A planície litorânea sul-sudeste do Brasil: um caso de endemismo de mamíferos em sistemas quaternários costeiros.

May 27, 2017 | Autor: Irene Garay | Categoria: Endemism, Atlantic Forest, Coastal Quaternary, Leontopithecus caissara
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A PLANÍCIE LITORÂNEA SUL-SUDESTE DO BRASIL: UM CASO DE ENDEMISMO DE MAMÍFEROS EM SISTEMAS QUATERNÁRIOS COSTEIROS MARIA LUCIA LORINI, VANESSA GUERRA PERSSON, IRENE GARAY & JORGE XAVIER DA SILVA Resumo: As áreas de endemismo das regiões de baixas altitudes na Floresta Atlântica, especialmente as costeiras, constituem hotspots insubstituíveis pela alta proporção de espécies endêmicas e ameaçadas que abrigam. Em particular, a região sobre terrenos quaternários costeiros representa uma das porções menos conhecidas desse bioma, apesar de sua antiga e intensa história de ocupação antrópica que remonta ao descobrimento do Brasil. O arcabouço geológico-geomorfológico, as mudanças climáticas e variações do nível do mar no Quaternário, em concerto com processos pedogenéticos e biogeográficos, comandaram a evolução destes complexos mosaicos de sistemas costeiros. Em tais sistemas, merece atenção o parco endemismo de vertebrados terrestres associados a ambientes de restinga, assim como a grande polissemia e controvérsia das definições de restinga na acepção geológica-geomorfológica e, sobretudo, na biológica. Nesse contexto, o presente capítulo inicia pela caracterização da planície litorânea sul-sudeste em termos da gênese de seus ambientes e da constituição dos sistemas vegetacionais. A seguir abordam-se questões referentes ao uso dos distintos conceitos de restinga e suas implicações sobre a temática do endemismo em sistemas quaternários costeiros. Apresenta-se o caso da distribuição de Leontopithecus caissara na planície litorânea sul-sudeste e, à luz da problemática do uso do termo restinga, discute-se o endemismo de mamíferos em planícies litorâneas. Ressalta-se que considerar o complexo vegetacional das planícies litorâneas como um todo pode contribuir para revelar diferentes padrões de endemismo exclusivos destes sistemas ou partilhados com outros sistemas do bioma. Tal abordagem possibilta reconsiderar a questão do endemismo tanto do ponto de vista biogeográfico como de conservação. Palavras-chave: Endemismo, Floresta Atlântica, Quaternário Costeiro, Restinga, Leontopithecus caissara. Abstract: Areas of endemism in Atlantic Forest lowlands, especially the coastal regions, are irreplaceable hotspots due the high proportion of endemic and endangered species they harbor. In particular, the region on quaternary coastal terrains represents one of the least known portions of this biome, despite its ancient and intense history of human occupation dating back to the discovery of Brazil. The geologicalgeomorphological framework, climate changes and sea level variations during the Quaternary, in concert with pedogenic and biogeographical processes, led the evolution of these complex mosaics of coastal systems. In such systems, calls the attention the limited endemism of terrestrial vertebrates associated with restinga environments, as well as the great polyssemy and controversy of meanings and definitions surounding the word restinga, both in geological-geomorphological and biological sense. In this context, the chapter begins by characterizing the coastal plain south-southeast in terms of the genesis of their environments and vegetation systems. Next section approaches issues regarding the use of the different concepts of restinga and the implications on their endemism. The distribution of Leontopithecus caissara on the coastal plain south-southeast is reported and, in light of the problematic use of the term restinga, the endemism of mammals in coastal plains is discussed. It is highlighted that consider the complex vegetation of coastal plains as a whole can contribute to reveal different patterns of endemism exclusive of these systems or shared with other systems of the biome. This approach permits reconsider the question of endemism from a biogeographic and conservation point of view. Key words: Endemism, Atlantic Forest, Coastal Quaternary, Restinga, Leontopithecus caissara

Introdução A Floresta Atlântica Brasileira é considerada um dos maiores hotspots de biodiversidade e um laboratório de valor inestimável para a compreensão dos efeitos da fragmentação do hábitat em regiões tropicais (LAURENCE, 2009). Atualmente o bioma apresenta entre 11,4 a 16% de sua cobertura florestal original, que se encontra muito fragmentada em pequenos

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remanescentes (RIBEIRO et al., 2009), dos quais apenas 2% está protegido em áreas de proteção integral (PINTO et al., 2006). A Floresta Atlântica apresenta um alto nível de endemismo de espécies, que representam cerca de 40% de suas espécies de árvores, 16% de aves, 27% de mamíferos, 31% de répteis e 60% de seus anfíbios (MITTERMEIER et al., 2005; METZGER, 2009). Em termos de distribuição das áreas de endemismos dentro da Floresta Atlântica Brasileira, as regiões de baixas altitudes, particularmente as costeiras, são consideradas hotspots insubstituíveis pela alta proporção de espécies endêmicas e ameaçadas que abrigam (BROOKS & RYLANDS, 2003, TABARELLI et al., NO PRELO). Embora amplamente utilizado, muitas vezes não fica claro o que se entende pelo termo Floresta Atlântica (SCARANO , 2009). Em boa parte dos casos o uso do termo tem a conotação de floresta ombrófila (sensu stricto), mas para muitos autores a expressão Floresta Atlântica (sensu lato) deve ser entendida como um complexo formado por várias comunidades vegetacionais (e.g. MORELLATO & HADDAD, 2000; OLIVEIRA FILHO & FONTES, 2000), incluindo seus ambientes núcleo (floresta ombrófila) e outros ambientes periféricos (e.g. florestas estacionais, paludosas, restingas, inselbergs e campos de altitude) (RIZZINI, 1979; SCARANO, 2009). Em particular, a região da Floresta Atlântica sobre terrenos quaternários costeiros representa uma das menos conhecidas porções do bioma, apesar de sua antiga e intensa história de ocupação antrópica, que remonta ao período do descobrimento do Brasil. Exemplos notáveis deste quadro foram as recentes descobertas em grupos tão conhecidos como mamíferos e aves: uma nova espécie de primata, o mico-leão-da-cara-preta (Leontopithecus caissara), e um novo gênero e espécie de ave, o bicudinho-do-brejo (Stymphalornis acutirostris), ambas no litoral paranaense a menos de 300 km de São Paulo, a maior metrópole da América do Sul (LORINI & PERSSON, 1990; BORNSCHEIN et al., 1995). Descritas apenas na década de 1990, as duas espécies ocorrentes em ambientes quaternários já se encontram globalmente ameaçadas de extinção, o que demonstra claramente o grau de desconhecimento e de perda que caracterizam as formações cenozóicas da Floresta Atlântica. Cabe destacar que a grande heterogeneidade natural dos ecossistemas cenozóicos costeiros, bem como a incidência superposta de intenso e diversificado uso antrópico nesta zona, acabaram por produzir um complexo mosaico de paisagens fragmentadas que atualmente configura esta porção oriental do território brasileiro. O arcabouço geológico e geomorfológico, as mudanças climáticas e variações do nível do mar no Quaternário, os processos pedogenéticos e biogeográficos em concerto comandaram a evolução destes diversos sistemas costeiros (SOUZA, 1999; LORINI, 2007). Tais sistemas continuam evoluindo sob os processos naturais atuais e a este cenário são sobrepostos novos processos estruturantes dirigidos pela ação do homem, que passa a representar um poderoso agente de mudança destas paisagens. Em termos de sistemas costeiros da Floresta Atlântica, um tema que merece atenção diz respeito a endemismos relacionados a ambientes de restinga. De acordo com a visão corrente na literatura, em termos de vertebrados terrestres existem poucos endemismos de restinga, sendo registradas sete espécies de répteis, cinco de anfíbios, uma de aves apenas e nehuma de mamífero (CERQUEIRA, 2000; ROCHA et al., 2003, 2005). Dentro deste contexto, o presente capítulo visa apresentar uma caracterização da planície litorânea sul-sudeste em termos da gênese de seus ambientes e da constituição dos sistemas vegetacionais, abordando questões referentes ao uso de distintos conceitos de restinga e suas implicações sobre a temática do endemismo nestes sistemas costeiros, particularmente em mamíferos.

Endemismo de mamíferos em sistemas quaternários costeiros

GÊNESE

DOS AMBIENTES DA

PLANÍCIE LITORÂNEA SUL-SUDESTE

O litoral brasileiro, com seus cerca de 9000km de extensão, apresenta uma divisão em cinco regiões fisiográficas clássicas, as quais foram definidas por SILVEIRA (1964) com base principalmente em elementos geológicos, oceanográficos e climáticos. Ainda que esta divisão seja bastante genérica e abrangente, a mesma tem sido adotada com algumas adições e/ou modificações por vários autores (e.g. SUGUIO & TESSLER,1984; SUGUIO & MARTIN, 1987; VILLWOCK, 1994). Em cada um dos grandes setores reconhecidos para a costa brasileira ocorrem as planícies costeiras, definidas como superfícies geomorfológicas deposicionais de baixo gradiente, formadas por sedimentação predominantemente subaquosa, que margeiam corpos de água de grandes dimensões, como o mar (SUGUIO, 2000). Também conhecidas como baixadas ou planícies litorâneas, estas superfícies são constituídas por sedimentos terciários e sobretudo quaternários, estando freqüentemente associadas a desembocaduras de grandes rios e/ou reentrâncias na linha de costa, podendo estar intercaladas por falésias e costões rochosos de idade pré-cambriana, sobre os quais assentam-se eventualmente seqüências sedimentares e vulcânicas acumuladas em bacias paleozóicas, mesozóicas e cenozóicas (VILLWOCK, 1994). Cabe destacar que ao longo do litoral brasileiro, especialmente em sua porção sudeste e sul, uma das feições mais marcantes corresponde às planícies costeiras formadas pela justaposição de cordões litorâneos, também denominadas de restingas, feixes de restinga, terraços de construção marinha, antigos cordões praiais ou paleocordões (BIGARELLA et al., 1978; MARTIN et al., 1988). O litoral brasileiro esteve sujeito a importantes variações do nível relativo do mar durante o Quaternário, cujas fases transgressivas e regressivas foram fundamentais na gênese dos ambientes costeiros. Apesar da variabilidade regional e local, segundo SUGUIO (2001) as duas últimas máximas transgressões ocorreram no Pleistoceno superior (ca. 123.000 anos A.P.) e no Holoceno médio (ca. 5.100 anos A.P.), quando o mar atingiu respectivamente 8 ± 2 m e 4,5 ± 0,5 m acima do nível atual. Posteriormente, cerca de 3.600 anos A.P., um outro nível máximo transgressivo foi atingido entre os 2 e 3,5 m. O atual processo de regressão começou após o último máximo, 2.800 anos A.P., para o qual se calcula um nível 1,5 a 2,5 acima do nível de hoje (SUGUIO, 2001). Faz-se necessário ressaltar, contudo, que a existência deste padrão das últimas transgressões holocênicas após a de 5.100 anos A.P. é ainda bastante questionada (ANGULO & LESSA, 1997; ANGULO et al., 2006). Em recente revisão dos estudos existentes sobre paleoníveis marinhos da costa leste brasileira, ANGULO e colaboradores (2006) demonstram uma tendência comum indicativa de ascensão a um nível marinho máximo e superior ao atual no Holoceno médio, com uma queda subseqüente até o tempo atual. De acordo com SUGUIO & MARTIN (1987), a evolução paleogeográfica da planície costeira sul e sudeste do Brasil poderia ser sintetizada em um modelo que apresenta sete estádios evolutivos: I) Máximo da regressão pliocênica, onde o nível do mar estaria no mínimo a 100 m abaixo do atual. II) Transgressão e regressão do Pleistoceno inferior (?), encontrado apenas no Rio Grande do Sul denominado de Barreira I ou Lombas. III) Transgressão e regressão do Pleistoceno Médio, responsável pela formação da ilha-barreira que separa o sistema lagunar Patos-Mirim do Oceano no Rio Grande do Sul. Nas planícies costeiras do Paraná e de Santa Catarina este estágio pode ser relacionado aos terraços arenosos e de cascalhos marinhos que se localizam cerca de 13 m acima do nível atual. IV) Transgressão e regressão do Pleistoceno Superior, quando o mar estaria cerca de 8 ± 2 m acima do atual. Este estádio está representando por terraços arenosos com altitudes em torno de 13 m e, segundo datações de corais na Bahia e de areias no Rio Grande do Sul, apresentariam uma idade média de cerca de 120.000 anos A.P.

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V) Máximo da transgressão holocênica, quando a subida do nível do mar afogou os baixos cursos de rios transformando-os em estuários, que foram isolados por ilhas-barreira e em algumas regiões formaram grandes lagunas. VI) Construção de deltas intralagunares nas lagunas formadas nas desembocaduras dos principais rios. VII) Construção dos terraços marinhos holocênicos a partir de ilhas-barreira, durante a descida do nível marinho. Na década de 90, ANGULO (1992) e LESSA et al. (2000) propuseram um modelo de evolução para a planície costeira de Paranaguá, segundo o qual a formação dos terrenos partiria de ilhas-barreira transgressivas e regressivas tanto no Pleistoceno como no Holoceno. Um esboço de evolução paleogeográfica para dois setores da região litorânea entre o sul de São Paulo e o norte de Santa Catarina foi apresentado em LORINI (2007), baseado na compilação de estudos anteriores realizados na região (ANGULO, 1992; SOUZA, 1999; BEHLING & NEGRELLE, 2001). Os dois setores correspondem à península de Superagüi (município de Guaraqueçaba, litoral norte do Paraná) e à planície de Itapoá (município de Itapoá, litoral norte de Santa Catarina), os quais representam planícies desenvolvidas, respectivamente, na ausência e na presença de ilha barreira, que formam os dois padrões encontrados na região. O seguinte esboço de evolução paleogeográfica (ANGULO, 1992; LORINI, 2007) procura descrever as principais etapas de construção e transformação dos ambientes na península de Superagüi, que ocorreram a partir do Pleistoceno superior: 1) Durante o máximo da transgressão Cananéia (120.000 anos A.P.), associada ao estágio interglacial Riss-Würm, o mar deve ter atingido o sopé da Serra do Mar, alcançando uma altura de oito metros sobre o nível atual, de modo que a costa mostrava configuração típica de costa de imersão. Corresponderia à fase transgressiva do Estádio IV de SUGUIO & MARTIN (1987). 2) Com o advento da fase regressiva, os processos de dinâmica costeira construíram sucessivos cordões arenosos litorâneos, que acabaram por formar uma planície arenosa suavemente ondulada, a planície de restingas. Representaria a fase regressiva do Estádio IV de SUGUIO & MARTIN (1987). 3) Ao longo desta fase o nível marinho esteve sempre inferior ao atual, chegando a atingir mais de 110 m abaixo deste nível há cerca de 18.000 anos A.P. Dessa forma, a nova planície, submetida aos agentes de dinâmica subaéreas, começou a ser retrabalhada sobretudo por ação fluvial, quando a drenagem deve ter erodido profundamente a planície de restinga. Neste estádio praticamente completa-se a construção do terraço marinho pleistocênico, o que representaria o final da fase regressiva do Estádio IV de SUGUIO & MARTIN (1987). 4) No início do último evento trangressivo, correspondente ao último pós-glacial, o nível do mar subiu rapidamente, tendo ultrapassado o nível atual, entre 6.000 e 7.000 anos A.P., cerca de quatro metros. Em conseqüência, o mar invadiu as áreas rebaixadas pela erosão, formando um extenso sistema lagunar, onde sedimentos areno-argilosos enriquecidos de material orgânico foram depositados, fato que deve ter ocorrido há aproximadamente 5.100 anos A.P. A configuração de Superagüi nesta fase exibia maior extensão de baías e estuários e o litoral de mar aberto situava-se entre dois e quatro quilômetros para o interior em relação à costa atual. As paleolagunas e paleoestuários aqui gerados por afogamento e posteriormente colmatados por acumulação fluviomarinha marcam a origem dos sedimentos paleoestuarinos. Concomitantemente, o mar deve ter erodido também as partes mais altas dos sedimentos marinhos pleistocênicos, redepositando areias para formar depósitos marinhos holocênicos de natureza também arenosa. Corresponderia ao Estádio V de SUGUIO & MARTIN (1987). 5) Enquanto o mar retornava para o nível marinho atual, cristas praiais regressivas holocênicas

Endemismo de mamíferos em sistemas quaternários costeiros

foram formadas. Durante a porção final da última regressão, flutuações do nível marinho produziram várias gerações de cordões litorâneos. Formaram-se neste estádio os feixes de restingas subatuais I e II, bem como as planícies de maré atuais e de modo incipiente os feixes de restingas atuais. Este período estaria correlacionado ao Estádio VII de SUGUIO & MARTIN (1987). 6) Representa o período mais recente, desde a segunda metade do século XX. A sua inclusão como fase discriminada no modelo evolutivo pareceu conveniente em função do recobrimento aerofotogramétrico e da ocorrência de eventos relevantes naturais e antrópicos. Dentre os naturais destacam-se a formação de grande parte dos feixes de restingas atuais e das praias atuais. Por fim, ressalta-se a grande alteração antrópica sobre a configuração da costa do Superagüi, que através da abertura do Canal do Varadouro em 1952/53 transformou a antiga península em ilha artificial. No modelo de recontrução paleogeográfica dos terrenos desde o Pleistoceno, tanto para o setor da península de Superagüi quanto para o setor da planície de Itapoá é possível observar que a configuração atual dos terrenos quaternários costeiros é delineada sobretudo no quarto e quinto estádios de cada esboço (LORINI, 2007). Esta janela temporal corresponde ao Holoceno Médio, principalmente após o Máximo Trangressivo, guardando correspondência com os Estádios V e VII do modelo evolutivo de SUGUIO & MARTIN (1987). No caso da planície de Itapoá, onde havia informação paleoecológica disponível, foi possível levantar através do esboço de recontrução paleoambiental que também a composição dos sistemas vegetacionais atuais define-se a partir do Holoceno Médio pós Transgressão Santos, quando se inicia a consolidação de uma densa cobertura de floresta ombrófila com espécies tropicais similares às atuais (LORINI, 2007). Este recorte temporal também corresponde ao quarto e quinto estádios do esboço paleogeográfico desenvolvido, bem como aos Estádios V e VII do modelo evolutivo de SUGUIO & MARTIN (1987). No core palinológico de Volta Velha, o testemunho deste recorte temporal corresponderia à Zona VV-V e VI de BEHLING & NEGRELLE (2001). Partindo destas indicações é possível sugerir que a distribuição e composição dos sistemas vegetacionais atuais de ambientes quaternários costeiros do domínio da Mata Atlântica teve sua configuração delineada por eventos ocorridos a partir do Holoceno Médio, cabendo ainda destacar que a distribuição destes sistemas vegetacionais parece ter sido bastante influenciada por eventos de mudança de nível do mar ocorridos no período (LORINI, 2007). SISTEMAS

VEGETACIONAIS DA

PLANÍCIE LITORÂNEA SUL-SUDESTE

Ao longo de todo o litoral do Brasil, que se estende por cerca de 9000 km, encontra-se uma estreita franja constituída por terrenos de idade quaternária. Embora bem pouco significativa em termos de superfície total ocupada, esta faixa apresenta uma heterogeneidade de unidades de paisagem deveras surpreendente, mesmo quando analisada em pequenos trechos. Esta profusão de ambientes distintos em curto espaço geográfico e com disposição tão intrincada é o motivo pelo qual, via de regra, são tratados em conjunto como “complexo” ou “mosaico” de comunidades vegetacionais. Em termos de vegetação os sistemas do litoral quaternário do Brasil estão incluídos sobretudo dentro da divisão denominada Áreas de Formações Pioneiras, segundo o Sistema Fitogeográfico Brasileiro de Veloso, adotado pelo IBGE (IBGE, 1992). Estes tipos de comunidade representam: (a) vegetação com infuência marinha, popularmente denominada vegetação de restinga, herbácea, arbustiva e arbórea; (b) vegetação com infuência fluviomarinha, incluindo manguezais, brejos de maré, marismas e campos salinos e (c) vegetação com influência fluvial e/ou lacustre, englobando comunidades popularmente conhecias como vegetação de várzea, brejos, pântanos e matas paludosas. Já os terrenos litorâneos quaternários

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mais estáveis e desenvolvidos apresentam vegetação de estrutura florestal, sobretudo as formações de Floresta Ombrófila Densa de Terras Baixas e Aluvial. Neste ponto faz-se necessário discutir a utilização do termo restinga. Utilizada para diversos significados por geólogos, geomorfólogos, geógrafos, biólogos, ecólogos, engenheiros e juristas, o termo restinga tem gerado muitas discussões e controvérsias no meio acadêmico, bem como ocasionado problemas no âmbito da legislação ambiental (SOUZA ET AL., 2008). Na acepção mais difundida, de conceito geológico e geomorfológico, a princípio o termo restinga foi introduzido para definir feições arenosas de linha de costa atuais e instáveis (e.g. esporões ou pontais arenosos, barras arenosas e tômbolos). Contudo, com o passar do tempo a palavra foi sofrendo generalizações e passou a incorporar outros tipos de depósitos marinhos (e.g. cristas praiais ou cordões litorâneos regressivos e terraços marinhos) e até mesmo depósitos arenosos de outras origens (SOUZA et al., 2008; SOUZA & LUNA, 2008). Mas de fato foi no Brasil que a polissemia associada à palavra restinga alcançou um grau sem precedentes, já que em outros países de língua ibérica o termo nunca foi empregado para designar sistemas vegetacionais. Desde o final do século XIX e início do XX (e.g. LÖFGREN,1896; ULE, 1901), o termo restinga tem sido utilizado para designar formações do mosaico vegetacional da planície costeira (e.g. SANTOS, 1943, AZEVEDO, 1950; KUHLMANN,1955; RIZZINI, 1963 E 1979, ROMARIZ,1964; ANDRADE-LIMA, 1966; VELOSO,1966; VELOSO et al., 1991; EITEN, 1983; ARAÚJO, 1992; SILVA, 1998). Do mesmo modo que na acepção geológica-geomorfológica, a noção de restinga referente a sistemas vegetacionais também sofreu generalizações. De sua concepção original relacionada a fitofisionomias existentes sobre depósitos arenosos costeiros (cordões litorâneos, terraços marinhos, dunas, esporões e pontais arenosos, tômbolos, praias e ilhas/ praias-barreiras), o termo restinga paulatinamente tornou-se mais abrangente (SOUZA et al., 2008). Neste processo o conceito acabou por englobar todas as fitofisionomias que recobrem depósitos marinhos e não marinhos nas planícies litorâneas brasileiras, por vezes abrangendo inclusive vegetações que recobrem corpos sedimentares das baixas a médias encostas da Serra do Mar (SOUZA et al., 2008; SOUZA & LUNA, 2008). Os problemas conceituais e a imprecisão associados ao termo restinga acabam por ocasionar inconsistências em estudos acadêmicos, em produtos de mapeamento e em aplicações de legislação ambiental (SILVA, 1998; LORINI, 2007; SOUZA et al., 2008). Pode-se tomar como exemplo a Resolução Conama nº 07/1996 (referente à vegetação costeira no Estado de São Paulo), que designa como vegetação de restinga “o conjunto das comunidades vegetais, fisionomicamente distintas, sob influência marinha e flúvio-marinha, distribuídas em mosaico nas planícies costeiras e consideradas comunidades edáficas por dependerem mais da natureza do solo do que do clima”, sendo representadas pelas seguintes fitofisionomias: “vegetação sobre praias e dunas, escrube, vegetação de entre-cordões, floresta baixa de restinga, floresta alta de restinga, floresta paludosa, floresta paludosa sobre substrato turfoso, floresta de transição restinga-encosta e brejo de restinga” (SOUZA et al., 2008). Em produtos de mapeamento, os mesmos sistemas vegetacionais podem ser rotulados ora como restinga ora como floresta. Nos mapeamentos de remanescentes da Fundação SOS Mata Atlântica (SOS & INPE, 2002), por exemplo, formações arbóreas do quaternário costeiro são mapeados como Restinga em estados da região Sul e como Floresta nos estados do Espírito Santo e Bahia. Tais incertezas criam dificuldades para avaliar a situação geral dos ecossistemas quaternários costeiros do Brasil oriental. Em função destas inconsistências conceituais e operacionais, existe inclusive proposta que advoga o abandono da expressão vegetação de restinga (SOUZA, 2006). Todavia, ainda que diferentes autores tenham apresentado denominações e classificações bastante diversas e até um tanto confusas para referir-se à vegetação costeira, é consensual a

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existência de uma unidade fitogeográfica ou fitoecológica para a região litorânea brasileira (SILVA, 1999). Excetuando as formações que se desenvolvem sobre planícies de maré atuais (manguezais, marismas), percebe-se que os sistemas vegetacionais que recobrem os terrenos de planície litorânea e baixa encosta adjacente exibem forte relacionamento e muitas vezes formam gradientes de difícil discretização. Estas formações vegetacionais revestem os compartimentos também relacionados de um sistema geomorfológico conhecido como baixada. Para sublinhar esta unidade que existe entre os sistemas vegetacionais da planície litorânea SOUZA (2006) propôs a renomeação da expressão vegetação de restinga pela denominação vegetação de planície costeira e baixa encosta (exceto manguezal). Uma característica importante dos sistemas vegetacionais litorâneos é a forte relação que existe entre a expressão fitofisionômica e a natureza e evolução do substrato geológico e pedológico (SOUZA et al., 2009; LORINI, 2007), que são inclusive tratados como comunidades geopedológicas em SOUZA et al. (2009). Nesse sentido, um modelo conceitual de gênese dos sistemas vegetacionais quaternários costeiros do Brasil, baseado na premissa de que a vegetação (nos diferentes estádios de desenvolvimento do ecossistema) reflete as fases de construção do ambiente (LORINI, 2007), demonstrou ser uma abordagem que permite interpretar os mosaicos vegetacionais do litoral brasileiro. Os resultados da avaliação das predições do modelo em escala regional, obtidos pelo cruzamento dos mapas de geologiageormorfologia e de vegetação da região costeira entre o norte de SC e o sul de SP, demonstraram haver boa correlação entre estes dois temas. Do mesmo modo, os resultados da planimetria cruzada destes dois mapeamentos regionais, assim como aqueles da avaliação em paisagem local que comparou o arcabouço geológico e os levantamentos botânicos na península de Superagüi, ambos demonstraram haver boa congruência entre as classes de vegetação e de geologia-geomorfologia. As duas análises indicaram que a distribuição das Formações Pioneiras herbáceas e arbustivas está associada aos terrenos atuais e holocênicos mais recentes, sendo que os sistemas marinhos, fluviais e fluviomarinhos correspondem, respectivamente, a substratos de planícies marinhas, de depressões no interior destas e de planícies de maré. Também foi indicado que a ocorrência dos sistemas florestais mais desenvolvidos corresponde aos terraços mais antigos do Holoceno e Plesitoceno. Resultados de uma análise baseada em sensoriamento remoto multiescala e multisensor (LORINI, 2007) indicaram que para o recorte da costa leste do Brasil, com base em produtos MODIS, a distribuição dos sistemas arbóreos quaternários configura paisagens de matriz predominantemente aberta, com mais de 80% de coberturas não-arbóreas, onde as manchas incidentes correspondem aos pouco mais de 10% de remanescentes arbóreos. Os resultados da monitoria entre a situação pretérita pré-colonização européia e a situação atual em 2001 revelaram que pouco mais de 20% das áreas originalmente arbóreas permaneceram nesta categoria, sendo que a porcentagem de cobertura arbórea que abrangia mais de 56% da distribuição pretérita passou para cerca de 12% na situação atual. Na situação mapeada em 2001 apenas a região do litoral sul de São Paulo ao norte de Santa Catarina ainda permanece com boa cobertura arbórea, sendo que é também neste setor da faixa costeira quaternária que se encontram praticamente todos os remanescentes arbóreos com mais de 1000 ha. Na escala regional, os resultados baseados em imagens LANDSAT-7/ETM+ indicaram que, de modo geral, as paisagens na região do litoral norte de SC ao sul de SP ainda exibem configurações onde a matriz está composta sobretudo por formações florestais, enquanto as manchas incidentes estão constituídas por áreas antrópicas (LORINI, 2007). A região apresenta um predomínio de formações naturais e seminaturais, as quais ainda ocupam 81,45% dos terrenos quaternários, enquanto que as áreas antrópicas mapeadas recobrem 18,55% da superfície total.

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Dentre as áreas não antrópicas, a maior parte é constituída por coberturas arbóreas que ocupam 70,52% dos terrenos, onde os dois grupos de formações com maior expressão espacial correspondem a coberturas que se desenvolvem sobre Espodossolos e Organossolos (27,22%) e sobre Cambissolos, Gleissolos não-tiomórficos e Neossolos Flúvicos (28,07%). A grosso modo, no primeiro grupo destacam-se as vegetações de Floresta Ombrófila Densa de Terras Baixas e Formações Pioneiras Arbóreas de Influência Marinha, enquanto que no segundo figuram a Floresta Ombrófila Densa Aluvial e as Formações Pioneiras Arbóreas de Influência Fluvial. Embora este último grupo apresente uma extensão geográfica significativa, estas formações encontram-se bastante interferidas e via de regra ocorrem em mosaicos com formações secundárias intermediárias, sendo que os ecótopos em melhor estado de conservação estão praticamente restritos a locais de difícil acesso. Já a porção recoberta inteiramente por formações secundárias intermediárias (capoeiras Fase IV), representa 9,94% da superfície total, uma área bem superior aos 5,29% ocupados pelas formações halófitas dos Gleissolos tiomórficos, que compreendem as Áreas de Formações Pioneiras Arbóreas de Influência Fluviomarinha, os manguezais. Em conjunto, as coberturas arbustivas e herbáceas estão distribuídas sobre 10,93% dos terrenos, sendo que as maiores expressões em área são apresentadas pelas vegetações sobre Gleissolos não-tiomórficos, Neossolos Flúvicos e Organossolos, correspondentes às Áreas de Formações Pioneiras de Influência Fluvial, as vegetações de várzea, que somam 7,51%. Em seguida figuram as vegetações sobre Gleissolo tiomórfico (2,97%), os marismas, brejos de maré e apicuns das Áreas de Formações Pioneiras de Influência Fluviomarinha. Por último aparecem as coberturas sobre Neossolos Quartzarênicos, as vegetações de restinga propriamente ditas das Áreas de Formações Pioneiras Arbóreas de Influência Marinha, restritas a 0,45% da região. No grupo das áreas antrópicas a maior extensão geográfica corresponde a áreas agropecuárias, que cobrem 14,35% dos terrenos, ao passo que 4,20% da superfície regional consiste de coberturas não-vegetadas associadas sobretudo à ocupação urbana. A maior porção das áreas rurais está representada por cultivos graminóides, onde 9,46% constituem pricipalmente áreas de forrageiras para bubalinocultura e bovinocultura, bem como áreas de rizicultura. Outros 4,54% do recorte territorial encontram-se cobertos por cultivos não-graminóides, sobretudo por áreas de bananicultura. No que se refere à representação dentro da rede de unidades de conservação federais, cumpre destacar que os sistemas arbóreos do quaternário costeiro da Mata Atlântica encontram-se insuficientemente protegidos (LORINI, 2007). Os resultados da análise de lacunas enfocando o sistema federal de unidades de conservação demonstram que menos de 5% das áreas atualmente ocupadas por remanescentes arbóreos no quaternário costeiro do leste do Brasil encontram-se protegidas em unidades de conservação de proteção integral. Em uma base regional, a menor cobertura destes sistemas em áreas efetivamente protegidas encontra-se na região nordeste e a melhor cobertura situa-se na região sul. Em termos estaduais, os resultados demonstram que das 14 unidades da federação que possuem cobertura de sistemas arbóreos quaternários, menos da metade conta com áreas protegidas em unidades de conservação de proteção integral. Neste contexto, o estado do Paraná destaca-se por abrigar quase 80% das áreas destes sistemas que se encontram em regime de proteção integral. A

DISTRIBUIÇÃO DE

LEONTOPITHECUS

CAISSARA NA

PLANÍCIE LITORÂNEA SUL-SUDESTE

Muito embora diversos exemplos possam ilustrar o quadro caótico que caracteriza a biodiversidade brasileira, cuja exuberante riqueza é igualada apenas pelo grau de desconhecimento e crescente degradação, poucos o fariam de forma tão contundente quanto o mico-leão-da-cara-preta. A

Endemismo de mamíferos em sistemas quaternários costeiros

história de sua descoberta parece confirmar as mais sombrias previsões acerca do extermínio de numerosas espécies de nossa fauna e flora, das quais sequer tivemos registro. Descrito apenas em 1990, Leontopithecus caissara é um primata de colorido exuberante, de corpo laranja-dourado e extremidades negras (Fig.1), que apresenta hábitos diurnos e organização social em grupos. Até 1990, o gênero Leontopithecus compunha-se de três espécies distribuídas alopatricamente no sudeste do Brasil (COIMBRA FILHO & M ITTERMEIER , 1973; H ERSHKOVITZ , 1977; ROSENBERGER & COIMBRA FILHO, 1984). As duas formas mais setentrionais, o mico-leão-da-caradourada (L. chrysomelas) e o micoleão-dourado (L. rosalia), ocorrem respectivamente no litoral dos estados da Bahia e Rio de Janeiro. Já o micoleão-preto, L. chrysopygus, é encontrado nos planaltos interioranos do estado de São Paulo. Representando os mais ameaçados dentre os primatas neotropicais, os micos-leões, animais de rara beleza Figura 1. Mico-leão-da-cara-preta, Leontopithecus caissara (Foto de Zig Koch). e colorido incomum, sempre despertaram a atenção, existindo referências a L. rosalia (Linnaeus, 1766) no Rio de Janeiro a partir das crônicas dos naturalistas viajantes do século XVI. No início do século XIX, já haviam sido descritas as outras duas espécies do gênero Leontopithecus, L. chrysomelas (Kuhl, 1820) e L. chrysopygus (Mikan, 1823). Foi com enorme surpresa, portanto, que em pleno final do século XX pesquisas terminassem por revelar a existência de uma quarta espécie de mico-leão, totalmente desconhecida pela ciência. Encontrado na Ilha de Superagüi, município de Guaraqueçaba, Paraná, o mico-leão-da-cara-preta, Leontopithecus caissara Lorini & Persson, 1990, habita uma das primeiras regiões a ser colonizada no Brasil, situada a menos de 300 km de São Paulo, a maior metrópole da América Latina. Leontopithecus caissara constitui a espécie mais meridional do gênero e sua descoberta representou uma extensão de distribuição geográfica para a família Callithrichidae (LORINI & PERSSON, 1990). Na época da sua descrição, L. caissara era conhecido apenas da localidade-tipo (Barra do Ararapira, Ilha de Superagüi) e outras informações sobre a espécie eram virtualmente inexistentes, mas já havia indícios de que a espécie enfrentava riscos de extinção (LORINI & PERSSON, 1990). Por esta razão, ainda no primeiro semestre de 1990, foi iniciado o Projeto Mico-Leão-da-Cara-Preta (PMLCP) com o objetivo de desenvolver um plano de ação para assegurar a sobrevivência da espécie na natureza e que em sua primeira etapa previa a

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formação de uma base de dados sobre distribuição geográfica, hábitats, aspectos demográficos e bionômicos. Alguns dos resultados preliminares das pesquisas indicaram que a situação de L. caissara parecia ser bastante crítica, podendo o mesmo representar o mais ameaçado dentre as espécies de mico-leão e um dos mais ameaçados dentre todos os primatas conhecidos (PERSSON & LORINI, 1993; LORINI & PERSSON, 1994). Em conseqüência, o mico-leão-da-carapreta foi incluído na lista oficial de espécies da fauna brasileira ameaçada de extinção (IBAMA, portaria nº 045/92-N). A partir de 1995, o Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) vem desenvolvendo o Programa para a Conservação do Mico-Leão-da-Cara-Preta, o que tem intensificado as pesquisas e aumentado o conhecimento sobre a espécie. Leontopithecus caissara é listado sob o status Criticamente em Perigo de Extinção pela Red List of Threatened Species (IUCN, 2008) e já figurou entre os 25 primatas mais ameaçados do mundo (MITTERMEIER ET AL ., 2006), representando uma espécie flâmula e guarda-chuva para a conservação da Mata Atlântica no litoral sul. A vulnerabilidade da espécie resulta sobretudo de seu diminuto contingente populacional e de sua restrita área de distribuição geográfica. Em um estudo baseado no desenvolvimento de um arcabouço hierárquico e multiescalar (LORINI, 2007), a distribuição geográfica de Leontopithecus caissara foi analisada e modelada de maneira espacialmente explícita, na escala de paisagem, região e de bioma ou global (espécie in toto). Um extenso e cuidadoso programa de entrevistas representou a primeira etapa do levantamento da ocorrência de L. caissara e teve como população alvo a parcela dos habitantes que possuía bom conhecimento sobre a fauna local, abrangendo os 11 municípios do litoral do PR e sul de SP. Em sua totalidade, o programa de entrevistas reuniu 441 entrevistados, que forneceram 925 respostas sobre a ocorrência de L. caissara, das quais 745 foram negativas e 180 resultaram positivas. As respostas foram divididas em 24 setores, que constituíram regiões homogêneas quanto à acessibilidade e padrão de uso por parte da população local. A porcentagem de respostas positivas indicou a presença de L. caissara apenas para os municípios de Guaraqueçaba (PR) e Cananéia (SP), nos setores nº 13 e 15, uma vez que os demais apresentaram somente respostas negativas (Fig.2). A segunda etapa do levantamento da ocorrência de L. caissara consistiu na investigação das áreas com auxílio de “playback” de vocalizações longas para a confirmação da presença da espécie nas zonas de entrevistas positivas e em uma faixa tampão adjacente incluída na zona de respostas exclusivamente negativas. Os procedimentos utilizados nos censos seguiram basicamente o método desenvolvido para L. rosalia (KIERULFF, 1993), que consiste na reprodução das vocalizações territoriais dos micos-leões, as chamadas longas (long calls), simulando um encontro entre grupos para induzir uma resposta e aproximação dos grupos selvagens presentes na área de alcance da. Ao longo das 50 unidades amostrais de 200 ha, o procedimento de varredura detectou a presença da espécie em menos de 40% dos blocos amostrais, detectando a ocorrência em 28 pontos. Foram ainda compilados os registros de ocorrência provenientes de alguns poucos encontros ocasionais e de um censo prévio que utilizou o método clássico de avistamento em transecto linear (PERSSON & LORINI, 1993; LORINI & PERSSON, 1994). Empregando análises de modelagem de distribuição de espécies com base no algoritmo de Máxima Entropia (PHILLIPS ET AL., 2006), os registros de ocorrência de L. caissara foram relacionadas a variáveis ambientais preditoras para produzir um mapeamento da distribuição potencial do hábitat para a espécie. Três grupos de variáveis ambientais preditoras foram uitilizados: climáticas (variáveis bioclimáticas), morfo-geológicas (altimetria e substrato geológico-geomorfológico) e bióticoantrópicas (vegetação e cobertura do solo). Os registros de ocorrência obtidos pelo censo com playback foram usados para treinar e calibrar o modelo, enquanto que os registros adicionais e oriundos do censo de transecto foram empregados para testar e validar o modelo.

Endemismo de mamíferos em sistemas quaternários costeiros

Figura 2. Localização dos municípios abrangidos no programa de entrevistas e distribuição das respostas positivas sobre a ocorrência de Leontopithecus caissara.

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Os procedimentos de modelagem de distribuição de L. caissara empregando o algoritmo Maxent foram aplicados em três escalas ascendentes em termos de grão e extensão: a escala da paisagem da península de Superagüi e adjacências, na divisa entre PR e SP (resolução de 30m); a escala da região litorânea entre o norte de SC e o sul de SP (resolução de 90m) e a escala macrorregional/continental do Domínio da Mata Atlântica (resolução de cerca de 1km). Em cada uma das três escalas foram efetuados dois experimentos de modelagem em uma seqüência de inclusão das variáveis explicativas que iniciou apenas com as variáveis bioclimáticas, para em um segundo momento incluir também as variáveis morfo-climáticas contínuas (modelos digitais de elevação) e nominais (mapa geológico), bem como as bióticas e antrópicas categóricas (mapa de cobertura do solo). Todos os experimentos foram executados com a abordagem jacknife, retirando uma variável de cada vez para analisar a sua importância na construção do modelo. Os resultados obtidos por estes experimentos indicam que os modelos gerados alcançaram excelente performance, com valores de AUC de teste superiores a 0,96 em todos as escalas e resoluções adotadas. As predições geradas por estes modelos obtiveram valores de AUC de teste estatisticamente significantes (p
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