A PERSPECTIVA DEMOCRATIZANTE DO DIREITO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO E SEUS IMPACTOS NA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL ESTABELECIDA

June 28, 2017 | Autor: Alexandre Catharina | Categoria: Direito Processual Civil, Sociologia Jurídica
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A PERSPECTIVA DEMOCRATIZANTE DO DIREITO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO E SEUS IMPACTOS NA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL ESTABELECIDA

Alexandre de Castro Catharina 1

RESUMO O Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu um novo paradigma processual com forte matiz democratizante. Neste sentido, objetiva-se analisar os institutos processuais que viabilizam a democratização do processo jurisdicional e identificar como a cultura jurídica processual brasileira absorverá esses novos institutos democratizantes. O artigo, portanto, pretende traçar, em linhas gerais, propostas para superação da cultura jurídica individualizante prevalecente nas instituições judiciárias e viabilizar a expansão e eficácia das dimensões democratizantes do processo jurisdicional. PALAVRAS-CHAVE Reformas processuais; democratização do processo; cultura jurídica processual.

ABSTRACT The Civil Procedure Code of 2015 established a new process paradigm with strong democratizing hue. In this sense , the objective is to analyze the procedural institutes that enable the democratization of the judicial process and identify how the Brazilian procedural legal culture absorb these new democratizing institutions. The article therefore seeks to indicate , in general , proposals for overcoming individualizing prevailing legal culture in the judiciary and facilitate the expansion and effectiveness of democratizing dimensions of the legal proceedings. KEYWORDS Procedural reforms; democratization process; procedural legal culture.

1

Doutor em Sociologia pelo IUPERJ/UCAM. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Professor de Direito Processual Civil (graduação e pós-graduação) da Universidade Estácio de Sá. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP.

Introdução

O direito processual civil brasileiro foi objeto de diversas transformações com o escopo de redimensionar o acesso à justiça, racionalizar a administração da justiça e dar maior efetividade à própria atividade jurisdicional. Essas transformações foram condicionadas pela complexidade dos conflitos que emergiram da sociedade contemporânea como também pela necessidade de se administrar, de forma adequada, a multiplicidade de processos judiciais que tramitam no Poder Judiciário brasileiro. Nessa linha de reflexão, o processo civil constitui um método de administração de conflitos, específico, que é determinado, em certa medida, pelas condicionantes sociais e políticas de um dado momento histórico. Considerada essa premissa, podemos identificar na história recente do direito processual civil brasileiro alguns movimentos renovatórios cuja finalidade era adequar o método de administração de conflitos à complexidade e anseios sociais. O primeiro movimento renovatório 2 foi influenciado pelo Projeto de Florença, coordenado por Cappelletti (1988) na década de 1970, cuja finalidade era aprimorar a processualística brasileira para contemplar tutela jurisdicional dos direitos coletivos, através da Lei nº 7.347/1985. Embora a ação civil pública tenha sido estabelecida antes da Constituição Federal de 1988, não há dúvidas de que representou certa mudança de perspectiva do direito processual, transformando, do ponto de vista teórico, um modelo elaborado para solução de conflitos individuais para abarcar, também, a solução de conflitos coletivos 3 . Com efeito, a tutela coletiva foi redimensionada no período posterior à promulgação da Carta Magna e aprimorada através do Código de Defesa do Consumidor. Na década de 1990, inicia-se o segundo movimento renovatório que se desenvolveu em três eixos distintos. O primeiro eixo buscou estabelecer microssistemas processuais com o objetivo de ampliar o acesso à justiça e dar maior celeridade no julgamento de demandas específicas. Sendo assim, a expansão dos Juizados Especiais Cíveis em todo território nacional, mediante aprovação da Lei nº 9.099/95, em atenção ao comando constitucional (art. 98, I), e a instituição da arbitragem, através da Lei nº 2

Para melhor descrever o panorama das principais reformas processuais ocorridas no Brasil, estabelecemos um recorte histórico denominado de movimentos renovatórios. 3 Importante ressaltar que a Lei nº 4.717/1965, que instituiu a Ação Popular, também dispõe sobre a defesa dos direitos coletivos, mas o potencial desse instrumento processual foi redimensionado após a Constituição Federal de 1988.

9.307/1996, contribuindo para a normatização dos meios alternativos de solução de conflitos, representam reformas significativas nesse contexto. O segundo eixo teve como proposta estabelecer institutos processuais voltados para dar maior efetividade ao processo, como a antecipação de tutela (art.273 CPC/1973) e a tutela específica, caracterizada pelo aprimoramento das medidas de apoio nas obrigações de fazer (art.461 do CPC/1973), que foram inseridas em nosso ordenamento processual através da Lei nº 8.952/1994. O terceiro eixo contempla as reformas voltadas para racionalização da administração da justiça, com forte ênfase na ampliação dos poderes do relator no âmbito dos Tribunais. A Lei nº 9.756/1998 ampliou os poderes dos relatores ao permitir o julgamento monocrático do incidente de conflito de competência (art. 120, parágrafo único, CPC/1973) e possibilitar o julgamento monocrático de recursos cíveis nos termos do art. 557 do mesmo Diploma processual. A Emenda Constitucional nº 45/2004, por seu turno, encaminhou o terceiro movimento renovatório caracterizado pela objetivação do processo e do estabelecimento das bases normativas para inserção do sistema de precedentes judiciais no processo civil brasileiro. O alto número de processos e a multiplicidade de recursos estimularam o legislador a promover a reforma do Poder Judiciário através da criação da Súmula Vinculante para o Supremo Tribunal Federal (art. 103-A da CF/1988), da repercussão geral nos recursos extraordinários através da Lei nº 11.418/2006 e do recurso especial repetitivo regido pela Lei nº 11.672/2008. O principal vetor desse movimento tem como propósito estabelecer um sistema recursal objetivo com a finalidade de obter maior segurança jurídica e isonomia no julgamento de demandas repetitivas, além de dar maior celeridade no julgamento dos processos que se avolumam diariamente no Poder Judiciário. O quarto e último movimento renovatório corresponde à perspectiva democratizante do processo civil brasileiro normatizado pela Lei nº 13.105/2015. A ampliação do próprio conceito de cidadania social (WERNECK VIANNA, 2002) e do redesenho institucional do Poder Judiciário como um locus da democracia brasileira (CATHARINA, 2015), contribuiu para o amadurecimento de certa dimensão democrática e participativa da construção da decisão judicial que repercutiu, de forma consistente, em diversos institutos do Código de Processo Civil de 2015. Nessa perspectiva, a nossa proposta nesse trabalho é, num primeiro momento, identificar os diversos instrumentos de democratização do processo judicial dispostos

no CPC/2015, e, num segundo momento, refletir sobre os impactos que a inserção desses mesmos instrumentos pode causar na cultura jurídica processual brasileira.

Processo Judicial e democracia no Brasil

Para melhor compreender o processo histórico que influenciou a criação progressiva das bases normativas do processo jurisdicional democrático, importante se faz abordar, ainda que de forma panorâmica, as transformações institucionais e sociais conduzidas pela promulgação do texto constitucional. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um importante marco na consolidação dos novos direitos no Brasil e, principalmente, contribuiu de forma decisiva para o fortalecimento da cidadania. Ao assegurar os direitos coletivos e difusos e estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana como axioma fundamental, a Constituição possibilitou, com efeito, uma releitura da democracia brasileira expandindo o campo de atuação da sociedade civil organizada na formulação de políticas públicas e na gestão de interesses coletivos voltados para os direitos humanos e a proteção do meio ambiente. Neste contexto, é possível identificar em nossa cultura política nacional traços evidentes de uma democracia participativa, caracterizada por uma maior atuação da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais no debate público e no encaminhamento de questões concernentes a diversos segmentos da sociedade brasileira. Esse fenômeno é bem retratado na literatura sociológica especializada (AVRITZER, 2007 e DAGNINO, 2009). Esse novo horizonte da democracia brasileira também pode ser reconhecido no campo jurídico4. O deslocamento para o Supremo Tribunal Federal de questões com ampla repercussão social, veiculadas através de ações diretas de inconstitucionalidade e ações de descumprimento de preceito fundamental, possibilitou a intervenção estratégica da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais no processo de formação da decisão judicial, transformando o órgão de cúpula do Poder Judiciário numa arena de disputas sociais sobre setores da sociedade com interesses diversos. A ADPF 54, que tratou do aborto do feto anencefálico, é emblemática no sentido de demonstrar a ampla participação da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais na formação da decisão judicial. Participaram do processo decisório a 4

O conceito de campo utilizado nesse trabalho foi apropriado da teoria sociológica de Bourdieu (2011).

Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros como também diversos movimentos feministas, polarizando o debate acerca das dimensões morais e religiosas acerca do tema. Essa nova arquitetura institucional do Poder Judiciário, como um espaço público de debates, vem estimulando um novo arranjo na estratégia de atuação dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada que se apropriam dos instrumentos de democratização do processo, como amicus curiae e audiências públicas, como forma de intervenção nos processos decisórios encaminhados pelo Supremo Tribunal Federal (CATHARINA, 2015). É nesse contexto institucional, social e político que se estabeleceu as premissas para um processo jurisdicional democratizante, no âmbito da jurisdição constitucional, que se estendeu, do ponto de vista normativo, para o processo civil brasileiro através do tratamento de diversos instrumentos processuais de democratização do processo regulamentados no Código de Processo Civil de 2015. Denominamos

de

perspectiva

democratizante

do

processo

civil

o

estabelecimento de instrumentos processuais que viabilizam a participação da sociedade civil organizada na formação da decisão judicial, como amicus curiae e a realização de audiências públicas. Importante frisar que o Código de Processo Civil de 2015 rompeu com a estrutura processual do Código de 1973, ao dispor sobre procedimentos para solução de conflitos com ampla repercussão social e dos casos repetitivos garantindo, pelo menos do ponto de vista formal, maior participação dos atores sociais e dos representantes dos diversos segmentos sociais. Pode-se sustentar, e com razão, que os instrumentos de democratização do processo não são inovações trazidas pela Lei nº 13.105/2015, considerando que estes já são utilizados no controle da constitucionalidade levados a efeito pelo Supremo Tribunal Federal.

No entanto, o que se analisa nesse artigo é apropriação desses

instrumentos pelo Código de Processo Civil, tornando regra geral para a processualística brasileira, contemplando processos judiciais que não compõe a denominada jurisdição constitucional.

Instrumentos processuais de democratização no Código de Processo Civil de 2015 O Código de Processo Civil de 1973, aprovado em pleno regime militar, teve o mérito de fundar as bases científicas do direito processual brasileiro, incorporando os

conceitos fundamentais do direito alemão e italiano. No entanto, considerando as condicionantes sociais e políticos desse período histórico, o código foi estruturado para solução de conflitos individuais admitindo a intervenção de terceiros somente nas hipóteses legais em que a decisão judicial iria afetar a esfera jurídica de outrem. A preocupação principal do legislador processual na década de 1970, portanto, era estabelecer um método de solução de conflitos, com autonomia e com aporte científico sólido, que fosse capaz de pacificar conflitos. De modo distinto, o Código de Processo Civil de 2015 sistematizou um ordenamento processual assentado em mecanismos de solução de conflitos de massa, assegurando, pelo menos em tese, maior segurança jurídica e isonomia através dos precedentes judiciais. Por outro lado, expandindo as hipóteses de democratização do debate judicial através da intervenção dos representantes da sociedade civil, ainda que estes não tenham sua esfera jurídica diretamente afetada pela decisão judicial, perfilando um sistema processual com matiz democratizante no que concerne à formação da decisão judicial. A primeira inovação nesse sentido concerne à ampliação da atuação do amicus curiae no processo civil brasileiro. A Lei nº 13.105/2015 regulamentou a atuação do amicus curiae, em seu art. 138, permitindo a atuação de pessoas, físicas ou jurídicas, com representatividade adequada, nos processos individuais ou coletivos, que tramitam no primeiro ou segundo graus de jurisdição sempre que a demanda tenha conteúdo específico ou forte repercussão social. A atuação do amicus curiae, com efeito, será definida pelo juiz ou relator (art. 138,§2º), não cabendo aos amigos da Corte interpor recursos, ressalvada as hipóteses de julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 138,§3º). Trata-se, neste sentido, de normatização e generalização de um importante instrumento de democratização do processo judicial, que depende, para ter sua funcionalidade, da mudança da cultura jurídica processual brasileira fortemente influenciada pelo individualismo liberal, conforme será aprofundado mais adiante. A segunda inovação da nova legislação processual diz respeito à criação do incidente de resolução de demandas repetitivas. O novo código tem como um de seus princípios informadores a segurança jurídica que se materializa em diversos institutos jurídicos. Nesse sentido, o incidente de resolução de demandas repetitivas surge como meio de julgar diversas ações idênticas através de um único incidente. Em verdade, o julgamento coletivo ou objetivado não é novidade em nosso sistema processual,

conforme se verifica na repercussão geral no recurso extraordinário e o julgamento de recursos repetitivo ou por amostragem no recurso especial. No entanto, o incidente de resolução de demandas repetitivas inaugura uma metodologia de julgamento padronizada no primeiro grau de jurisdição. Segundo o art. 976 do NCPC, o incidente poderá ser suscitado sempre que ocorrer, simultaneamente, efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. O critério utilizado pelo código, portanto, teve como escopo unificar teses para julgamento coletivas de questões idênticas de direito. A legitimidade para instauração do incidente perante o Tribunal foi atribuída ao juiz ou relator do recurso, às partes, ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Nesse sentido, identificando que a causa que contenha controvérsia sobre questão de direito é repetitiva e há o risco de ofensa à isonomia o incidente poderá instaurar perante o órgão do respectivo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal por qualquer um dos legitimados mencionados acima. Em regra o incidente deverá ser processado em julgado pelos Órgãos Especiais dos Tribunais de Justiça (art. 978). A publicidade do incidente instaurado será feita de forma eletrônica, nos termos do art. 979,§2º. Instaurado o procedimento e devidamente publicado, os processos individuais e coletivos que tratem da questão de direito ventilada no incidente serão suspensos nos termos do art. 982 do CPC/2015. Caso algum processo seja suspenso indevidamente ou que tese jurídica não corresponda à tese que será julgada no incidente as partes poderão impetrar Mandado de Segurança, considerando que não se admite a interposição de recurso de agravo de instrumento (art. 1.015). No julgamento do incidente será cabível sustentação oral das partes do processo paradigma, o Ministério Público, e os demais interessados. Importante observar que a Lei nº 13.105/2015 garantiu a democratização do debate ao permitir que os demais interessados, como os sujeitos processuais dos processos suspensos ou instituições, entidades ou movimentos sociais afetados pela decisão, participem do processo decisório do incidente, conforme dispõe o art. 984 do CPC/2015. Realizado o julgamento e fixada a tese jurídica esta terá eficácia em todo Estado ou região abrangida pelo Tribunal que julgou o incidente. Importante destacar que a tese fixada, após o trânsito em julgado, será aplicada em todos os processos individuais e coletivos suspensos, ou não, que tratem da mesma tese jurídica e aos casos futuros que versem sobre a mesma questão idêntica. Nesses casos a pretensão autoral formulada

pelo autor será julgada improcedente liminarmente, nos termos do art. 332, III, do CPC/2015. Caso os legitimados, parte integrante dos processos suspensos ou afetados pela tese firmada no incidente, ou amicus curiae (art. 138,§3º) interpuserem recurso especial ou extraordinário (art. 982,§3º c/c 987) e estes sejam admitidos e conhecidos pelos respectivos Tribunais superiores, a tese jurídica fixada no incidente terá aplicabilidade em todo território nacional. A tese fixada no incidente poderá ser revista mediante requerimento do Ministério Público e da Defensoria Pública, conforme dispõe o art. 986 do CPC/2015. Esse dispositivo excluiu a possibilidade de a Ordem dos Advogados do Brasil formular requerimento de revisão de tese, o que nos parece contrariar o art. 133 da Constituição Federal de 1988. Percebe-se que o novo Código de Processo Civil privilegiou a segurança jurídica utilizando como método a estratégia de julgamento padronizado de questão de direito idênticas ou que possam ofender a segurança jurídica. A estruturação do incidente, no plano normativo, é interessante método de julgamento de demandas de massa e de democratização do processo jurisdicional, mas exige séria preparação das partes para atuarem, através de seus procuradores, adequadamente de forma a evitar violações do princípio do amplo acesso à justiça, devidamente reforçado no art. 3º do NCPC. A terceira inovação no sentido da democratização do processo concerne ao sistema de precedentes judiciais. Em conformidade com o art. 927,§2º, a alteração de um precedente judicial pode ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para rediscussão da tese. Percebese, portanto, que se trata de uma alteração substancial em nosso ordenamento processual no sentido de permitir que a sociedade civil organizada participe da discussão pública acerca da alteração de um precedente judicial. Na arquitetura institucional do Poder Judiciário no período anterior ao Código de Processo Civil de 2015, a mutação jurisprudencial ocorre mediante a mudança da composição de um determinado órgão fracionário ou da mudança no entendimento dos ministros de um determinado Tribunal Superior sem a participação direta e efetiva da sociedade civil. Esse protagonismo judicial gera déficits de legitimidade que inviabiliza a democratização do processo judicial (NUNES, 2012). Nessa linha de reflexão, a garantia de participação da sociedade civil na alteração da tese jurídica fixada em precedentes judiciais é uma importante

transformação no modo de ser do processo civil brasileiro, contribuindo para a consolidação de uma metodologia de julgamento marcadamente democratizante e sem precedentes na cultura jurídica processual brasileira. A última inovação no sentido da democratização do processo judicial é a possibilidade de atuação efetiva da sociedade civil organizada no processamento do recurso, conforme dispõe o art. 1.038, I, como também a possibilidade de realização de audiência pública nos julgamento dos recursos extraordinário e recursos especiais repetitivos, conforme interpretação literal do art. 1.038, II, da Lei nº 13.105/2015. Embora a realização de audiência pública e a participação da sociedade civil organizada nos processos decisórios no âmbito do Supremo Tribunal não seja novidade, importante destacar que estes instrumentos de democratização do processo somente eram admitidos nos julgamentos de ação direta de inconstitucionalidade, ação de descumprimento de preceito fundamental e na ação declaratória de constitucionalidade, conforme dispõe o art. 9º, §1º da Lei nº 9.868/1999. O tratamento desses instrumentos, como regra geral no julgamento dos recursos extraordinários e recursos especiais repetitivos, constitui importante ampliação da perspectiva democratizante do processo judicial no âmbito dos Tribunais superiores responsáveis pela edição dos principais precedentes judiciais no regime estabelecido no Código de Processo Civil de 2015. Assim sendo, a inserção do amicus curiae, do incidente de resolução de demandas repetitivas, da legitimação da sociedade civil organizada para encaminhar propostas de alteração de precedentes judiciais e a realização de audiências públicas nos julgamentos

dos

recursos

excepcionais

objetivos,

evidenciam

a

perspectiva

democratizante do processo civil brasileiro incorporada ao novo Diploma processual. Essa metodologia, pelo menos do ponto de vista formal, destaca a dimensão do Poder Judiciário com um espaço público de exercício da cidadania e do debate público acerca das demandas das coletividades envolvidas nos julgamentos de massa e dos casos repetitivos. Esse redimensionamento institucional do Poder Judiciário em muito se aproxima, do ponto de vista formal e teórico, da proposta de Habermas (2003) acerca da importância da construção de um novo paradigma do direito. Segundo essa perspectiva teórica, nas sociedades contemporâneas, marcadamente desiguais, se faz necessário a consolidação de um paradigma jurídico que promova uma intensa interação entre direito e democracia, caracterizado pela participação da sociedade civil na construção dos direitos.

Essa participação, no contexto brasileiro, pode ser efetuada através da intervenção nos processos decisórios, o que representam uma situação ideal de fala para os atores sociais cujos interesses não são plenamente contemplados pelo legislador ou se tronam fragilizados quando julgados individualmente. No entanto, a reflexão que emerge desse quadro é no sentido de identificar em que medida a cultura jurídica processual brasileira é aderente aos instrumentos de democratização do processo assegurados no Código de Processo Civil de 2015.

Processo democratizante e seus impactos na cultura jurídica hierárquica brasileira

O processo jurisdicional democrático (NUNES, 2012) estruturado no Código de Processo Civil de 2015 não possui estreita relação com a cultura jurídica processual brasileira, que é caudatária de um desenho institucional marcadamente conservador, liberal e hierarquizado. Essa compreensão é fundamental para que possamos, de forma crítica, atuar para que os novos instrumentos de democratização do processo tenham efetividade em nosso ordenamento processual. Em verdade, na cultura jurídica processual brasileira, desde o período colonial, o juiz detém o monopólio do saber jurídico no sentido de declarar o que é direito através da aplicação do processo de subsunção da norma ao caso concreto. Não há, portanto, entre nós uma cultura processual democrática em que a decisão judicial represente as dimensões participativas de diversos atores sociais ao longo de um determinado processo decisório. Essa análise da estrutura judiciária brasileira é imprescindível para que o paradigma processual democrático assegurado no Código de Processo Civil de 2015 tenha plena eficácia. Para Lenio Streck (2009), ainda permanece nas instituições judiciárias brasileiras um paradigma liberal-individualista que inviabiliza a efetivação dos novos direitos. Há, portanto, uma crise no paradigma do direito vigente que decorre da tensão entre os direitos e garantias assegurados no texto constitucional e a estrutura individualista-liberal de diversos setores do Poder Judiciário nacional. Nessa mesma linha interpretativa Dierle Nunes (2012) sustenta a importância de se superar esse paradigma para que se possa, de forma efetiva, garantir o amplo desenvolvimento da cidadania participativa. Segundo o autor:

“Percebe-se, assim, que a disputa entre uma matriz liberal, social ou mesmo, pseudo-social (neoliberalismo processual) do processo, fruto da ressonância dos paradigmas estatais, não pode mais solitariamente responder aos anseios de uma cidadania participativa, uma vez que tais modelos de concepção processual não conseguem atender ao pluralismo não solipsista e democrático do contexto normativo atual (2012, p. 41).”

Em um estudo empírico sobre a efetividade dos direitos coletivos no Brasil, concluímos que ainda permanece em nossa cultura jurídica processual um forte matiz individualizante, o que inviabiliza a plena eficácia das normas que tratam dos direitos coletivos e difusos no Judiciário brasileiro (CATHARINA, 2007). Essa constatação, observada em estudos diversos e a partir de referenciais teóricos díspares, como os apontados acima, tem como premissa maior propiciar uma reformulação da literatura processual no sentido de se estabelecer uma contracultura que englobe as dimensões democratizantes do processo civil brasileiro. O atual desenvolvimento doutrinário do direito processual nos permite compreender que a mudança na legislação, por si só, não conduz a mudanças estruturais na sociedade. Por essa razão, além da reforma legislativa encaminhada pela Lei nº 13.105/2015, outras reformas, institucionais e educacionais, devem ser formuladas para que se supere a cultura jurídica fundante da processualística brasileira. O primeiro conjunto de reformas institucionais necessárias concerne à própria formação da magistratura brasileira. Faz-se necessária uma formação permanente para que se estabeleça um perfil de magistrado sensível às dimensões democráticas do processo civil brasileiro para que conduza o procedimento admitindo a participação adequada da sociedade civil através dos instrumentos de democratização do processo. Sem essa formação, as normas avançadas acerca da democratização do processo não alcançarão a eficácia necessária. Embora as escolas de magistratura tenham um papel fundamental na formação dos quadros do Poder Judiciário outras variáveis, como a incorporação crescente de jovens (WERNNECK VIANNA, 1997), interferem na continuidade do solipsismo do julgador brasileiro inviabilização a plena difusão dos valores democratizantes do processo jurisdicional. O segundo

conjunto de reformas

institucionais está relacionado

ao

aprimoramento da advocacia brasileira para que possa operar de forma adequada os

instrumentos de democratização do processo. A atuação da advocacia na defesa dos interesses do amicus curiae ainda é incipiente no Brasil, considerando diversos aspectos como cultural ou até mesmo econômicos. No entanto, a preparação da advocacia para manejar esses instrumentos é fundamental para que se impeçam arbitrariedades ou mesmo violações das garantias asseguradas na Constituição Federal de 1988. Com efeito, a realização de cursos de aperfeiçoamento como também auxílio aos advogados sem formação adequada para atuar em causas com ampla repercussão social é fundamental para superação da cultura jurídica individualizante. A reforma da educação jurídica, por sua vez, deve ter como escopo aprofundar o estudo prático e científico das dimensões democráticas do processo civil contemporâneo, com procedimentos simulados, permitindo aos alunos uma ampla formação para atuar na defesa dos interesses coletivos da sociedade civil organizada. Por outro lado, o aprofundamento teórico acerca dos instrumentos de democratização do processo, como amicus curiae, incidente de resolução de demandas repetitivas, entre outros, contribuirá efetivamente para a formação de gerações profissionais das carreiras jurídicas com sólida percepção das dimensões democráticas do processo jurisdicional contemporâneo. A conjugação desses esforços reformadores, no campo institucional, é decisiva para superação de uma cultura jurídica processual individualizante dos conflitos e solipsista fundante do direito processual civil brasileiro, além de contribuir para estabelecer as bases para a efetivação dos institutos processuais que viabilizam a democratização jurisdição civil e constitucional.

Conclusão

A tensão estabelecida, entre as propostas inovadoras do Código de Processo Civil de 2015 e a cultura jurídica de matiz liberal das instituições judiciárias brasileiras, enseja dois posicionamentos distintos e incompatíveis acerca do futuro da perspectiva democratizante do processo jurisdicional. O primeiro se limita a negar a possibilidade de efetividade das normas democratizantes do processo civil, considerando a neutralidade e o tecnicismo inerente ao Poder Judiciário. A segunda, a qual aderimos, admite a existência de condicionantes culturais que oferecem fortes resistência à ampla aplicação dos instrumentos de democratização do processo, mas a atuação intensa da

sociedade civil organizada e dos movimentos sociais é capaz de superar o paradigma do direito estabelecido e avançar na estruturação de um processo jurisdicional democrático em harmonia com os valores assegurados na Constituição Federal de 1988. Essa percepção contribui para a expansão da democracia participativa, no âmbito do Poder Judiciário, sobretudo na nos processos decisórios de formação dos precedentes judiciais, com forte natureza normativa, expressando uma nova dimensão da vida social contemporânea.

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Leonardo.

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