A Perspectiva na Renascença: O quadro vertical e a dinâmica do ponto de fuga.
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1.1. A Perspectiva na Renascença: o quadro vertical e a dinâmica do ponto de fuga.
1.1.1. A visão e a representação científica na pintura italiana Ainda antes dos pintores Renascentistas italianos introduzirem os primeiros conceitos de perspectiva linear, já os gregos, e mais tarde os romanos, tinham conhecimento do fenómeno e tentaram de uma forma empírica representar a “ilusão da profundidade”. Podemos destacar exemplos de tentativas ainda bastante primitivas em desenhos aplicados na cerâmica (Fig.1) ou em frescos romanos que decoravam algumas habitações.
Figura 1.-‐ Desenhos decorativos de vasos gregos. Na figura superior é bem visível a base da mesa em perspectiva, e na figura inferior o pormenor da porta que abre. Figuras incluídas na obra de Otto B. Wiersma, “Perspective Seen from Different Points of View” , last update 2007, p.1, disponível na Web em http:// www.ottobw.dds.nl/filosofie/perspect.htm.
Os gregos lançaram as bases da geometria, defenderam que duas linhas paralelas nunca se encontram, mas os seus tratados de óptica1 defendem que as linhas paralelas assumem características de convergência com a distância. O arquitecto Ictinos2, dois séculos antes de Euclides, aplicou esta teoria na construção do Parthénon em Atenas, colocou todas as colunas na direcção de um ponto convergente sensivelmente a 2.000 m de altitude (Fig.2). Esta opção, permitiu que a parte inferior do monumento ficasse maior que a superior, prolongando o desejado efeito de monumentalidade3.
1 A história da óptica dos gregos antigos até o início do século XVII é muito complexa. Salientamos apenas os aspectos centrais, sem detalhar os argumentos, acerca do problema de como se produz a visão e a relação entre anatomia, filosofia e matemática. Para o leitor interessado na história da óptica até o início do século XVII, sugerimos em especial três autores, Crombie, Lindberg e Ronchi. Lindberg (1976) que nos descreve uma história da óptica desse período com boa apresentação e com um enfoque interpretativo das três tradições de pesquisa, filosófica, médica e matemática, surgidas na Grécia antiga; em Lindberg (1971), há uma apresentação de Al-Kind; em Lindberg (1967) é analisada a recepção e a importância de Alhazen para o ocidente. Crombie (1967, 1990 e 1991) mostra o desenvolvimento da óptica no mundo grego, medieval e renascentista, comparando- o com o desenvolvimento no século XVII; em Crombie (1987) temos um panorama da óptica na Idade Média. Ronchi (1952 e 1959) são obras clássicas sobre o período. Outros autores merecem destaque: Cohen & Drabkin (1948) pelos textos de autores antigos, especialmente de Euclides e de Ptolomeu; Castiglioni (1941) e Singer (1996) fazem apresentações históricas da anatomia; Smith (1988) discute a percepção visual em Ptolomeu; Unguru (1972) discute a matemática de Vitélio; Hatfield & Epstein (1979) discutem Ptolomeu e Alhazen; e Pirenne (1952) é uma boa introdução ao estudo da teoria da perspectiva de Leonardo da Vinci. cf. Claudemir ROQUE TOSSATO, “A função do olho humano na óptica do final do século XVI”, Scientle studia, 2005, São Paulo, v.3,n.3,p.415-‐41. 2 Ictinos foi um arquitecto da segunda metade do séc. V a.C., que, em conjunto com Calícrates projectou o Parthénon (447 a.C. - 432 a.C.) em Atenas, na Grécia. Conhece-se pouco sobre a vida de Ictino. O que se sabe é proveniente de alguns escritos de Plutarco. O exemplo mais bem preservado dos projectos que desenhou é o Templo de Hefesto (ordem dórica) em Atenas, que foi bem preservado devido ao facto de ter sido uma Igreja Cristã. Também se crê que o Templo de Apolo Epicuro em Bassae, o primeiro templo conhecido que utilizou a ordem coríntia nas suas colunas, tenha sido obra de Ictinos. “Ictinos”. Artigo n.a. e n.d., disponível na Web: www.pt.wikipedia.org/wiki/ictinos 3 Phillipe COMAR, La Perspective en jeu-Les dessous de l’image, Paris, Gallimard, 1992, pp. 20-‐21.
Figura 2. -‐ Desenho demonstrativo dos efeitos da convergência, figura incluída na obra de Philippe COMAR, op.cit., p.20.
Também na cenografia4 podemos encontrar exemplos de representações distorcidas, como fachadas de edifícios ou outros elementos de características arquitectónicas, mas sem o rigor que os pintores italianos do Renascimento vão aplicar e adoptar mais tarde. A questão das distâncias dos objectos em relação ao ponto do observador e o seu resultado visual, em superfícies planas, despertou interesse dos artistas e constituiu um dos primeiros caminhos que o desenvolvimento da perspectiva teve que percorrer. A tentativa de relacionar os espaços com métodos de medição e relações de carácter geométrico esteve sempre na base dos estudos que o homem realizou para conseguir representar com maior rigor o que via ou o queria que os outros vissem, colocando-‐se sempre na posição do observador.
4 Manuel Jorge Rodrigues COUCEIRO da COSTA, Perspectiva e Arquitectura. Uma Expressão de Inteligência no Trabalho de Concepção, Dissertação de Doutoramento em Arquitectura, Lisboa, Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Maio 1992, pp. 80-‐84.
Voltando ao pensamento grego, caracterizado pela constante e universal aspiração à justa medida, à perfeição, à beleza e que via na arte uma transfiguração do homem, verificamos que aquele lançou as bases para o pensamento do Renascimento e do gosto pelo “clássico”. Perspectiva é uma palavra latina que significa “ver através de”5 onde somos levados a acreditar que olhamos para um espaço através de uma “janela” e se reinterpreta como um plano do quadro. Sobre este plano do quadro projecta-‐se o contínuo espacial visto através dele e no qual se considera “estarem projectados” os diversos objectos. Já Leonardo estabelece a mesma analogia com “Pariete di vetro”, ou vidraça6. Mas voltando a Euclides7 e às leis da visão e do cone visual8 (Fig.3), os pintores da antiguidade já estavam familiarizados com o fenómeno dos raios que emanam do olho, e portanto estavam cientes da sua importância, mas nunca conseguiram desenvolver um sistema perspéctico. Euclides demonstrou que os ângulos rectos dão a sensação de serem redondos, uma vez vistos de uma certa distância. Esta demonstração prova que os antigos estavam familiarizados com o efeito 5 Erwin PANOFSKY, A Perspectiva como Forma Simbólica, Lisboa, Ed. 70, Outubro de 1999, p. 31 nota 1. 6 Cf., Idem, Ibid., p. 31, nota 4. 7 A importância de Euclides ( séc. III a.C.) para a matemática foi fundamental, podemos afirmar que criou a ciência da óptica geométrica e perspéctica, ao tomar o olho como o ponto de origem das linhas de visão das quais ele postulou as propriedades principais. Tais propriedades são os sete postulados de Euclides contidos na sua obra Óptica que são: (1) que os raios rectilíneos procedentes do olho divergem indefinidamente; (2) que a figura contida por um grupo de raios visuais é um cone, do qual o vértice localiza-‐se no olho e a base na superfície do objecto visto; (3) que as coisas que são vistas sob os raios visuais diminuem e as coisas que não são vistas sob os raios visuais não diminuem; (4) que as coisas vistas sob um ângulo grande parecem largas e aquelas sob um ângulo pequeno parecem pequenas, e aquelas sob ângulos iguais parecem iguais; (5) que as coisas vistas sob um ângulo visual amplo parecem amplas e as coisas vistas sob um ângulo visual reduzido parecem reduzidas; (6) que, similarmente, as coisas vistas sob raios mais afastados para a direita parecem mais afastadas para a direita e coisas vistas sob raios mais afastados para a esquerda parecem mais afastadas para a esquerda; (7) que as coisas vistas sob ângulos maiores são vistas mais claramente (Euclides apud Cohen & Drabkin, 1948, pp. 257-‐258). Cf. Claudemir ROQUE TOSSATO, “A Função do Olho Humano na Óptica do Final do Século XVI”, Scientle studia, São Paulo, 2005, v.3,n.3,pp.422-‐423. 8 Claudemir ROQUE TOSSATO, op. cit., v.3, n.3, pp.423-‐425.
das curvaturas visuais, onde aplicaram algumas técnicas para atenuar o efeito
Figura 3. – A teoria do cone visual de Euclides, na qual o olho emite os raios visuais que atingem o objecto visto -‐ teoria da emissão. O olho é o ápice do cone visual e o objecto visto é a sua base. Figura incluída na obra de Claudemir ROQUE TOSSATO, “A Função do Olho Humano na Óptica do Final do Século XVI”, Scientle studia, São Paulo, 2005, v.3,n.3,p.423.
da curvatura9. Vitrúvio faz referência ao fenómeno quando a certa altura refere “ um pilar cilíndrico abrandado parecerá mais estreito no meio, deverá o arquitecto alargá-lo nesse ponto”. Portanto, sendo a retina hemisférica, o afastamento entre dois pontos materializa-‐se por um arco. O espaço tem sido frequentemente representado nas pinturas por meio de elementos arquitectónicos. Nas pinturas do gótico inicial, galerias e pórticos foram utilizados para transmitir a sensação de espaço. Na pintura de Lorenzetti, (Fig.4) o plano frontal do Pórtico coincide com o plano de imagem, enquanto as linhas convergem no sentido de distância do espectador. O espectador, no entanto, não tem a sensação de ser parte da cena. O espaço ainda não foi sistematizado de acordo com as leis artificiais da perspectiva. 9
A Óptica da Antiguidade, que levou à concretização destas ideias, opôs-se inicialmente à perspectiva linear. Se foram então compreendidas, de maneira tão lúcida, as distorções esféricas da forma, tal compreensão radica em, ou, pelo menos, corresponde a um reconhecimento, mais significativo ainda, das distorções das grandezas. Também neste campo a teoria Óptica da Antiguidade se ajusta melhor do que a perspectiva do Renascimento. Cf. Erwin PANOFSKY, op. cit., p. 37.
O que vemos ali é uma representação de uma perspectiva natural que tenta imitar o fenómeno óptico de projecção em perspectiva, como é percebida pelo olho.
Figura 4. -‐ Pietro Lorenzetti, O sonho de Sobach, 1329. Figura disponível na Web em http://www.abcgallery.com/L/lorenzetti/plorenzetti12.html
Figura 5. -‐ Fra Angélico, Anunciação, Convento de S. Marcos em Florença (1436-‐45). Figura disponível na Web em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Fra_Angelico_043.jpg
A pintura da Figura 5 tem um carácter mais naturalista. A representação arquitectónica do objecto aproxima-‐se mais das convenções artificiais da perspectiva: as principais linhas convergem para um ponto de fuga localizado no interior da pintura e a linha do horizonte pode ser facilmente encontrada através do alinhamento dos capitéis com as cabeças das figuras e a pequena janela na parede traseira. No entanto, nesta obra o espectador ainda tem a impressão de estar fora do espaço representado na pintura. A pintura de Uccello (Figs.6 e 7) representa uma cena que se realiza simultaneamente em dois espaços diferentes, separados por uma parede.
Figura 6. – Paolo Ucello, The Jew’s attempt to destroy the Host (1468), Urbino Gallery Nacionale delle Marche. Figura incluída na obra de Martin KEMP, Science of Art Optical Themes in Western Art from Brunelleschi to Seurat, Yale University Press, New Haven and London, 1990, p. 39.
Figura 7. – Reconstrução perspéctica da pintura da figura 6, onde podemos ver os diferentes pontos de fuga alinhados na linha do horizonte. Figura incluída na obra de Martin KEMP, Science of Art Optical Themes in Western Art from Brunelleschi to Seurat, Yale University Press, New Haven and London, 1990, p. 39.
Aqui, parece que as leis da perspectiva artificial entram em contradição com a necessidade de representar duas cenas que se representam em dois espaços diferentes ao mesmo tempo. O muro em falta, que coincide com o plano imagem, foi removido para permitir a visão do interior. De certa forma, este é um passo em frente na representação perspéctica, embora ainda sem o êxito do trabalho realizado pela escola flamenga. Na obra de Ucello a construção da perspectiva não é completamente rigorosa, uma vez que nem todas as linhas paralelas convergem para o mesmo ponto de fuga.
Figura 8. – Fragmento de decoração de uma parede, em estuque e tinta, de Boscoreale, pertencente ao “quarto estilo”, século primeiro a. C., Nápoles, Museo Nazionali. Figura incluída na obra de Erwin PANOFSKY, A Perspectiva como Forma Simbólica, Lisboa, Ed. 70, Outubro de 1999, p. 135.
Um dos métodos mais usados para representar o efeito de perspectiva, na pintura Pré-‐Renascentista e clássica da Antiguidade consistia na convergência das linhas ortogonais em pares simétricos para uma linha central e vertical, dando origem ao esquema designado de “espinha de peixe”10 (Fig.8). Assim, as rectas foram convergindo para uma zona indeterminada mas muito próxima, mas só a partir das pinturas de Giotto é que o “ponto de fuga” foi utilizado, mas ainda sem o respectivo conhecimento científico que vem a atingir mais tarde. Por outro lado, durante o período Pré-‐Renascentista, os artistas foram aperfeiçoando as suas técnicas e de alguma forma alguns puseram em prática um sistema semelhante ao da representação axonométrica cavaleira. Um bom exemplo é a pintura que representa a Alegoria do Bom Governo: Efeitos do Bom Governo na Cidade e no Campo, de cerca de 1338-‐39, da autoria de Ambrogio Lorenzetti (Fig. 9).
Figura 9. – Alegoria do Bom Governo: Efeitos do Bom Governo na Cidade e no Campo(1338-‐39). Figura disponível na Web em http://www.jetset.it/piazza/pages/pictures/lorenzetti.htm
10 Este esquema de espinha de peixe, ou, dito de maneira mais elaborada, principio da “linha de convergência”, deteve, pelo menos até onde podemos remontar, um lugar central na representação espacial da Antiguidade. Cf. Erwin PANOFSKY, op., cit,. p.40.
Não restam dúvidas que a conhecida experiência de Brunelleschi com espelhos em torno do Baptistério deu origem à costruzione legittima, mas a descrição do método é pela primeira vez apresentada por Leone Battista Alberti11 (Figs.10 e 11).
Figura 10. – Diagrama de Alberti, relative à construção da perspective. Figura incluída na obra de Martin KEMP, Science of art Optical themes in Western art from Brunelleschi to Seurat, Yale University Press, New Haven and London, 1990, p. 23.
11 Cf. Leon Battista ALBERTI, On Painting, Tradução de Cecil Grayson, Book 1, London, Penguin Books, pp. 56-‐57-‐58.
Figura 11. – Diagrama de Alberti, método da projecção do circulo num plano em perspectiva. O circulo está inscrito num quadrado quadriculado e os seus pontos em verdadeira grandeza correspondem aos pontos do plano em perspectiva permitindo a construção do circulo em perspectiva. Figura incluída na obra de Martin KEMP, Science of art Optical themes in Western art from Brunelleschi to Seurat, Yale University Press, New Haven and London, 1990, p. 23.
Com o tratado De Pittura , Alberti vem afirmar que a perspectiva é uma ciência e que não é mais do que a intersecção da pirâmide visual, segundo uma distância e um corpo fixado ao centro. Este conceito reforça e propagandia o centralismo das pinturas do Renascimento italiano, com o posicionamento do ponto de fuga no centro da composição, ao contrário da pintura Flamenga do mesmo período que coloca a maior parte das vezes o ponto de fuga descentrado na composição12. Podemos afirmar que Alberti aplica os conhecimentos de Euclides (Fig.12), bem como o teorema de Tales e refere que os nossos olhos funcionam como uma pirâmide triangular (Fig.10) onde a base é a quantidade de coisa vista e cujos lados são esses mesmos raios que se dirigem ao olho desde os pontos extremos da forma quantificável. Por outras palavras, o que Alberti quer dizer é que a construção da perspectiva resulta da intercepção da pirâmide visual com o plano frontal do quadro perspéctico.
12 Cf. António TRINDADE, Um Olhar Sobre A Perspectiva Linear Em Portugal, Nas Pinturas De Cavalete, Tectos e Abóbadas: 1470-1816, Dissertação de Doutoramento em Belas Artes, especialidade em Geometria Descritiva, Faculdade de Belas-‐Artes da Universidade de Lisboa, 2008, pp. 118-‐122.
Figura 12. -‐ A visão para Euclides. Esta representação aparece na obra de Robert Flud que trata do microcosmo humano, publicada no ano de 1618. O homem, que está à esquerda, emite os raios visuais que atingem o busto à direita; as linhas tracejadas que estão entre o olho e a estátua são os raios visuais euclidianos. Figura incluída na obra de Claudemir ROQUE TOSSATO, “A Função do Olho Humano na Óptica do Final do Século XVI”, Scientle studia, São Paulo, 2005, v.3,n.3,p.423.
Alberti também faz referência à escala da figura humana. Refere que as figuras colocadas num plano em perspectiva, vão ficando mais pequenas conforme se aproximam da linha do horizonte. O que o autor afirma é que à medida que as dimensões do plano perspectivado diminuem em profundidade, diminuem igualmente e proporcionalmente as figuras que nele se inserem. Mais tarde, Piero della Francesca vem aprofundar mais a representação da figura humana no seu tratado “De Prospettiva Pingendi”. Podemos encontrar várias obras que testemunham a aplicação da costruzione legittima, como é o caso de um estudo de Leonardo para Uma Adoração dos Magos, c.1481, onde podemos ver a convergência de todas as ortogonais para um ponto de fuga preciso, como as ortogonais do desenho do pavimento das arquitecturas envolventes e dos degraus das escadas. Alberti reclama que a descoberta da perspectiva ou da costruzione legittima é da sua autoria, mas Vasari no seu livro atribui a descoberta a Filippo Brunelleschi.
Piero della Francesca no seu tratado De “Prospettiva Pingendi”, é o primeiro a descrever graficamente o seu método, mediante uma planta e um alçado num só esquema ou desenho, indo depois mais longe enunciando o método do quadrado circunscrito (Figs.13a -‐b, 14, 15, 16 e 17).
Figura 13a.– Piero della Francesca, De Prospettiva Pingendi, c.1470-‐80, Libro III, folha 33 frente:Perspectiva de um quadrado, através da costruzione legittima, partindo da planta, do alçado e dos raios visuais. Figura. citada por João Pedro Xavier, Sobre as Origens da Perspectiva..., p.71. Figura incluída na obra de António TRINDADE, op., cit., p. 170.
Figura 13b -‐ Piero della Francesca, De Prospectiva Pingendi...,Livro I: proposição XIX, folha 9 frente; proposição XXV, folha 12 frente; e proposição XXIX, folha 15 verso. Figura incluída na obra de António TRINDADE, op. cit., p. 170.
Figura 14. -‐ Piero della Francesca, De Prospectiva Pingendi...,Livro II, proposição I, folha 18 frente. Figura incluída na obra de António TRINDADE, op., cit., p. 173.
Figura 15. -‐ Piero della Francesca, De Prospectiva Pingendi...,Livro II, proposição II, folha18 verso. Figura incluída na obra de António TRINDADE, op., cit., p. 175.
Figura 16. -‐ Piero della Francesca, De Prospectiva Pingendi...,Livro II, proposição VII, folha23 frente. Figura incluída na obra de António TRINDADE, op., cit., p. 175.
Figura 17. -‐ Piero della Francesca, De Prospectiva Pingendi...,Livro II, proposição VI, folha 21 frente. Figura incluída na obra de António TRINDADE, op., cit., p. 176.
Piero também é o primeiro a escrever um tratado com rigor científico, muito apoiado na matemática, não é por acaso que o seu melhor aluno de perspectiva13 tenha sido Luca Pacioli, brilhante matemático, que mais tarde vem a ser professor de Leonardo e em 1509 publica o tratado “De Divina Proportioni” onde fala do número de ouro e da a sua aplicação na arquitectura e na pintura. Faz apologia da matemática como fundamento de todas as ciências, expõe os princípios euclidianos, estuda a esfera e os poliedros regulares, como por exemplo o dodecaedro e o polígono de vinte e seis lados, o hexadecágono. Aliás podemos afirmar que o estudo da matemática é por demais evidente e o crescente interesse dos artistas do Renascimento pela Divina Proportioni, Proporção Àurea ou número de ouro, arrastou todos os eruditos da época. Como é sabido, a Proporção Áurea, ou número de ouro, é uma constante real algébrica irracional, denotada pela letra grega “Y arredada a três casas decimais ou seja 1.618.
13 Cf. From Filippo Lippi to Piero della Francesca – Fra Carnevale and the Making of a Renaissance
Master, Pinacoteca di Brera, Milan, 2005, católogo publicado na ocasião da exposição no The Metropolitan Museum of Art, New York, 2005, p. 277.
Este número está relacionado com a natureza do crescimento. E pode ser encontrado na proporção das conchas, seres humanos e em inúmeros outros exemplos que envolvem a ordem do crescimento. Mais tarde, a teoria da sequência de Fibonacci, - onde cada número è a soma dos dois números imediatamente anteriores na própria série -‐ que aparece na natureza do DNA, no comportamento da refracção da luz dos átomos, nas vibrações sonoras, no crescimento das plantas, nas espirais das galáxias, nas ondas dos oceanos e em muitos outros fenómenos, vem também reforçar o interesse da matemática no estudo da geometria (Fig18.)14. Nas figuras geométricas, por exemplo um decágono regular, inscrito numa circunferência, tem os seus lados em relação dourada.
14 Cf. Kimberly ELAM, Geometry of Design-Studies in Proportion and Composition, Princeton Architectural Press, New York, 2001, pp. 30-‐31.
Figura 18. - Espiral em Secção dourada, criada com triângulos em secção dourada. Figura incluída na obra de Kimberly ELAM, Geometry of Design-Studies in Proportion and Composition, Princeton Architectural Press, New York, 2001, p. 31.
O pentagrama obtido através do traçado das diagonais de um pentágono regular, mostra um pentágono menor formado pelas intersecções das diagonais, que está em proporção com o pentágono maior de onde originou o pentagrama (Fig.19). A razão entre as medidas dos lados dos dois pentágonos é igual ao quadrado da razão áurea.
Figura 19. - O pentagrama é obtido através do traçado das diagonais do pentágono regular. O pentágono menor (1) está em proporção áurea com o pentágono exterior (2). Desenho assistido por computador do autor, realizado no software vectorial-‐ Freehand MX.
Voltando a Piero e ao “De Prospettiva Pingendi”, o tratado vem referir também a representação perspéctica de elementos da figura humana, recorrendo a secções ou curvas de nível para representar os pontos das diferentes zonas do rosto que assim permitem a representação do escorço. Trata a cabeça humana como um sólido geométrico de diferentes características e divide a cabeça em secções que identifica por pontos que no fim estão interligados como uma malha, antevendo assim os métodos que os softwares de computação gráfica 3D recorrem para a modelação de sólidos.
A certa altura o autor diz: “ muitos pintores condenam a perspectiva, porque eles não a entendem o poder das linhas e dos ângulos produzidos por elas, por isso eu sinto que tenho que mostrar que esta ciência é necessária à pintura”15. Estas afirmações mostram que eram poucos os artistas que aplicavam as lições de Piero e Alberti na perfeição. A grande maioria utilizava métodos empíricos para resolver as questões da perspectiva.
Figura 20. – Método de Piero della Francesca, recorrendo ao quadrado circunscrito e à respectiva diagonal. Desenho assistido por computador do autor, executado no software vectorial-‐ Freehand MX.
15
Toscano 1961, p.91, Cf. Keith CHISTIANSEN, From Filippo Lippi to Piero della Francesca – Fra Carnevale and the Making of a Renaissance Master, Pinacoteca di Brera, Milan, 2005, católogo publicado na ocasião da exposição no The Metropolitan Museum of Art, New York, p. 46.
Por vezes alguns artistas conseguem resultados que à primeira vista parecem correctos, mas um estudo perspéctico mais pormenorizado revela a inexistência da utilização de um método rigoroso para representar a perspectiva. Através do quadrado circunscrito e da diagonal de construção, Piero adopta e serve-‐se de um método rigoroso e eficaz. De uma forma simples, podemos mostrar o método, recorrendo a um hexágono colocado sobre o Geometral, onde através do quadrado circunscrito e da diagonal de construção conseguimos a perspectiva do mesmo16. Após a construção da perspectiva do quadrado e a definição do ponto P como ponto de fuga, incluímos um hexágono determinado pelas arestas A, B, C, D, E, e F. Através da diagonal do quadrado e da intercepção das linhas que partem dos vértices da figura geométrica podemos traçar linhas ortogonais até à aresta superior do quadrado que está em verdadeira grandeza e de seguida as linhas que convergem para o ponto P que vão interceptar a diagonal em perspectiva. Depois de encontrar os pontos A1, B1, C1, D1, E1, e F1 da diagonal em perspectiva resta conduzir linhas paralelas à linha de terra. Na intercepção destas linhas com as ortogonais A, B, C, D, E, e F, resulta o hexágono em perspectiva (Fig.20). Outro aspecto importante do tratado, é a forma como Piero descreve a construção de arcos de circunferência de perfil que se projectam em arcos de elipses. Para tal, o autor recorre ao octógono e ao polígono de dezasseis lados, o hexadecágono. Os lados do octógono uma vez subdivididos em mais oito lados mais pequenos, dão origem a um polígono de dezasseis lados, um hexadecágono, que Piero apresenta incompleto, mas que permitem ao autor desenhar com bastante rigor os arcos de elipse em perspectiva, pois os lados funcionam como tangentes17. Em 1505 Jean Pelérin, mais conhecido por Viator, publica a primeira edição do seu tratado De Artificiali Perspectiva18, resultado também das viagens que 16 Cf. António TRINDADE, UM OLHAR, op., cit., pp. 167-‐168. 17
Idem, Ib., p. 182.
18 Cf. Svetlana ALPERS, The Art of Describing, Dutch Art in the Seventeenth Century, Penguin
Books, London, 1983, p. 53.
desenvolveu às oficinas de pintura em França, ao Norte da Europa e mesmo a Itália19.
19 Cf. António TRINDADE, UM OLHAR, op., cit., p. 222.
Viator terá viajado e é certo que conheceu muitos artistas da sua época que o influenciaram na elaboração do seu tratado. As diferenças que Viator apresenta no seu tratado são nomeadamente as arquitecturas obliquas em relação ao plano frontal do quadro perspéctico, pouco ou nada utilizadas pelos pintores italianos mas apreciadas pelos artistas do Norte da Europa. No seu tratado verificam-‐se, entre outras novidades, o descentralismo do ponto de convergência das ortogonais, a representação das plantas perspectivadas das arquitecturas simultaneamente no mesmo diagrama(Fig.21-‐23) e a primeira representação e designação da linha do horizonte.
Figura 21. – Em cima, Leonardo da Vinci, Codex Arundel, Manuscrito M, folha 3 verso, Figura incluída na obra de Liliane BRION-‐GUERRY, Liliane, Jean Pélerim Viator. Sa Place dans L’Histoire de la Perspective, col. Les Classiques de L’Humanisme, Paris, Societé d’Édition les Belles Lettres, 1962, pág.16, fig.18. Em baixo, construção do quadrilátero quadrado em escorço de Jean Pélerin Viator, De Artificialis Perspectiva, 1ª ed., 1505, Cap. folha 5 frente. São grandes as semelhanças entre os dois esquemas. Figuras incluídas na obra de António TRINDADE, op., cit., p. 228.
Figura 22. -‐ Jean Pélerin VIATOR, De Artificialis Perspectiva, 2ª ed., 1509, Cap. VII, folhas 4 frente e 4 verso, figura incluída na obra de António TRINDADE, op.,cit., p. 236.
Figura 23. -‐ Jean Pélerin VIATOR, De Artificialis Perspectiva, ed., 1505, folha 8 frente. Figura incluída na obra de António TRINDADE, op., cit., p. 248.
Fra Carnevale de nome Bartolomeo di Giovanni Corradini (1420/25-‐1484), embora mencionado por Vasari, só nos últimos trinta anos é que foi considerado um pintor importante do período Renascentista Italiano e a sua obra motivo de interesse para o estudo da arte do Renascimento. É provável que tenha estudado com o pintor do período gótico tardio António Alberti, trabalhou seguramente na oficina de Filippo Lippi até Setembro de 1446, mas é provável que tenha ficado em Florença por mais tempo. Volta a Urbino em 1449 e é ordenado monge dominicano com o nome de Fra Carnevale. É citado como autor da nova porta da igreja de San Domenico o primeiro edifício Renancentista de Urbino. A sua participação na construção do Palazzo Ducale está documentada e as suas pinturas revelam um grande interesse pela arquitectura. É provável que tenha conhecido Alberti em Urbino em 1460. Fra Carnevale deve ter tido acesso à biblioteca Ducal onde existia uma cópia do tratado de Arquitectura de Vitrúvio20. O Trabalho mais conhecido de Fra Carnevale é o retábulo do altar de Santa Maria della Bella onde se destacam o “Nascimento da virgem” (Fig.25) e “Apresentação da virgem no templo” (Fig.26) 1466-‐67 que estão respectivamente em Nova York e em Boston. Vasari faz referência a esta obra na medida em que influenciou Bramante. Fra Carnevale é influenciado por Filippo Lippi, Domenico Veneziano e Piero della Francesca. O seu sucesso foi assombrado pelo génio de Piero, as suas ideias arquitectónicas suplantadas por Luciano Laurana e Francesco di Giorgio, mas o seu contributo foi crucial para história da Renascença na região de Marches. Durante a sua estadia em Florença no oficina de Filippo Lippi, recebeu lições de perspectiva espacial de Brunelleschi, Donatello e Leon Battista Alberti. Após o encontro com Domenico Veneziano amadureceu o gosto pelas gravuras naturalistas flamengas, em particular pelos amplos cenários e as cores claras e polidas. Fra Carnevale conhece o tratado de Piero “De prospectiva pingendi” mas não tem a intelectualidade de Piero e entende a perspectiva como um meio de ordenar o mundo visual.
20 Cf. From Filippo Lippi to Piero della Francesca, op., cit., p. 50.
Fra Carnevale trabalhou com Filippo Lippi, o que foi decisivo na sua obra futura, até porque Filippo foi o responsável pela transição do estilo gótico para a sensibilidade do Renascimento. Filippo Lippi foi o primeiro artista Florentino a responder à pintura Flamenga. O seu interesse revela-‐se também na descrição de objectos do dia-‐a-‐dia, como a representação do mobiliário interior das habitações com os seus objectos. Um bom exemplo disso é a sua pintura Anunciação (Fig.24) da igreja de San Lorenzo, onde podemos ver um vaso isolado, meio cheio de água, literalmente inspirado no trabalho de Jan van Eyck21.
Figura 24. – Filippo LIPPI, A Anunciação. San Lorenzo, Florença, Figura incluída na obra From Filippo Lippi to Piero della Francesca, op., cit.,p. 51.
21 Idem, Ib., p. 51
Figura 25. – Fra CARNEVALE, O Nascimento da Virgem, do Retábulo do altar de Santa Maria della Bella. Figura incluída na obra Fra Carnevale, From Filippo Lippi to Piero della Francesca, op., cit.,p. 260.
Voltando a Fra Carnevale (Figs. 25-‐26) e aos painéis da colecção Barberini, escolhemos o painel A Apresentação da Virgem no Templo, (Fig.26) onde a perspectiva das arquitecturas apresenta mais motivos de interesse para a nossa análise de reconstrução perspéctica . Após análise cuidada, fomos encontrar o ponto de convergência das ortogonais F (Fig.27) no limite da pintura à direita. Todas as linhas convergem correctamente para o ponto de fuga, o que revela rigor no traçado das ortogonais. A coluna do lado esquerdo está ligeiramente desviada em relação ao plinto pois o respectivo eixo teria de passar no centro daquele. Através da aplicação do teorema de Tales podemos verificar que os arcos estão correctamente construídos. As janelas acima dos referidos arcos também estão bem posicionadas, podemos mostrá-‐lo através da reconstituição perspéctica da figura 27 onde voltámos a aplicar o teorema de Tales, escolhendo um ponto de
fuga arbitrário A no limite esquerdo da pintura. Só através de grandes conhecimentos de geometria é que foi possível desenvolver esta pintura, onde podemos afirmar que Fra Carnevale muito possivelmente teve acesso ou estava familiarizado com as teorias de Alberti e Piero della Francesca.
Figura 26. – Fra CARNEVALE, A Apresentação da Virgem no Templo, do Retábulo do altar de Santa Maria della Bella. Figura incluída na obra Fra Carnevale, Filippo Lippi, , From Filippo Lippi to Piero della Francesca, op., cit., p. 261.
Figura 27. – Fra CARNEVALE, A apresentação da Virgem no Templo. Figura retirada da obra From Filippo Lippi to Piero della Francesca, op., cit., p. 261. Reconstrução perspéctica através de desenho assistido por computador do autor, executado no software vectorial-‐ Freehand MX .
Figura 28. – Reconstrução perspéctica através de desenho assistido por computador do autor, executado no software vectorial-‐ Freehand MX .
Ainda dentro da pintura italiana deste período, e no seguimento da eficácia da perspectiva geométrica, seleccionámos os paradigmáticos painéis urbinatos, realizados por volta de 1460-‐70, onde é evidente a vontade de criar novos espaços, vazios de figuração ao contrário da tendência habitual. Os referidos painéis descrevem perspectivas arquitecturais que representam situações urbanas sem vida, antecipando o que hoje conhecemos como desenho de computador a três dimensões22. Este painéis revelam profundos conhecimentos de perspectiva. Actualmente o nome pelo qual são identificados, correspondem às cidades em que estão depositados, ou seja, Urbino, Baltimore e Berlim. Escolhemos o painel de Urbino, mais conhecido como La citta Ideale, (Fig.29) atribuído, sem certeza, ao círculo de Leone Battista Alberti, a Piero della Francesca ou a Luciano Laurana e realizados cerca de 1460-‐70, no ultimo quartel do século XV23.
Figura 29. – La città ideale, Urbino, Galleria Nazionale de Marche. Figura retirada da Web em http://www.issirfa.cnr.it/46,46.html. Reconstrução perspéctica através de desenho assistido por computador do autor executado com software vectorial-‐ Freehand MX.
22
Cf. Manuel Jorge Rodrigues COUCEIRO da COSTA, Perspectiva Topológica- o Conceito, comunicação apresentada no IV Encontro Nacional da APROGED, 2002, Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, p. 25. 23 Cf. António TRINDADE, op., cit.,p. 445.
Figura 30. – Reconstrução perspéctica através de desenho assistido por computador do autor executado com software vectorial-‐ Freehand MX.
Como podemos verificar na reconstituição (Fig.30), o rigor perspéctico é extremamente elevado. Podemos afirmar que é um hino à Perspectiva Linear Plana. Através da aplicação do método da diagonal, é possível verificar que as distâncias entre vãos estão rigorosamente correctas. O desenho geométrico do pavimento e dos alçados muito ao gosto de Piero, são de um rigor absoluto, onde todas as linhas ortogonais convergem para o ponto P.
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