, bike ativismo, entre outros). Entre os projetos de empreendedorismo, salta aos olhos as propostas direcionadas ao público feminino, pensando na formação e interação com as ferramentas tecnológicas e o desenvolvimento de negócios próprios. Há também projetos para o público LGBT, como o GayMaps, “aplicativo online gratuito que mapeia as áreas de maior incidência da violência e violações de direitos humanos contra pessoas LGBT, seus familiares e amigos no município de São Paulo”.13 Em sua primeira edição, o VAI TEC apoiou 67 projetos, todos de Pessoas Físicas, dos quais 55,22% vinham da população jovem e 17,91% de pessoas com baixa renda. Em 2016, na sua segunda edição, o programa tentou focar no seu público prioritário (jovens da periferia): houve um 12 Agência São Paulo de Desenvolvimento: . 13 Projetos do VAI TEC. Agência São Paulo de Desenvolvimento: .

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A periferia é o centro

leve aumento no número de jovens contemplados, 57,75%, e chegou aos 91,97% de pessoas contempladas autodeclaradas de baixa renda. A produção de novas tecnologias ou a criação de espaços de convergência das diferentes ferramentas digitais ainda são pouco acessíveis à população jovem mais pobre. O que se vê, por parte do Estado, é uma nova geração de políticas de inclusão digital voltadas à produção digital colaborativa, com implantação de espaços criativos como o que prevê o Programa Fab Lab Livre SP – laboratórios espalhados pela cidade (doze no total) equipados com impressoras 3D, cortadoras digitais, computadores potentes com softwares de edição e desenho digitais, equipamentos de robótica, eletrônica e mecânica. Assim, tendo em vista a estreita relação dos jovens com os espaços públicos e, mais recentemente, com a cultura digital, é importante que os poderes públicos estejam atentos a essa questão, especialmente quando se trata dos jovens das periferias brasileiras. O acesso aos equipamentos e à conexão gratuita e de qualidade nas regiões menos favorecidas de infraestrutura urbana pode contribuir positivamente para a melhora da qualidade de vida dos jovens periféricos, garantindo o direito à informação e ao conhecimento, assim como o direito à expressão, à produção cultural e à visibilidade social. Os blogs e perfis nas redes sociais on-line desses grupos juvenis são produções grupais, mantidas por atores coletivos que trabalham de forma colaborativa. São autores que constroem um espaço integrado de reflexão, criando uma narrativa única e fragmentada composta por textos, imagens e sons produzidos e selecionados para dar origem a essa identidade coletiva. Esses ambientes digitais põem esses jovens em contato com o bairro, a cidade e o mundo. Por meio dessas páginas gratuitas, dotadas de usabilidade acessível e de fácil construção e manutenção, os grupos juvenis organizados registram suas ideias e atividades. Elas são poderosas ferramentas na construção e no registro da trajetória e da história do grupo. A partilha da experiência coletiva por meio da música, dança, cinema, literatura e poesia produzidos pelos jovens atrela-se às tecnologias digitais e ramifica-se por outros tempos e espaços, produz outras narrativas e sociabilidades, aciona outros saberes e práticas. Daí a necessidade urgente da promoção de políticas públicas que apoiem e estimulem a ampliação da cultura digital nas periferias, em especial entre os jovens das periferias. Eles têm pressionado o município para que o direito à cultura abarque também a cultura digital, já que suas 54

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

práticas cotidianas e exercícios da cidadania passam inevitavelmente pela internet, pelos dispositivos móveis, computadores, câmeras e telas. Neste artigo, abordamos três iniciativas da Prefeitura de São Paulo voltadas para a apropriação das tecnologias digitais por grupos e coletivos que buscam discutir a cidade, ocupar espaços públicos, promover o diálogo, repensar valores. O acesso e o uso da cultura tecnológica não podem ficar restritos à iniciativa privada; os poderes públicos têm um papel fundamental na democratização dos acessos e na ampliação e melhora das apropriações das ferramentas digitais. Afinal, tecnologias e conhecimentos implicam poderes e privilégios; a cultura digital pode e deve recriar a esfera pública de cultura e de participação política na vida social.

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Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

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A periferia é o centro

______. Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014. Aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e revoga a Lei nº 13.430/2002. São Paulo, 2014c. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2016. ______. Plano de ocupação do espaço público pela cidadania. 2014d. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2016. ______. Redes e ruas: inclusão, cidadania e cultura digital. São Paulo, 2015. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC. Conectividade e inclusão digital em São Paulo. Santo André: UFABC, 2014. Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2016.

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Parte 1

Espaços inusitados para música Edson Natale

Quais as relações possíveis entre a música, a cidade e seus habitantes? As infinitas maneiras de se fazer música e os diferentes públicos a que ela se dirige – existem pessoas que se reúnem sempre nos mesmos dias da semana para o samba, o choro ou o rap – geralmente estão associados a um ponto geográfico. Essas mesmas pessoas, de alguma forma, são impactadas pelas nascentes e os riachos que ainda correm por baixo das avenidas e ruas de uma cidade como São Paulo? Na calçada da Avenida Paulista, um duo – ela com a flauta, ele com o violão – toca atrás de uma pequena banca de doces (brigadeiro, bem-casado, bolo). Você pode comprar um doce ou deixar algum dinheiro na caixa, especialmente decorada para receber os trocados. Ou comprar um doce e também pagar pela música. Você escolhe e pode, como a maioria das pessoas, passar rapidamente por ali, sem se importar com os doces ou com a música. Nas saídas das escolas, a barulhenta felicidade de meninos e meninas voltando para a casa com suas histórias, seus diferentes corpos e sotaques. Somamos as dinâmicas cotidianas e peculiares de cada um, em cada um dos bairros da cidade. A música não está à margem disso e tampouco protegida disso tudo, pelo contrário, é isso que a alimenta e é também disso que ela vive. Paulo Mendes da Rocha, premiado arquiteto brasileiro, em recente entrevista à Revista Brasileiros, disse o seguinte: “A impressão que tenho é que tudo o que o homem faz tem uma dimensão artística. No fundo, no fundo, arte significa preocupação com o outro” (FERRAZ, 2016). Para elaborar este texto, provocado pelo título que recebi – Espaços inusitados para a música – compreendi que deveria ir além do fato em si e buscar, sobretudo, as compreensões, possibilidades e percepções dentro e a partir de minha própria cidade, onde nasci e vivo desde 1962: São Paulo. E, mais do que isso, fazê-lo inspirado nessa significante preocupação com o outro que, a seu modo, se relaciona de infinitas maneiras com a tríade cidade-habitantes-música. 59

Espaços inusitados para música

Quero ir além das discussões técnicas (importantes, sem dúvida, mas que no momento serão deixadas de lado) ou da busca competitiva para implementar projetos musicais em locais cujo retorno imediato será a obtenção de uma espécie de carimbo com a frase: nunca antes alguém teve a ideia de tocar aqui! Dispensar exotismos gratuitos mais afeitos a publicações com as características do Guinness Book agradou-me de fato. Evitar discorrer a respeito da viabilidade de reunir virtualmente um músico tocando trombone no Jalapão, em Tocantins, com outro tocando zabumba em algum lugar da chapada do Araripe também foi uma decisão. E quais são as possibilidades musicais de uma cidade, com cerca de 12 milhões de habitantes, como São Paulo? Os músicos amadores; as diversas festas com música nas ruas, casas noturnas, praças, comunidades; as chamadas pequenas casas de espetáculo, as salas de concertos, teatros, escolas e auditórios; os músicos profissionais, professores, arranjadores, maestros, compositores; os festivais e saraus. Enfim, toda uma gama quase infinita quando se trata de música. “Uma cidade, enquanto tal, não existe. Existem diferentes e distintas formas de vida urbana”, afirma o filósofo e professor da Universidade de Veneza, Massimo Cacciari (2010). Existiriam, então, diferentes músicas para as distintas formas de vida urbana?

UM PRÉDIO, POR EXEMPLO Um prédio e seu telhado deixaram de ser um local inusitado para a música em algum momento, mas, emblematicamente, vamos pensar em 1969 como um marco, quando os Beatles se apresentaram no teto de um edifício em Londres, por cerca de quarenta minutos. E se em um prédio hipotético, localizado no centro de São Paulo, ocupado por trabalhadores sem-teto, houvesse uma apresentação musical? Esse seria um espaço inusitado para a música? Não exatamente pelo tipo de música apresentada ali, mas pela interação entre a música, a cidade e (uma parcela de) seus habitantes. A resultante poderia ser uma experiência musical diferenciada para pelo menos uma parte do público presente, com a força de construir/desconstruir percepções e preconceitos de moradores de outros

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Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

bairros, ou simplesmente de outros prédios, com relação aos habitantes desse prédio específico.

OS ESPAÇOS INUSITADOS PARA A MÚSICA NÃO SÃO ESPAÇOS INÓSPITOS PARA A MÚSICA Ainda em um prédio: a pianista norte-americana Marjorie Eliot, que, em um domingo de 1994, após a morte do filho, realiza concertos de jazz, sempre aos domingos, para cerca de cinquenta pessoas, na sala de seu apartamento, no edifício Paul Robeson Residence – no Harlem, em Nova York –, onde, em outro apartamento nesse mesmo edifício, morou o maestro, pianista, compositor e arranjador norte-americano Count Basie. Os encontros jazzísticos são bastante disputados e não há cobrança fixa de ingressos: cada um contribui com o quanto considera adequado. Inúmeros jazzistas se deslocam para tocarem ali. Mais do que um apartamento com música, trata-se de uma espécie de tradição que se iniciou a partir da morte e que, com um conjunto de características bastante peculiares (a excelente música, o suco de laranja servido, a história do bairro, o prédio, a frequência semanal e, claro e sobretudo, a anfitriã pianista), ganhou espaço no disputado mapa musical da cidade. Trens, ruas, ônibus, cemitérios – o Congressional Cemetery,  em Washington, recebe cerca de 45 mil pessoas por ano não só para os concertos, mas também para sessões de cinema ao ar livre que ali foram batizadas de Cinematery. Não tenho conhecimento do processo de mediação que certamente existiu para possibilitar a realização dos concertos nesse local, mas não é difícil imaginar a intensidade de reuniões, articulações religiosas e políticas que foram empreendidas para tornar (e manter) o projeto viável. Em São Paulo, a apresentação do Coral Paulistano Mário de Andrade no Cemitério da Consolação, em 2014, promovida pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo, em um projeto chamado Memória Musical, foi realizada no dia dos pais daquele ano, com um repertório que apresentou canções de Chico Buarque de Hollanda, Dorival Caymmi, Gilberto Mendes e Padre José Maurício Nunes Garcia, sob a regência do maestro Luiz Marchetti.

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Espaços inusitados para música

Quantidades inimagináveis de arquivos musicais trafegam pelo mundo digital, integrando, ou invadindo, elevadores, salas de espera dos consultórios médicos e odontológicos, templos religiosos, ônibus, navios e aviões. A música é largamente utilizada também como um antídoto ao silêncio e preenche espaços vazios indesejados entre as curtas conversas que não se aprofundam. Música também funciona, para certos estabelecimentos, como um carimbo, que atesta um valor, mas que na verdade revela um desejo de seu proprietário de que o lugar seja parecido com (ou igual a?) aqueles famosos outros, justamente por tocar os mesmos sucessos que todos os lugares chics da cidade também tocam. Até enquanto nadamos podemos ouvir música com fones de ouvido especialmente desenvolvidos para usos aquáticos. Temos playlists especialmente elaboradas para correr, andar, pensar, namorar, cozinhar e até para nos suicidarmos – sim, existem playlists especialmente elaboradas para suicídios. Todas as fronteiras foram rompidas pela onipresente música, que às vezes instiga, desafia ou mexe com o ouvinte. Outras vezes uniformiza e propõe um confortável e seguro passeio de seus ouvidos por um shopping center sonoro, insosso e igual a todos os outros. A frase que o violeiro, compositor e escritor Paulo Freire associa ao pai – o psicanalista, escritor e agitador cultural Roberto Freire – ilustra muito bem e com simplicidade um ponto crucial, do qual não devemos nos esquecer jamais: “Quando se incomodava com algum som, meu pai ia logo dizendo: pena que ouvido não tem pálpebra!”. Alguma vez você já desejou ter uma potente pálpebra no ouvido? Eu já. Inúmeras vezes, inclusive em uma viagem realizada em função do Programa Rumos, do Itaú Cultural, quando estive em uma pequena cidade do interior do Mato Grosso do Sul. Após um encontro com produtores e músicos locais, fui almoçar na beira do Rio Araguaia, onde havia uma balsa adaptada, transformada em uma espécie de restaurante flutuante. O imenso rio propunha um mergulho na sonoridade natural do lugar. Naquele barco-restaurante havia algumas TVs de tela de plasma transmitindo um show musical que incomodava pelo alto volume, mas fui gentilmente atendido pelo garçom quando fiz o pedido: será que poderia ser um tiquinho de volume a menos? Ao sair daquele almoço, já no final da tarde, foi inevitável a surpresa com a grande quantidade de motos equipadas com carenagens que 62

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

suportavam potentes alto-falantes, e que se amontoavam em grupos e compunham um inusitado cenário de horror sonoro – disputando, entre si e com os carros tunados, com seus porta-malas abertos, o prêmio de quem impunha seu som ao outro de maneira mais incisiva. Com outras tecnologias, equipamentos e conceitos, muitos projetos musicais, sejam eles de entretenimento, clássicos, educativos ou experimentais, também são introduzidos em determinados lugares, seja por organizações de primeiro, segundo ou terceiro setor, com uma boa dose de imposição, tais quais as motos e carros tunados – aos ouvidos de habitantes de determinados lugares, sem que tenha havido uma escuta atenta aos desejos, repertório e memória afetiva da comunidade específica impactada pelo projeto musical. Uma questão são as pessoas que se deslocam até o local do show ou concerto; outra questão são as pessoas que vivem e moram ali. O ato de ouvir música possui características que extrapolam melodia, harmonia, ritmo, ondas sonoras, frequências, decibéis e tantas outras questões, digamos, mais técnicas. Música tem a ver também com conexões emocionais que são capazes de nos contar uma história, como a do médico (e então prisioneiro) Hermann da Fonseca-Wollheim, que, segundo sua neta Corina da Fonseca-Wollheim, aconteceu em um domingo de abril de 1944, no campo de concentração de Buchenwald, para onde ele havia sido transferido de uma prisão da Gestapo, em Hamburgo, na Alemanha. Ele viria a morrer seis semanas depois, no campo de concentração, de disenteria aguda, tornando-se mais uma das vítimas entre as mais de 50 mil que morreram naquele campo de concentração. Herman escreveu uma carta para sua esposa, Kathe, em que ele dizia: “Hoje às 18h vou ouvir o concerto de Furtwangler no rádio. Por que você também não liga o rádio aos domingos, para que possamos pensar um no outro intensamente?”. Existe algo mais inusitado do que a música servir de ponte  entre uma pessoa presa no campo de concentração de Buchenwald e outra em sua casa em Hamburgo? Mais do que isso, a simples menção de que aquela determinada música pudesse ser ouvida simultaneamente foi o que conectou aquelas duas pessoas. Tão bonita a força que a música tem, de existir na memória, sem ser executada de fato. Recentemente foi descoberto o motivo pelo qual o médico Hermann da Fonseca-Wollheim foi feito prisioneiro e levado para o campo de concentração de Buchenwald. Segundo o artigo 63

Espaços inusitados para música

de sua neta para o The New York Times, foi grande a surpresa entre os pesquisadores, pois o motivo alegado foi Ausländerfreundlichkeit. Significa “tratar estrangeiros com cordialidade”. Nas ruas de Yarmouk, na Síria, o jovem Ahmad, filho de violinista e estudante na escola de música de Homs, colocou seu piano no meio dos escombros de sua cidade arrasada pela Guerra. Ali as pessoas se alimentam de cães, gatos e ratos para não morrerem de fome, e Ahmad pensou em tocar para aliviar a dor e o desespero do povo, e certamente também os dele próprio. Não sei por quanto tempo pôde tocar, mas, como a música foi proibida pelos jihadistas, ele camuflou seu piano dentro de um container e o cobriu com o que pôde encontrar pela frente. O piano, infelizmente, foi descoberto e encharcado de gasolina. Em seguida, foi incendiado na frente de Ahmad. Inusitado significa incomum, não usual, e não precisa estar ligado a um lugar, podendo também estar associado a um estado de espírito, como raiva, ódio, medo e preconceito. Desejar e trabalhar para que, utopicamente, a música percorra esses lugares do espírito é algo potente e que desperta meu interesse e sentidos. Espaços inusitados para a música existem também em cada um de nós.

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Parte 1

A cultura como estratégia de resgate do patrimônio histórico: a experiência do Projeto Fontes de São Paulo Patrícia Huelsen1 Marcelo Augusto Vieira Graglia2

A ORIGEM DAS FONTES DE ÁGUA NAS CIDADES As fontes de água, simbolicamente, significam vida, representam a criação, a renovação e a pureza – elementos que também existem nos homens. A água que sai de um jardim tem as mais diversas significações para as culturas antigas: podem representar a fonte da vida, a fonte da juventude, a fonte do conhecimento ou a renovação (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009). As fontes de água, em termos históricos, surgem ao mesmo tempo que os primeiros agrupamentos humanos nas cidades. Desde a Antiguidade, os povoados estendiam-se próximo aos rios, e o conhecimento sobre aquedutos, que conduzem a água até as plantações e vilas, é tão antigo quanto a organização humana em agrupamentos sociais, com registros de sua existência nas civilizações pré-colombianas, na Grécia e Roma antigas. Assim, sob o aspecto funcional, as fontes surgem como locais de distribuição de água aos habitantes dos povoados e como locais de equalização da pressão dos dutos de água (OSTROW, 2012). A partir de um olhar mais estético, as fontes são mais que bacias ao ar livre, são monumentos arquitetônicos e artísticos, traços presentes nos pórticos das cidades antigas e nos banhos públicos do período clássico.

1 Mestre em Administração de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora de marketing na mesma instituição. 2 Professor do Departamento de Adminstração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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A cultura como estratégia de resgate do patrimônio histórico

Figuras 1 e 2. Detalhes de um banho público em Pompeia (cidade fundada entre os séculos VI e VII, na Itália) com pinturas restauradas. Fonte: Arquivo pessoal dos autores (2015).

No Renascimento, quando a Europa se recuperava do período de pestes e doenças da Idade Média, as fontes de água foram adornadas com estatuetas. As fontes, que exibiam as águas provindas das minas e nascentes, transportadas até ali por aquedutos, normalmente tinham cubas extensas, para abrigar a todos, e também eram enfeitadas com pedras esculpidas. Em Roma, no início do século XVI, com a poluição de grande parte do rio Tibre por curtumes e dejetos, a cidade começa a ver nas fontes de água naturais, como a La Vergine, uma nova opção para o abastecimento urbano de água. Para tanto, foi construído um aqueduto com cerca de oitenta fontes distribuidoras de água. Uma delas é a Fontana di Trevi, que mostra afrescos comemorativos sobre a descoberta da fonte La Vergine, a Triton e o pequeno barco da Piazza di Spagna. Naquela época, os aquedutos já eram ligados por canais subterrâneos. As fontes tinham uma função de equalizar a pressão da água, mas, de alguma forma, ganharam uma dimensão artística, cultural e social. Além da La Vergine, Roma conta com a fonte Giacomo della Porta, que abastece as mais famosas fontes históricas da cidade: da fonte da Piazza del Popolo, Piazza della Rotonda, Piazza Navona, entre outras (OSTROW, 2012; RINNE, [s. d.]). Além de desempenharem uma função hidráulica e de transporte de água, as fontes de Roma são exemplos de uma arquitetura barroca repleta de curvas. E, se antes tinham apenas utilidade pública, na atualidade 66

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

tornaram-se locais de visitação de turistas, que agendam encontros ao redor delas e lhe atiram moedas. A história de Portugal tem uma curiosa passagem que envolve o famoso romance de D. Pedro I (rei de Portugal nascido em 1320). Ele foi proibido de se casar com Inês de Castro, da Espanha, pelo receio que seu pai tinha de o reino português cair em domínio espanhol. A história relata o romance, imortalizado nos Lusíadas, de Camões. Sobre Inês de Castro, escreveu o poeta: “[Aquela que] depois de morta foi rainha” (CRISTÓFANO, 2012, p. 464). Duas fontes lendárias de água, situadas na Quinta das Lágrimas, em Coimbra, Portugal, são associadas ao romance real proibido: a Fonte dos Amores, onde supostamente ocorriam os encontros de Pedro e Inês, e a Fonte das Lágrimas, onde, segundo a lenda, Inês foi executada por D. Afonso IV, pai de Pedro I.

Figuras 3 e 4. Fonte das Lágrimas (3) e Fonte dos Amores (4): Quinta das Lágrimas, Coimbra, Portugal. Fonte: Arquivo pessoal dos autores (2015).

No Brasil, o Barroco ofereceu traços singulares às fontes de água. Como exemplo, a cidade de Tiradentes exibe o achado da fonte Mãe D’Água. A construção, ainda mantida com pedras, termina no Chafariz Central da Cidade, local onde se encontravam lavadeiras, cavalos e transeuntes.

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Figuras 5 e 6. Chafariz Central da Cidade de Tiradentes, Minas Gerais: local onde os animais bebiam água (5) e onde se lavava roupas (6). Fonte: Arquivo pessoal dos autores (2016).

As fontes de água que acompanharam o florescer do conceito de cidade, trazem à superfície os aquíferos enterrados pelo concreto e acompanham a evolução do processo de urbanização.

O PROBLEMA DO ABASTECIMENTO DE ÁGUA DA CIDADE DE SÃO PAULO NO SÉCULO XIX Na segunda metade do século XIX, a cidade de São Paulo vivenciava expressiva expansão, capitaneada pelos efeitos do crescimento econômico e populacional gerado especialmente pela produção e exportação de café (CAMPOS, 2005). O chamado complexo cafeeiro criou as condições para grandes investimentos de capital que estimularam também atividades paralelas ou complementares à economia cafeeira, acabando por favorecer o desenvolvimento da industrialização nas primeiras décadas do século XX. A promoção e a produção de redes de águas e esgotos e sistemas de saneamento faziam-se necessários, tanto pelo aumento demasiado da população urbana, carente de água para consumo próprio (a falta de água potável era tida como um dos principais problemas da cidade), como em função 68

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da chegada de surtos epidêmicos de varíola e de febre amarela, por volta de 1888, ano de turbulências no cenário político brasileiro, que causaram enormes abalos também na atividade comercial, nas lavouras e na indústria. Em São Paulo, a febre amarela atingiu primeiro a cidade de Santos, porta de entrada dos imigrantes que vinham trabalhar nas lavouras cafeeiras. A partir de 1850, a cidade foi atingida por sucessivos surtos da doença, trazidos pelos tripulantes dos navios que ali aportavam (TEIXEIRA, 2001). Para a construção de um novo sistema de abastecimento da cidade, em 1887, o governo da província contratou uma empresa privada constituída especialmente para essa finalidade, a Companhia Cantareira & Esgotos. Essa companhia foi posteriormente encampada pelo Estado em 1892, que criou no ano seguinte a Repartição de Águas e Esgotos (RAE) da capital (CAMPOS, 2005). Entre 1892 e 1903, o geógrafo, historiador e um dos maiores engenheiros do século XIX, Theodoro Sampaio, exerceu as funções de diretor e engenheiro-chefe do Saneamento do estado de São Paulo, com destacada contribuição (GUNN, 2002). Esse movimento levou à implantação da rede de água encanada em São Paulo, que abastecia diretamente casas, estabelecimentos e prédios públicos, que passaram a recolher impostos e taxas para viabilizar a operação desses serviços (CAMPOS, 2005).

AS FONTES DE ÁGUA NA CIDADE DE SÃO PAULO No final do século XIX e início do século XX, em São Paulo, as fontes da cidade eram muito frequentadas, pois eram um importante meio de abastecimento de água para a população. As bicas, as fontes e chafarizes eram utilizados também para reunir famílias e conhecidos, para lavar roupas e como ponto de encontro de quem andava a cavalo. Com a implantação do sistema de abastecimento de água encanada nas residências, muitas das fontes de água foram desativadas e despojadas de sua função original. Mais tarde, os automóveis chegaram e a vida urbana ganhou outra dimensão. O desenvolvimento urbano, com sua complexidade inerente, trouxe diversas mudanças que impactaram o papel dessas fontes, especialmente as históricas. Com o passar dos anos, houve mudanças nos traçados urbanos, 69

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com vistas a acomodar uma malha viária em expansão, e a região central da cidade entrou num processo de declínio, perdendo o status de centro financeiro para a região da Avenida Paulista, num primeiro momento, e, posteriormente, para a da Avenida Luís Carlos Berrini. A essas mudanças urbanas e sociais profundas soma-se o acentuado crescimento demográfico, em parte explicado pelos grandes fluxos migratórios na segunda metade do século XX. A expansão urbana de São Paulo veio acompanhada do concreto, da pichação, do aumento da criminalidade, da poluição atmosférica, dos shopping centers. Tais transformações trouxeram mudanças de hábito, que foram acentuadas pela tecnologia da informação e comunicação. Juntese a isso as escolhas urbanísticas feitas pelo Poder Público e as omissões de governos na preservação das fontes e teremos a situação de crescente abandono e degradação desses monumentos. Gráfico 1. O crescimento populacional de São Paulo 12000000 Número de habtantes da cidade de São Paulo

11.253.503 10000000

8000000

6000000

4000000

2000000

0 Ano Número de habitantes

31.329 4

5

6

7

8

9

10

11

12

1920

1940

1950

1960

1970

1980

1991

2000

2010

1

2

3

1872

1890

1900

31.329

64.934

239.820 579.033 1.326.261 2.198.096 3.781.446 5.924.615 8.493.226 9.646.185 10.434.252 11.253.503

Fonte: Censos do IBGE (BRASIL, 2010). Análise dos autores.

As atribuições vitais das fontes históricas se perderam: a função de abastecimento de água foi substituída pela rede encanada, ao passo que se perdeu o conceito da gratuidade do fornecimento de água. Aqui, a lógica capitalista transformou a água em produto, e essa questão não deve ser 70

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

desprezada. Poucos estabelecimentos comerciais, por exemplo, fornecem água gratuita, diferentemente do que acontece em países europeus. A água aqui é vendida. Isso, ao longo do tempo, tornou-se um novo paradigma para a população, que não tem mais a expectativa de obter facilmente água gratuita para seu consumo individual, durante seus deslocamentos pela cidade, tampouco espera que o estado disponibilize água gratuita em locais públicos. Talvez, uma das poucas exceções sejam as escolas públicas, com seus bebedouros. Assim, o cidadão não mais cobra esse direito do Estado, apesar de contribuir com impostos e taxas para a operação geral da rede pública de abastecimento. É claro que se pode entender que houve uma opção histórica por esse modelo de financiamento da produção, distribuição e tratamento da água, justificado, em parte, pelos altos custos envolvidos e pela complexidade de se estabelecer e manter uma operação de abastecimento para 11 milhões de pessoas. Entretanto, a dimensão técnica, sanitária e operacional não deveria simplesmente negligenciar outros aspectos, como o da preservação da memória e da cultura, onde as históricas fontes de água de São Paulo estão inseridas. Mesmo porque todas essas dimensões podem ser harmonizadas e devidamente contempladas numa política ampliada, que privilegie também a preservação do patrimônio público e do legado histórico cultural desses monumentos. Outra função que vem se perdendo nas grandes cidades é a de espaço público de convívio social. As fontes foram, historicamente, pontos de encontro social, locais para reuniões, para descanso, passeio, lazer, manifestações políticas, artísticas e religiosas. Eram tipicamente construídas como parte de uma praça ou largo público, importantes nas cidades. No entorno dessas construções, o comércio prosperava e a região se tornava um centro social importante, um ponto de agrupamento de pessoas (HUELSEN; GRAGLIA, 2016). O surgimento dos shopping centers, associado ao aumento da insegurança nas grandes cidades, é fator relevante para a decadência da fonte enquanto espaço de convívio. O shopping substitui, de certa forma, essa função social. É claro que de maneira distorcida, a destacar a substituição do espaço público pelo privado e também a dominância da cultura do consumo como impulso mobilizador das pessoas. Um espaço que promove o distanciamento, mesmo que não necessariamente intencional, entre os diversos

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grupos populacionais, contribuindo para o esgarçamento do tecido social ao servir, de alguma forma, como mais um mecanismo de segregação. Não se pretende fazer aqui apenas uma crítica gratuita a um fenômeno estabelecido no contexto econômico e social de nossa época, mas indicar que determinados arranjos, como o caso dos shopping centers, enquanto “templos de consumo”, geram impactos colaterais perversos que precisam ser compreendidos e tratados por aqueles que zelam pela gestão pública. Ora, se determinadas iniciativas privadas, por conta de seus interesses econômicos particulares, geram distorções e mudanças de hábitos que vão contra certos interesses públicos, cabe ao Estado empreender esforços em sentido contrário, considerando que ele também já atue na regulação desses empreendimentos privados, garantindo direitos constitucionais estabelecidos, evitando a discriminação de qualquer ordem e o preconceito nas suas diversas e nefastas manifestações. Estabelecer políticas públicas, projetos e iniciativas que fortaleçam os espaços públicos, como é o caso das praças, serve a esse propósito. A tecnologia pode ser uma importante aliada no resgate das praças públicas e na preservação das fontes históricas de água da cidade. Muito se tem falado do conceito de smart cities [cidades inteligentes], em que a tecnologia da informação e comunicação, associada ao sensoriamento eletrônico, pode gerar novas possibilidades de integração e potencialização dos serviços e espaços públicos e, assim, contribuir para cidades mais justas, eficientes e com maior qualidade de vida (Ibid.). Algumas iniciativas recentes da administração pública municipal já trazem inovação nesse sentido, como a implantação de infraestrutura para ciclistas, revisão dos limites de velocidade de veículos automotores, criação de mais faixas exclusivas para ônibus, privilegiando o transporte público, entre outras. Dentro dessa ótica, a temática do cuidado e da recuperação de nossas fontes torna-se relevante em um momento como este, em que passamos a perceber a importância de uma cidade para as pessoas, como destaca o arquiteto e urbanista Jan Gehl (2015): quando deparamos com a questão da água – que ora transborda e destrói, ora falta – e também quando percebemos que nada sabemos sobre os monumentos que estão ao redor de nossas fontes. A memória histórica parece perdida ou, no mínimo, confinada, pouco acessível.

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Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

O PROJETO FONTES DE SÃO PAULO E A PROPOSTA DE INTEGRAÇÃO DAS FONTES DE ÁGUA O Projeto Fontes de São Paulo é uma proposta de restauro, urbanismo e inserção urbana, cultural e social que envolve as históricas fontes de água da cidade de São Paulo. O trabalho foi iniciado em 2014 com a participação da Secretaria da Cultura, através do seu Departamento do Patrimônio Histórico (órgão responsável pela gestão e conservação dos monumentos históricos que estão sob responsabilidade do poder público municipal), membros da sociedade civil, o instituto São Paulo Media Lab e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) tem, entre outros, o papel de exercer a coordenação geral dessa empreitada, zelando pelos aspectos técnicos e metodológicos das futuras intervenções e criando articulações junto a outros setores e secretarias municipais e órgãos do Estado. É o principal agente viabilizador do projeto, dentro de sua atuação na Secretaria Municipal da Cultura. A PUC-SP contribuirá com o envolvimento de professores e alunos, que atuarão tanto no desenvolvimento de pesquisas multidisciplinares como na realização de atividades de extensão e educação. A PUC-SP sempre esteve na vanguarda do ensino e da pesquisa social no Brasil e foi uma das proponentes desse projeto, a partir da iniciativa de um grupo de alunos e professores interessados na reativação da fonte do Monumento a Carlos Gomes. O São Paulo Media Lab é um instituto que desenvolve projetos que integram arte, ciência e tecnologia. Os focos dos seus projetos são: a cultura, a educação, a cidadania e a qualidade de vida nas cidades (SÃO PAULO MEDIA LAB, [s. d.]). Entre outras atribuições, o São Paulo Media Lab se responsabilizará pelo gerenciamento do Projeto Fontes de São Paulo, pela mobilização e integração de seus participantes e pela busca das soluções necessárias para que todos os princípios estabelecidos no projeto possam ser traduzidos em iniciativas e intervenções concretas. O projeto tem como objetivo final o restauro de 27 fontes, das quais dezoito são catalogadas, e envolve temas como a conservação desses monumentos históricos de São Paulo, a revitalização do espaço público e o 73

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resgate da memória. O projeto contempla ainda o envolvimento e a integração da população local residente e transitória do entorno desses monumentos, assim como iniciativas focadas na educação de jovens estudantes da rede pública, relacionadas a temas como patrimônio e meio ambiente. Entre outras estratégias, o projeto pretende se utilizar de tecnologias digitais como mecanismos de aproximação dos jovens com os monumentos e disseminação da história e memória da cidade. O projeto inclui, ainda, o desenvolvimento de um modelo de gestão do espaço público local, que contemple, de forma participativa, diversos atores, como o poder público municipal, associações de moradores, universidades, comerciantes e empresários, entre outros. Pretende-se, também, que o projeto contribua com ações específicas para a população desfavorecida que habita o entorno das fontes, dentro do contexto das políticas públicas de assistência social, de saúde e do trabalho e programas já existentes (PROJETO FONTES..., [s. d.]). A revitalização das fontes está intrinsecamente ligada à utilização plena do espaço público em que a fonte está inserida. Como já exposto, as fontes foram perdendo suas atribuições originais, tanto a função de abastecimento de água como a de espaço de encontro e convívio social. A revitalização das fontes passa, portanto, pela recuperação dessas funções. O Projeto Fontes de São Paulo propõe soluções para esses desafios. Com relação à função de fornecer água potável, respondendo à demanda do transeunte, do morador que vive no entorno, do visitante, poderiam ser instalados bebedouros públicos em seu entorno. Assim, mesmo que a água da fonte não seja potável, a dos bebedouros seria, atraindo as pessoas que utilizarão aquele espaço e aquele equipamento para saciar a sede. Intervenções urbanas de pequena monta podem recuperar ou potencializar as rotas de pedestres existentes, criar sinalização pública e indicativos de trajetos, tornando as fontes parte dos caminhos das pessoas. Investimentos em equipamentos locais, como bancos, coberturas, brinquedos públicos, estruturas para apresentações artísticas, entre outras possibilidades, incluindo a questão da arborização, da criação de jardins e canteiros, podem atrair e manter a presença da população, intensificando o uso do espaço público. A tecnologia, como já foi citado, pode ser uma importante aliada, tanto fornecendo informações através de totens ou

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painéis como gerando recursos interativos e lúdicos, que poderiam atrair especialmente os mais jovens. Outro potencial a ser explorado é o turístico. Monumentos e fontes são componentes importantes dos roteiros turísticos em diversos países, mas são pouco explorados na cidade de São Paulo. O desenvolvimento do potencial turístico passa pela construção de alguns pilares. O resgate da memória é um deles. As pessoas precisam conhecer a história, a importância, o significado do monumento para ter interesse e motivação para conhecê-lo. Isso demanda ações concretas de resgate de sua história e significação, bem como sua divulgação, seja através da disponibilização dessas informações junto ao próprio monumento, seja através do estímulo à pesquisa histórica. Tudo isso ainda pode ser complementado pela realização de eventos e seminários, publicação de livros, artigos, reportagens, vídeos e outros recursos, pela educação patrimonial, especialmente para jovens em idade escolar, com atividades e pesquisas complementares a seus currículos formais. Nesse caso, é um esforço de longo prazo, como plantar uma árvore: os frutos demorarão a brotar, mas serão contínuos. Outro aspecto a ser trabalhado para desenvolver o potencial turístico é a criação de roteiros atrativos e a articulação com os setores profissionais atuantes. Para tal, é necessário o desenvolvimento de material de apoio, físico ou eletrônico, e o envolvimento e capacitação de empresas e agentes que trabalham o turismo na cidade. Estratégias específicas devem ser desenvolvidas para atender e explorar as diferentes vertentes, como o turismo escolar, o espontâneo, o estrangeiro, o religioso e assim por diante. Uma das propostas do Projeto Fontes de São Paulo é criar o Roteiro das Fontes, desenvolvendo um projeto piloto que envolva algumas das principais fontes do centro de São Paulo: a Fonte dos Desejos, parte do Monumento à Carlos Gomes, junto ao Teatro Municipal, a Fonte Monumental na Praça Júlio Mesquita e a Fonte do Largo da Memória, que compõem com o Obelisco o conjunto arquitetônico daquele local (Ibid.).

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Figuras 7 e 8. Monumento a Carlos Gomes, próximo ao Teatro Municipal, São Paulo. Foto de 1985 (7) e de 2016 (8). Em trinta anos, notam-se a depredação, a pichação e os maus tratos ao bem público. Fontes: 7 – Jorge Hirata (1985). 8 – Daniela Mello (2016).

A pluralidade de um bem cultural já foi tratada por Toledo e por Meneses (1984) onde os monumentos históricos ligam-se fortemente à história do local, à identidade de quem vive o presente e à memória dos antepassados e interagem com o embelezamento e o cuidado com o meio ambiente. Somente assim os monumentos constroem a história, transformando-a por meio da cultura e do patrimônio artístico e arquitetônico em espaços públicos vivos. Além da história, ligam-se pelos monumentos a memória da cidade e do patrimônio. A memória está, sem dúvida, ligada ao patrimônio material, sólido, mas vive sobretudo no patrimônio imaterial. Nesse sentido, e no de integrar a cultura da cidade ao monumento histórico, o projeto propõe a criação de documentários, vídeos, intervenções artísticas e sociais que registrem o passado, tragam vida e uso das fontes de água e projetem um futuro de cuidado com o patrimônio e o meio ambiente, bem como o respeito a eles.

A CULTURA COMO RESGATE DO PATRIMÔNIO O Projeto Fontes de São Paulo inaugurou suas ações participando, com o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Secretaria da Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo, da organização do evento de comemoração do Bicentenário do Obelisco do Largo da Memória, em São Paulo. O obelisco, também conhecido como Pirâmide do Piques, é 76

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o monumento mais antigo da cidade e foi construído em 1814 pelo mestre de obras Vicente Gomes Pereira.

Figura 9. Largo da Memória, detalhe dos azulejos portugueses da fonte. Fonte: Projeto Fontes ([s. d.]).

Figura 10. Aquarela do Obelisco do Largo da Memória, também conhecido como Pirâmide do Piques, que completou duzentos anos em 2014. Fonte: Miguel Dutra (1847).

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O Largo da Memória fica próximo à Estação Anhangabaú do Metrô de São Paulo e abriga duas fontes de água. A comemoração do bicentenário do obelisco contou com uma intensa programação cultural, reunindo mais de cinquenta atividades culturais, entre danças, músicas, performances artísticas e exposições. Nesse período, fez-se também o restauro do Obelisco e, nos meses que se seguiram, o local não foi alvo de pichações (PROJETO FONTES..., [s. d.]). Com o passar do tempo, entretanto, o local voltou a ser frequentado por usuários de drogas e a sofrer com a ação de pichadores. A ação cultural alegrou, direcionou o olhar para o patrimônio e trouxe vida ao monumento. Mas mostrou que ações isoladas e descontínuas não são uma boa estratégia. Acreditamos que o olhar multifacetado sobre aspectos culturais, atrelado a ações sociais, de infraestrutura, segurança, iluminação, educação, incentivo turístico e, obviamente, à própria ativação das fontes, é necessário para que se consiga preservar esses monumentos. A experiência da realização do evento comemorativo do Bicentenário do Obelisco do Largo da Memória reforçou nossa crença de que a ação cultural estruturada e sistematizada pode ser transformadora e determinante para o resgate das fontes históricas de água da cidade de São Paulo. A arte, em suas diversas manifestações, tem o poder de atrair as pessoas. Poucas ações positivas conseguem interromper o percurso do indivíduo que caminha apressado, do jovem que anda distraído, do comerciante atarefado, da família que pouco lazer pratica. As ações artísticas e culturais, se inseridas em uma agenda adequada, democrática, permanente e bem divulgada, podem contribuir de forma significativa para reativar uma das funções vitais das fontes históricas: servir de espaço público de convívio. A definição de uma programação cultural deve atender a determinadas premissas: privilegiar o artista popular, os grupos de oficina, os artistas amadores, contemplar a vocação cultural da região e dos grupos que a habitam, agregar as diferentes manifestações da arte, seja a música, o teatro, o artesanato, a performance, as artes plásticas, a fotografia, o vídeo, o cinema, o folclore, entre outras. Deve, ainda, ser efetivada de maneira programada, contínua, participativa, ouvindo os grupos e instituições locais em sua definição, mas também agregando a visão de especialistas, de forma a compor um painel rico e multicultural, que resgate, mas que acresça. 78

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

Para ser efetivada, a ação deve constar no orçamento público, ser regulamentada e compor as atribuições regulares dos órgãos pertinentes envolvidos. Também deve ser estruturado seu processo de divulgação, articulando-a com o calendário regular de festejos culturais, cívicos e religiosos da cidade. A ação precisa ser criativa e utilizar múltiplos canais, inclusive os digitais. Ela tem de ser pensada nas dimensões macro (a cidade) e micro (a região e o bairro). Um elemento importante para essa construção é a escola pública, que deve ser entendida como a grande fonte capaz de gerar a transformação, de formar cidadãos com educação patrimonial, que têm um entendimento do passado histórico e sua significação, que respeitem os monumentos construídos por sua civilização ao longo dos anos e que ajudem a preservá-los.

Figura 11. Orquestra na rua, uma das atividades culturais realizadas na Fonte do Largo da Memória, em São Paulo. Fonte: Arquivo pessoal dos autores (2014).

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Figura 12. Fonte do Largo da Memória, dois anos depois da iniciativa cultural, novas pichações. Fonte: Daniela Mello (2016).

Toda intervenção no âmbito do Projeto Fontes de São Paulo tem de ser pensada de maneira ampla, de modo a servir a propósitos que não sejam apenas os óbvios e diretos. Deve submeter-se aos princípios estabelecidos pelo projeto: envolvimento com diversos grupos locais, fortalecimento e resgate da cidadania, preservação ambiental, incentivo à consciência sobre o uso racional da água, educação patrimonial, resgate e reinserção de pessoas em situação de vulnerabilidade e recuperação da memória histórica do monumento e da cidade. Sem dúvida, também é necessário seguir as linhas de restauro para as fontes e monumentos que a cercam, passando por métodos que assegurem a compatibilidade de materiais e técnicas, a mínima intervenção, a distinguibilidade das épocas, a reversibilidade e a possibilidade de expressão do contemporâneo. Mas é preciso ir além: criar mais áreas verdes em seu entorno, estimular estabelecimentos comerciais de acordo com o ambiente e integrar todo o local ao redor da fonte histórica a ela. Deve-se redesenhar calçadas e ciclovias que levem às fontes, refazer a sinalização urbana, para que as pessoas possam contemplar a água, e criar políticas públicas decisivas na educação, valorização e gestão patrimoniais (CARTA DE CRACÓVIA, 2000).

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As fontes de água atraem os turistas, valorizam o microclima urbano, amenizando o calor do asfalto e cimento denso, e trazem a arte e a música a nossos olhos e ouvidos. Estudos sonoros mostram que os jatos de água, quando ascendentes e suaves, podem amenizar e neutralizar o ruído das cidades (LONGFELLOW, 2014).

O LÚDICO E A TECNOLOGIA AJUDANDO NO CONVÍVIO COM AS FONTES DE ÁGUA As mudanças são efetivadas por pessoas e, para isso, além do poder público, acreditamos que é necessário que o cidadão comum tome para si as fontes de água como um bem cultural, artístico, ambiental, arquitetônico e histórico. Ações que envolvam interações com o monumento, diversão e tecnologia são um caminho a ser seguido. Ao adicionarmos o aspecto lúdico ao monumento, tornamos a história e o patrimônio acessíveis, ainda mais se essas iniciativas incluírem o uso de dispositivos móveis e redes sociais. Nova York, uma cidade cercada de água salgada, desde cedo teve que se preocupar com seus recursos de água doce. Atualmente, a cidade conta com inúmeras fontes de água – que jorram, aspergem ou fazem saltar águas –, antigas e modernas, como a fonte onde as águas dançam sobre constelações, no Museu de Arte Natural. O que impressiona são as possibilidades de interatividade e acessibilidade para crianças e adultos que podem se refrescar, se reunir, escutar músicas, onde há o encontro da vida com a arte e a ciência diluídos em jatos de água (STEWART, 2000). Mesmo as fontes guarnecidas com mecanismos que controlam o ritmo de aspersão da água, as chamadas fontes de águas dançantes, constituem interessante opção para atrair os olhares e a presença do público. Temos exemplos diversos, mesmo na cidade de São Paulo, como as fontes do Parque do Ibirapuera. Outras cidades brasileiras, como Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, e Campinas, no estado de São Paulo, também utilizam esse recurso.

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Figura 13. Chafariz do Parque do Ibirapuera, águas dançam ao som de música. Fonte: Johannis Mihail Mouda (2008).

O Projeto Fontes de São Paulo prevê, sob a perspectiva de utilização da tecnologia como recurso interativo e potencializador, o uso de identificação no local do monumento que permita acesso à informação histórica da fonte, assim como a criação de aplicativos e jogos que mobilizem especialmente o público jovem a visitar os monumentos e até mesmo a depositar sua história na memória das fontes, registrando a experiência individual e, quem sabe, escrevendo novas histórias urbanas.

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Parte 1

Aplicativo de visita a espaço museológico cemiterial: tecnologia em prol da educação e cultura Roberto Sanches Padula1 Maria Amelia Jundurian Corá2

INTRODUÇÃO No amplo e complexo espectro de instituições que atuam com funções educativas, os museus vêm se destacando como provedores de cultura e informação. Eles nasceram para cuidar de coleções e fazer exposições sobre o passado, mas cada vez mais se tornaram espaços informacionais, voltados à educação e focados na melhoria da experiência de visita a suas exposições, principalmente no que diz respeito aos visitantes oriundos de escolas. O papel educativo dos museus vem aumentando em todo o mundo nas últimas décadas. Essas instituições têm criado uma extensa gama de serviços para o público, variando de palestras, visitas guiadas, programas escolares, serviços e cursos continuados, todos indo além do mero entretenimento e visando à aprendizagem de livre escolha e à modelagem das identidades culturais (XANTHOUDAKI, 2002). Os cemitérios, principalmente os mais antigos e históricos, também podem ser considerados museus de patrimônio cultural, uma vez que são plenos de valores ligados aos bens materiais e aos bens imateriais que representam. Em razão disso, alguns cemitérios acabam perdendo a 1 Doutor em Tecnologia e mestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e engenheiro mecânico pelo Centro Universitário FEI de São Bernardo do Campo (FEI-SBC), professor do Departamento de Administração da PUC-SP. 2 Bacharel e mestre em Administração, doutora em Ciências Sociais e professora do Departamento de Administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

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Aplicativo de visita a espaço museológico cemiterial

característica de locais de tristeza e luto e passam a ser verdadeiros lugares de memória (NORA, 1993). Cemitérios como Père-Lachaise, em Paris, recebem milhões de visitantes por ano por conta do alto número de personalidades sepultadas em seu terreno, como, por exemplo, o escritor irlandês Oscar Wilde, o pintor italiano Amadeo Modigliani e o cantor norte-americano Jim Morrison, entrando no roteiro turístico e sendo reconhecido por seu caráter histórico e artístico. Na América do Sul, a prática de utilizar cemitérios como espaços culturais já existe em diversos locais, como no Cemitério Museu São Pedro de Medellin, na Colômbia, primeiro a ser considerado museu na América do Sul; no Cemitério Presbítero Maestro, em Lima, no Peru; e, claro, o famoso Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, na Argentina. Nesses cemitérios ações educativas e culturais, como visitas monitoradas e outros eventos são constantes e bastante organizadas. Em São Paulo, o Cemitério da Consolação é local de sepultamento de diversas personalidades históricas, sejam políticos, artistas, industriais e ou outros tantos, além de abrigar centenas de obras de arte tumular. Sendo o acesso à cultura foco de atenção da gestão de um espaço museológico, suas ações não devem ficar limitadas ao espaço físico ocupado pelo museu ou por suas obras, uma vez que as possibilidades colocadas pela tecnologia da informação permitem um maior alcance por conta da virtualização do museu. De acordo com Cremers (2002), o uso de tecnologias digitais promete ser uma ótima solução para os museus. Os diversos tipos de estratégias dessas instituições e o fascínio da tecnologia, aliados ao costume que as pessoas adquiriram de estar sempre com seus equipamentos digitais móveis, trazem diversas possibilidades que podem contribuir significativamente para a transformação do ensino e consequente melhora do aprendizado.

EDUCAÇÃO EM MUSEUS Os propósitos do museu, segundo o International Council of Museums (ICOM) (2014), são a educação, o estudo e a diversão. A educação em museus é uma disciplina baseada nos campos da Pedagogia, 86

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

Psicologia, Sociologia, Museologia e Comunicação, que vai além da transmissão linear de conhecimento e da didática, em prol de um aprendizado interativo e orientado ao visitante (XANTHOUDAKI, 2002). A missão dos museus foi tradicionalmente definida por sua função, e não por sua proposta, que é relacionada à intenção, focada externamente, de forma a servir à sociedade e a seu desenvolvimento através da educação e do lazer. O aumento e a conservação das coleções, sua interpretação e exibição ao público estão entre os objetivos históricos da maior parte dos museus, entendendo que a própria coleção é um bem para a sociedade atual e suas gerações futuras. Weber (2002) pontua que os objetos expostos são a principal razão de visitas a um museu; esses objetos “são depósitos de conhecimento, com informações sobre fenômenos artísticos ou científicos e encarnam uma herança cultural”. Como entidade, o museu é uma criação do Iluminismo, que imaginava um modelo de conhecimento possível em qualquer momento e em qualquer lugar. O museu modernista se moldou para ser mais enciclopédico, uma forma de arquivo universal cujo conteúdo seria transmitido a partir de uma fonte detentora do conhecimento para um receptor leigo, desinformado. No entanto, seguindo as teorias construtivistas, que valorizam a interpretação dos visitantes, os gestores de museus vêm abandonando a metanarrativa modernista para dar lugar a um modelo de múltiplas e diferentes narrativas, com aplicações mais interativas e processos de aprendizagem personalizados (GIACCARDI, 2004). O aumento e conservação das coleções, sua interpretação e exibição ao público estão entre os objetivos comuns, e históricos, da maior parte dos museus, entendendo que a própria coleção é um bem para a sociedade atual e suas gerações futuras. No entanto, a coleção e as ações relativas a ela interessam a grande parte da sociedade, e, por isso, programas democráticos, que visam à diversidade cultural, têm sido cada vez mais desenvolvidos pelos museus. A intenção dos museus, com isso, é aumentar o nível de entendimento público, elevar o espírito do visitante, refinar e desenvolver o gosto popular. A experiência museológica está relacionada à esfera do simbólico e a uma necessidade fundamentalmente humana e universal de preservação e transmissão de valores para gerações futuras (LOUREIRO, 2004b). Essas condições são estéticas ou subjetivas, de forma que o sentido social de um museu nem sempre é bem determinado (McLEAN, 1997). 87

Aplicativo de visita a espaço museológico cemiterial

O momento é de museus participativos, com ambiente dessacralizado e contextualizado, de forma que o objeto cultural seja proposto, e não imposto; um meio, e não um fim em si. As preocupações de caráter social devem fazer parte da agenda de um museu; os espaços e coleções deixam de ser o ponto mais importante, e o público passa a ser o foco do processo museológico, visto que qualquer objeto de arte só tem valor precisamente porque foi construído pelo homem e para o homem. Qualquer bem cultural deve servir ao uso social e não somente à decoração (ARAÚJO, 2004).

CEMITÉRIOS MUSEOLÓGICOS A preocupação, a necessidade e o interesse na criação e implementação de políticas públicas para uma melhor gestão das cidades, entre outros objetivos, serviram também para a preservação de bens públicos, entre os quais se destacam os espaços cemiteriais, onde se encontra um rico patrimônio cultural. Esses referidos espaços são verdadeiros locais de exposição de obras de arte a céu aberto, e em nada perdem em valor e importância no registro da história da cidade, podendo ser considerados como autênticos lugares da memória (NORA, 1993). A “musealização” de cemitérios se tornou um tema bastante abordado pela museologia e é fundamental para a preservação dos cemitérios históricos, que, além dos túmulos de pessoas importantes para a construção da história de um povo, abrigam arte tumular de escultores consagrados. Além disso, transformar um cemitério em um local a serviço da comunidade resulta na recuperação de sua importância social e possibilita pesquisas nos diversos campos em que pode ser útil através das investigações etnológicas, econômicas, sociais e artísticas. Vovelle (1993) aponta que o lugar dos mortos se modificou significativamente no decorrer dos tempos, sendo que foi no século XIX que os cemitérios assumiram importância no imaginário arquitetônico, fazendo surgir os grandes projetos de cemitérios urbanos, como são conhecidos hoje. Segundo o autor, os cemitérios são espaços de repouso repletos de monumentos aptos a acolher todas as homenagens da memória familiar e do respeito cívico. Os cemitérios repetem os elementos arquitetônicos e paisagísticos presentes nas cidades e são locais onde se reproduz, de fato ou 88

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

de forma idealizada, a ordem socioeconômica dos vivos (RAGON, 1981). Para Carrasco e Nappi (2009), por sua vez, os cemitérios trazem três importantes valores patrimoniais relacionados aos bens materiais: aqueles de caráter ambiental/urbano, artístico e histórico. A história do Cemitério da Consolação, em São Paulo, teve início em 1829, quando o vereador Joaquim Antônio Alves Alvim intercedeu pela construção de um cemitério público. A tradição de sepultamento dentro das igrejas estava sendo criticada por higienistas, que afirmavam ser essa prática um mal à saúde pública, pois os restos mortais eram constantemente manipulados para abrir espaço para novos sepultamentos e causavam várias epidemias. Porém, a questão da mudança do local dos sepultamentos foi tão polêmica que, passados trinta anos, a proposta de Alvim ainda não havia se concretizado (MARTINS J., 2008). Em 1855, os altos da Consolação foram escolhidos para a construção do primeiro cemitério público da cidade de São Paulo. Além da elevada altitude do local e a direção dos ventos, levou-se em conta a grande distância do restante da cidade. Em 15 de agosto de 1858 foi inaugurado o Cemitério da Consolação que, até 1893, foi o único cemitério da cidade e, ao longo dos anos, teve que passar por diversas mudanças em termos de espaço para atender à população (Ibid.). O Cemitério da Consolação possui hoje uma vasta área verde em meio ao tumulto da Rua da Consolação, e nele o visitante depara com túmulos simples, pouco ornamentados, mas que abrigam os restos mortais de personalidades como Monteiro Lobato, Tarsila do Amaral, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Marquesa de Santos, Luiz Gama e tantos outros. Ali também se encontram grandiosas obras de arte tumulares feitas por escultores renomados, como Victor Brecheret, Galileo Emendabili e Bruno Giorgi, encomendadas pelas famílias mais poderosas da cidade. Com a expectativa de estender sua posição social para além da vida, essas famílias investiam em verdadeiros monumentos cemiteriais (OSMAN; RIBEIRO, 2007). Um exemplo bem representativo dessa ideia, no Cemitério da Consolação, é o imenso mausoléu da família Matarazzo, localizado próximo à entrada da Rua Mato Grosso e considerado o maior da América Latina. Obra de Luigi Brizzolara, o monumento equivale a um prédio de três andares e possui um rico conjunto de esculturas em bronze. 89

Aplicativo de visita a espaço museológico cemiterial

Santana (2016) diz que “os cemitérios apresentam um grande potencial como instituições de difusão cultural e educacional e como abrigo de bens de valor histórico-documental e artístico”. A autora ressalta que desde a década de 1930 o órgão federal de proteção do patrimônio cultural – o Iphan – vem realizando o tombamento de cemitérios ou elementos de cemitérios por conta da relevância arquitetônica, histórica, bem como o aspecto paisagístico. Um processo de tombamento no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat, órgão estadual) teve início em 1969, mas foi efetivado somente em 2005, tombando os cemitérios Consolação, o dos Protestantes e o da Ordem Terceira do Carmo. Em 2014 foi publicada no Diário Oficial do poder executivo uma nova Resolução, dessa vez com uma relação atualizada e mais completa dos túmulos tombados. Essa nova resolução foi lançada levando em consideração a necessidade de se definirem adequadamente os elementos tombados no Cemitério da Consolação. Em 1986, o então prefeito da cidade de São Paulo, Jânio Quadros, publicou um decreto para identificar os jazigos em que repousam os despojos de pessoas que serviram à Pátria de maneira relevante e propor a correspondente declaração de valor histórico. Dessa forma, a prefeitura tem que conservar esses jazigos, quando em abandono, e providenciar para que possam ser lidos nas lápides os nomes, títulos, data de nascimento e de falecimento dessas pessoas, bem como cuidar da limpeza dos túmulos e jardins construídos pelo poder público em honra à memória de pessoas ilustres.

MUSEU INFORMACIONAL Em termos de acesso à cultura, pode-se dizer que os museus tradicionais são instituições passivas, que esperam ser visitadas, que não vão ao encontro de seu público. E, em termos de acesso a seu conteúdo/coleção, pode-se afirmar também que o fato de se localizarem em um espaço físico literalmente dificulta o acesso, em uma época em que tudo está se tornando virtual (LOUREIRO, 2004b). “Acesso” pode ser entendido como democratização, que, no caso de museus, significa abrir suas portas para o público e revelar sua coleção. A democracia também pode ser entendida como a possibilidade de o público, ou sua necessidade, determinar os objetivos do museu (McLEAN, 1997). 90

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

Prover informação, atualmente, pode ser considerado uma das funções primordiais do museu. Os objetivos dessas instituições eram mais centrados em suas coleções, no que tange à aquisição, conservação e exposição de objetos. Agora, em vez de nestes, a ênfase é colocada principalmente na informação. Caiu o mito de que o objeto fala por si, pois entende-se que o significado de um objeto é apreendido e estabelecido conforme o contexto; os visitantes veem a informação como algo importante para apreciação de objetos expostos (SCHWEIBENZ, 1998). O foco dos museus mudou de conhecimento para significado dos objetos, de forma que os visitantes consigam construir um significado a partir dos objetos, ao contrário de colocar o foco no objeto como um fim em si (PIERROUX, 1998). O direcionamento que está sendo dado ao museu como fornecedor de informação acaba por alterar a forma de se entender essa instituição, que tende a ser cada vez mais interativa, focando sua habilidade de prover recursos para os usuários, e não mais comprando e mantendo obras originais (Ibid.). Como aparatos informacionais, os museus produzem e processam informações extraídas dos itens de suas coleções de modo a gerar novas informações (LOUREIRO, 2004b). Como são grandes as carências culturais da sociedade, aumentam as demandas para ampliarem-se índices de visitação e também para incluir público – para possibilitar a esse público o acesso à cultura –, pois sabe-se que grande parcela da população não se interessa por museus, que ainda não são vistos pela comunidade como instituições absolutamente necessárias. Esse é um motivo para os museus rediscutirem suas funções e se aproximarem de seu mercado (Id., 2004a). O mercado aqui é visto no sentido dado pelo marketing, no qual o público seria os consumidores ou clientes, a parcela da população que tem que ser atendida em suas necessidades sociais e culturais. Para receber os visitantes com suas diferentes expectativas, o museu tem a função de fazer, segundo Martins M. (2008), a mediação cultural com o público, que “envolve o informar, o fazer perceber o que poderíamos chamar de ‘códigos cultos’, mas por outras vias”, trazendo uma experiência estética e estésica. A autora, citando Dewey (1974), observa que a experiência só se torna “estética” quando envolve a cognição, o afeto e a vida, e “estésica” quando permite ao visitante dialogar com a obra, quando o tira da 91

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anestesia, mexendo com o corpo e a sensibilidade. A mediação é, nesse sentido, uma estratégia de comunicação com caráter educativo, contemplando as intervenções no contexto “museal”, visando a estabelecer contato entre os objetos expostos e os conhecimentos que deles advêm (DESVALLÉES; MAIRESSE; INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS, 2010). Um dos pontos mais importantes para engrandecer a experiência da visita é a existência de informações sobre os objetos expostos. Se o visitante sabe algo sobre o objeto que está sendo observado, uns poucos dados serão suficientes para complementar o conhecimento e estimular o intelecto. Se o visitante não tiver nenhum conhecimento sobre o objeto, qualquer informação será bem-vinda para esclarecer o porquê de aquele objeto estar exposto. Sem informações, tudo será tratado como mera diversão, de forma que a visita acabará sendo muito menos atrativa do que poderia ser se se juntasse a isso o lado educacional. Isso é válido em especial para museus de arte, embora também o seja para outros tipos de museus. A obra de arte é menos decifrável que, por exemplo, objetos históricos; sem informações, para um leigo, a obra de arte pode ter somente um valor estético, o que pode ser questionável fora do contexto. Vários autores enfatizam que os museus deveriam dar mais atenção à informação que aos objetos, pois a comunicação é a chave para o entendimento dos objetos do museu. Se o visitante tiver informações antes da visita, sua avaliação corresponderá melhor à expectativa criada anteriormente, quando a visita foi planejada (SCHWEIBENZ, 1998).

TECNOLOGIA PARA APOIO A VISITANTES Os museus entendem a importância do visitante e criam formas de comunicação cada vez mais complexas para facilitar a apreensão das informações e colaborar com a interpretação, desenvolvendo uma mediação facilitadora entre públicos e saber. A interatividade é uma das melhores formas de colocar os objetos a serviço da ideia por trás da exposição e estabelecer uma comunicação com o saber. Por suas características lúdicas, ao mesmo tempo informa e entretém. É uma pedagogia não diretiva que oferece ao visitante a oportunidade de participar de processos de demonstração ou de aquisição de informações, ampliando seus conhecimentos. Nesse sentido, empregam-se várias técnicas de comunicação, entre elas aparatos 92

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

de tecnologia da informação, visando a tornar as práticas sociais mais atrativas e motivando o visitante enquanto transmite informações (VALENTE; CAZELLI; ALVES, 2005). O crescimento e o aperfeiçoamento do ciberespaço trazem uma maior conexão da humanidade consigo mesma, diminuindo a classe de excluídos e aumentando o acesso das pessoas, cuja utilização pode ser passiva e unidirecional ou dialógica e interativa (LÉVY, 1998). Os museus são naturalmente estabelecimentos multimídia, que exploram outros meios de comunicação além da exposição dos objetos. Esses meios podem ser a fotografia, registros sonoros, filmes, reconstituições, demonstrações, atividades táteis, interpretação de costumes etc. Com isso, podem colocar os objetos em seu contexto para facilitar ao público entender sua função social e a importância e história dos objetos. As tecnologias digitais permitem a difusão em massa dessas informações, possibilitando que pessoas que nunca iriam a um museu possam desfrutar de seu conteúdo. Os museus, como instituições multimídias, não se caracterizam somente pelas exposições, mas também por elementos intangíveis, que são seus métodos, ideias, ações (ALSFORD; RABINOVITCH, 2003). O museu virtual, no sentido do uso da tecnologia da informação, provê ao curador e ao museólogo novas maneiras de expor o objeto, com o intuito de ativar mecanismos emocionais, outras formas de referenciar o objeto, conseguindo gerar uma nova cadeia de conhecimento. A tecnologia da informação pode ajudar o museu a criar novas formas comunicativas e epistemológicas de relacionamento, criando uma nova forma de museu (GIACCARDI, 2004). A visita virtual via um website ou aplicativo de museu tem que ser preparada levando em consideração alguns pontos referidos à visita presencial – devidamente adaptados – e diversos outros próprios ao espaço virtual. A experiência do visitante do museu pode ser uma mistura de visita presencial com virtual, cada qual servindo para suprir necessidades e desejos diferentes, com suas vantagens e desvantagens. Mas no sentido tradicional, a exposição da obra de arte é o que levaria uma pessoa ao museu, por conta do sentimento de estar na presença de algo autêntico e único, o que se perde no mundo virtual. A tecnologia digital, por sua vez, é utilizada pelos museus como parte das estratégias tanto de comunicação como educacional, de forma a dar suporte aos educadores e visitantes na construção de significado por 93

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meio da cultura (CHRYSSOULAKI; BOUNIA; ANDRIOPOULOU, 2012). Os museus tradicionalmente tinham funções científicas e educativas, inicialmente inseparáveis, mas que posteriormente se divorciaram e estão sendo reunidas pelas tecnologias digitais (HAWKEY, 2004). Um exemplo de uso da tecnologia interativa é o apoio de um dispositivo digital, como uma tela de computador fixa, perto do objeto exposto, ou equipamentos portáteis, que trazem informações sobre o que está sendo observado. Podem-se citar dois exemplos. No primeiro, o visitante contemplando uma obra de arte somente com as informações em uma pequena plaqueta ao lado. As principais informações são o nome do autor, a data, o título e os materiais ou técnica empregados na obra. Com esses dados, ele tentará se lembrar de outras obras do autor ou de contemporâneos deste, e, no caso de uma obra abstrata, o título pode auxiliar no entendimento de qual era a motivação do autor. Se conseguir fazer alguma ou algumas relações, ele se sentirá mais confortável em relação ao que está sendo contemplado. A obra deixou de ser algo somente bela, feia, interessante, sem graça, ou qualquer outro comentário vazio de conteúdo. A plaqueta também pode ter um pequeno texto que auxilie nas contextualizações ou explicações, potencializando o entendimento da obra. No segundo exemplo, o visitante depara com esses dados em um aparato digital interativo, com navegação não linear, no qual ele terá, conforme sua curiosidade e as possibilidades da interface, acesso a muito mais informações. Essa interface deve ser desenhada de forma a estimular o interesse pelo saber, mas que não interfira muito no percurso do visitante. A tecnologia digital possibilita várias formas de navegação, e o visitante pode escolher aquela mais adequada para suprir sua curiosidade sobre o objeto. Esse tipo de interatividade. É uma via de mão dupla: o objeto faz que se procure mais informações e, à medida que se conhece mais sobre ele, mais se quer contemplá-lo para se conseguir fazer ou visualizar as relações disponibilizadas como material de apoio. Aparatos com boa interface motivam os visitantes a explorar o acesso a outras informações relevantes para a visita. Registre-se que ele não deve gastar mais tempo com o aparato do que com a contemplação dos objetos. As pessoas que estão no espaço físico do museu costumam buscar o auxílio de seus smartphones ou tablets durante as visitas. Essa prática 94

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é conhecida como “traga seu próprio equipamento” – bring your own device (BYOD), termo cunhado em 2009 pela Intel, fabricante de processadores de computador, ao notar que vários funcionários usavam seus próprios aparelhos, e não os fornecidos pela empresa, para trabalhar. Para os museus, essa prática é de grande valia, pois eles não precisam mais investir em compra de equipamentos para empréstimo ou aluguel aos visitantes, além de se beneficiarem da facilidade de instalação de apps (aplicativos para smartphone ou tablet), que podem enriquecer a experiência da visita, conectando educação e interpretação dentro ou fora do museu. Além disso, esses equipamentos podem tirar fotos ou gravar vídeos que são imediatamente postados nas redes sociais, trazendo visibilidade para as ações do museu. Cada vez mais, as pessoas querem estar conectadas em suas redes sociais o tempo todo e em qualquer lugar (JOHNSON; BECKER; FREEMAN, 2013). Serviços baseados em localização (location based services) são uma outra tecnologia que pode ser utilizada nesses equipamentos móveis para definir a posição exata em que a pessoa se encontra, mesmo em ambientes fechados. A tecnologia é ativada por pontos de acesso Wi-Fi, GPS ou etiquetas RFID, e é capaz de fornecer informações atualizadas sobre o que está relacionado com determinado local. Essas tecnologias podem auxiliar a guiar os visitantes através de um espaço, direcionando-os para exposições ou objetos que correspondam a suas preferências, ou sugerindo rotas e outros recursos digitais. Os museus e programadores estão descobrindo que os serviços baseados em localização no espaço do museu podem agilizar a experiência cultural de um visitante, de maneiras memoráveis e significativas (Ibid.). Os autores afirmam que esses dispositivos aumentam consideravelmente o engajamento do visitante com a exposição, sendo muito mais eficazes que outras formas de apresentar informações sobre o objeto, e aumentam também o conhecimento e entendimento adquiridos, desafiando e estimulando os visitantes.

CONSTRUÇÃO DE APLICATIVO PARA CELULAR PARA VISITAS AUTOGUIADAS NO CEMITÉRIO DA CONSOLAÇÃO Museus entendem que prover informações sobre sua coleção é uma das melhores estratégias para melhorar a experiência dos visitantes. 95

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Nas exposições, é importante haver elementos que possam auxiliar o público a compreender os significados contidos em cada obra, sejam folhetos, catálogos, equipamentos para consulta etc. No museu, objetos científicos, históricos ou artísticos, sejam autênticos ou não, estão isolados de seu ambiente original e, por isso, necessitam de explicações para serem compreendidos pelos visitantes quanto a sua história, seu significado e seu contexto. No caso específico de um cemitério, a “exposição”, em um ambiente aberto, é de jazigos que têm uma obra de arte tumular e/ou uma personalidade ilustre ali sepultada. Assim como em um museu histórico, os objetos estão deslocados de seu contexto original: o jazigo traz a memória da personalidade sepultada, mas não sua história. Uma analogia feita por Cremers (2002, tradução nossa) exemplifica isso: “você pode expor uma colher, mas não a refeição; pode mostrar cartas de jogo, mas não um jogo de cartas”. O instrumento mais utilizado para apresentar essas explicações é o texto, que, de acordo com o mesmo autor, pode apresentar vários problemas, como o uso da linguagem erudita, a visão do autor ou do curador e a localização inapropriada. Estudos indicam que pouco mais da metade dos textos são lidos e menos ainda são memorizados. O autor ainda lembra que, se o texto for lido integralmente, o visitante gasta mais tempo na leitura do que observando o objeto. Em cemitérios, há algumas dificuldades adicionais para a inserção de textos em cada jazigo importante: diferentemente de objetos expostos em uma sala de museu, os jazigos não podem ser rearranjados no espaço e, muitas vezes, não há um bom local para uma placa com texto. Além disso, por ser um espaço aberto, pode haver problemas de iluminação ou com intempéries, o que impossibilita a instalação de equipamentos eletrônicos. Outra forma de prover informações ao visitante é por meio de fôlderes ou catálogos impressos. Esse é um instrumento sempre útil, que pode ser levado pelo visitante como um material de pesquisa ou suvenir. O Cemitério da Consolação já tinha à disposição dos visitantes um fôlder, mas com uma limitação de espaço que restringiu o conteúdo a umas poucas informações sobre oitenta túmulos, dos aproximadamente 6,2 mil existentes. O mapa que consta no fôlder é uma planta estilizada das quadras 96

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e ruas do local. No entanto, há muito mais ruas e quadras do que as que aparecem no fôlder e, como o cemitério foi crescendo ao longo do tempo, a numeração das ruas, quadras e terrenos nem sempre segue uma lógica clara, tornando a procura por um túmulo uma tarefa bastante complicada. Para atender aos pontos aqui colocados, visando a auxiliar os visitantes, foi desenvolvido um aplicativo para celular, no âmbito do convênio celebrado entre o Serviço Funerário do Município de São Paulo e a Fundação São Paulo, mantenedora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) para a realização de um projeto de pesquisa e extensão que tem por objetivo a inovação do modelo de gestão e atendimento do Serviço Funerário, bem como o levantamento e diagnóstico do acervo de arte tumular do Cemitério da Consolação, visando também à promoção de projeto científico e cultural que envolva a gestão participativa com a valorização de exemplares originais do patrimônio tumular e a preservação e divulgação da memória da cidade. Esse projeto recebeu o nome Memória & Vida. O processo de desenvolvimento se efetivou com as seguintes etapas executadas: • Catalogação dos túmulos de interesse histórico ou artístico; • Roteiros de visitas autoguiadas; • Pesquisa bibliográfica sobre personalidades ilustres e/ou autores das obras de arte tumular; • Fotografias dos jazigos; • Geolocalização dos túmulos; • Arquitetura de informações e modelagem de dados; • Escolha da tecnologia do aplicativo; • Construção e teste do aplicativo.

Catalogação O bem mais precioso de um museu é seu acervo. Para que o Cemitério da Consolação se torne um espaço museológico, começamos o estudo pelas sepulturas tombadas pelo poder público. O trabalho de catalogação é de extrema importância para que a instituição conheça melhor seu acervo e mantenha-o devidamente documentado e disponível para consulta dos pesquisadores interessados. No entanto, é uma 97

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atividade que necessita ser constantemente trabalhada para que nenhum dado fique desatualizado. Para elaboração de uma planilha de catalogação dos túmulos do Cemitério da Consolação, foram utilizadas como base as informações encontradas na publicação de 2014 do Condephaat – órgão do governo estadual responsável pela preservação de bens históricos – referente ao tombamento de jazigos com valor artístico (arte tumular) e o levantamento de personalidades feito pela comissão selecionada a partir do Decreto nº 22.593/1986 na gestão do então prefeito da cidade de São Paulo, Jânio Quadros. Além dos jazigos apresentados por essas duas fontes, os ditos “Santos Populares” e “Pessoas Ilustres” encontrados no Cemitério da Consolação também foram catalogados. Entende-se por “Pessoas Ilustres” aquelas que tiveram relevância, tanto artística como histórica, mas que não foram contempladas pelo tombamento do Condephaat e nem pelo decreto de 1986, além de pessoas com histórias singulares, normalmente ligadas à da cidade de São Paulo. “Santos Populares” são pessoas cujos túmulos, por conta de sua história pessoal ou mesmo por acasos após sua morte, são alvo de peregrinação de pessoas em busca de obtenção de graças. Dos aproximadamente 6,2 mil túmulos, 308 foram considerados museologicamente importantes.

Verbetes Para personalidades históricas, pessoas ilustres ou santos populares foi feita pesquisa bibliográfica a partir de bancos de dados e sites de dados históricos disponíveis na internet. Optou-se por não fazer uma pesquisa acadêmica, de modo que os textos fossem curtos e objetivos, para todos os tipos de público. Esses verbetes, com até trezentas palavras cada, são disponibilizados para o usuário do aplicativo. A partir do texto, foram escolhidas palavras-chave (tags) que servem para facilitar as buscas feitas pelos usuários do site ou do aplicativo. Adotou-se como critério para definição das tags a utilização de palavras que caracterizem a personalidade e/ou obra tumular. Para as tags atribuídas às personalidades foram consideradas as atividades, ideologias, fatos históricos e instituições que tenham feito parte, de forma relevante, de sua 98

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história de vida. Com relação às obras tumulares, as palavras-chave selecionadas caracterizam o tipo de obra e o material empregado nos túmulos. É possível, dessa forma, filtrar, por exemplo, os poetas, músicos, jazigos com capelas ou mausoléus, obras em bronze etc.

Fotografias De todos os túmulos catalogados foram tiradas as seguintes fotos: • Frontal; • Diagonal; • Nome da família (quando há); • Nomes dos sepultados (quando há); • Detalhe do nome da personalidade (quando o túmulo estiver classificado como “Personalidade Histórica” ou “Pessoa Ilustre”); • Detalhes dos elementos artísticos (quando o túmulo estiver classificado como “Arte Tumular”). Para a primeira versão do aplicativo, definiu-se que só apareceria a foto frontal, que serve para ilustrar as informações do túmulo e também para facilitar sua localização pelo usuário. Dessa forma, o usuário não necessita de acesso à internet ou de Wi-Fi. As demais fotos ficam disponíveis no site do cemitério.

Geolocalização dos túmulos Foi desenvolvido um aplicativo para celular para uso dos pesquisadores que deram apoio ao desenvolvimento do aplicativo, o qual possibilitou obter-se a geolocalização de cada túmulo por meio do GPS do aparelho.

Curadoria para a construção de roteiros Os roteiros previstos foram desenhados de acordo com o que tanto visitantes espontâneos quanto acadêmicos entendem como mais importante. O roteiro “20 imperdíveis”, por exemplo, foi pensado basicamente para

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os visitantes com pouco conhecimento do local e do acervo lá existente, como os turistas. Roteiros de visitas autoguiadas: • 20 imperdíveis; • Arte tumular – escultores importantes; • Arte tumular – autor desconhecido; • Períodos arquitetônicos; • Modernistas; • Políticos – Império; • Políticos – República; • Industriais, cafeicultores e profissionais liberais; • Artistas, intelectuais, personalidades públicas; • Histórias urbanas. Os roteiros foram representados na planta do cemitério, permitindo a indicação exata de cada um dos túmulos catalogados, com identificação de longitude e latitude, o que possibilitou ao visitante fazer visitas autoguiadas de forma independente.

Arquitetura de informação e modelagem de dados Foram elaborados os seguintes cadastros: • Cadastro de terrenos; • Cadastro de concessionários; • Cadastro de sepultamentos; • Cadastro de jazigos. A partir desses cadastros, foi criado o banco de dados a ser usado no aplicativo, com os seguintes campos: • Número do registro de catalogação; • Classificação (personalidade ilustre/arte tumular); • Roteiros; • Campo de busca (número de registro, título, tags); • Tags; • Geolocalização;

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• • •

Título (família, artista); Personalidade (verbete, decreto municipal, arte tumular, artista, tombamento, rua/quadra, terreno); Imperdíveis (sim/não).

Foi decidido que haveria as seguintes formas de acessar informações: • Busca por nomes e palavras-chave; • Roteiros pré-definidos; • Localização.

Tecnologia do aplicativo As ideias são baseadas em tendências listadas pelo New Media Consortium (2016), que desenvolve pesquisas sobre tecnologias emergentes para educação e também para museus. Em uma era em que a informação é entregue a indivíduos com base em suas necessidades e comportamentos, a personalização está se tornando uma característica importante de experiências educacionais. As possibilidades de personalização têm se expandido com a definição de evolução dos museus, que agora engloba sua presença digital. Passeios padronizados se tornaram menos interessantes, uma vez que as pessoas querem experiências mais adequadas a seus próprios interesses. O museu deve elaborar estratégias para acessar os visitantes em suas zonas de conforto, não só para satisfazer as necessidades de informação, mas também incentivar a exploração e interpretação. Isso inclui também reconhecer os dispositivos que os visitantes trazem com eles (a estratégia BYOD). Aplicativos produzidos para museus podem, ainda, expandir a experiência do visitante, fornecendo materiais mais abrangentes e informações contextuais. Instrumentos com capacidade de geolocalização integrada no aplicativo possibilitam rastreamento e melhoram a experiência do usuário. Os museus podem aproveitar o potencial de localização inteligente para personalizar as experiências do visitante, aumentando seu valor educativo (FREEMAN et al., 2016). Como o cemitério é grande, com muitos túmulos e caminhos difíceis de encontrar, optamos por priorizar a geolocalização tanto do túmulo quanto do usuário.

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Aplicativo de visita a espaço museológico cemiterial

Exemplos de telas do aplicativo

Figura 1. Tela inicial.

Figura 2. Lista de roteiros.

Fonte: Autores.

Fonte: Autores.

Exemplos de telas do aplicativo

Figura 3. Lista de túmulos do roteiro.

Figura 4. Tela do túmulo selecionado.

Fonte: Autores.

Fonte: Autores.

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Exemplos de telas do aplicativo

Figura 5. Continuação da tela do túmulo selecionado.

Figura 6. Geolocalização do túmulo e do usuário.

Fonte: Autores.

Fonte: Autores.

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Disponibilização do aplicativo O aplicativo Guia Cemitério Consolação está disponível para download gratuito nas lojas de aplicativos para celulares Google Store e Apple Store.

ANÁLISES E CONSIDERAÇÕES O objetivo deste artigo é verificar qual a pertinência de haver um aplicativo para apoio a visitas autoguiadas no Cemitério da Consolação, visando ao aspecto educativo dos usuários. Cemitérios que abrigam túmulos de personalidades históricas ou obras de arte tumular são verdadeiros museus a céu aberto e, nessa condição, se prestam a uma função educativa. Nos museus, há tempos, esse é tido como seu principal objetivo, mais importante até que a conservação da coleção – jazigos, neste caso –, de forma que fornecer informações torna-se uma questão primordial. Analisando a função educativa de escolas e museus, Alderoqui (2011) diz que “tanto na escola como no museu se ensina, se mostra, se exibe, se comunica, se expõe, se conhece. Mas […] ambas instituições abrigam lógicas e atores diferentes”. A autora afirma que “não se pode esquecer que a visita ao museu pode constituir na possibilidade de abordar aqueles conteúdos que não formam parte do currículo, isto é, aqueles conteúdos que na escola não se ensinam, questões do extraordinário”. Os visitantes de museus foram classificados por Falk (2013) em cinco tipos: “exploradores”, pessoas que não têm um interesse específico, que esperam que a exposição tenha algo que lhes chame atenção e aumente seu conhecimento; “facilitadores”, pessoas que estão em um grupo e querem ajudar outras do grupo a ter uma boa experiência e um aprendizado no local, como, por exemplo, o pai de uma família; “profissionais ou colecionadores”, pessoas que têm uma forte ligação com o conteúdo do museu, seja por razões profissionais ou por hobby; “turistas”, pessoas que visitam o museu por considerá-lo importante; e “pesquisadores”, pessoas que procuram uma experiência contemplativa, espiritual ou restauradora, um refúgio das tarefas do dia a dia.

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A facilidade de encontrar informações faz que a experiência da visita seja muito mais rica para todos esses tipos de visitantes. Assim, a experiência pode se estender além do tempo de visitação, sendo registrada como um momento agradável e, principalmente, como conhecimento adquirido. Falk (1992) explica que a experiência da visita ao museu contempla “tudo o que acontece entre o primeiro momento em que a pessoa pensa em ir ao museu, a própria visita e o além da visita, quando a experiência do museu permanece apenas na memória”. Para um visitante espontâneo, ou seja, aquele que decidiu por conta própria ir a uma exposição que lhe interessa, a experiência da visita se inicia no momento em que a pessoa pensou em fazer um programa cultural, continua na visita propriamente dita e após, nas buscas posteriores de informações sobre os assuntos vistos, só terminando quando a visita sair da sua memória. Já em uma visita organizada por uma escola, a experiência prévia à visita é somente do professor, e os demais momentos se dão para ambos, o estudante/visitante e professor. Nesses contextos, verifica-se que o aplicativo cumpre sua função para os diversos tipos de público. Os roteiros previstos foram desenhados de acordo com o que tanto visitantes espontâneos quanto acadêmicos entendem como mais importante. O roteiro “20 imperdíveis”, por exemplo, foi pensado basicamente para os visitantes com pouco conhecimento do local e do acervo lá existente, como os turistas, por exemplo. As buscas por palavras-chave privilegiam interesses pessoais (“músicos”, “poetas”, “capelas” etc.) e se prestam a exploradores, facilitadores, profissionais e pesquisadores, assim como a busca por nome da personalidade sepultada ou do autor da obra de arte tumular. Para se verificar a efetiva eficácia do aplicativo, entendemos que novas pesquisas, com foco em entrevistas com usuários, são necessárias.

REFERÊNCIAS ALDEROQUI, S. La educación en los museos: de los objetos a los visitantes. 1. ed. Buenos Aires: Paidós, 2011. ALSFORD, S.; RABINOVITCH, V. Les Musées et internet: le point sur huit ans d’expérience canadienne. In: COLLOQUE MONDIAL DE L’ASSOCIATION INTERNATIONALE DES MUSEES D’HIS105

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Parte 1

Discutindo a morte na escola: o papel da literatura infantojuvenil – relato de experiência Ana Luiza Santos Galvão Bueno1

INTRODUÇÃO Quando Nasrudin morreu, ele viu à sua frente um imenso túnel completamente escuro. Neste momento, pensou consigo mesmo “Eu estou morto”. Foi andando bem devagar dentro do túnel, com todo o cuidado, e começou a repetir: – Céu, inferno, céu, inferno, deus, diabo, deus, diabo… Escutou então uma voz que lhe disse: – Cuidado! Não diga diabo! E Nasrudin prontamente respondeu: – Sinto muito, mas neste momento não posso fazer inimigos. (Conto da tradição Sufi) (GRILLO; GRILLO, 2014).

Quando mencionamos a morte em qualquer conversa, a maioria dos presentes costuma ficar incomodada, afinal esse não é um assunto que tende a ser popular, a não ser quando se trata de uma tragédia ou um fato televisionado. A morte não está, habitualmente, em nossas conversas do dia a dia, e de fato há uma propensão a evitar-se o tema tanto quanto possível, pois, em geral, cada pessoa tem uma história, uma dor, uma saudade, uma crença. Como lidar com a ebulição desse caldeirão de emoções que a morte nos proporciona? Como falar sobre esse assunto com uma criança? A proposta de falar sobre a morte com crianças surgiu do Projeto de Extensão Universitária Memória e Vida, parceria entre a PUC-SP e o Serviço Funerário do Município de São Paulo. Entre os objetivos do projeto estão: 1 Graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora do Projeto de Extensão Memória e Vida, em parceria com o Serviço Funerário do Município de São Paulo.

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Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

• Analisar e subsidiar a gestão e as formas de relacionamento entre o Serviço Funerário e a sociedade em prol da qualidade, humanização e aprimoramento desse serviço público; • Promover no Cemitério da Consolação um projeto que envolva a gestão participativa para valorizar os patrimônios tumulares e a preservação e divulgação da memória da cidade. Para atingir tais objetivos, foi realizada uma pesquisa sobre modelos adotados em departamentos educativos de museus para, a partir dela, montar-se um programa educativo para o Cemitério da Consolação. O cemitério, no entanto, não pode ser encarado como um museu no sentido tradicional, já que aqui, em vez de obras de arte ou antiguidades, o que emerge como tema central a ser trabalhado é… a morte. Nesse sentido, surgiu uma grande questão: a morte é discutida, estudada na escola? Segundo Kovács (2012, p. 72), Num mapeamento da literatura envolvendo o tema morte nas escolas, em livros, teses e artigos em periódicos sobre a questão da morte, verificamos que há poucos textos que a abordam em relação a educadores. Os poucos artigos que acessamos apontam para a falta de discussão sobre a questão da morte na escola.

Nesse artigo, Kovács cita ainda pesquisas feitas com educadores, as quais atestam que o assunto gera incômodo e não é discutido na escola. Observou-se que os educadores têm interpretações da morte distintas no âmbito profissional e pessoal, não reconhecem como sua tarefa o cuidado das crianças que vivenciam o luto, e também expressam a dificuldade em conjugar atividades pedagógicas com a questão da morte. Entretanto, ocultar da criança a morte é negar-lhe a realidade. Não abordar o assunto pode deixá-la confusa, dificultando seu entendimento sobre o ciclo da vida. Esta pesquisa, enquanto se desenrolava no sentido de preparar as crianças para uma visita ao Cemitério da Consolação – onde estão enterrados grandes nomes de nossa cultura que dialogam com o universo infantil, como Monteiro Lobato, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, entre outros –, pôs em evidência a necessidade de se trabalhar a questão 111

Discutindo a morte na escola

da morte com os educadores, de se pensar juntos em atividades e maneiras de abordar o assunto na sala de aula. E uma das melhores ferramentas que temos para refletir sobre a morte é a literatura. A morte não deixa de estar presente em um bom número de contos infantis, mesmo que a partir de personagens coadjuvantes, como a mãe da Branca de Neve no famoso conto coletado pelos irmãos Grimm, que morre logo no início da história, ou a pequena vendedora de fósforos, personagem de Hans Christian Andersen que morre de frio na noite de ano novo. Além do valor educativo na correlação entre oralidade, leitura e escrita, o valor simbólico das histórias é imprescindível para a discussão do tema, pois quando ouvimos um conto vivenciamos uma experiência única fora do tempo cotidiano, somos levados a um lugar desconhecido que instantaneamente se torna familiar. De acordo com Regina Machado (2004), no livro Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias, “Era uma vez” é uma frase com tempo verbal compartilhado pelas histórias populares, pelas crianças pequenas que se reúnem para brincar (“Faz de conta que eu era a mãe e você era o pai, tá?”) e pelos artistas. Um tempo que não cabe na história temporal, datada cronologicamente, como o do ontem ou do amanhã. No tempo e espaço cotidianos eu fui, sou e serei. Antigamente eu era menor, tímida e magrinha, mas isso é muito diferente de poder dizer “agora eu era”, seja lá o que for. Essa possibilidade não faz sentido nem na gramática nem na conversa de todo dia. Mas faz sentido em outro lugar e em outro tempo, no domínio do imaginário, presente na versão inglesa do “Era uma vez” (Once upon a time), que se poderia traduzir imprecisamente em português como “uma vez acima ou além do tempo”. O que nos dá uma pista para pensar que, além da experiência cronológica da história onde nos entendemos como pessoas que têm família, profissão, idade, endereço e documentos de identidade, temos uma experiência acima e além do tempo.

Cada cultura encara a morte de uma maneira, e através de suas narrativas tão diversas temos a oportunidade de falar, com leveza e naturalidade, sobre um assunto que nos causa tanta angústia e sensação de impotência. Conforme Malba Tahan (1964), no livro A arte de ler e contar histórias: 112

Políticas e práticas culturais para a cidade de São Paulo

A criança e o adulto, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, todos, enfim, ouvem com prazer as histórias – uma vez que essas histórias sejam interessantes, tenham vida e possam cativar a atenção. A história narrada, lida, filmada ou dramatizada, circula em todos os meridianos, vive em todos os climas. Não existe povo algum que não se orgulhe de suas histórias, de suas lendas e de seus contos característicos. [A história bem escolhida e bem orientada pode servir de viga-mestre na grande obra educacional].

E foi da soma da necessidade de se abordar a morte na sala de aula com a abundância de recursos que a literatura nos proporciona que surgiu o Encontro Formativo Memória e Vida – Luto Infantil e Parental. O encontro – que tinha como objetivo ressaltar a importância da discussão do luto na escola, refletir sobre como o educador lida com o assunto e ampliar seu repertório literário com obras que o ajudassem a abordar a morte na sala de aula – foi dividido em três momentos: oficina presencial, atividade prática em sala de aula e seminário de integração. Durante oficina presencial, os educadores foram convidados a preencher um questionário, que nos forneceu os seguintes dados: dos 150 profissionais da educação que participaram da oficina, oito afirmaram estar preparados para falar sobre a morte; dez disseram que sentem falta de formação sobre o assunto; três afirmaram estar preparados para abordar o assunto de uma maneira religiosa/espiritual dentro de suas famílias; um alegou ter medo de falar sobre o tema por conta das diferentes opiniões e religiões; enquanto os outros 128 educadores restantes assumiram não estar preparados para conversar sobre a morte com seus alunos. Muitos dos participantes falaram sobre a importância de se disponibilizar mais cursos e informações sobre o tema. A postura dos educadores foi mudando expressivamente durante o curso. A maioria das pessoas chegou calada, um tanto desconfiada, porém as histórias, tanto as pessoais como as literárias, foram transformando aquele ambiente em um encontro leve e divertido. Vários educadores expuseram as mais diversas histórias pessoais relacionadas à morte e ficaram felizes em poder compartilhá-las com o grupo. Fizemos um exercício de memória durante a roda de conversa, elaborando um levantamento de histórias e brincadeiras que têm a morte como tema: “Lá em cima do piano”, 113

Discutindo a morte na escola

“Balança caixão”, “Hoje é domingo”, “Aranha caranguejeira”, “Branca de Neve”, “A bela adormecida”, “João e o pé de feijão”, entre outras. Os educadores também lembraram que a morte é tema frequente nas brincadeiras infantis, sempre com a possibilidade de se viver novamente. Para a realização da segunda etapa do encontro formativo, a aplicação da atividade em sala de aula, foram propostos, com vistas a exploração do tema, um levantamento de ideias e a escolha de uma história que faça parte de livros de literatura infantojuvenil que têm a morte como tema principal. Os livros eram: • Silêncio: doze histórias universais sobre a morte – de Ilan Brenman e Heidi Strecker. • A arte de falar da morte para crianças – de Lucélia Elizabeth Paiva. • Contos de espanto e alumbramento – de Ricardo Azevedo. • O guerreiro invisível e outros contos do tempo – Nicia Grillo e Julia Grillo. • Contos de enganar a morte – de Ricardo Azevedo. • Ifá, o adivinho – de Reginaldo Prandi. • Mitologia dos orixás – de Reginaldo Prandi. • Sete histórias para sacudir o esqueleto – de Angela Lago. • Roupa de brincar – de Eliandro Rocha. • Histórias maravilhosas de Andersen: a pequena vendedora de fósforos, o valente soldado de chumbo – de Hans Christian Andersen. • Vô, eu sei domar abelhas – de Monika Feth. • As lendas urbanas da morte – de Ernani Ssó. • Descobrindo a arqueologia: o que os mortos podem nos contar sobre a vida – de Luis Pezo Lanfranco, Cecília Petronilho e Sabine Eggers. • Contos e lendas da Amazônia – de Reginaldo Prandi. • Mitologia: um guia dos mundos imaginários – Christofer Dell. • O urso e o gato-montês – de Kazumi Yumoto. • O pato, a morte e a tulipa – de Wolf Erlbruch. • A velhinha que dava nome às coisas – de Cynthia Rylant. • Vó Nana – de Margareth Wild. • Menina Nina: duas razões para não chorar – de Ziraldo. • Um dente de leite, um saco de ossinhos – de Nilma Lacerda. • A mulher que matou os peixes – de Clarice Lispector. • Quando seu animal de estimação morre – de Victoria Ryan. • Cadê meu avô? – de Lidia Izecson de Carvalho. 114

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• • • •

O anjo da guarda do vovô – de Jutta Bauer. O medo da sementinha – de Rubem Alves. A história de uma folha – de Leo Buscaglia. O teatro de sombras de Ofélia – de Michael Ende.

Os educadores tinham por volta de um mês para trabalhar o tema com seus alunos e fazer um relato sobre sua experiência. “Morrer é quando alguém vai embora do seu lar e não volta nunca mais” (Pedro, 4 anos) Durante a terceira e última etapa do encontro formativo, foram apresentados os relatos das experiências, um momento cheio de emoção. Os adultos estavam embasbacados pela naturalidade com que as crianças conversaram sobre a morte e como elas se divertiram brincando com a história. Uma professora perguntou a seus alunos de cinco anos o que é a morte e como se morre, e teve como respostas: “É quando você morre.” “Quando a pessoa machuca grave e morre.” “Quando uma pessoa sente problema no coração e morre.” “É a mulher da morte que mata as pessoas. A mulher da morte tem o rosto rasgado. A morte é uma música de terror.” “É uma coisa que faz mal, então quando morre é dor.” “Não se mexe.” “O coração para. O coração para, aí morre, vai pro céu e vira estrelinha.” “O corpo vai para o céu.” “Sai o espírito e vai para o céu.” “Vira caveira, só ficam os ossos no caixão.” Outra professora trabalhou a lenda da mandioca e, durante a conversa sobre a morte, surgiram os seguintes depoimentos: “Se alguém morrer, nasce uma árvore.” “Minha avó morreu, só que aí ela foi parar lá em Deus.” “Meu avô ficou muito doente, eu acho, e aí ele morreu.”

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Discutindo a morte na escola

“Minha amiga morreu por causa do carrapato. Ele mordeu ela,

e ela ficou muito doente, foi no médico mas não deu… Eu senti saudade, mas hoje eu não sinto nada.” “– Quando meu avô morreu, ele disse que queria um caixão todo preparado para ele, com um vidro na frente para todo mundo ver a cara dele. – Você foi ao enterro? – Não, porque não deixaram. Ele ficou lá em casa e depois levaram. – O que você sentiu? – Eu fiquei com saudade dele. Hoje quando eu sinto falta eu abraço a minha mãe e as pessoas que eu gosto.” A vice-coordenadora de uma EMEI disse ter ficado encantada com a naturalidade com que as crianças conversaram sobre o tema e a profundidade que demonstraram. Ela compartilhou sua experiência pessoal com a morte e disse que, se tivessem conversado sobre morte com ela durante sua infância, hoje ela não seria uma adulta tão frustrada. Ressaltou também a importância de o tema ser incluído no currículo para que todos possam ter a oportunidade de conversar sobre a morte de uma maneira lúdica e envolvente. A coordenadora de um CEI relatou que uma mãe foi à escola questionar o trabalho que estava sendo realizado, alegando que quem tem que falar sobre a morte é a família. Alguns professores não conseguiram realizar o trabalho, pois o tema foi malvisto por suas equipes de trabalho. Não é de fato uma tarefa simples o inquietante desafio que o Projeto Memória e Vida propôs a esses educadores da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo e aos interessados no tema. Ainda há muito trabalho e sensibilização a serem realizados para transformar a maneira pela qual enxergamos a vida para aí então ressignificarmos a morte. No livro Contos de enganar a morte, Ricardo Azevedo (2003) cita o ditado popular: “Não é preciso se preocupar com a morte. Ela é garantida e ninguém vai ser bobo de querer roubá-la da gente. O importante é cuidar da vida, que é boa, bela, rica preciosa e inesperada, mas muito frágil. Ela, sim, pode ser roubada”.

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REFERÊNCIAS

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Parte 1

Responsabilidade cultural – conceitos e implicações Américo Córdula1

Este ensaio pretende conceituar o termo “responsabilidade cultural” e suas implicações. O autor teve como inspiração e provocação os debates realizados durante a Rio+20 em 2012, quando coordenou o encontro Cultura e Sustentabilidade, o qual, entre outras articulações, teve a adesão do Brasil ao movimento criado pelas cidades que adotaram a Agenda 21 da Cultura2, que propunha, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), que a cultura fosse considerada o quarto eixo do desenvolvimento sustentável. Na pesquisa realizada, o termo “responsabilidade cultural” foi encontrado em poucas referências, geralmente atribuídas a questões culturais do mundo corporativo, de forma a obter melhores práticas de administração. No entanto, a pesquisadora Laura Salvan (2012) escreveu uma tese a partir de um estudo realizado com instituições culturais na Itália e propôs a inclusão da responsabilidade cultural na responsabilidade social. O conceito de responsabilidade social levou muitas décadas para ser maturado, e mesmo que tenha sofrido alterações que atendessem às novas necessidades, a cultura sempre foi atrelada a parte do social, seja em política, ações de marketing ou acordos e legislações. O que pretendemos neste ensaio é rever e construir novos conceitos que colaborem para a implantação de uma sociedade mais justa. A partir dessa premissa, pretendemos rever o conceito de responsabilidade social adotado amplamente pela sociedade e o universo empresarial e focar os aspectos culturais como fatores preponderantes para se alcançar o desenvolvimento sustentável. O ensaio será desenvolvido a partir da gênese do conceito de “responsabilidade”: a evolução nos aspectos sociais utilizados no mundo 1 Ator e gestor cultural, trabalhou no Ministério da Cultura do Brasil entre 2005 e 2015. Atualmente é consultor em políticas culturais. 2 The Global Network of Cities Local and Regional Governments. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2016.

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corporativo e empresarial e os acontecimentos que aqui transcorreram desde sua criação – como o surgimento do interesse do empresariado em estabelecer relações de reponsabilidade econômica, legal, ética e filantrópica até a emergência das necessidades do equilíbrio do meio ambiente, a preocupação com o desenvolvimento sustentável provocada pelo crescimento descontrolado e que determinou, na ONU, acordos multilaterais para a diminuição dos impactos ambientais e o futuro que queremos. A proposição da adoção da responsabilidade cultural tem como principal motivação uma visão de desenvolvimento realizada de forma a garantir a sobrevivência das gerações futuras a partir de modelos que sejam baseados, entre outros aspectos, em um desenvolvimento em uma escala humana que valorize o bem-estar coletivo e em mudanças culturais conscientes e menos destrutivas.

O CONCEITO DE “RESPONSABILIDADE” Qual a origem da palavra “responsabilidade”? De acordo com Nicoletti (2005), ela tem suas raízes no latim respondeo, que por sua vez vem de spondeo. Esse verbo, no sentido jurídico, significa “como garante a justiça, dar a sua garantia pessoal a respeito de alguém”. Ele está consagrado na terminologia do casamento (do qual derivam sponsus e sponsa): quando o pretendente pede ao pai da noiva: “Você concorda em me dar sua filha em casamento?”, o pai responde: spondeo, ou seja, “Eu concordo”. É a oferta de uma garantia de segurança. O mesmo tema está presente no verbo grego spendo, que significa “Eu ofereço uma libação aos deuses”, o que ocorre, por exemplo, antes de se iniciar um negócio arriscado, em um esforço para garantir a segurança. A evolução de sentido seguinte, na língua grega, não imputa mais à palavra o significado de “pedir aos deuses para garantir a empreitada”, mas “tornar garantidor um ao outro”, “comprometer-se um perante o outro”, quando se sela um pacto. O sentido social do conceito é desenvolvido a partir do sentido religioso. O termo respondeo exprime a recíproca desse compromisso: sponsio é o compromisso de um, o responsio é o compromisso do outro em contrapartida, a garantia de segurança mútua. Dessa garantia trocada (resposta…) nasce o sentido latino em respondere. Respondere, responsum é dito dos intérpretes dos deuses, que, 119

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em troca de sua oferta, recebem a segurança: a resposta do oráculo. Uma resposta “garantida” pela perícia da pessoa que a dá, tornando-se, assim, o respondere de jure, ou seja, “dar uma resposta certa”, que é o desempenho típico do jurista. Na língua germânica, a expressão correspondente a answer (“resposta”, em inglês) é Antwort, que deriva de Swaran (“[eu] juro”). Esse significado de “resposta formal” seguida de uma promessa ou um pedido é encontrado não só na raiz latina da palavra, mas também em seus derivados correspondentes a “no comando” e “responsabilidade”, expressos, na língua moderna alemã, pelo vocábulo Verantwortung (o qual equivale ao termo latino respondeo). Mencionado pela primeira vez no século XV, Verantwortung expressa precisamente “resposta”, mas não só; agrega também o sentido de “desculpas”, o que “se justifica perante um tribunal”, seja de seres humanos ou corte divina. Quando passamos para o século XVIII, Verantwortung desenvolveu um sentido mais abstrato: deixou de indicar uma resposta concreta, necessária, e passou a representar a circunstância de ter de responder, de justificar-se a alguém. Um significado semelhante é encontrado nas línguas inglesa e francesa (responsible e responsable), com mais alguns elementos. Emerge antes do adjetivo responsável (ou responsáveis) já no século XIV, em francês e em inglês no século XVI, indicando “o único que tem de responder”, que é “admissível em tribunal”, mas também – e aqui o elemento adicional – aquele que “pode resistir”, que é “capaz de resistir”. O dever de responder, mesmo que gradualmente, passa a nomear uma capacidade, uma exigência positiva: o homem responsável também significa homens de confiança, honesto, respeitável. Assim, o conceito de responsabilidade emerge do horizonte de recursos humanos a partir de uma situação de incerteza, pela iminência de um risco, representado pelo fato de que a ação que as pessoas decidam empreender será levada a cabo no futuro. No conceito de responsabilidade, desse modo, poderiam ser encontradas três tradições: a greco-romana, a cristã e a moderna. O conceito de responsabilidade entrou na cultura contemporânea a partir dessa derivação e marginalização e tornou-se um conceito-chave em algumas áreas da ação social e pública. Ser responsável é ter em conta as consequências de suas próprias ações. Esse conceito nos leva a tocar a ética do tema responsabilidade, que, no século XX, expressa a necessidade de se ligar a ética à concretude da vida e do mundo. Consequentemente, floresceu uma teoria da ética da responsabilidade orientada para o futuro. 120

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Hans Jonas (2006) desenvolve o sentido da ética da responsabilidade ao longo do tempo e no espaço, de modo que nossas ações têm de ser avaliadas não só no que diz respeito a nossos contemporâneos, mas também às gerações futuras. Afirma a necessidade de se aplicar o imperativo de responsabilidade de gesto de todo homem: todo mundo tem que ter em conta as consequências futuras de suas próprias ações ou escolhas. A ética a respeito da preservação dos seres humanos está ameaçada pelo poder destrutivo da técnica. Os efeitos desta são irreversíveis, e a condição global da vida humana e sua sobrevivência estão em risco. Como consequência, a nova ética deve olhar não só para o comportamento, mas também para o ser humano (lado ontológico). O axioma da nova ética é a perspectiva de um mundo habitável. A ética da responsabilidade pelas gerações futuras é a base do conceito do desenvolvimento sustentável, central no discurso sobre responsabilidade cultural, como veremos adiante.

RESPONSABILIDADE SOCIAL Um dos pioneiros nesse assunto foi o empresário e filantropo estadunidense Andrew Carnegie (1834-1919), ao definir que o “princípio da responsabilidade social se baseia na premissa de que as organizações são instituições sociais”, quando, em 1899, publicou nos Estados Unidos da América a obra O evangelho da riqueza, caracterizando dois princípios básicos, relativos à responsabilidade social da empresa: “caridade e stewardship”, ou seja, princípio da caridade e princípio da governança (ALVES, 2003) Outras manifestações de autores foram feitas, como Charles Eliot, em 1906, Arthur Hakley, em 1907, e John Clark, em 1916, mas foi somente com o trabalho de Howard Bowen, intitulado Responsabilidades sociais do homem de negócios, publicado em 1953 nos Estados Unidos e em 1957 no Brasil, que se demarcou o início de uma análise mais criteriosa e profunda. Bowen (1957) debruça-se sobre as relações entre a sociedade e os negócios e define a responsabilidade social como “o dever dos homens de negócios em perseguir as políticas que são desejáveis em termos de objetivos e 121

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de valores da sociedade”. Segundo ele, o negócio está inserido na sociedade e não pode ser visto como uma entidade independente da sociedade. Tanto os negócios como as pessoas nascem e crescem em uma determinada sociedade e estabelecem laços profundos. O sucesso das pessoas e dos negócios depende do sucesso da sociedade. É a partir daí que a responsabilidade social deixa de ser uma simples curiosidade e se transforma em um novo campo de estudo, revelando-se, então, um fator decisivo para o desenvolvimento e o crescimento das empresas. Na literatura científica e empresarial, em especial nos Estados Unidos, os problemas entre os negócios e a sociedade são tema de muitas pesquisas e materiais informativos, que oferecem conceitos que podem ser associados à Responsabilidade Social Corporativa (RSC). Entre eles, as definições mais populares são: a “responsabilidade social corporativa”, o “desempenho social corporativo” e a “integridade social das empresas”.  Em constante evolução, esses conceitos acabaram por substituir um ao outro, acumulando as realizações anteriores. Na década de 1980, esse desenvolvimento continuou com os conceitos de “ética empresarial”, “filantropia corporativa”, “política social” e “gestão de stakeholders”. No início do século XXI, teorias como “desenvolvimento sustentável”, “cidadania corporativa”, “sustentabilidade empresarial”, “reputação corporativa” e “investimento socialmente responsável”, “balanço social” e outros vieram juntos (EPSTEIN, 2002). A abordagem de Carroll (1999), um dos maiores especialistas do mundo no campo dos negócios e da sociedade, parece bastante razoável. Ele encontrou um link entre todos os conceitos mencionados acima para desenvolver a teoria da Responsabilidade Social Corporativa ou Empresarial (RSC ou RSE) como núcleo dos principais conceitos alternativos e transformadores. Parece que essa abordagem permite traduzir a questão dos argumentos comuns sobre o papel dos negócios no desenvolvimento social para a análise de um empreendimento em particular. Em termos estritos, não se relaciona necessariamente apenas com o setor empresarial. O modelo de RSE proposto ficou conhecido como a Pirâmide de Carroll, cuja base é responsabilidade econômica:

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Responsabilidade filantrópica Responsabilidade ética

Responsabilidade leal

Responsabilidade econômica

Figura 1. Pirâmide de Carroll. Fonte: Carroll (1999).



Responsabilidade econômica é um direito básico da organização para desempenhar, no mercado, as suas funções de prestação de serviços/produção para a sociedade e obter lucro. • Responsabilidade legal é a necessidade da organização de existir na lei e no campo legal. • Responsabilidade ética implica a necessidade de correlacionar ações de empresas com normas morais específicas para um ambiente cultural particular. • Responsabilidade filantrópica é o ponto mais alto da pirâmide; representa a necessidade de participação em programas sociais. Naturalmente, a interpretação da RSE como “pirâmide”, por si só, não elimina todos os problemas relacionados à responsabilidade social, mas permite organizar os conceitos. Posteriormente, Carroll a transformou em três modelos da RSE, nos quais foram identificados como os principais tipos de responsabilidade a econômica, a jurídica e a ética. Idealmente, qualquer organização deve combinar todas as três áreas, e o nível real de 123

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RSE em uma empresa particular depende das variações dessas combinações (BLAGOV, 2010). Carroll, consciente da complexidade e da inconsistência da gênese do conceito de responsabilidade social, o estabeleceu para rastrear apenas as alterações básicas de terminologia ao longo de décadas. Assim, os anos 1950 foram identificados como o início da era moderna da responsabilidade social; os 1960, como o período de aprofundamento das definições significativas de ser; os 1970, como a propagação de uma variedade de definições de RSE; os 1980, pela diminuição do número de definições e o crescimento de pesquisas e do desenvolvimento de alternativas existentes.  Nesse contexto, interessante foi o conceito de responsabilidade social corporativa, proposto por Davis (1960). Analisando as ações de várias empresas, Davis e outros pesquisadores descobriram que a responsabilidade social contribui para o desenvolvimento e aumenta o valor das empresas, e, por outro lado, evita a redução de suas oportunidades econômicas. Isso confirmará que, no longo prazo, aqueles que não usam a energia disponível em uma direção que a sociedade considera responsável têm perdido poder. O início dos anos 1990 demonstrou que a preservação do conceito de responsabilidade social empresarial seria o “núcleo” para a transformação gradual em um quadro temático alternativo, aos autores, como Friedman (1970), que diz que a finalidade do negócio é aumentar lucros ou aumentar o valor para seus acionistas, e a tarefa de melhorar o bem-estar público como um todo deve ser dirigida primeiramente pelo governo e por instituições sem fins lucrativos e religiosas. Todas essas interpretações sobre o conceito de RSE não esgotam a variedade de abordagens para o conteúdo da responsabilidade social empresarial, e a cada dia, por conta das mudanças e necessidades, novas abordagens são introduzidas, como, por exemplo, a que foca o meio ambiente. Em 2001 foi publicado O livro verde da Comissão Europeia,3 que determina que a responsabilidade social é um conceito segundo o qual as 3 Comissão das Comunidades Europeias – 18/07/2001. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2016.

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empresas decidem, voluntariamente, contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e um meio ambiente mais protegido. Com base nesse pressuposto, a gestão das empresas não pode e não deve ser norteada apenas para a satisfação de interesses de seus proprietários, mas também para os de outras partes, como os trabalhadores, as comunidades locais, os clientes, os fornecedores, as autoridades públicas, a concorrência e a sociedade em geral. No contexto da globalização e da mutação industrial em larga escala, emergiram novas preocupações e expectativas dos cidadãos, dos consumidores, das autoridades públicas e dos investidores. Os indivíduos e as instituições, enquanto consumidores ou investidores, adotam progressivamente critérios sociais em suas decisões. Consumidores recorrem aos rótulos sociais e ecológicos para tomarem decisões sobre a compra de produtos. Levam em conta os danos causados ao meio ambiente pelas atividades econômicas, tais como marés negras, fugas radioativas, agrotóxico, desmatamento, enfim, eventos e ações que têm gerado preocupações crescentes entre os cidadãos e diversas entidades coletivas, pressionando as empresas para a observância de requisitos ambientais e exigindo das entidades reguladoras, legislativas e governamentais a formulação de leis apropriadas e a vigilância de sua aplicação. Os meios de comunicação social e as modernas tecnologias da informação e da comunicação têm sujeitado a atividade empresarial e econômica a uma maior transparência. De acordo com a lógica dos autores, o estudo da gênese do conceito básico de responsabilidade social é possível em um contexto mais amplo, que inclui abordagens alternativas, e, desse modo, permite-nos considerá-lo como uma espécie de “guarda-chuva” de síntese.

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Tabela 1. A gênese do conceito de responsabilidade social empresarial. Nome do conceito

Autores

Princípio

Responsabilidade social corporativa.

Bowen (1953); Davis (1960); Networks (1975); Carroll (1979).

Conteúdo ordenado de RSE, o nível sistemático e normativo. Suscetibilidade social corporativa.

Capacidade de resposta social corporativa.

Ackerman, (1973); Preston e Post (1975); Frederick (1978); Carroll (1979).

A capacidade das empresas para realizar uma ação social.

Desempenho social corporativo.

Carroll (1979); Vatika (1985); Wood (1991).

Um modelo de desempenho social corporativo.

Desempenho social das empresas. Gestão (conceito) das partes interessadas.

Freeman (1984); Clarkson (1985); Donaldson e Preston (1995); Post, Preston e Sachs (2002).

Cidadania corporativa.

Longsdon e Wood (2002).

Um modelo formado por corporações em relação às partes interessadas.

Van Marreviyk (2003); Steuer (2005).

A relação entre responsabilidade social e a estabilidade dos problemas sociais corporativos com o agenciamento dos problemas.

Sustentabilidade empresarial.

Uma nova definição da corporação, divulgando sua relação com as partes interessadas.

Fonte: Madrakhimova (2013, p. 116).

OS DEZ PRINCÍPIOS DO PACTO GLOBAL DAS NAÇÕES UNIDAS4 A Organização das Nações Unidas é um dos principais apoiadores das noções compreendidas pela Responsabilidade Social Corporativa, promovendo o comprometimento das lideranças comerciais internacionais com essas 4 Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2016.

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ideias. O projeto foi saudado pelo Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, no Fórum Econômico Mundial em Davos, em 31 de dezembro de 1999. As ideias que promoveram “Os dez princípios do Pacto Global das Nações Unidas”, determinam que a sustentabilidade empresarial começa com o sistema de valores de uma empresa e um comportamento baseado em princípios para fazer negócios. Isso significa as empresas operarem de maneira que, no mínimo, atendam às responsabilidades fundamentais nas áreas de direitos humanos, trabalho, meio ambiente e combate à corrupção.  As empresas responsáveis ​​promulgam os mesmos valores e princípios onde quer que elas tenham presença, e sabem que as boas práticas em uma área não compensam as más em outras. Ao incorporar os princípios do Pacto Global em estratégias, políticas e procedimentos, e estabelecer uma cultura de integridade, as empresas não estão apenas mantendo suas responsabilidades básicas para com as pessoas e o planeta, mas também preparando o palco para o sucesso em longo prazo. Os dez Princípios do Pacto Global da ONU são derivados da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção.

Direitos humanos Princípio 1: As empresas devem apoiar e respeitar a proteção dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente.  Princípio 2: Certificar-se de que eles não são cúmplices de abusos dos direitos humanos.

Trabalho Princípio 3: As empresas devem apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva. Princípio 4: A eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório. Princípio 5: A abolição efetiva do trabalho infantil.  Princípio 6: A eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.

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Meio ambiente Princípio 7: As empresas devem apoiar uma abordagem preventiva aos desafios ambientais. Princípio 8: Desenvolver iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental. Princípio 9: Incentivar o desenvolvimento e a difusão de tecnologias ambientalmente amigáveis.

Anticorrupção Princípio 10: As empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, inclusive extorsão e propina.

UMA NOVA AGENDA – MEIO AMBIENTE E SOLUÇÕES PARA A SOBREVIVÊNCIA

A Conferência de Estocolmo5 A ONU, a partir da percepção da finitude dos recursos naturais em decorrência da degradação ambiental causada pelo consumo determinado pelo capitalismo, promoveu em 1972 a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Também conhecida como Conferência de Estocolmo, foi a primeira grande reunião de chefes de Estado organizada pela ONU para tratar das questões relacionadas ao meio ambiente. A Conferência de Estocolmo é amplamente reconhecida como um marco nas tentativas de melhorar as relações do homem com o meio ambiente, e também por ter inaugurado a busca por equilíbrio entre desenvolvimento econômico e redução da degradação ambiental (poluição urbana e rural, desmatamento etc.), que mais tarde evoluiria para a noção de desenvolvimento sustentável. Essa conferência, junto com o Relatório Brundtland,6 publicado em 1987 pelas Nações Unidas, lançou as bases para o Eco-92.

5 Realizada entre os dias 5 e 16 de junho de 1972. 6 Relatório Brundtland é o documento intitulado Our Common Future [Nosso futuro comum], publicado em 1987 pela ONU.

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Eco-927 Em 1992, vinte anos após a realização da primeira conferência sobre o meio ambiente, representantes de 108 países reuniram-se para decidir medidas que diminuíssem a degradação ambiental e garantissem a existência de outras gerações. A intenção, nesse encontro, era introduzir a ideia do desenvolvimento sustentável, um modelo de crescimento econômico menos consumista e mais adequado ao equilíbrio ecológico. A diferença entre a conferência de 1972 e a de 1992 pode ser traduzida pela presença maciça de chefes de Estado na segunda, fator indicativo da importância atribuída à questão ambiental no início da década de 1990. O encontro teve, como resultado, a aprovação da Declaração do Rio, também chamada de Carta da Terra.8 As organizações não governamentais fizeram um encontro paralelo no Aterro do Flamengoː o Fórum Global. Na Eco-92, três convenções foram firmadas: • A Convenção sobre Diversidade Biológica, a respeito da proteção da biodiversidade; • A Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação, a respeito da redução da desertificação; • A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, a respeito das mudanças climáticas globais. Também foram produzidas duas Declarações e uma Agenda: • A Declaração de Princípios sobre Florestas; • A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento; • A Agenda 21. A Agenda 21 foi um dos principais resultados da conferência Eco-92. É um documento que estabeleceu a importância de cada país se comprometer a refletir, global e localmente, sobre a forma pela qual governos, empresas, organizações não governamentais e todos os setores da sociedade poderiam cooperar no estudo de soluções para os problemas socioambientais.

7 Realizada de 3 a 14 de junho de 1992 na cidade do Rio de Janeiro. 8 A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção, no  século XXI, de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2016.

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A Conferência de Johanesburgo – Rio +109 Dez anos após a Eco-92, a ONU realizou, em 2002, a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Johanesburgo, África do Sul, também chamada de Rio +10 ou Conferência de Johanesburgo. Seu objetivo principal seria rever as metas propostas pela Agenda 21 e direcionar as realizações às áreas que requerem um esforço adicional para sua implementação, porém, o evento tomou outro direcionamento, voltando-se quase que exclusivamente para o debate de problemas de cunho social. Houve também a formação de blocos de países que quiseram defender exclusivamente seus interesses, sob a liderança dos Estados Unidos. Tinha-se a expectativa de que essa nova conferência mundial levaria à definição de um plano de ação global, capaz de conciliar as necessidades legítimas de desenvolvimento econômico e social da humanidade, com a obrigação de manter o planeta habitável para as gerações futuras. Porém, os resultados foram frustrantes, principalmente pelos poucos resultados práticos alcançados em Johanesburgo. Em síntese, pode-se dizer que houve: • Discussão apenas sobre problemas sociais; • Propostas concretas, apresentadas por muitos países, que, no entanto, não saíram do papel – caso da Agenda 21; • Diversidade de opiniões e posturas, muitas vezes conflitantes; • Maior participação da sociedade civil e suas organizações; • Formação de grupos para defender seus interesses; • Iniciativa de alternativas para soluções de energia – global. Conclusões: a vanguarda ambientalista elencou centenas de propostas para os 21 objetivos da Agenda. Entre elas, figuramː universalizar o saneamento básico nos dez anos seguintes; implantar redes de metrô e trens rápidos nas grandes aglomerações urbanas; democratizar a Justiça, universalizar o ensino em tempo integral e reestruturar o Proálcool, desvinculado dos interesses do velho setor sucroalcooleiro.

Rio +2010

9 Realizada entre os dias 26 de agosto e 4 de setembro de 2002, em Johanesburgo, África do Sul. 10 Realizada entre os dias 20 e 22 de junho de 2012 no Rio de Janeiro.

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A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), conhecida também como Rio +20, foi realizada em 2012 e teve como objetivo discutir a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável. Considerado o maior evento já realizado pelas Nações Unidas, o Rio+20 contou com a participação de chefes de Estado de 190 nações que propuseram mudanças sobretudo no modo como estão sendo usados os recursos naturais do planeta. Além de questões ambientais, foram discutidos aspectos relacionados a questões sociais, como a falta de moradia e outras.

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL O conceito de desenvolvimento sustentável foi introduzido em 1987 com a publicação de “Nosso Futuro Comum”, o relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que definiu desenvolvimento sustentável como “o que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades”. O relatório incidiu sobre as consequências negativas ao uso dos recursos que impactam o ar, a terra e sistema de água, como poluição, devastação e seca. Ao mesmo tempo, o documento enfatizou a proteção das necessidades de todos os indivíduos, que têm o direito de aspirar a melhores condições de vida. Ele afirma: • A satisfação das necessidades e aspirações humanas nos principais objetivos do desenvolvimento; • As necessidades essenciais do grande número de pessoas nos países em desenvolvimento: alimento, vestuário, abrigo, trabalho. Além de suas necessidades básicas, essas pessoas têm aspirações legítimas a uma melhoria da qualidade de vida;



Um mundo em que a pobreza e a desigualdade são endêmicas será sempre propenso a crises ecológicas, entre outras;

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O desenvolvimento sustentável exige satisfazer as necessidades básicas de todos e que se estenda a todos a oportunidade de satisfazer suas aspirações por uma vida melhor.

O conceito mudou da área ambiental e ecológica para a econômica, com uma noção mais ampla de desenvolvimento centrado no ser humano, e não em commodities. Essa mudança de paradigma acelerou graças, entre outras iniciativas, às obras do economista Amartya Sen (Prêmio Nobel em 1998), que definiu o desenvolvimento como “capacidade de expansão homem”, ou seja, aumento da capacidade das pessoas de deixar o tipo de vida que eles decidem ter. Vivemos um mundo de opulência sem precedentes, mas também de privação e opressão extraordinárias. O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de cidadão. (SEN, 2011)

Nesse sentido, o desenvolvimento é o processo de expansão das liberdades reais, apreciadas por seres humanos, que exige a eliminação das principais fontes de ausência de liberdade: pobreza material, civil e limitações dos direitos políticos. Complementando os enfoques ambiental e econômico para o desenvolvimento sustentável, a reflexão sobre Cultura é introduzida no relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da Diversidade Criativa (CUELLAR, 1997) que pontuou: • Cultura, portanto, por mais importante que seja como um instrumento do desenvolvimento (ou um obstáculo ao desenvolvimento), em última análise, não pode ser reduzida a uma posição controlada como um mero promotor do (ou um impedimento ao) crescimento econômico; • O papel da cultura não se restringe a servir a um fim – embora este seja um de seus papéis, em sentido mais estrito – mas ser a base social dos próprios fins; • O desenvolvimento da economia faz parte da cultura de um povo;

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O relatório incide sobre os conceitos de desenvolvimento e cultura. Desenvolvimento é um processo que promove a libertação eficaz de indivíduos, que poderiam alcançar tudo o que reconhecemos como valores e realizar uma vida gratificante; A cultura é entendida como “formas de convivência” e tem um valor intrínseco que não pode ser reduzido a instrumentos para promover a coesão do crescimento econômico; A cultura é a base sobre a qual os valores e objetivos sociais são construídos. Assim, desenvolvimento inclui também o crescimento cultural, o respeito da diversidade cultural e o princípio da liberdade cultural.

Em 2002, a Unesco, na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, ampliou o conceito de desenvolvimento sustentável: Diversidade cultural é tão necessária para a humanidade como biodiversidade é para a natureza […] é uma das raízes de desenvolvimento, não entendido simplesmente em termos de desenvolvimento do crescimento econômico, mas também como um meio para conseguir uma existência intelectual mais satisfatória, afetiva, moral e espiritual.

De acordo com David Throsby (2008) existem vários princípios que fazem o desenvolvimento culturalmente sustentável: equidade intergeracional e intrageracional, importância da diversidade, princípio da precaução, interconectividade: • Equidade intergeracional: o desenvolvimento não deve comprometer as capacidades das gerações futuras para ter acesso aos recursos culturais e atender a suas necessidades culturais; isso exige uma preocupação especial para proteger e valorizar o capital cultural tangível e intangível; • Equidade intrageneracional: o desenvolvimento deve proporcionar equidade no acesso à produção cultural, participação e gozo a todos os membros da comunidade de forma justa e não discriminatória; • Importância da diversidade: assim como o desenvolvimento sustentável exige a proteção da biodiversidade, também deve ser 133

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levado em consideração o valor da diversidade cultural para os processos de desenvolvimento econômico, social e cultural; • Princípio da precaução: ao enfrentar decisões com consequências irreversíveis, como a destruição do patrimônio cultural ou a extinção de práticas culturais valorizadas, deve ser adotada uma posição de risco; • Interligação: os sistemas econômicos, sociais, culturais e ambientais não devem ser considerados isoladamente; em vez disso, é necessária uma abordagem holística. A visão de desenvolvimento sustentável com suas três dimensões – crescimento econômico, inclusão social e equilíbrio ambiental – está finalmente preenchida com a diversidade cultural. O desenvolvimento sustentável está estreitamente ligado com o bem-estar de uma sociedade que coloca o indivíduo em primeiro plano.

CULTURA NO SENTIDO ANTROPOLÓGICO E DE CAPITAL CULTURAL O mundo que nos cerca é composto de objetos, pessoas e das relações entre elas. Essas entidades só existem ao se relacionarem com nosso sistema de crenças, símbolos, imaginação e racionalidade, que representam a base de nosso mundo de referência entre passado, presente e futuro. Esses sistemas estão em transformação constante, em resposta às mudanças em seu ambiente ou por meio de interação com culturas vizinhas, mas também passam por transições decorrentes de sua própria dinâmica interna. Nem mesmo uma cultura completamente isolada, existindo em um ambiente ecologicamente estável, pode evitar mudanças. Graças à vida social, a cultura é transmitida por gerações anteriores, o que permite nos redefinirmos simbolicamente. O conceito antropológico de cultura é algo mais do que o mero acúmulo de conhecimento. É a capacidade de representar o mundo em torno de nós e a nós mesmos. A natureza humana foi formada com base na capacidade de adquirir sistemas de símbolos, e a cultura é uma teia de significados tecida pelos homens.

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A cultura é definida como o conjunto de padrões comportamentais sobre o qual existem consensos sociais. Esses padrões precisam ser respeitados e transmitidos para as próximas gerações pelos membros da sociedade. Em uma de seus textos mais importantes, A distinção: crítica social do julgamento, Pierre Bordieu (2006) identifica três formas diferentes de capitais: econômicos, sociais e culturais. Em particular, o capital cultural consiste em linguagem, gosto e forma de vida. Ele pode ser dividido em “capital acadêmico”, o nível de educação adquirido na escola, e “capital herdado”, o conhecimento e as competências acumulados por meio da socialização familiar. Podemos dizer que o capital cultural reflete os mundos simbólicos de referência do indivíduo, os quais, em última análise, dependem de contextos de socialização. Conectado ao capital cultural está o conceito de herança cultural intangível, ou seja, tudo o que as comunidades, os grupos e indivíduos reconhecem como parte de seu patrimônio cultural e que lhes proporciona uma sensação de identidade e continuidade.

RESPONSABILIDADE CULTURAL VERSUS RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL A proposição de Salvan (2012) considera que Responsabilidade Cultural (RC) combina as palavras “responsabilidade” e “cultura”, e define: • Responsabilidade: dever ético de se preocupar com as gerações presentes e futuras, respeitar os seres humanos e sua integridade; • Cultura: em seu sentido antropológico, enxerga o homem como um sistema de crenças, símbolos, imaginação e racionalidade que lhe permite representar o mundo ao seu redor em uma interação social contínua com outros indivíduos. Poderíamos dizer que a responsabilidade cultural é uma atitude que obriga as organizações a cuidar do crescimento cultural das comunidades. Além disso, ela é uma variação do interlocutor da responsabilidade: a partir do contexto em que as empresas operam na comunidade onde as pessoas vivem.

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A transição da responsabilidade individual para a coletiva obrigam as organizações a realizarem o crescimento econômico que satisfação as necessidades sociais e os requisitos culturais. A RC tem uma implicação na RSE. Isso significa que a prática da RSE força as organizações a cuidarem do crescimento econômico por meio da satisfação das necessidades sociais, proteção ambiental e exigências culturais. A RSE é uma forma de autorregularão corporativa, pela qual a empresa decide ser um sistema aberto responsável pelas consequências de seu comportamento. Assim, incentiva um impacto positivo através de suas atividades no meio ambiente e no contexto social, promovendo o crescimento e o desenvolvimento da comunidade. Sustentabilidade econômica

Crescimento econômico

Sustentabilidade Corporativa Proteção ambiental

Comunidade e eqüidade

Sustentabilidade ambiental

Sustentabilidade social

Figura 2. Tripé de Sustentabilidade Fonte: Elkington apud Almeida (2006).

Em particular, a RSE é a diferença de um Tripé de Sustentabilidade (triple bottom line): ambiental, econômica e social. Podemos também afirmar que o conceito de RSE unifica as relações entre ética e economia. Assistimos ao desenvolvimento de um novo modelo de empresa com um novo estilo de governança baseada na satisfação dos interesses e participação das partes interessadas, com vistas ao benefício mútuo. Um modelo 136

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aberto, com foco de negócios depende dos efeitos da globalização. Esta tem demonstrado que a empresa sozinha não é mais capaz de contribuir para o crescimento do desenvolvimento social e do bem-estar das pessoas. A RSE se desenvolve em um período caracterizado pela percepção de que o mercado pode agir de forma criminosa e que, por si só, ele pode não ser ético. Ela defende a mudança da figura de “consumidor-cliente” para “consumidor-cidadão”, que exerce seu poder de escolha, influenciando o fornecimento de bens e serviços. As necessidades da empresa para a legitimação social são expressas pela coerência entre a visão que se propõe e as ações postas em prática para alcançá-la. A estratégia do negócio torna-se o investimento na satisfação do empregado, a confiança no relacionamento com seus fornecedores e clientes, o intercâmbio entre a organização e a comunidade local em que atua. Há um novo paradigma para construirmos juntos, no qual: • Ética pode e deve combinar economia e finanças; • Um novo equilíbrio consolidado entre capital e trabalho, entre pessoa e comunidade, entre os direitos e proteções, entre proteção e oportunidade; • A pessoa é colocada de volta no centro da empresa e da sociedade; • Valores como a justiça e a solidariedade recuperam força e se modernizam; • O desenvolvimento pode ocorrer em 360º, considerando, portanto, não apenas os resultados econômicos, mas também sociais e ambientais; • O espírito de coesão social é reforçado, caracterizado por um diálogo eficaz e pelo reconhecimento da paridade de valores entre os diferentes interesses em jogo. A RSE é um aspecto fundamental do contexto sobre o qual devemos lançar uma reflexão acerca da RC, esperando mais atenção e consciência com relação aos desafios que se colocam. A RC, nesse sentido, poderia ser tratada como uma área específica de intervenção, para uma empresa que se esforça para ser socialmente responsável. Com o intuito de nos aprofundarmos no tratamento específico da RC, vamos abordar um dos três aspectos do Tripé de Sustentabilidade: as pessoas. Cuidar de pessoas significa, na dimensão interna, gestão de recursos humanos, saúde e segurança. Na dimensão externa, por sua vez, liga-se a 137

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comunidades locais e direitos humanos. Essas dimensões podem ser consideradas como atividades impulsionadas pela responsabilidade cultural. Os modelos RSE demandam da gestão de recursos humanos: aprendizagem ao longo da vida, capacitação de funcionários, melhor informação em toda a empresa, melhor equilíbrio entre trabalho, família e lazer, maior diversidade na força de trabalho, igualdade de remuneração e de perspectivas de carreira para as mulheres, partilha de rentabilidade e esquemas de participação acionária e preocupação com empregabilidade, bem como a segurança no emprego. E não menos importante: • Práticas de recrutamento responsáveis, em particular práticas não discriminatórias, que poderiam facilitar o recrutamento de pessoas pertencentes a minorias étnicas, trabalhadores mais velhos, mulheres, desempregados e pessoas com deficiência; • Finalmente, as empresas têm que lutar contra a exclusão social. Por outro lado, do que a comunidade local precisa: • Empresas que se envolvam em causas comunitárias, sobretudo por meio de centros para formação profissional complementar, ajudando instituições de caridade e ambientais. Empresas que recrutem pessoas socialmente excluídas, prestam assistência à infância, estabeleçam parcerias com as comunidades, patrocinem eventos esportivos e culturais ou façam doações para atividades de caridade. Entre maio de 2002 e junho de 2003, a Comissão Europeia publicou o trabalho “Empreendedorismo responsável: uma coleção de exemplos de casos de boas práticas entre as pequenas e médias empresas em toda a Europa”: um grupo de peritos elaborou um quadro conceitual baseado no Tripé de Sustentabilidade, recolhendo exemplos das melhores práticas entre as pequenas e médias empresas. Eles identificaram os elementos constitutivos de um espírito empresarial responsável que é a base do desenvolvimento sustentável: mercado, trabalho, comunidade e meio ambiente. Afirmam que as motivações para o envolvimento nos problemas da sociedade podem ser tanto um senso de responsabilidade moral do gestor, consciente de que a intervenção comunitária – envolvendo funcionários, clientes e fornecedores – pode não apenas aumentar a rentabilidade como também melhorar a imagem corporativa e a fidelização do cliente.

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Os principais aspectos do envolvimento na comunidade são: integração social, saúde, educação, qualidade de vida (esporte/cultura), reciclagem e desenvolvimento econômico/de emprego, infraestruturas locais e segurança. A intervenção na comunidade local é o que se chama de “cidadania ativa” da empresa. Entre as atividades e os possíveis resultados de uma atenção à comunidade temos: Atividades possíveis: • Projetos de apoio à comunidade local onde a empresa opera; • Iniciativas para as escolas e jovens estudantes da região; • Suporte para a universidade e pesquisa. Resultados possíveis: • Melhora da relação com as autoridades locais; • Melhora da reputação da empresa no local; • Crescimento em colaboração com as autoridades locais e agências educacionais. Para concluir, é preciso implementar alguns elementos que possam fazer uma empresa cultural e socialmente responsável: integração social, suporte para as atividades de ensino e pesquisa, um olhar para a gestão de recursos humanos, para o respeito à expressão cultural (minorias culturais ou diversidades) e práticas não discriminatórias, treinamento, aprendizado ao longo da vida e a melhoria da qualidade de vida da comunidade da qual a empresa faz parte. Como complemento, a atitude empresarial, aberta para os requisitos de todas as partes interessadas, poderia ser vista como culturalmente responsável. Uma abordagem orientada modifica a cultura da empresa, fazendo que passe de uma focalizada exclusivamente no lucro para uma que inclui relações atentas a todas as partes interessadas. Na economia de negócios, o produto é projetado em perspectiva relacional, como um meio entre atores e recursos envolvidos na produção. É o resultado de um processo que se relaciona com recursos, necessidades, valores e sistemas de atores envolvidos que podem ser mediados na gestão política do produto. A RSE apresenta-se, então, como um ótimo recurso, pois pode criar valor e abrir espaço para investimentos em conhecimento, aprendizagem e educação ao longo da vida dos trabalhadores, ou seja, investimentos em cultura. Ao focar no indivíduo, pode promover a coesão social. O desenvolvimento sustentável poderia ser aplicado no social e com responsabilidade cultural. 139

Responsabilidade cultural

RESPONSABILIDADE CULTURAL NAS ORGANIZAÇÕES Afirmar que a cultura pode ser a ferramenta para promover a coesão social e a inclusão cultural significa dar importância ao “valor social da cultura”, como o bem-estar individual e coletivo decorrente do exercício dos direitos culturais e, assim, intimamente relacionado com o parâmetro de qualidade de vida. O diálogo intercultural “requer o empoderamento de todos os participantes por meio da capacitação e de projetos que divulguem a interação sem a perda da identidade pessoal ou coletiva” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, [s. d]). A cultura pode reduzir a exclusão social devido a sua capacidade de desenvolver habilidades e autoconfiança e aumentar a autoestima. Acesso e participação na cultura são uma forma de construir e fortalecer a identidade pessoal e atribuir significado a escolhas e experiências. Essa é a razão por que os projetos e políticas culturais têm que ser planejados por meio de um processo participativo que envolva os destinatários, exercendo a inclusão cultural. Em uma sociedade caracterizada pela fragmentação, a cultura intervém para preencher a falta de um contexto coerente de relações sociais, e ela atinge sua meta. A RC trata do horizonte das relações humanas, tanto na aprendizagem como em um contexto experiencial. Além disso, ela considera a cultura como um bem comum, e assim demanda que as atividades culturais sejam planejadas para envolver as comunidades locais e os cidadãos, tendo de responder às necessidades culturais específicas do público a que se destinam. A RC é uma atitude que tem implicações diferentes, dependendo do ponto de vista adotado: • Do ponto de vista político, exige a organização de eventos culturais com base na continuidade, persistência e resiliência, que enxergam a cultura como uma dimensão vertical que abrange todas as áreas do desenvolvimento humano; • Do ponto de vista do artista, significa desenvolver a vocação de todo mundo e restaurar a dignidade ao trabalho dele; • RC é uma atitude que não vê a cultura como um produto de consumo; a cultura está conectada a uma atitude criativa, o que significa ter capacidade para mudar a si mesmo, deixando de lado preconceitos. 140

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Do ponto de vista de quem tem um papel de gestão em produtoras, ONGs e ações culturais, implica algumas funções: • Primeiro, por causa da importância da cultura no desenvolvimento da civilização, é um dever das instituições culturais de prestação de serviços garantir o crescimento das comunidades em termos de aumento do conhecimento e do aperfeiçoamento de competências, educação e aprendizagem ao longo da vida; • Em segundo lugar, as instituições culturais fornecem espaços onde as pessoas possam se reunir e realizar, onde a produção cultural ocorra como um processo participativo e para o desenvolvimento de competências de gestão relacionados com a função de coesão que a cultura exerce; • Finalmente, gestores culturais têm de tomar decisões que são transparentes e comunicáveis a todos os atores envolvidos. Além dos diferentes significados que o conceito de RC pode abarcar, um elemento comum pôde ser identificado: • A centralidade dos indivíduos/comunidades e das relações humanas; • O incentivo ao crescimento cultural de cada indivíduo, independente da configuração social a qual pertença, produzindo um contexto socialmente inclusivo; • As relações econômicas são preponderantes nesse momento histórico, devemos tentar identificar quais são os efeitos que podem ter; • O ponto de partida é que, em uma sociedade de livre mercado caracterizada pela troca de mercadorias, os mundos simbólicos dos indivíduos permanecem na centralidade. Responsabilidade cultural é uma atitude que deve afetar o comportamento econômico e tornar mais respeitosos os mundos simbólicos de indivíduos e comunidades. Assim, as condições estabelecidas permitem que todos tenham uma chance de felicidade. Além disso, a responsabilidade cultural é uma implicação da responsabilidade social empresarial, porque se refere a um dos três aspectos do Tripé de Sustentabilidade: as pessoas. Como consequência, a prática de RSE força as organizações a cuidarem do crescimento econômico por meio da satisfação das necessidades sociais, proteção ambiental e exigências culturais. 141

Responsabilidade cultural

Responsabilidade cultural tem que ser traduzida em padrões de conduta e valores, sendo os principais a humanidade e a reciprocidade. Esses valores precisam ser ensinados e devem ser respeitados por todas as organizações.

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